Confiança não é um sentimento que você encontra em qualquer esquina

Confiança não é um sentimento que você encontra em qualquer esquina

Imagem de capa: Hrecheniuk Oleksii, Shutterstock

Não adianta dizer que ela depende do outro. Muito menos, não funciona esperar que ela brote nos primeiros encontros. Confiança não é um sentimento que você encontra em qualquer esquina. Confiança é uma atitude ampla que demanda disposição de quem chega e de quem ali já está.

Você não pode pedir provas. Provas não existem. Expectativas são superestimadas. Confiança é o nome que a gente dá para quando alguém deposita tempo, ouvidos e coração para os nossos anseios. Não deveria ser assim. Relacionamentos devem ser mútuos.

Enganam-se os que acham que a confiança acontece num passe de mágica. Mas ela também não acontece necessariamente ao longo de um grande período de tempo. Mensurar atitudes é, antes de tudo, entregar sinceridade. Afinal, como esperar que alguém confie em você sem que inteiros sejam demonstrados?

Confiança não é para quem pensa em metades, aviso. Mas calma. Ninguém precisa sair por aí contando todos os segredos e expondo passados, presentes e futuros. Confiança não tem a ver com dividir tudo o que se passa na cabeça. Quem confia e quer confiar, acima de tudo respeita o individualismo.

Trocando em dizeres simples, confiança é sobre despertar o melhor de você. É assim que uma relação torna-se recíproca, quando ninguém precisa estipular barreiras entre o que se sente e o que se diz.

Por isso que você não mais encontra confiança em qualquer esquina. Temos medo de sermos. E quando temos medo, o do tipo que trava e nos impede de seguirmos em frente, desconfiamos. Mas sabemos, essa história de confiar desconfiando é uma conversa fiada que nos mantém reféns. Confiança é liberdade para sentir.

Em tempo, sinceridade e dizer a verdade não é a mesma coisa

Em tempo, sinceridade e dizer a verdade não é a mesma coisa

Você pode alegar dizer a verdade o quanto quiser, é seu direito, afinal. Mas não confunda com sinceridade. Porque, enquanto dizer a verdade envolve uma opinião, expressar sinceridade requer abandonar qualquer julgamento para entregar respeito e, principalmente, empatia.

Em tempos onde todos temos a liberdade de dizer o que pensamos, muitas vezes substituímos o discurso de não agir como gostaríamos de sermos tratados por uma estupidez baseada em nada menos que ego. Falar a verdade, implica em dosar palavras. Não dá para chegar e soltar o verbo e não esperar fogo contra fogo. Verdades são perspectivas individuais, conforme experiências vividas. Elas não podem ser encaradas como caminhos que seguem em linha reta, sem mudanças. Assumir que a sua verdade pode não caber para o outro demonstra autoconhecimento.

Já no caso de escolher a sinceridade, você entende que, para proclamar carinho, é necessário despir-se de medos e traumas passados, de modo a encontrar confiança e completude nas relações com outras pessoas. Mas é também sobre reivindicar amor próprio porque, sem ele, nada acontece. Independente do sentimento acolhido.

Portanto, dizer a verdade tem a ver com o que você acha certo, e não necessariamente com o que é certo. E sinceridade é não brigar quanto a isso. É não disputar o que se sente. Seja por você ou por qualquer envolvimento criado. Sinceridade é, no fim das contas, dizer a verdade através do coração e não da razão. Daí sim, você pode agir dessa forma sempre que puder. O respeito agradece e a empatia fica em um longo abraço.

Imagem de capa: Corações em Conflito (2009) – Dir. Lukas Moodysson

Moana – um mar de emoções

Moana – um mar de emoções

Imagens: foto divulgação Disney.

A animação Moana mostra uma heroína que tem sido bem típica nas animações da Disney pelo fato de não terminar com um príncipe e não se casar ao final.

Esse tema da princesa sem príncipe tem sido bem comum e vem para agradar as mulheres em seu recente processo de empoderamento. Se por um lado isso reflete a necessidade da mulher atual em buscar e afirmar sua identidade tão reprimida ao longo dos séculos, por outro transformou certos aspectos da personalidade antes valorizados em verdadeiros tabus. Expressar o desejo de se casar ou encontrar o amor é quase uma ofensa para a mulher moderna.

No entanto, não é esse assunto que quero abordar nesse texto. Algo maior e de importância coletiva surgiu como tema central em Moana, e é sobre isso que pretendo escrever esse texto.

Não que a questão da afirmação da personalidade feminina não seja importante, mas o tema que a animação trouxe é de uma importância coletiva para as mulheres e para a sociedade contemporânea.

A animação começa contando uma lenda sobre a grande deusa Te Fiti. A deusa, que havia criado toda a vida na Terra e se tornou uma ilha, teve seu coração – uma pequena pedra pounamu – roubado pelo semideus Maui .Aparentemente a intenção dele era encontrar o monstro de lava Te Ka, porém o monstro faz com que seu anzol mágico e o coração desapareçam no oceano. Por causa do coração roubado, as ilhas que Te Fiti criou foram amaldiçoadas.

A animação tem como base a mitologia polinésia. O semideus Maui está presente no panteão polinésio e é utilizado na história. É interessante que a Disney tenha se apoiado em uma mitologia e cultura antiga e pouco conhecida pela sociedade ocidental.

A cultura polinésia é pautada por uma ligação entre o homem e a natureza muito intensa. Mesmo que a Disney retrate a cultura polinésia de forma simplificada, esse pequeno contato serve como porta de entrada para o conhecimento de uma cultura e mitologia perdidos.

No início da animação vemos o povo da ilha Motuni sendo retratado. Trata-se de uma sociedade tribal, onde as pessoas possuem uma relação de muito respeito com a natureza, pois dependem dela para viver.

É intrigante a escolha de um povo tribal, que zela e preza pela natureza e que ao mesmo tempo adora uma Deusa Mãe criadora. Se trata de uma sociedade e cultura oposta a Ocidental patriarcal, que valoriza a exploração dos recursos naturais e prol do desenvolvimento tecnológico, e que se encontra sob o estigma do Deus pai judaico-cristão.

A animação então, vem trazer uma compensação para a Consciência Coletiva, de forma a tentar o equilíbrio entre essas duas polaridades matriarcal/patriarcal.

Conforme Edinger (1993), a sociedade ocidental já não possui um mito viável, que sustente nossa necessidade intrínseca de estarmos imbuídos em um mito. Sem esse mito estruturante, o indivíduo perde a razão de ser. Por essa razão temos hoje uma epidemia de depressão, ansiedade e pânico, nos grandes centros.

