Artigo 1.º
Não estacione o coração em becos sem saída (demore o tempo estritamente necessário para largar despedidas ou carregar abraços)
Artigo 2.º
Se beber, com o intuito de se lavar por dentro, não conduza (é quase impossível dar banho ao pensamento sem molhar a lucidez)
Artigo 3.º
Antes de atravessar a realidade, pare, escute e olhe, certifique-se de que não existem ilusões em contra-mão (descalce os caminhos que já não lhe servem – caminhos são sapatos que a terra nos oferece para descalçar irrealidades)
Artigo 4.º
Não abra a boca a beijos desconhecidos (especialmente aos conhecidos que se fazem desconhecer)
Artigo 5.º
Evite adormecer em sonos usados (cansam mais do que subir o infinito a pé)
Artigo 6.º
Seja mais sonhamor e menos sonhador (a dor não faz falta. Cria ausências)
Artigo 7.º
Nunca faça amor em locais proibidos, salvo em legítima defesa da saudade.
Heduardo Kiesse é um poeta angolano residente em Portugal dotado de inegável talento e de grande criatividade. É idealizador e administrador da página ParadoXos
Por que é tão importante escolher, ou melhor, cuidar das palavras que usamos ao nos referirmos aos nossos filhos?
Simplesmente porque os filhos acreditam nos pais.
E este fato faz toda a diferença.
Quando a criança ouve que é valiosa, querida, divertida, criativa, linda, amada, etc, ela se torna aquilo que os adultos (que lhe são referência) lhe dizem que são. Do mesmo modo, quando a criança cresce ouvindo que não presta pra nada, que só faz burradas, que é egoísta, mal educada e tantas outras palavras negativas, certamente que ocorrerá o mesmo. Ela se tornará aquilo que disseram que ela é.
Por isso devemos ter todo o cuidado com o que é dito à criança, estas palavras, ditas e repetidas por aqueles a quem elas dão o maior crédito, em quem confiam com toda a sua força, se tornam o alicerce da identidade em construção da criança. Quanta responsabilidade! E o que fazer quando o repertório de palavras positivas dos pais ou cuidadores for tão pequeno, tão limitado, em razão de uma infância também pobre neste sentido? E quando eles mesmos não ouviram nada de positivo e não foram rodeados de palavras carinhosas enquanto cresciam? Devemos nos contentar com o velho ditado “A gente só pode dar aquilo que recebeu”?
Penso que não. Quando trabalhamos com famílias em situação de violência, vemos que precisamos ir além..
Precisamos olhar para as crianças que ainda se escondem dentro dos pais, crianças muitas vezes raivosas, magoadas, solitárias e que, muitas vezes, foram vítimas de um abandono emocional atroz. Precisamos não só olhar, mas resgatar o não dito, nos aproximar da dor numa tentativa (muito difícil, é verdade) de ajudar esse adulto a olhar com um pouco mais de amor essa criança interior. Ajudá-lo a construir uma ponte, uma ligação entre o presente e o passado, para que o adulto de hoje possa atravessá-la junto com essa criança de ontem, que até então estava lá, esquecida, sozinha, magoada e sofrida. Só então, depois deste “acerto de contas” com a sua própria criança, poderá este adulto olhar verdadeiramente para o seu filho(a). sem o véu da mágoa , do ciúme e da inveja pela oportunidade que esta criança tem e que lhe fora roubada. Só então ele estará pronto, ou ao menos em melhores condições de acolher seu filho da maneira adequada.
Um coração feito de pedras jamais será um lugar de aconchego. Há que se livrar do que fere, da aridez dos sentimentos e retirar os espinhos para que haja lugar para o amor, tão mais macio e acolhedor.
Neste processo de cuidado da criança do passado, através da criança do presente, haverá lacunas que jamais poderão ser preenchidas e temos que ter esta consciência. Mas, uma vez que a criança ainda está lá, sempre será possível fazer alguma coisa.
Que sejamos capazes de ouvir este pedido de ajuda dos pais através do que nos chega hoje, ou seja, do sofrimento de suas crianças. Que possamos fazer isso, sem perder de vista a responsabilização por quaisquer violação de direitos, mas sem julgamentos desnecessários, apenas com a escuta e o olhar que lhes foi negado antes. Para que sejam capazes de perdoar seus pais, para que possam reconstruir parte do caminho e, principalmente, para que não transformem seus filhos em mais tantas outras crianças esquecidas.
Eu não vejo graça em gente que conta vantagem sobre artigos de luxo, viagens caras, restaurantes sofisticados. Assusta-me quando alguém chega dizendo de seus títulos e se apresenta como “doutor”. Mais assustada fico quando alguém me chama de “doutora”. Nas primeiras vezes em que assim fui chamada, senti uma imensa vergonha, como se fosse algum deboche que colocasse às claras tudo aquilo que reconheço não saber.
Eu gosto de conversar com gente simples. Gente que gosta de andar descalça, que não liga para etiquetas, títulos, status… Que não liga a mínima se tiver que comer sem garfo ou faca, que não se angustia com a ausência de guardanapos, que pouco entende de grifes, marcas ou coisas do gênero.
Dia desses, visitou-me uma senhora de cerca de 70 anos, dona Maria. Ela acabara de conseguir a guarda de uma menor: a Rosa, de quem ela já cuidava desde pequenininha e a levou consigo. Chegaram à sala em que eu fazia atendimento no Juizado da Infância e Juventude e logo percebi que nem a dona Maria e nem a Rosa fazia conta da realidade das coisas. Olhavam para os lados, sorriam. Olhavam para cima, também sorriam. Brincavam com as próprias mãos. Dona Maria tinha um ar um tanto mais apreensivo, temendo alguma má criação da menina.
Apressei-me, curiosa para saber do que se tratava. A Rosa é uma menina com desenvolvimento mental incompleto. Loira, 15 anos de idade, de olhos amendoados e ternos. Vive não aprisionada, mas livre em seu mundo pessoal, em seu universo mental adornado de mais mistérios e mais fantasias que o nosso, mas, seguramente mais encantado que o nosso, mais rico, mais lúdico, mais humano.
Elas necessitavam de um benefício previdenciário e procuraram-me para isso. Dona Maria não soube responder nada do que perguntei, assim, analisei a documentação e coletei, após alguns minutos de leitura, os dados necessários para ajuizar a ação. Enquanto isso, a Rosa ainda sorria e brincava com as mãos, olhando-me de modo envergonhado, enquanto eu fazia as anotações.
Terminada a tarefa séria, perguntei:
– Rosa, você está na escola? Sabe ler e escrever?
No que ela respondeu-me:
– Eu estudo. Eu aprendi o “a”, mas já esqueci.
Deus, que vontade passar o restante da tarde conversando com a Rosa. Descobrindo que encanto ela via nas mãos, na parede, no teto, descobrindo a beleza de seu mundo interior, a pureza da sua alma quase infantil.
Insisti:
– Como assim, esqueceu o “a”, Rosa?
Ela, sem vexame:
– Tem nada não. Amanhã eu lembro de novo.
E saíram a Rosa e a sua guardiã Maria, pessoas que não davam fé da sobriedade do mundo. Não mensuravam suas limitações psicológicas, sua pobreza material, não se importavam com os seus pés sujos de poeira, com a unha suja de carvão, com seus cabelos despenteados.
Ao saírem, a Rosa se curva e pergunta para a dona Maria:
– Como ela chama?
– Dotora, ela chama dotora.
Daí, a Rosa grita da porta:
– Dotora, a senhora sabe fazer o “a”?
Eu fiz um sinal positivo com a cabeça e pensei comigo: Não, Rosa, eu não sei. Ao menos não sei fazer o seu “a”, ser misterioso e mutante, que chega e acontece e logo se esvai. Estou presa a um mundo de “as” fixos, rígidos e permanentes. Um mundo de letrados tolos, doutores vaidosos e letristas pouco humanos. Um mundo onde viver não é essencial e sim o ostentar a vivência. Um mundo que você não vai querer conhecer, Rosa. O meu “a” não chega ao chinelo do seu.
Desde livros filosóficos e científicos aos discursos do senso comum, nas corriqueiras queixas do dia a dia, o vazio e a fluidez das relações estão em pauta. São tantos queixando-se da solidão, da desconsideração do outro, da instabilidade dos vínculos, da dificuldade em se envolver emocionalmente quando o outro se fecha para os sentimentos, dentre tantos outros discursos semelhantes, que poder-se-ia supor que, caso essa simples constatação significasse que aqueles que o dizem vivem em condição contrário ao que criticam, teríamos no mundo pessoas em número suficiente para mudar essa perspectiva.
No entanto o sofrimento emocional, toda essa batalha contra o outro, mas pelo outro, parece sobreviver e instalar-se como uma epidemia vampiresca, sugadora das existência e multiplicadora de vácuos e vazios. Bem, não me parece que essa seja uma condição nova na sensação de ser humano. A nostalgia consoladora pode nos fazer pensar que existiram tempos melhores, até porque os registros, históricos ou não, que nos são acessíveis trazem relatos sobre grupos bem específicos. Mas quem é que se baseia em um passado melhor pensando na vida de um escravo egípcio, de uma família camponesa norte europeia que vivia verão e primavera para prevenir-se do inverno e pagar impostos aos donos de sua terra, ou das vítimas de guerra de outrora ou de ontem?
Não que devêssemos basear a nossa vida no pior, mas que “melhor” é esse tão almejado dentre tantas existências outras possíveis? Bem, para isso ou para qualquer especulação, o que poderia ter sido não é, o que foi não é mais. Temos o presente, temos a nós mesmos, as coisas como estão. Relacionar-se pode ser mesmo algo difícil em tempos nos quais todos almejam a liberdade, ainda que não tenham a menor clareza do que ela se trata. Não há sequer definição consensual do que ela seja, não há evidência empírica do que ela poderia ser. Vivendo, primeiramente, aprisionados pelo trabalho, pela necessidade de sustentar-nos através de uma atividade considerada socialmente de respeito, com uma remuneração que nos possibilite ao menos o mínimo (ou não), por uma estabilidade que não nos tire o sono de amanhã, para, então, caso esta fase básica de sobrevivência superada, ter a ilusão de que precisamos nos vestir com roupas mais caras, morar em bairros mais enobrecidos, comer em lugares mais refinados, adquirir objetos cobiçados, e então escolher nossas relações a partir disso – a partir daí, tantas sequências possíveis seguindo esta mesma perspectiva.