Com a carência de mitos nossos valores são substituídos por motivações elementares de poder e prazer, ou então o indivíduo é exposto ao vazio existencial e ao desespero. Por isso, há uma necessidade urgente da descoberta de um mito central.

Von Franz (2010) também aponta que em nossa sociedade ocidental judaico cristã, de tradição estritamente patriarcal, não existe imagem arquetípica da mulher. O resultado é que a mulher, o feminino, o matriarcal e a anima são negligenciados e incompreendidos.

Com isso as mulheres se tornaram incertas com o que é ser feminina, não sabem o que são nem o que poderiam ser.

Atualmente, para as mentes mais reflexivas essa atitude unilateral não faz mais sentido e vem trazendo mais malefícios do que benefícios. Uma nova revisão dos valores se faz necessária. Cada dia mais crescem os movimentos de defesa da natureza. A consciência ecológica cresce cada dia mais, bem como os questionamentos e a importância do que é a essência feminina.

A Deusa Te Fiti na animação é a grande Deusa da natureza e a criadora de tudo. Ela possui a capacidade de gerar a vida em torno dela. É a responsável pelo crescimento das plantas de todos os tamanhos e pode manipular o terreno ao redor de seu corpo. Com o coração dela, ela pode criar outras ilhas repletas de flora e fauna e afetar esses elementos de longe.

A Deusa Te Fiti não está no panteão polinésio, mas parece ser uma representante de Gaia, a deusa grega primordial da Terra. Podemos observar, então, características de uma sociedade matriarcal. Diante desse contexto não há nenhuma novidade no fato de Moana ser a nova líder do povo.

As sociedades matriarcais valorizavam o cultivo da terra e os alimentos por ela proporcionados. Os povos agrícolas vivam em um estado de fusão com a natureza, como sendo integrantes desse todo.
Havia, nesses povos, a predominância da terra e da vegetação. E a terra e a natureza, como fontes de fertilidade e alimento, bem como de morte e também como aquela que devora os filhos.

A Deusa para esses povos eram a fonte de fertilidade e o masculino era sempre subserviente dela. Eles não acreditavam e não sabiam que o homem tinha participação na reprodução. Sua função era só romper o hímem para a passagem da criança (Harding, 2007).

Além disso, era incumbência da mulher cuidar dos assuntos relativos ao suprimento de alimento, exceto a caça e abatimento de presas. Elas colhiam frutas, ervas, raízes e as preparavam para comer. Plantar, cultivar e colher eram tarefas femininas essencialmente.
Acreditava-se que a mulher fazia com que as coisas frutificassem e crescessem devido a sua capacidade de gerar crianças e de ter seus ciclos hormonais em relação direta com a Lua – fonte de fertilidade. Com isso, o feminino sempre foi visto mais próximo a natureza e aos processos corporais.

Ao desenvolvermos então o aspecto patriarcal da psique coletiva, perdemos a ligação com o corpo e consequentemente com a natureza. Nos separamos dela e passamos a enxerga-la como fonte de exploração para o ego humano. Privilegiamos o mental e deixamos o emocional e instintivo de lado.

contioutra.com - Moana - um mar de emoções

Hoje sentimos novamente essa necessidade de nos reaproximarmos desse lado matriarcal. Urgentemente precisamos encontrar um equilíbrio entre essas duas forças. Vemos esse apelo emocional na animação, que resgata e traz à tona esse nosso lado esquecido.
Moana é então escolhida pelo mar para a jornada de resgate do coração de Te Fiti.

O mar para a psicologia analítica simboliza o útero de onde surge toda vida. Deuses do mar como Posídon são considerados deuses ctônicos e estão ligados a Grande Mãe e aos aspectos da natureza de doador de vida e alimento e destruidor da vida.

O fato de termos a Deusa como centro vital da animação e o de ser uma garota escolhida para essa jornada chama bastante a atenção. A tendência de uma divindade encarnar em um filho não é algo desconhecido e revelou-se no cristianismo. A encarnação de Deus no Cristo foi vivida como uma experiência religiosa coletiva de enorme alcance (Von Franz).

Mas a tendência da antiga deusa – mãe de encarnar em uma filha ainda não se realizou. Assim a imagem do feminino em sua totalidade ainda não alcançou o humano e a consciência, temos apenas vestígios disso.

O culto a Deusa foi reprimido com o advento do Cristianismo. Isso aconteceu em partes, pois a força de um arquétipo é muito forte, e ocorreu a reaparição da deusa na Virgem Maria, com a subsequente devoção. Contudo essa imagem feminina veio para a nós com sérias restrições. A imagem feminina precisou ser retratada purificada de sua sombra e de forma que agradasse o patriarcado. A sombra da Deusa então, ainda não fez sua reaparição em nossa sociedade.

Contudo, essa reaparição parece ser uma necessidade emocional muito forte e algo iminente de ocorrer. Vemos algumas animações que trazem heroínas que representam “filhas” de deusas antigas. Em Valente vemos uma representante da deusa Artemis em Merida, em Mulan a heroína pode ser considerada uma representante de Atena, a deusa da guerra. Moana também pode se encaixar nessa categoria.

Ela representa a jornada da heroína escolhida para humanizar esses aspectos sombrios da antiga Deusa e assim deixando viável a assimilação desses conteúdos para a consciência. Vemos na animação que o coração da deusa é roubado e ela se vinga se transformando no monstro Te Ka, retirando toda a vida e alimentação.

Esse tema da vingança da deusa é recorrente nos mitos antigos. Demeter outra deusa da fertilidade, se vingou com a esterilidade da terra ao ter sua filha roubada e sequestrada. Hera era a rainha da vingança. Afrodite se vingava quando deixava de ser adorada ou quando alguma humana lhe suplantava em beleza. Atena e Ártemis também possuem episódios de vingança.

A vingança feminina é um dos aspectos da Deusa feminino que está ausente da consciência. As mulheres conhecem esse sentimento muito bem, mas não o aceitam e por isso lidam mal com ele. Pois se prega a benevolência feminina.

Para finalizar é importante falar sobre Maui.
Maui na mitologia polinésia é um Herói trapaceiro, conhecido por suas aventuras extravagantes e sobrenaturais. Sua lenda diz que ele era um humano nativo das ilhas do Havaí.

Sua mãe, o achava fraco ao nascer e preferiu afogá-lo. Maui, porém, sobreviveu às ondas, foi salvo pelo Sol e tornou-se um homem extremamente forte, sem medo em seu coração, um semi-deus. Em uma de suas aventuras, ele vai ao submundo atrás da deusa da morte para conseguir a imortalidade, mas é morto por ela. Diz – se que por causa dessa transgressão a humanidade perdeu a imortalidade.

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Outra aventura de Maui é o furto do fogo e a posterior entrega para os seres humanos que passaram a utilizar a madeira para fazer fogo.
Na animação isso se repete de uma forma diferente. Ele rouba o coração de Te Fiti para entregar aos humanos. Na lenda como no filme e ele é uma espécie de Prometeu que rouba algo para a humanidade e é posteriormente punido.

Maui simboliza a exploração da natureza em prol do desenvolvimento da humanidade. Pretendemos nos igualar aos deuses para sermos imortais, exploramos a natureza em busca de remédios e imortalidade, mas com isso somos punidos cada vez mais por ela. A natureza vem cobrar seu preço e sua vingança.

Sua relação com Moana se desenvolve em uma amizade profunda e duradoura. Algo que se perdeu nas relações aqui é resgatado na relação de Moana e Maui – a amorosidade. A relação entre eles se constrói no conhecimento das fraquezas e virtudes um do outro. Maui e Moana estabelecem um equilíbrio harmônico e desprovido de competição entre masculino e feminino que precisamos encontrar.

A amorosidade, característica do feminino precisa ser resgatada em todas as relações. O amor fraterno ou o romântico se constrói com isso e somente após as projeções serem retiradas. Mas é necessária paciência nesse processo. Não sabemos amar, pensamos que amamos, só saberemos quando aprendermos a construir isso na amorosidade.

Cuidado: quem sempre joga para ganhar, nem sempre joga limpo

Cuidado: quem sempre joga para ganhar, nem sempre joga limpo

Imagem de capa: nuvolanevicata/shutterstock

Parece inacreditável, mas existe uma síndrome denominada “síndrome de dom-juanismo” ou compulsão por sedução. Caracterizada como um transtorno baseado na ação compulsiva por sedução e no envolvimento emocional, a síndrome determina o tempo (curto) de poucos relacionamentos e é responsável por muitas feridas abertas da alma.

Lembram de “Dom Juan de Marco”? Pois bem, a denominação da síndrome é baseada nas atitudes do próprio protagonista. Logo no começo do filme, Dom Juan usa uma frase que explica bem suas atitudes e o que o motiva a conquistar: “Toda mulher é um mistério a ser desvendado, mas uma mulher nada esconde, de um amante verdadeiro”.

Atingindo homens e mulheres, as pessoas que possuem essa síndrome possuem características específicas de comportamento: são sedutoras ao extremo, gentis e têm como alvo pessoas “difíceis” ou “proibidas” de serem alcançadas.

Apaixonantes, deixam os outros encantados e, logo que percebem que conquistaram o que queriam abandonam o barco. Para eles, não existe sentimentos, nem envolvimentos emocionais. Há apenas uma busca, onde a conquista é a caça e o conquistador o caçador. Para eles é tudo ou nada. O “não” é visto como um desafio e quanto mais empecilhos tiver na história, melhor.

Imagino que, a essa altura, você tenha listado os nomes dos seus antigos relacionamentos atribuindo a eles todas as características dessa síndrome. Calma! Não é porque a pessoa sumiu do mapa que ela possui a síndrome. As pessoas perdem o interesse, o sentimento acaba, a paixão esfria e isso é normal.

Na verdade, não dá para entrar na neura de que só encontraremos pessoas assim. Se assim fosse, viveríamos em uma ilha com poucas pessoas. Precisamos da convivência, do afeto, do compartilhamento de ideias. Se o outro for uma pessoa má e egoísta, o problema é dele. Se ele fizer mal a você, o problema é seu.

Ninguém está livre de conhecer alguém assim. Na verdade, é bem provável que já tenhamos conhecido alguns. Mas não dá para ficar lamentando o mau caráter dos outros. As pessoas só nos machucam quando permitimos.

Não se cegue diante dos fatos. Não confie em quem ainda não conquistou sua confiança e não acredite em todos os elogios. É sempre bom lembrar que as pessoas se revelam pelas atitudes e não pelo que falam.

Você não precisa de galanteios para se sentir importante, nem de alguém para dizer o quanto é especial. O seu valor vem de dentro e não da opinião alheia. Entenda que estar com alguém deve ser uma opção e o que, realmente, importa é o que você quer para sua vida e não o que estão te oferecendo.

Existem mais pessoas boas do que más e elas fazem tudo valer a pena. Não desacredite no amor por causa dos maus. Cure-se quando te machucarem, feche seus ciclos para começar os novos e amadureça. A dor só terá importância, se você der esse poder a ela.

A vítima oportuna é poderosa e perigosa!

A vítima oportuna é poderosa e perigosa!

Imagem de capa: Photosebia/shutterstock

A vítima é sempre credora de algo. Desde um pedido de perdão até mesmo uma reparação pública. Na maior parte das vezes é a justiça atuando para deixar tudo no zero a zero novamente.

Mas o hábito de se fazer vítima em qualquer situação é pra lá de diferente das vítimas alheias à sua própria vontade. A vítima oportuna quer a atenção, a piedade, a preocupação, e, se possível, todas as reparações imagináveis. Justas ou não.

A vítima oportuna se veste de humilhação, se cobre com melindres e caminha pela estrada de lamentos e ladainhas. Mas não é fraca, não é humilde, não é inocente.

É cheia de poder e acumula créditos. É intocável porque é vítima. É credora porque lhe devem. É manipuladora pela voz que invoca piedade.

E quando algo parece não funcionar, ainda restam as lágrimas. As lágrimas que desarmam muitos e bons argumentos, que lavam e levam embora boa parte da razão, que derretem decisões e deixam arrependimentos espalhados como poças depois da chuva.

A vítima oportuna atua com as ferramentas que possui e vai construindo suas muralhas, até o ponto de ficar totalmente inacessível. Ceder às suas queixas é conceder-lhe cada vez mais poder.

É importante ser sensível aos dramas alheios, é essencial praticar a empatia, mas é absolutamente imprescindível tomar posição firme junto às vítimas oportunas. Não há liberdade nessas relações, a vítima é quem comanda, ainda que aparentemente ferida ou paralisada.

Quem quer ter boa relação com o mundo, com as pessoas e com a vida, precisa ter os olhos abertos para as vítimas oportunas. Boas intenções são como iscas que as atraem. Elas sabem que boas intenções não apertam o botão da desconfiança com facilidade.

São vítimas de si mesmas, ardilosas, criativas, golpistas. Vítimas que não se comprometem com nada já que são vítimas e vivem passivamente, aguardando chances para se agarrarem.

Em todos os casos, ao reconhecer uma vítima oportuna, não dê a ela a oportunidade de fazer moradia nas suas ocupações.

O Alienista: Machado de Assis e a “Loucura”

O Alienista: Machado de Assis e a “Loucura”

A razão necessita da loucura para existir propriamente enquanto razão, de modo que é preciso definir o caminho a não seguir para que se crie os muros de proteção da sanidade.