Sendo assim, que liberdade conhecemos? Se há alguma coisa, a saber o dinheiro, que se interpõe entre as necessidades mais básicas da nossa vida e as nossas escolhas, é possível pensar em liberdade? Porquanto essa luta que parte dos clamores inegligenciáveis da necessidade do corpo, da sobrevivência bruta à sustentação de uma imagem criada, da sobrevivência de um simulacro; que tempo nos resta para dedicar a estas relações que tanto almejamos? Para enxergar no outro essa correspondência que buscamos? Talvez os praticantes criticados sejam também os praticantes criticantes…
A lógica material nos dá subsídio para pensar no universo dos afetos. Mesmo para executar uma multiplicação milagrosa é preciso um protótipo do que se pretende multiplicar para começar. Não se pode multiplicar pães sem nenhum pão, não se pode multiplicar peixes sem peixe algum, não se pode transformar água em nada, se não houver água. Por maior que seja o desejo de doar, é preciso ter algo consigo para reparti-lo ou fazê-lo múltiplo.
Todavia, o âmbito emocional não funciona de uma forma tão simples quanto o dos objetos. Muitos interpretam que um certo outro foi amado o suficiente, que foi querido o suficiente ou que teve qualquer outro tipo de afeto o suficiente para poder vivê-lo plenamente. Desconsideramos nesse julgamento a própria percepção do outro, e logo revelamos que somos incapazes de ter empatia com a mesma consistência com a qual julgamos. Desconsideramos o massacre diário ao qual todos estão submetidos desde a infância, pelas diversas fontes que nos perfuram com suas considerações: escola, colegas, as pessoas da rua, a televisão, os meios de comunicação, os amigos, “as famílias”, os livros e outros meios de comunicação. Há tanto que recebemos, que só quem conhece a própria armadura dá conta do que o atinge ou não. E ante as flutuações naturais da natureza lunar dos afetos, estas se reconstroem, se reconstituem, as vezes se tornam fortalezas por medo da instabilidade. O amor que vem, o amor que vai, o elogio de ontem que se converte em repreensão amanhã, a melhor amizade de anos que se torna distância. Desilusões.
Em um contexto no qual somos submetidos a insegurança em todos os níveis, desde do que se refere à sobrevivência do nosso corpo, a manutenção de nossos bens, até ao valor que temos enquanto pessoas, não surpreende que resulte nessa necessidade de proteção. Já não há instinto de proteção a um outro mais fraco, pois, embora não pareça, mesmo aqueles que se gabam: todos estão fracos demais. Não aprendemos a sentir pulsar interiormente o desejo de adotar um ato de gentileza, aprendemos a fazê-lo porque é “correto”, e isto engendra trejeitos por vezes assustadores de tão caricaturais. A exemplo da gentileza seguem-se o repertório de sentidos que não mais ultrapassam seus significados: afetos são como encontrados em dicionários, mas não como se fossem ditados pelos manuais ortográficos, mas pelos sentidos atribuídos através de meios aparentemente inocentes: um entretenimento que nos direciona a histórias que deveriam ser as nossas, que poderiam ser as nossas, que desejamos que fosse a nossa, mas não é. Não é a história de ninguém.
Essa estratégia de criar desejo tão explorada pelos meios de comunicação nos impede de conhecer os nossos próprios. Sejam os 10 quilos a menos ou o amante fantástico e aventureiro que aparece para nos salvar de uma vida de tédio, enquanto a revista acaba em alguns parágrafos, a novela em alguns capítulos, o filme em minutos, o jogo em tempos, quem sabe o que prossegue depois? Dos bastidores ao que há por trás deles, quem conhece de fato o que existe pós-final-feliz? Daquele ideal buscado na aparência, no jeito de ser, no jeito de ter, desses status que nos colocam como condição, o que de fato teria servido a nossa sensação de plenitude por mais do que alguns momentos?
Não parece mesmo possível relacionar-se com o outro quando não temos nada a oferecer porque nos ancoramos a um desejo comercial. Esse vazio do qual nos queixamos, se somos nós que sentimos, então também o alimentamos. Contribuímos para este esvaziamento que mata o mundo de fome: fome de sensibilidade. Dessa carência coletiva, o que parece inconsciente é o fato de que se somos desprezados, também desprezamos, se somos julgados, também julgamos, se somos descartados, também descartamos, e segue-se a dialética das ações, ainda que singularizadas por sutilezas. Dessa forma, como podemos esperar receber do outro o que não somos capazes de oferecer? Não seríamos também alvos das queixas que despejamos no mundo?
Não incorramos em engano, questionar-se sobre a própria posição em relação àquilo que criticamos no outro, não é semelhante à postura tão superestimada de gozar da solidão como solução mágica para os desencontros. Isso não é uma realidade: a maior parte das pessoas não estão felizes sozinhas. Essa escolha seria mais de outra natureza, e em alguns casos, mais uma defesa do que uma escolha de fato. Contraditório que seja, o próprio desenvolvimento do homem, do momento em que nasce à sua morte, nos revela uma ausência inquestionável de autonomia absoluta por parte da nossa espécie – é inevitável conviver. E essa coisa de conviver com o outro exige antes uma introspecção espinhosa para conhecer o outro em nós. Questionar-se sobre a própria posição em relação àquilo que criticamos no outro, seja outro Nós, seja outro Um, seja outro Mundo. É relacionar-se.
De vez em quando acontece. Do nada, de manhã bem cedo, à tardinha, no fundo da noite. A qualquer tempo. Começa sem aviso, como lembrança boa, e termina num desejo louco de sair por aí retribuindo sabe-se lá o quê.
Gratidão dá assim. Sem mais. Sentimento honesto, direto, bate e estremece. Irmã gêmea do amor, é coisa dos que se querem bem. Mania dos que se prezam e estimam uns aos outros. Arte de quem ainda acha que dividir é melhor do que possuir.
É certo que o mundo ainda não afundou de vez porque tem sempre alguém agradecendo por aí. Agora mesmo, em algum lugar aqui perto, a poucos metros desta sala de estar só, uma cigarra esgoela gratidão.
Como um saxofonista soprando a alma para fora, soando notas longas de enfeitar o dia, ela divide seu lá dentro com quem está aqui fora.
Canta tão certeira e seu grito vai tão longe e insistente que alguém há de perguntar: “mas o que esse bicho quer tanto com essa cantoria?”
Os especialistas desfilam seus porquês. Do alto de sua autoridade, explicam que é um canto de acasalamento. Um inseto vibrando as asas de luxúria, um macho tomado de desejo pela fêmea ao lado. Muito bem. Mas eu ainda acho que do alto de seu galho a cigarra canta mesmo é para agradecer a Deus. Assim, bicho honesto e agradecido, ganha em troca um amor que lhe renova o canto e a vida. Porque agradece, há de sempre encontrar o que procura.
Quando nos tornarmos agradecedores compulsivos, agradecendo involuntários pelo fato simples de ainda estarmos aqui, alguma coisa terá mudado em nós.
Há de ser uma coisa boa, um negócio coletivo que torna as pessoas amáveis. Um surto de amor espontâneo, uma coqueluche de afeto, uma epidemia de apreço. E tudo o que existir por perto há de ganhar outra cor, outra forma, outros ares que nos levarão mais longe.
De vez em quando acontece. Vem do nada um amor louco pelas coisas simples, pela vida, por alguém. Vem como lembrança boa. E a gente agradece. Porque gratidão é sentimento irmão do amor. Quem tem um, tem o outro. Quem tem os dois tem todo o resto. Agradeçamos, então.
há quem ignore na dor a mais dolorosa tristeza há quem confunde tristeza com falta de felicidade e apesar de que rói ignora, diz que a dor não dói
há quem diz que tristeza é mesmo sentimento que sentimos amor que amamos na mentira que mentimos dói a tristeza triste alegria e magia da dor que nos faz querer
dor gostosa gostosa dor que arranca tristeza nos becos de rugas que se formam no rosto dói mesmo com gosto
sinto… Dor da saudade do passado que volta Dor solta da ilusão que não se mostra Em tempos que jamais se encontram Apenas sofre de propósito o coração ferido Lágrimas… que não são tristeza
há quem diz e só diz por desconhecer o amanhecer de dores espontâneas de sorrisos doridos dor que leva a experimentar outras épocas dor que traz felicidade
A feirante Viviana Novaes de Oliveira começou a trabalhar na feira aos sete anos e nunca mais parou. “Não tive infância”, enfatizou. Até hoje, é do pastel e caldo de cana que vende nas feiras que consegue o sustento para criar os dois filhos. E é por isso que, desde pequena, ela não sabe o que é ter finais de semana: “sábado e domingo são os melhores dias de feira”, explica. No decorrer dos anos, viu a mãe tirar a própria vida e, logo em seguida, seu pai que já estava doente também se foi.
Apesar dos pesares, é sempre sorridente que ela atende a clientela na feira. Aprendeu com a vida que tudo pode acontecer a qualquer momento. Desde que a mãe se foi, disse que carrega uma lição: vive um dia de cada vez.
“Eu não penso no dia de amanhã, eu vivo o hoje. Por isso eu sou sempre feliz. Hoje eu sou feliz, está ótimo. Não sei o amanhã, não pertence a gente.”
Resolvi conversar com ela antes de saber qualquer detalhe de seu passado, justamente porque a achei muito simpática ao vender caldo de cana na feira que tem perto da minha casa. Viviana brincava com a clientela, trocava sorrisos e tratava a todos muito bem.
“Eu posso estar triste com o que for porque aconteceu alguma coisa na minha casa, mas eu nunca deixo transparecer isso na minha feira. Eu acho que as pessoas não merecem o que eu vou passar, tenho que passar alegrias para os outros.”
E foi com a mesma alegria que ela me contou grande parte de sua vida, entre o preparo de um e outro caldo de cana aos clientes.
Cresceu e sempre trabalhou na feira. “A minha infância foi essa. Todo mundo saindo sábado para ir para a balada e eu estava no quintal raspando cana para meu pai vender. Eu não tive por bem dizer uma infância. Daí eu casei e sempre trabalhei. Sempre, sempre, sempre.
Casada há 12 anos, Viviana tem dois filhos, um de 11 anos e uma menina de 5. O marido dela trabalha com ela na feira. “A feira quem começou foi os meus pais e eu trabalho desde os 7 anos, eles faleceram e eu continuo na feira.”
Vivina até tinha outra profissão a seguir, pois fez um curso de auxiliar e técnico de enfermagem, mas achou mais garantido seguir no trabalho que sempre desempenhou. “Mas como a minha vida inteira eu trabalhei na feira, eu falei, não vou trocar o certo pelo duvidoso, e continuei na feira.”
Mãe que desistiu da vida
O pai faleceu um pouco depois que a mãe se foi. Ele tinha problema no rim, fez um transplante e o coração não aguentou.
A feirante contou que seus pais tinham se separado. A mãe dela não superou a separação e a saída que encontrou foi tomar veneno para rato no lugar do habitual leite com café. “Foi um choque, porque ele já estava doente, ficava uma semana em casa, duas no hospital, então a gente já estava mais ou menos preparado. Agora, a minha mãe a gente nem imaginava que ela ia fazer isso”, afirmou. “Foi muito difícil. Ela era uma pessoa que gostava de viver, estava sempre feliz, sempre alegre, e de uma hora para outra ela decidiu.”