Ao longo do século XIX, a ciência se desenvolveu muito, promovendo, assim, um grande progresso para a sociedade. Nesse contexto, temos o erigimento de correntes de pensamento, como, por exemplo, o Positivismo.

Este acreditava que aquele progresso visto na sociedade, a partir das descobertas científicas, levariam aquela a um grau inigualável de desenvolvimento. Isto é, passa-se a ter nesse momento uma crença total na ciência e na razão como forças máximas e absolutas, axiomas inquestionáveis responsáveis por levar a sociedade a um estágio superior.

Nesse mesmo contexto, surge a obra “O Alienista” do bruxo do Cosme velho, Machado de Assis. Na obra, com todas as características machadianas: ironia, ceticismo, metáforas, etc.; temos a construção de uma crítica ao saber que estava se formando e, consequentemente, suas imbricações. Obviamente, o livro possui inúmeras interpretações, haja vista a sua riqueza. Entretanto, vamos nos ater ao porquê da crítica de Machado ao cientificismo da época e a relação desta com a loucura apresentada no conto.

Todo saber que se pretende universal e absoluto, ou seja, sem direito a contestações e outras interpretações, é perigoso, pois desconsidera a pluralidade humana e, por conseguinte, a subjetividade de cada um, o que pode acarretar análises amplas e distintas acerca das coisas. Como um homem à frente do seu tempo, Machado conseguiu perceber isso de forma muito clara e, dessa maneira, uma história que satiriza e demonstra os perigos de se estabelecer um saber centralizado e absoluto que reina como um déspota.

Ao estabelecer verdades absolutas a partir de um único ponto de vista, cria-se um sistema determinista, já que há o enquadramento de todos os agentes sociais dentro do mesmo prisma. Vale ressaltar que o Positivismo e teorias como o Darwinismo social consideravam que existiam pontos de maior e menor evolução na sociedade, sendo os europeus o povo mais evoluído e civilizado, ao passo que africanos, asiáticos e americanos eram povos menos evoluídos e atrasados.

Cabia, assim, ao homem branco europeu a missão civilizatória de levar luz a sociedades que viviam em trevas. Era o “fardo do homem branco”, assumido com muita “coragem” e responsável por milhares de mortes e arbitrariedades, as quais pretendem-se inimagináveis no Estado Democrático de Direito.

Desse modo, observa-se que o saber científico que elevaria a sociedade mundial ao grau máximo de desenvolvimento, tornou-se propagadora de ideias segregacionistas, racistas e violentas contra o homem, contrassenso de qualquer evolução que se pretenda. Apesar de teoricamente superado, esse pensamento ainda possui resquícios na contemporaneidade e influencia o comportamento atual, vide o racismo e a intolerância religiosa (temas, inclusive, do Enem em 2016, o que ratifica a sua atualidade).

Posto isso, há de se considerar o caráter visionário de Machado, percebendo precocemente falhas naquele sistema, que à época era admirado por todos.

O grande problema do saber criticado por Machado e, de qualquer outro que se pretenda axiomático, reside na sua incapacidade de relativizar as problemáticas. Ou seja, na impossibilidade de considerar que possam existir outras verdades, outros pontos de vista, outras interpretações para a mesma questão. Tudo se torna mecânico, padronizado, dogmatizado, resguardando a um juiz o arbítrio de tudo segundo a sua cosmovisão e sem direito a salvaguardas. Esse juiz na obra é Simão Bacamarte, o alienista, que determina o certo e o errado, o normal e o anormal, a sanidade e a loucura.

A loucura era o diagnóstico de todos os que não estavam no momento enquadrados no padrão de sanidade. A loucura, então, é utilizada no conto não apenas para satirizar as falhas do saber científico absoluto, mas também para demonstrar o segregacionismo provocado pelas verdades absolutas, em que por meio do arbítrio do sistema dominante há o julgamento e a separação entre os sãos e os loucos. Dessa forma, os loucos são os inadequados sociais, uma vez que basta o sujeito se enquadrar em um perfil de comportamento desviante determinado pelo médico para ser considerado louco e, consequentemente, ser internado.

É, portanto, a loucura o afastamento de uma norma psicossocial estabelecida, de modo que basta que o sujeito se afaste dela para ser reconhecido como louco. Em outras palavras, o diagnóstico se dá sempre em relação a uma ordem de normalidade, no caso do livro, esta é determinada pelo alienista. Ainda nesse sentido, Foucault diz que a razão necessita da loucura para existir propriamente enquanto razão. Ou seja, é preciso definir o caminho a não seguir para que se crie os muros de proteção da sanidade.

Assim sendo, a loucura no conto é utilizada por Machado para satirizar o cientificismo e demonstrar que a “loucura”, nesse prisma, é determinada de forma arbitrária por alguém investido de um poder absoluto, valendo destaque rapidamente nesse ponto (daria um outro texto) para o verbo “investir”, uma vez que o Dr. Bacamarte recebia da câmara a autoridade para os seus desmandos, demonstrando a imbricação que existiu e existe entre o saber científico (sentido amplo) e a ordem política, em uma relação de troca de legitimidade e normatização.

Ao criar uma obra tão rica, Machado vai além de seu tempo e se contextualizado para a contemporaneidade, percebe-se que ainda persistem sistemas que se pretendem ou se estruturam como verdades absolutas, em que a loucura é o diagnóstico definitivo para os que não se encaixam ou questionam a ordem estabelecida, como acontece na sociedade de consumo e seus inúmeros protocolos que devem ser seguidos à risca, afinal, há sempre Simões Bacamartes prontos para trancafiar os perturbadores da ordem em uma casa verde, a fim de evidenciar a loucura existente nestes.

No fim da obra, o alienista, então responsável por detectar os doentes e libertá-los do seu estado de alienação, acaba chegando à conclusão de que ele era o louco, o alienado, e trancafia-se na casa verde. Mas, se, como disse, os Doutores Bacamartes permanecem, há de convir que ser atestado como louco é o maior sinal de sanidade.

A imagem de capa é uma ilustração de Fábio Moon e Gabriel Bá para o livro “O Alienista”, da editora Agir. O trabalho rendeu o prêmio Jabuti de melhor livro paradidático em 2007.

Como deixar de lado alguém que você quer do lado?

Como deixar de lado alguém que você quer do lado?

Imagem de capa:Robsonphoto/shutterstock

Como deixar de lado alguém que você queria ao seu lado para contar como foi o seu dia e como o metrô ou o “busão” estava lotado? Contar que esqueceu as chaves em casa e que vive quebrando tudo.

Aquela vontade de dividir as tragédias do dia-a-dia e que, na noite passada, ao acordar de madrugada, esbarrou em algo e, na tentativa de não deixar aquele objeto cair, acabou quebrando a casa toda e todo mundo acordou, o que não era o seu intuito (risos).

Como deixar de lado alguém em quem você pensa o dia todo, sente saudade e morre de vontade de mandar uma mensagem, perguntando como está sendo a semana, como anda aquele probleminha do trabalho? Como deixar de lado o “boa noite” engasgado, a saudade que invade logo pela manhã?

Como deixar para trás os planos, os segredos, os momentos? Como apagar da memória quem persiste em estar em nossos pensamentos? Como é difícil deixar de lado quem sempre caminhou com a gente. Para qual abraço se refugiar, no final do dia, cansado?

É difícil, eu sei, mas, às vezes, é preciso deixar de lado quem não nos quer mais por perto, quem não dá valor à nossa presença e quem não se importa com as nossas dores. Por mais difícil que seja deixar de lado quem gostaríamos de continuar andando de mãos dadas, é necessário entender que deixar ir, às vezes, é uma forma de não nos machucarmos ainda mais.

Por mais que o fim doa e a saudade nos esmague, uma historia repleta de zigue-zagues só nos fere. É difícil, eu sei, deixar de lado quem era sua risada mais gostosa, seu café mais quentinho. Quem era a primeira pessoa a saber das suas conquistas e também das suas derrotas.

Parece ser uma tarefa tão difícil, mas o problema é que focamos em entender tudo, perdemos tempo demais tentando entender os porquês de quem foi embora sem se importar com a dor que causaria em nós.

De alguém que se foi sem olhar para trás, apagando toda a história que insistimos em relembrar, todos os dias. De quem nos pede para “tocarmos a vida” e esquecer de vez. Tentamos achar respostas que expliquem o porquê de ter dado errado e buscamos, em nossa memória, em que ponto falhamos.

E, nisso tudo, enquanto buscamos entender aquilo que não pode ser explicado, deixamos de viver, enquanto o outro segue sua vida normalmente sem nós. Depositamos nossa felicidade nas mãos de quem não se importa mais com esse lance de nos fazer felizes.

É difícil deixar de lado quem queríamos ao nosso lado, entretanto, mais difícil ainda, como diz Zack Magiezi, “é morar sozinho em uma história de amor.”

Na minha infância, nossa rede social era a rua

Na minha infância, nossa rede social era a rua

Não existe quem, a certa altura da vida, não comece a nutrir saudosismo em relação à sua época de infância, de adolescência, de juventude. O tempo traz muita coisa boa, arruma, ajusta, acerta as contas e vem impregnado de saudades – saudades do que se viveu, do que se fez, dos gostos, dos cheiros, das cores, de gente. Nossas vidas são especiais e, por isso mesmo, permanecem junto a nós, aqui dentro, sempre e para sempre.

Quantas pessoas fazem parte da nossa jornada e vão embora, muitas vezes para nunca mais, e, mesmo assim, tornam-se inesquecíveis? Professores, colegas de escola, de rua, de clube, familiares, vizinhos, enfim, sempre sorriremos ao nos lembrarmos de gente querida que passou por nós e deixou magia conosco. Sempre teremos de seguir faltando um pedaço, com lembranças apertadas de quem nos tocou fundo o coração.

Lugares, casas de avós, lares, salas de aula, sítios, muitos ambientes preencherão nossas vidas, muitos deles ficando impressos em nossas almas. Quem nunca sentiu um cheiro, como de grama molhada, que evoca as mais tenras lembranças de algum lugar que volta dentro de nós, trazendo nitidamente cada canto, cada sofá, cada janela, cada recanto de jardim por onde fomos felizes, onde a alegria então era uma constante?

E, embora a infância passe rapidamente – enquanto, tolamente, somos crianças ansiando por nos tornarmos adultos -, ela nos deixa recordações do tamanho do mundo, como se uma vida toda não fosse suficiente para aquilo tudo. A gente brincava na rua, sem medo, e a gente se virava com muito pouco – umas latinhas vazias, algumas bolinhas de gude, um pedaço de corda -, a gente era feliz por dentro, não importando a riqueza lá de fora.

Na verdade, embora nós sempre achemos que o nosso ontem foi o melhor, que nossas lembranças são mais especiais, cada pessoa levará sempre consigo recordações mágicas, lembrando-se com saudade do que viveu, junto de pessoas que valeram a pena. Porque a gente guarda o que alimenta o coração. Porque a gente leva junto do peito quem compartilhou alegria conosco, mesmo que por pouco tempo. É assim, afinal, que a gente se recarrega diariamente e continua seguindo, em busca de ser feliz, na esperança de reviver tudo o que deixou o nosso caminho mais iluminado.

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Pega leve. Amor nenhum sobrevive a gente chata!

Pega leve. Amor nenhum sobrevive a gente chata!

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O amor suporta cada uma! O tempo, a mágoa, a miséria, a distância, a doença. Até à morte ele resiste. Aguenta firme qualquer tranco. Pode com quase tudo. Poucas coisas o derrubam e sufocam. Gente chata é a primeira delas.

Incrível, mas nada é mais tóxico e daninho ao sentimento amoroso que uma pessoa enfadonha, tediosa, dona da verdade. Por mais saudável e exuberante que seja, todo amor cai doente e desenganado sob o olhar mesquinho de um amante grudento, enciumado e mandão.

Traição e deslealdade ferem o amor de morte. Mas o perdão é um milagroso remédio. Aplicado na dose exata por mãos generosas, faz efeito certo. Agora, contra gente estreita e tediosa, nem o perdão dá jeito. O amor definha e sucumbe sem mais.

Mandões e mandonas que perambulam por aí, berrando que “amor de verdade não acaba”, ordenando sua vontade egoísta feito matracas engasgadas, sequer fazem ideia do número de romances que eles mesmos já mandaram às cucuias. Deles e dos outros, porque a chatice é contagiosa e letal. Temerosos de responder-lhes “e daí se o amor não durar para sempre, ô criatura chata?”, simplesmente vamos embora e deixamos o monstro crescer livre, chateando mundo afora.

Gente chata no amor tem de todo jeito. Os que grudam e os que prendem, os que chantageiam e dramatizam, os engraçadinhos demais e os desprovidos de humor, os que sabem tudo, os sociopatas afeitos em isolar o ser amado do convívio de antigos amigos, os que adoram um papel de vítima, os que falam demais, os que falam de menos, os que imitam voz de bebê e os piores: os infantiloides incapazes de aceitar que o mundo não gira em torno de seus umbigos.