E é por isso que Viviana acredita estar preparada para tudo na vida. “Depois de ter passado por isso, nada me abala mais no decorrer da vida, já foi um choque, mais o que eu posso ter? Depois do falecimento dela eu me sinto muito forte. Acha que tem alguma coisa para me abalar? Não tem.”
Sentido da vida
A feirante me disse que nunca tinha parado para pensar sobre o sentido da vida antes, mas respondeu minha pergunta: “eu acho assim, o que é ser vivo? Eu acho que na vida a gente tem que estar preparado para tudo, coisas boas, ruins.”
Disse que batalha por dias melhores. “Agora estou lutando porque mais para a frente tenho que estar sossegada, estar em paz com a vida. Como eu trabalho tanto e sempre trabalhei, eu quero descansar.”
Viviana: “Eu posso estar triste com o que for, mas eu nunca deixo transparecer isso na minha feira.”
Isso pode parecer estranho pra nova geração, mas já teve um tempo em que pra fazer uma pesquisa, você tinha que torcer pra que o assunto pesquisado estivesse coberto por um verbete em uma enciclopédia. Pra falar a verdade, isso já parece estranho pra mim, que cresci tendo que fazer pesquisa na Enciclopédia Britânica. Mais estranho ainda é lembrar de um serviço que a enciclopédia oferecia, pros casos em que um assunto não estava lá, em algum lugar daqueles milhares de páginas: você podia escrever para um endereço e fazer a sua pergunta. Sim, você mandava uma carta, que seria respondida por um pesquisador! Pelo correio! Não lembro bem, mas acho que o processo todo, entre mandar a carta e ter a resposta, levava bem mais que um mês. No começo, tinha toda a expectativa de receber a carta de volta, mas depois de um tempo, acabava ficando meio desestimulante esperar aquele tempo todo pra receber uma resposta que, quando chegava, talvez nem interessasse mais. Devo ter usado esse serviço duas ou três vezes, no máximo. Naquela época, eu sonhava com um mecanismo que desse todas as respostas pras minhas perguntas, na mesma hora em que fossem formuladas.
Bom, o tempo passou e o Google tá aí. Temos acesso a todo tipo de informação, instantaneamente. Talvez, pra um adolescente de hoje, não seja tão instantâneo assim, afinal, você ainda tem que acessar um site, digitar etc, mas enquanto os chips não forem implantados diretamente no cérebro, pra resposta chegar no mesmo momento em que a pergunta for formulada, a gente vai ter que se virar com isso.
O resultado mais imediato dessa facilidade de acesso, é que nós estamos mergulhados num mar de informação inimaginável pra qualquer geração que já esteve por aqui antes de nós. Um dado recorrente nesse assunto é que uma única edição de um jornal contém mais informação do que uma pessoa poderia receber durante toda a vida no século XVII.
Mas sempre com a facilidade, vem alguma fatalidade. Já temos novos distúrbios surgindo, como a Angústia do Excesso de Informação. Pra algumas pessoas, é preciso estar sempre conectado e saber tudo o que está acontecendo, mantendo o fluxo de informação ininterrupto.
Quando a gente pensa em um fluxo, pensa em uma via de duas mãos. Se a informação entra, na forma de noticias, ela vai ter que sair, na forma de opinião. Antes, as opiniões ficavam confinadas dentro de um círculo delimitado pelo alcance da voz e do grau da inibição de cada um. As redes sociais acabaram com esse confinamento. A voz de qualquer pessoa pode ser levada através de um post para qualquer lugar do mundo em que houver uma conexão de internet. E a inibição, quando se está sozinho, na frente de uma tela, com ou sem a facilidade do anonimato, cai drasticamente. Desaparece, em alguns casos. Muita gente fica surpresa ao descobrir que aquela pessoa que parece tão pacata e tranquila, pode ser se transformar numa fonte borbulhante de agressividade quando vai dar a sua opinião sobre algum assunto.
“Alguém acha que esse bando de BURRO do Brasil vai ser alguma coisa daqui a 50 anos? 70? 100? Nada – burro só gera burro e mula!”
(Comentário retirado de site de notícias.)
Sempre se brincou que o Brasil tinha um número de técnicos de futebol equivalente à sua população, já que todo mundo sabia exatamente o que fazer pra escalar a seleção e ganhar qualquer Copa. Com o acesso à informação e a facilidade de emitir uma opinião, hoje em dia todo mundo é especialista em tudo, desde economia até física quântica. E quando se é especialista, fica também a obrigação – ou a tentação – de se emitir uma opinião. Se o assunto em pauta é a crise na Grécia, por exemplo, você tem que ter uma opinião, de preferência que se resuma a ser contra ou a favor. Não pode existir meio termo ou contemporização. Uma situação só pode ser boa ou má, não pode ter um pouco dos dois. Se você tentar ver uma questão por dois lados diferentes, você está em cima do muro e, logo, não tem uma opinião. Até invocam um conceito bíblico pra isso, do Apocalipse, que diz que Deus vomita os mornos. Não acho um grande conceito, mas olha eu aí emitindo uma opinião em um assunto que pode elevar a temperatura de qualquer discussão. E antigamente, no tempo das enciclopédias, sempre se dizia que religião e política não eram coisas que se discutisse. Esse foi um conceito que foi demolido com a chegada das redes sociais, já que são as coisas que mais se discute hoje em dia, junto com comportamento de celebridades.