Esses, quando obrigados a encarar a realidade, são capazes de tudo. Inclusive de matar e de morrer. Nesse caso, o que morre não é só o amor. Cada vez mais, morre também quem ousa desobedecer à convicção de um ser insistente, autoritário e convencido de que a única verdade é a sua. Acredite. Gente chata é um perigo maior do que qualquer um imagina.

O que fazer com este vazio que te preenche?

O que fazer com este vazio que te preenche?

Imagem de capa: Wstockstudio/shutterstock

Então, você chegou numa altura da vida em que já conseguiu a maioria das coisas que planejava, ou está bem encaminhado para isso.

Todavia, há um vazio que insiste em te preencher. Você demorou a reconhecer ele… ora parecia ingratidão da sua parte para com tudo o que já tinha, ora parecia que estava perdendo o juízo perfeito das coisas e teve horas até que achou que era a tal da depressão.

Mas, não, investigações feitas, nada grave, ele restou: pura e simplesmente o vazio. O seu dia acaba e você sente que ficou algo por fazer e não é aquela tarefa atrasada, não. Chegou o fim de semana e você não se empolga tanto assim com os lazeres previstos. Você está sentado na mesa do seu trabalho e simplesmente sem empolgação de começar qualquer coisa a ele relacionado.

Você é abençoado com uma vida razoavelmente boa, têm plena consciência disso e valoriza tudo o que o envolve, mas sente que falta alguma coisa. Não sabe o quê. Só sabe que não dá para continuar assim. Que não é simplesmente seguir desta forma que, uma hora dessas, vai ficar tudo bem. Que não quer chegar ao final da vida com essa sensação de incompletude. Que algo precisa ser feito, afinal, nunca se sabe quando é o fim da vida.

Você sente, no seu íntimo, que não é possível que a vida seja apenas trabalhar, pagar contas, conviver com as pessoas, comer, dar uma curtida aqui, outra ali, descansar e começar tudo de novo, ainda que com algumas variações. Isso não faz sentido algum.

Estamos todos aqui, nesse mundo, na nossa vida, nesse momento, por um motivo. Um motivo muito maior, muito divino, muito lindo. Cada um tem o seu propósito, a sua missão, que podem ser as mais diversas possíveis.

Ocorre que não nascemos com manual de instruções para facilitar as coisas. Precisamos descobrir o que nos move, o que nos inspira, o que nos define. Essa caminhada, o do autoconhecimento, faz parte do plano maior.

Uns preenchem muito cedo o seu vazio, antes mesmo de se darem conta da sua existência. Outros morrem sem o ter investigado. Cada um tem o seu momento. Geralmente, quando os eventos externos se aquietam e ficamos frente a frente com nós mesmos. Como, por exemplo, quando conquistamos aquela pessoa, conseguimos aquele emprego “dos sonhos” (dos sonhos de quem mesmo?!), uma vida financeira estável, a melhora da saúde, filhos, ou seja o que for que parecia a grande questão da nossa vida. Daí paramos e pensamos: tá, e agora?! É só isso?! Não existe o felizes para sempre?!

E então ficamos inquietos. Tentamos canalizar essa ansiedade para uma coisa ou outra, mas nada funciona por muito tempo. E não podemos permanecer assim, vazios. Se ainda temos essa sensação, é porque alguma coisa está ali latente, esperando ser explorada. Precisamos nos mexer!

Mas como?! Por onde começar, são muitos os caminhos possíveis!

Primeiro, silenciando e ouvindo seu coração. De forma completamente aberta e livre das intenções e dos julgamentos alheios. Ninguém tem mais legitimidade para escolher o nosso caminho do que nós mesmos.

Pode demorar, podem haver desvios de rota, retrocessos, recomeços, faz parte. O importante é estar em busca, é ser um buscador. Ficar de braços cruzados esperando algo acontecer por si só realmente não vai funcionar…

O universo vai dando pistas, das formas mais improváveis possíveis… Precisamos ficar ligados, todo momento é momento de ir encaixando as peças. E muitos eventos podem nos ajudar, assim como um curso, um livro, um determinado programa de televisão, a fala de um desconhecido na rua, uma música…

Como diz OSHO, “opte por aquilo que faz seu coração vibrar”. O nosso coração é a nossa bússola, que vai indicar se estamos indo para o caminho certo.

Com o tempo, nossa intuição fica mais apurada, e a caminhada rumo à realização começa a ficar mais fácil.

A simples consciência da necessidade de busca do nosso propósito já irá começar a dissolver esse vazio. A busca de sentido, outrossim, nos preencherá de energia para a realização, que virá, mais cedo ou mais tarde. Pode acreditar!

Beijo na testa é o fim, certo? Ou, não é?!

Beijo na testa é o fim, certo? Ou, não é?!

Beijos são ícones de linguagem corporal. Por meio deles nos expressamos nessa fala sem palavras que diz muito mais de nós do que horas de tagarelice.

Beijos podem ser profundos, ligeiros, tímidos, ousados, dissimulados, explícitos. Ninguém beija por beijar, essa é que é a verdade. Beija-se para dar ao outro uma pista de nossas intenções, beija-se para descobrir quais são as intenções do outro em relação a nós.

No início de relação, os beijos vão ganhando desenhos geográficos cada vez mais intrincados em direção ao nosso interior, físico, psíquico e imaginário.

Os beijos poderiam ser os sinais de pontuação usados com maestria para redigir nossas histórias de amor. Às vezes são vírgulas; outras vezes, reticências; ora, uma sequência de pontos de exclamação; ora, uma enorme interrogação; e, quem diria, um beijo pode ser um redondo e definitivo ponto final.

Quem é que não tem em sua memória de coleções afetivas aquelas imagens dos beijos que fazem a gente ficar, insistir, investir… aquele beijo dado na curva do sorriso, querendo alcançar a boca… aquele beijo dado na linha do pescoço com o ombro que faz a alma arrepiar… aquele beijo dado sem demora, como se as horas pudessem ser ignoradas… beijos na palma da mão, indicando que ali há mais que um encontro acidental de corpos que se desejam.

Os beijos são fotografia em preto e branco, obras de arte das imagens mentais que tecemos ao longo de nossas vivências emocionais. Não há beijos iguais, nunca! Nem entre as mesmas pessoas, dados nas mesmas horas.

Beijos de bom dia, com o gosto morno da cama partilhada, beijos no decorrer das horas, dados de forma displicente – só porque já se adquiriu o hábito de beijar, beijos aflitos e intensos que antecedem os encontros mais íntimos da boca com a outra boca, da boca com o outro corpo, do corpo com o outro corpo. Cada beijo encerra uma coisa que não tem como ser dita de outra forma.

A intimidade tem esse poder bonito e único de nos fazer ler no outro, suas intenções, suas reservas, seus recuos e passos além. Ficamos íntimos com a convivência, com o tempo de partilha da vida; sonhos partilhados, projetos partilhados, vitórias e derrotas partilhadas.

Intimidade é presente raro. Não se tem com toda a gente. Não há que se confundir encontros íntimos com intimidade; pode-se mergulhar na boca e no corpo inteiro do outro num encontro inesperado, numa noite qualquer sem nunca chegar a ser minimamente íntimo.

Beijos intensos, urgentes, quentes… podem ser trocados com qualquer um. Mas o beijo daqueles que se dispuseram a dar um passo além da explosão dos desejos que envolvem toda a novidade de um novo amor… ahhhh… esse beijo não é apenas verso de um poema… é o poema inteiro, escrito de mãos dadas.

E o poema há de se fundir a outro, e mais outro… há de se emendar a um conto daqueles que valem mais de mil e uma noites. E nesse poema há de ter tantos beijos, quantas forem as histórias dignas de serem lembradas. E no meio desses tantos haverá lugar para os beijos mais preciosos.

É só quando se tem uma história de muitos capítulos que se descobre que um beijo na testa, dado com toda a comunhão e bênção de todo o resto do corpo, pode ser mais íntimo do que um beijo tórrido e molhado que envolve bocas, línguas e o fogo do desejo.

Engana-se quem olha de longe e interpreta em beijos inocentes o fim de um amor. Pode-se beijar na boca sem amor, pode-se beijar qualquer parte do corpo sem amor.

Não é onde se beija que revela o limite de uma história ou a sua transformação. O que ilumina ou rouba a luz de um afeto é justamente a falta dele. Um casal que é capaz de oferecer ao outro o afago de almas e o acolhimento por meio de um beijo de amor, encontrou o caminho para conversar em silêncio.

E nesse silêncio cabem todos os beijos da vida; inclusive, um verdadeiro, amoroso e revelador beijo na testa… um beijo que diz “Estou aqui, em qualquer circunstância! E hei de estar inteiro sempre, para envolver e proteger você de todo o mal desse mundo!”.

Imagem de capa meramente ilustrativa: cena do filme “Querido John“.

Ah, se eu fosse mulher…

Ah, se eu fosse mulher…

Imagem de capa: Kristen Norman Photographer

Ah, se eu fosse mulher como a Fani, por exemplo. Trabalhadora desde cedo, cuidou de todos os irmãos mais novos, conheceu o Ceará e abraçou a vida na volta ao Rio. Teve um filho e passou por maus bocados, mas nunca desistiu. Ainda consegue sorrir todos os dias pela manhã. Ou fosse como a Maria, dos cabelos e dos versos, negra com orgulho e ser humano com prazer. Ah, se eu fosse mulher…

Ah, se eu fosse mulher poderia ser uma Ana, sempre disposta e acreditando no melhor das pessoas. Ou quem sabe uma Adriana, uma que correu atrás do sonho até conseguir realizá-lo, mesmo tendo passado por tantos anos difíceis. Mas tinha gatos. Quem sabe poderia ser uma Bárbara. Porque Bárbara é sinônimo de sensibilidade. Ela sente demais e não fica com vergonha disso. Também cairia bem ser uma Marcele, uma Regiani ou uma Josie, mulheres de fibra e encantos que ninguém pode questionar, não importa o dia. Nem seria justo, diga-se. Mas talvez eu queira ser uma Fernanda, engraçada, esperta e desinibida para felicidades. Se o passado não trouxe o seu melhor, azar o dele. Ah, se eu fosse mulher…

Ah, se eu fosse mulher certamente Ana Beatriz, Priscila ou Sabrina. Mulheres de um coração que não dá para ser medido nem com a maior régua do mundo. Algumas vezes, a vontade de continuar é abalada, mas elas seguem em frente. Sabem que, mais adiante, abraços vão chegar e novos começos surgirão. Ser uma Bruna também não está fora de cogitação, aliás. Mulher que sente de verdade e ama por tabela. Ah, se eu fosse mulher…

Ah, se eu fosse mulher. Mas mulher por todos os lados, por todas as histórias. Como a Dona Marisa, por exemplo. Ficou conhecida por ser esposa de ex-Presidente, mas poucos sabem que, antes de qualquer coisa, Dona Marisa foi mãe, conheceu o amor e acreditou em um mundo mulher. Infelizmente, a vida aprontou com ela uma daquelas que a gente nunca entende. E mais quem? Ah, tantos nomes que seria impossível preencher aqui. Começa da Dona Fátima, senhora com cheiro de vó que tem um bar/mercearia aqui do lado de casa até a frentista do posto, a motorista de ônibus ou cozinheira do restaurante do bairro. Sim, nenhuma delas poderiam ser esquecidas. Nem devem.

Porque se eu fosse mulher, talvez entendesse que apesar tantas histórias bonitas e de tantos laços afetivos eternizados, ainda existem outras que sofrem caladas, sozinhas e, principalmente, injustiçadas – como a jovem de 16 anos, vítima de um estupro coletivo. A questão não é somente reconhecer o porquê da mulher ser importante e merecer respeito. O sentimento é genuíno quando finalmente entendemos que as coisas precisam mudar e que sim, se eu fosse mulher, quem sabe, de repente poderia escrever isso tudo e ter a mesma voz como a que estou tendo agora, sendo homem.

Ah, se eu fosse mulher. Mas não sou. O que posso ser hoje é nada mais do que agradecimento e amor por ter convivido com algumas dessas mulheres. Se hoje sou menos homem, arrogante e machista é por causa delas. Se hoje consigo prestar o mínimo de desculpas e esclarecimento pelo certo, também é por causa delas. Ah, se todos fôssemos um pouco mais de vocês e um pouco menos de nós.

Lugar de mulher é no mundo

Lugar de mulher é no mundo

Imagem de capa:  g-stockstudio/shutterstock

Lugar de mulher é na cozinha, quem nunca ouviu essa máxima? Ou melhor (pior): quem nunca a ouviu em pleno século XXI?

Embora vivamos em um mundo moderno e pluralizado, de liberdades e igualdade de direitos, a mulher ainda continua sendo constantemente reduzida a lugares comuns do imaginário masculino, que já deviam há muito tempo ter sido superados. Entretanto, esse problema persiste e, portanto, faz-se mais do que necessário falar nele.

Muitas pessoas que argumentam contra a luta das mulheres pelo seu lugar na sociedade, dizem que o que elas pretendem é completamente incompatível com a sua natureza, uma vez que homens e mulheres são diferentes. Obviamente, existem diferenças biológicas entre os sexos, o que acaba acarretando em determinadas características possuírem um tom mais feminino e outras algo mais masculino.