Mas essa época de extremos acaba transformando tudo em um Fla x Flu onde ninguém se ouve e só o que importa é dar sua opinião com CAPS LOCK, pra tentar ganhar no grito. Acho que talvez seja hora de fazer a opção pelo morno. Essa é uma opinião sem CAPS LOCK e sem muita certeza, em uma época e em um meio onde elas são sempre absolutas. Não precisa uma pesquisa muito profunda, basta uma lida em posts e comentários, pra ver que muita certeza absoluta por aí está sendo construída sobre areia movediça, que é o que acontece quando se constrói uma opinião a partir de pouca pesquisa, partindo de conceitos prévios e buscando só um lado de uma questão.
Enfim, construir uma opinião fundamentada dá trabalho. Por isso acho que dá pra se permitir não ter uma opinião sobre as opções gregas de se lidar com a sua crise, sem que isso gere uma angústia por não poder comentar o post de um amigo sobre o assunto. Um mundo sem tantos especialistas pode ser um mundo com mais harmonia.
“Eu publicamente me declaro agnóstico. A lei da evolução é RIDICULA nunca vi um macaco virar homem, não gosto de bananas.”
(Outra opinião retirada de um comentário de um site de noticias.)
Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.
Não sei
Não sei…
se a vida é curta
ou longa demais para nós.
Mas sei que nada do que vivemos
tem sentido,
se não tocarmos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser:
colo que acolhe,
braço que envolve,
palavra que conforta,
silêncio que respeita,
alegria que contagia,
lágrima que corre,
olhar que sacia,
amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo:
é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
não seja nem curta,
nem longa demais,
mas que seja intensa,
verdadeira e pura…
enquanto durar.
Humildade
Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.
Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.
Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.
Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.”
Cora Coralina nasceu em 20 de agosto de 1889, e morreu na cidade de Goiânia em 10 de abril de 1985. Ela começou a escrever poemas quando tinha 14-15 anos de idade, e participou da Clube Literário Goiano de Dona Virgínia da Luz Vieira, mas ela só publicou seu primeiro livro (Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais) depois que seu marido morreu em 1965, quando ela tinha 75 anos.
Vídeo nos mostra o quanto as atitudes impulsivas, impensadas, produtos da ira e do desequilíbrio interior, podem ser danosas tanto a quem as pratica quanto aos seus circunstantes.
Uma mensagem muito necessária ao nosso tempo, num mundo onde ainda imperam a violência e o egoísmo.
As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.”
O artista assume seu lado obscuro, suas cores de contrastes inadequados, e só por isso pode manipulá-las criando novas composições. Dessas fraquezas e inadequações que todos temos, desse lado obscuro do qual nos ensinam a fugir, caso assumíssemos, caso questionássemos tudo o que sempre nos disseram que deveríamos ser, poderíamos.
***
Não há estudo científico necessário para identificar um artista. Ele ali, em meio a multidão, não precisa estar munido de seus quadros, nem ter ao colo um caderno aberto para anotação de suas ideias ou de seus poemas, não precisa estar fantasiado de palhaço ou com sapatilhas de dançarino, nem carregando um instrumento musical nas costas ou placa que advirta: “Sou artista!”. Ele estará lá, absorto – se sentindo incomodamente comum e diferente, ao mesmo tempo deslocado e íntimo de todos os lugares do mundo. Sua expressão, das linhas que se manifestam na face às roupas que combinam em seu corpo como uma mensagem para o meio, dizem da sua natureza irremediavelmente criativa, sonhadora, soturna e alegre ao ponto da extravagância.
Cena do filme “Modigliani – Paixão pela vida”.
Não surpreende que a vida pessoal dos artistas interesse tanto às pessoas. Artista não é apenas aquele que reproduz técnicas no ateliê, que grava em estúdios, que toca em concertos, que dança em palcos, que atua em frente à câmara, que escreve meticulosamente em frente ao computador ou à máquina de escrever. A mão, o corpo, a mente, todas suas articulações e indomáveis instrumentos articulatórios, das sinapses no interior do corpo às incógnitas da alma, artista não é sequer quem tem obra reconhecida, quem é conhecido, mas é sempre reconhecido, seja pelos anônimos de um beco qualquer ou por um veículo de comunicação com função preestabelecida. Olham para ele e sabem. O escutam e sabem. Sua história é narrada por seus passos, por seus olhos, por seus abraços, pela presença e pela ausência de laços. Pela inquietação. Artista é aquele que funde a arte na vida, e por isso essa vida interessa tanto.
O artista é ingênuo, crédulo, aberto, sonhador e paradoxal, por ser também soturno, cético, cheio de regras incongruentes, desiludido. Vê possibilidade em tudo, vê arte emanando do interior das coisas mais repugnantes. Enxerga e revela as desconfortáveis potencialidades dos seres mais conformados: você pode ser, se quiser! Mas, se não quiser também, o problema é seu…
Porque assim ele vive a vida, como obra de arte, é que se faz artista, e não o contrário. E se para a produção da obra artística, essa oriunda das técnicas artesanais, ele imprescinde de conhecimento, não o é assim para tudo o mais? E se pudéssemos burlar todas as regras que nos enquadram entre padrões cinzentos e apagados ou vibrantes cores monocromáticas que contam falácias sobre um poder vazio, e nos tornássemos artistas da vida? A simplicidade disso é tão absurda que constrange, e tão perigosa que acovarda. É que como podemos ver em “Os Sonhadores”*, os personagens podem nos levar dos extremos do deleite à perdição das tragédias. E o que é isso, se não viver?
Que maravilhoso seria, olhar-se no espelho com o rosto amarrotado pelo travesseiro, atordoado pelo pesadelo, pela insônia ou pelo sonho confuso, e poder pintá-lo não segundo o que diz o catálogo de dicas de maquiagem, mas segundo o nosso desejo de expressão. Que libertação combinar os cortes, cores e panos das roupas segundo nosso próprio desejo, e não segundo as arbitrariedades dos “gurus da moda”, para dizermos através dos retalhos trabalhados sobre a nossa condição. Moda-arte, dá voz a escolha e não à etiqueta. Escolheríamos nossos objetos, os inventaríamos, criaríamos, modificaríamos e transformaríamos em parte do nosso cenário, do nosso figurino, do nosso conceito de si. E ainda, trabalharíamos a palavra para além das convenções, dos jargões do momento ou da polidez das normas, cantaríamos frases, desverbalizaríamos sentidos, pintaríamos com a boca, cantaríamos com a mão, escreveríamos com os olhos.
Nos tornaríamos subversivos, incômodos, incabíveis, contradizendo os limites do humano que faz de fora e para fora, fazendo de dentro para dentro, e fora o corpo revelando a alma, o que mais importa? Desmentiríamos as advertências que destruíram a juventude dos nossos avós, e a vaidade mórbida que tenta desvitalizar a adolescência até que ela se torne uma ignóbil caricatura da chama criativa, apaixonada, rebelde e, por isso, corajosa e desmiolada, capaz de mover montanhas simplesmente pela inocência em acreditar que pode fazê-lo.
Cena do filme “Os Sonhadores”
Denunciaríamos o equívoco dos rótulos supostamente doados, mas que custam mais caro que a vida, nos embriagando “Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher”**. Nossas fumaças com poderes surrealistas – de cigarros, incensos, fogueiras ou do pensamento que se incendeia -; nos proporcionariam diálogos com Baudelaire, com Rimbaud, com John Lennon ou com nossa falecida avó, que agora na morte podendo enxergar além diria: está tudo bem, porque no fim, a vida é o que importa, e a vida não é longevidade mas o que fazemos dela enquanto a temos. A vida é um fim. Passados os tempos da embriaguez de sempre, daríamos espaço para sobriedade enlouquecida produzindo o novo e o vivo onde quer que estivéssemos: todo escritório, todo consultório, todo balcão de venda, toda sala de aula seria viva, potente, vibrante!
Sobrevivendo para contar história tanto ou mais do que antes, e mais que isso: vivendo, poderíamos sentir a alegria de estarmos fazendo exatamente o que estamos fazendo, e ficaríamos ainda mais alegres de vermos o outro fazendo exatamente o que ele está fazendo – teríamos a consciência empática da importância de toda e qualquer atividade, e toda e qualquer atividade seria criativa, por ser feita por uma pessoa que libertou sua criatividade para fruir em cada gesto seu, logo, o homem gari estaria varrendo criativamente a rua, e os sons da sua vassoura roçando e transformando o chão corrompido em espaço limpo, deixando aqui e a ali uma folha para nos lembrar da lamentação e renovação constante das árvores, seria artista: veríamos a arte das coisas simples. Ele sorriria para nós, nós sorriríamos para ele, seríamos todos cúmplices.
Poderíamos correr pela rua quanto tivéssemos vontade, sem preocupações sobre nos considerarem loucos e disso vir a difamação: seríamos todos assumidamente loucos, com o orgulho infantil de quem entende instintivamente não ser a loucura uma doença, mas a doença uma possibilidade tanto da loucura quanto da pretensa normalidade. Dançaríamos na chuva, apaixonados pela vida, sentindo-nos abençoados pelas maravilhas diárias que ela nos traz e que antes ignorávamos pela banalização: agradeceríamos as pesadas nuvens enegrecidas pelo banho nosso de cada dia, pelos rios correndo, pelas belas cachoeiras, pelas ondas do mar que por vezes adotam surfistas em seu seio, pelo líquido essencial que bebemos e nos dá movimento ao corpo, pelo frescor, pelas canções deliciosas compostas por todas as manifestações da água no mundo.
Olharíamos as flores, até mesmo os capins resistentes que nascem rompendo os meios-fios, recitando poesias sobre a resistência e o desejo de existir, ainda que comum, beleza singela de folhas brancas e delicadas, rodeando a porosa rodela amarela que deseja miniaturizar uma simbologia do sol.
Extasiados, entusiasmados, envolvidos com o mundo, nos sentiríamos acolhidos para mergulhar em nossas dores, paixões e delicadezas, para insuflar alegrias ou experimentar prazeres. Fossemos todos artistas, não nos contentaríamos em contemplar o fantasma da vida daqueles que se fizeram enquanto obra de arte, e disso produziram obras: nos interessaríamos pela própria vida, e como obra mínima teríamos a existência – existiríamos todos como obra de arte.
*Referência ao filme “Os Sonhadores” de Bernardo Bertolucci.
** Referência à prosa poética de Charles Baudelaire
A reprodução no CONTI outra foi autorizada pela autora.
Das muitas gírias que já escutei por aí uma que me agrada muito é: “Quem é você na noite?”. É uma referência ao fato de que somos insignificantes na noite, onde todos os gatos são pardos. Menos importância, aliás é o conceito-chave para esse convite à “não ser ninguém na noite”.