No entanto, antes de qualquer coisa, isso não significa que existem características e coisas exclusivas de mulheres e homens, porque como disse certa feita Rubem Alves – o masculino e o feminino habitam o homem e a mulher. O que ocorre, a bem da verdade, é que essas diferenças têm servido ao longo da história como pretexto para que haja um determinismo aplicado em relação à mulher, o qual a leva para um estado de exploração, opressão e supressão de seus desejos e vontades, sendo reduzida aos desígnios da consciência masculina.

Dessa maneira, cria-se barreiras em relação às aspirações da mulher e ao seu acesso a setores que anseia no mundo, já que na visão do “macho”, determinados lugares são exclusivos para homens. E mesmo que alguma mulher ouse adentrar nesses “clubes do bolinha”, elas dificilmente são olhadas com o mesmo respeito e admiração destinados a um homem.

O medo por parte dos homens de que exista uma mulher no mesmo patamar que o seu ou em um nível superior é assustador, o que os leva a criar mecanismos que dificultem a ascensão delas, representando a vontade de manter o seu poder e influência sobre o gênero feminino.

A partir dessa cosmovisão vem a máxima de que “lugar de mulher é na cozinha”, pois para a maior parte dos homens é interessante que as mulheres fiquem circunscritas ao trabalho doméstico. O argumento utilizado para tanto é que cuidar do lar além de ser uma função primordial feminina, requer cuidados e capacidades que o homem não possui.

Ainda que admitamos isso e reconheçamos que cuidar do lar não é demérito nenhum, muito pelo contrário, por que os problemas que envolvem esse universo são sempre secundarizados em relação, por exemplo, aos problemas profissionais do homem? Ou seja, posto que o trabalho doméstico seja alvo de tanta estima pelos homens que querem as suas “doninhas”, por que os problemas provenientes dele são totalmente desvalorizados e tratados com completa falta de interesse por parte dos homens?

Simples, porque ele não é visto com a estima que se pronuncia, e sim como o único lugar em que a mulher deve ficar, mantendo a sua subserviência ao macho-herói que sai para ganhar a vida e, assim, não deve ser incomodado com qualquer tipo de besteira incrustada na cabeça da mulher (louca, histérica e paranoica, não raras vezes).

Esse exemplo, que é ao mesmo tempo corriqueiro e emblemático, demonstra de que forma a mulher é ao mesmo tempo setorizada e secundarizada, reforçando a ideia de que a mulher deve ser submissa ao homem, de que não deve obter conquistas próprias, dignidade própria e vida própria. Isto é, de que tudo que faça deva ser em função de um homem, a partir de um homem e para um homem.

Nesse emaranhando machista, há ainda que se observar o modo como até as conquistas femininas são monopolizadas pela visão masculina e se voltam contra elas, como é o caso, para exemplificar, da conquista da liberdade sexual pela mulher. Na medida em que a mulher se tornou mais livre sexualmente, houve também o aumento na estereotipação da mulher como libertina, o que é, evidentemente, uma construção masculina, assim como foi a de malignidade ligada à mulher na Idade Média, já que alguém deveria servir de bode expiatório para os pecados cometidos, acima de tudo, pelos homens.

É claro que nem todos os homens possuem uma visão limitada acerca da mulher, como também, esta conquistou espaços que outrora sequer se imaginava. Todavia, ainda há o predomínio de uma visão restrita (tanto em homens quanto em mulheres, afinal o machismo não é exclusivo de homens), a qual delimita a mulher a um espaço que está muito aquém da sua real capacidade, que é tão boa quanto a de um homem.

O que se precisa é abrir mão de preconceitos mesquinhos que ainda permanecem, mesmo que involuntariamente, e impendem que a mulher seja livre de qualquer imposição ou desígnio masculino, já que lugar de mulher é onde ela queira estar, sendo dona do seu querer e com brilho próprio. E isso, meus camaradas, não é abrir mão da masculinidade, pois todo macho que se preze sabe que lugar de mulher é no mundo.

Fuga do carnaval

Fuga do carnaval

O plano era redondo. Escrever sobre o carnaval e publicar em pleno carnaval. Oportuno e conectado com o momento. Comecei a pesquisa e veio o desânimo. Não pela falta, sim pelo excesso de informações.

Mas segui na luta e fiquei sabendo que na origem o carnaval se chamava entrudo. Festa trazida pelos colonizadores que ao bater na nossa terra se dividiu entre as versões familiar e popular. Dá para imaginar que a primeira era comportada, já a segunda flertava com a irreverência e o ritmo africano.

O entrudo popular foi abraçado, transformado, condimentado pelos escravos. Antecipando os versos de João da Baiana, popularizada na voz de Martinho da Vila, Batuque na cozinha / Sinhá não quer / Por causa do batuque / Eu queimei meu pé.

Continuei a investigação. Nadei nas águas foliãs dos cordões, ranchos, blocos, corsos, escolas de samba. Também nos bem mais recentes trios elétricos, sambódromos, globelezas. Fui a campo conferir o bebê da folia: o carnaval da Vila Madalena, em Sampa.

Ele não tem samba, tamborim, cuíca, pierrô, colombina. Tem canções de Rita Lee, Cazuza, Caetano, Mamonas Assassinas. Tem funk, cerveja, gatorade, pets. Também li matérias apontando que carnaval não é mais sinônimo de samba, marchinha, frevo, axé music.

Carnaval é hoje o que cada um disser que é carnaval. Daí, lembrei do Mário de Andrade (1893-1945) explicando que Conto é tudo o que o autor chamar de conto. Ao que acrescento: Crônica é tudo que o leitor chamar de crônica.

Nessa altura da pesquisa, perdi o foco e quase desisti de escrever sobre a folia na véspera da folia. Afinal há multidão de opiniões mais interessantes e balizadas do que a minha. Foi então que me deparei com uma foto, publicada no jornal O Globo, flagrando um passista da Mocidade Independente de Padre Miguel voando em pleno asfalto.

A data: carnaval de 1965, quando dos 400 anos da cidade maravilhosa. Extasiei, pois lembrei que, de mãos dadas com meu pai, assisti ao carnaval do Quarto Centenário na avenida Presidente Vargas. Recordei do meu maravilhamento. Compreendi meu desconcerto com carnaval sem samba no pé, sem bateria, sem maioria negra.

É direito de cada cidade ou bloco inventar a sua folia. Aliás a novidade de hoje pode ser a tradição de amanhã. Mas o meu afeto carnavalesco ficou preso nas asas daquele jovem negro voando na avenida.

Imagem de capa- meramente ilustrativa- é de CARLOS CHICARINO/AGÊNCIA ESTADO (Folião no desfile da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis. Rio de Janeiro, 1978.)

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