Lembro-me uma vez quando presenciei na fila do Festival de Teatro uma cena que me marcou muito, uma pequena confusão e um fulano-de-tal fala para o funcionário no caixa “Você sabe com quem está falando?”. Sim, essa é uma prática mundial, não é só aqui que acontece não e ninguém está livre dessa horrível tendência que eu chamo de “se dar muita importância”.
Recentemente vivi algo parecido, era meu aniversário e eu queria fazer tudo, trabalhar, celebrar com amigos e receber um abraço da minha mãe, do meu pai e do meu avô. Passei rapidamente na casa da minha mãe e com a garagem alugada, parei no posto de gasolina ao lado. Pedi licença ao frentista para deixar o carro ali por cinco minutos e ele negou. Disse que essa era a ordem e eu não poderia parar ali, imediatamente sucumbi ao mal de “me dar muita importância” e iniciei o discurso: – Sou cliente há anos , vou abastecer, etc.” Nada disso convenceu o frentista que foi irredutível. Depois disso liguei para reclamar para o proprietário no maior estilo onde-já-se-viu e ele confirmou que essa era a ordem, não importa quem fosse. Ainda braba, prometi nunca mais voltar lá.
Enfurecida como estava, nada me fazia enxergar o quanto de importância eu estava me dando e que eu estava de fato errada. Nada menos o meu pai, quando contei para ele, ele disse: “- Você está errada, se todo mundo fizer isso os clientes dele não terão onde parar o carro!”. E hoje entendo que não adianta falar em gentilezas e políticas da boa vizinhança e “não custas!” em situações como essa. Se eu desejo tratamento igual para todos, tenho que entender que não sou mais importante que ninguém, o que vale para mim deve valer para todos e esse é o verdadeiro sentido de comunidade e de igualdade de direitos.
Mas, nós temos essa estranha mania de “nos darmos muita importância” e assim nos escondemos atrás dos títulos, status, bens e posses. Em uma sociedade onde dinheiro é poder essa prática é extremamente perigosa e muito comum. É perigosa porque beneficia poucos e exclui a maioria. E uma prática que exclui a maioria não tem valia nenhuma para o coletivo.
Na reunião de condomínio dessa semana revivi essa situação, uma das condôminas irritada com uma situação que lhe afetou iniciou seu discurso colocando todos os seus títulos “na mesa” e eu me entristeci por ela e por todos nós. Fiquei triste ao me dar conta de como atualmente nossos direitos e nossa voz estão tão diretamente ligados ao que temos e à títulos. Ela, enquanto condômina, tinha direito de ser ouvida, independente de sua profissão ou extrato bancário. O nosso direito de voz é um direito que temos como seres humanos que somos. Ponto.
Eu hoje tento fazer esse exercício constantemente de “me dar menos importância”, pois se quero uma sociedade mais igualitária onde todos possam ser ouvidos, primeiramente preciso aprender que não sou mais importante do que ninguém.
Eu também aprendi com a vida que títulos não trazem felicidade. Esse lance de status é uma grande ilusão e fico feliz de ter tido coragem para me libertar disso. Eu não quero me esconder atrás de um diploma ou um cargo. Inclusive quando abri mão de um emprego estável e do cargo de empresária (ou melhor, micro-empresária) para me tornar professora de inglês, descobri como todo ofício é nobre e sou infinitamente mais feliz hoje. Pensei nisso também enquanto “rasguei” diplomas (incluindo de mestrado) quando troquei de profissão. Do tal mestrado não quero o título, hoje tenho a certeza de que o que valeu mesmo foi a experiência em si.
E na próxima vez em que me perguntarem “o que eu faço da vida” ou “quem sou”, responderei com muito orgulho: coleciono pores-do-sol e sorrisos, divago em todas as horas, sonho com o dia em que todas as vozes sejam ouvidas, acredito em utopias. Minha escola é a vida.
Eu desconheço a existência de livros infantis. Trata-se de uma classificação inventada por pessoas que nada entendem de contos e, menos ainda, da poesia do existir.
Pra mim, o que existe é uma boa história que pode ser interpretada de pronto por pessoinhas de menor bagagem de vida e com maior poder imaginativo, mas que, conforme essas pessoas vão somando velinhas em sucessivos aniversários, podem ser lidas de modo mais profundo e maduro, tendo observados outros pormenores, outros encantamentos, outras nunces sem, contudo, perder a beleza da interpretação primeira.
O Pequeno Príncipe não é uma história infantil. É uma história escrita com os olhos da infância e que pode ser interpretada e sentida com o visão de todas as idades.
A estréia oficial do Brasil será em 20 de agosto. A nova adaptação do principezinho para os cinemas é francesa e foi dirigida por Mark Osborne.
Confira a sinopse:
Uma garota acaba de se mudar com a mãe, uma controladora obsessiva que deseja definir antecipadamente todos os passos da filha para que ela seja aprovada em uma escola conceituada. Entretanto, um acidente provocado por seu vizinho faz com que a hélice de um avião abra um enorme buraco em sua casa. Curiosa em saber como o objeto parou ali, ela decide investigar. Logo conhece e se torna amiga de seu novo vizinho, um senhor que lhe conta a história de um pequeno príncipe que vive em um asteróide com sua rosa e, um dia, encontrou um aviador perdido no deserto em plena Terra.
E assim, mais uma vez, fãs de todas as idades se unirão para assistir à versão cinematográfica da vida do menino de cabelos dourados e sorriso gargalhado que cativou os nossos corações para sempre.