No final dará tudo certo

No final dará tudo certo

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No final dará tudo certo, mesmo que a gente saia sem proteção e uma chuva torrencial caia sobre nós, independente das noites de insônia, da comida descendo como pedra pela garganta, das unhas pedindo para crescerem, exaustas com o barulho do relógio que desobedece o tempo do coração.

No final dará tudo certo, na simplicidade da noite que finda e do dia que amanhece, das horas que se arrastam como se não tivessem pés, dos longos quilômetros a serem percorridos, como se déssemos mil voltas em torno da terra que reside em nossas almas. Aguardaremos, cansados, carregando todas as histórias que aguardam para se tornarem lembranças.

Até que o final da história aconteça morreremos e renasceremos muitas vezes, feito flor teimosa que seca e brota ou criança que insiste em amar. Nosso coração florescerá, generoso, dando espaços para caberem outras narrativas.

No final dará tudo certo porque a gente não desaprende a amar, em nossas almas não cabem armários vazios e cômodos sem móveis. Estranhamente, a dor encontrará seu destino, deixaremos ir quem teve como destino partir. Generosos com a nossa estadia, conversaremos com o amor através do cheiro de café que povoa nossa casa ou nos debruçando sobre as plantas que esperam por água. No final dará tudo certo porque sentir é o que nos dá sentido…

Bauman e sua verdade comprovada: “Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar”

Bauman e sua verdade comprovada: “Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar”

Imagem de capa: andersphoto/shutterstock

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman é um dos filósofos mais respeitados e comentados da atualidade e os motivos não são surpreendentes: além de fazer da filosofia algo acessível, suas mais de 50 obras se dedicam a temas como o consumismo, a globalização e a fragilidade a qual estão expostas as relações humanas. Como dizia o própria autor: “os tempos são líquidos porque, assim como a água, tudo muda muito rapidamente. Na sociedade contemporânea, nada é feito para durar”.

Bauman era um escritor raro. Utilizando-se da ideia de “liquidez” descrevia os problemas  de relacionamentos como feridas da alma. Sabe aquele “tapa na cara com luva de pelica” que levamos da vida? Então, são os que os livros de Bauman nos proporcionam.

Questionado sobre qual a definição exata de “líquido” em seus livros (Modernidade Líquida, Amor Líquido e Vigilância Líquida) e autor foi bem objetivo: “Amor líquido é um amor “até segundo aviso”, o amor a partir do padrão dos bens de consumo: mantenha-os enquanto eles te trouxerem satisfação e os substitua por outros que prometem ainda mais satisfação. O amor com um espectro de eliminação imediata e, assim, também de ansiedade permanente, pairando acima dele. Na sua forma “líquida”, o amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo. É bom lembrar que o amor não é um “objeto encontrado”, mas um produto de um longo e muitas vezes difícil esforço e de boa vontade.”

Soco no estômago a parte, Bauman, sabia exatamente o que estava falando. Para ele, quando as relações são abaladas pela qualidade (a famosa expressão “qualquer companhia serve”), temos a tendência de tentar recompensá-la com uma quantidade absurda de parceiros. E isso não se restringe aos relacionamentos amorosos. O autor exemplificava sua teoria baseado nas redes sociais: “A internet e o Facebook nos tranquilizam e nos dão a sensação de proteção e abrigo, afastando o medo inconsciente de sermos abandonados. Na verdade, muitas vezes você está cercado de pessoas tão solitárias quanto você”.

Bauman estava tão certo quanto dois mais dois. Nossa geração vive a “felicidade” competitiva de ter 2 milhões de seguidores do facebook, mas não temos 20 amigos frequentadores de nossa casa. O que, realmente mudou: a definição da palavra amigo ou a nossa visão de amizade?

Em “Amor Líquido”, seu livro mais comentado na atualidade fica claro a liquidez das relações humanas. Nele o autor elabora análises próximas ao cotidiano, perpassando pelas relações sociais, e focando nas relações amorosas. No livro, a visão realista de Bauman, traz doses de realidade para quem quer fazer um autoconhecimento da alma e das ações cotidianas.

O amor, para o filósofo, é visto como algo real e aplicável, diferente desse sentimentalismo barato que pregam atualmente. Exemplo disso, são os namoros pela internet, um assunto discutido frequentemente pelo autor. As vantagens desse tipo de relacionamento são a segurança e a falta de compromisso, visto que o contato, ou potencial namorado, pode ser deletado a qualquer instante sem maiores consequências. “O amor é mais falado do que vivido. Vivemos um tempo de secreta angústia. Filosoficamente a angústia é o sentimento do nada. O corpo se inquieta e a alma sufoca. Há uma vertigem permeando as relações, tudo se torna vacilante, tudo pode ser deletado: o amor e os amigos”, conclui o sociólogo.

Calma, ter um relacionamento pela internet não é ruim. O filósofo apenas mostra que, em seu ponto de vista, diferente da presença, o relacionamento virtual tem outros padrões de escolha e de rejeição e, em sua visão, isso torna as pessoas mais solitárias do que já estão.

Em suma, Bauman procura  mostrar que o problema da solidão está no próprio comportamento humano, relatando que nossas dificuldades em desenvolver uma comunicação afetiva, fiel e respeitosa, se refletem a um medo e uma insegurança generalizada.

Com a morte de Bauman perdemos muito. Perdemos inteligência aliada à sabedoria, conselho aliado à prática, sonhos aliados à vontade de viver: Perdemos um filósofo que se preocupava com uma geração que, talvez, nem tenha tido a oportunidade de ler suas obras ainda: “ eu desejo que os jovens percebam, razoavelmente cedo, que há tanto significado na vida quando eles conseguem adicionar isso a ela, através de esforço e dedicação. Que a árdua tarefa de compor uma vida não pode ser reduzida a adicionar episódios agradáveis. A vida é maior que a soma de seus momentos”.

Carta de amor a um rapaz latino-americano.

Carta de amor a um rapaz latino-americano.

Para Belchior.

Eu queria escrever uma coisa a você. Assim, sem mais, rabiscada no verso de um papel de pão, de uma receita médica, de um folheto publicitário, queria enviar a você uma cartinha leve como a pena, o riso e a borboleta. Breve como a vida e o tempo. Eu queria escrever uma coisa dessas e entregar a você.

Em mãos, deixaria aos seus cuidados um minitratado sobre o céu e as nuvens, o amor e a utopia, a dor e a esperança, a vida e o sonho, as políticas públicas e o serviço de manobristas, nós e os outros.

E você, deitando os olhos sobre as sílabas, rolando a vista nua pelas frases, vestiria uma vontade nova e esqueceria por um instante as pressões de cada dia, as cobranças tantas, o dinheiro pouco, os medos generosos e os ímpetos mesquinhos.

Queria escrever a você um ensaio simples, de provas irrefutáveis, sobre a máxima segundo a qual “da vida nada se leva”. E que a leitura lhe fizesse desejar o óbvio: que entre tudo o que haveremos de deixar neste mundo quando a hora nos chegar, prevaleçam as ternuras, os amigos e as lembranças de amor.

Para quando você se sentisse miserável e só, queria escrever um poeminha de riso e festa, passá-lo por debaixo da porta e encontrar a sua dor como remédio santo. Um emplastro, elixir, unguento ou coisa parecida que valesse de alívio a sua angústia.

Queria, sim. Eu queria tanto escrever a você o termo de posse de uma fazenda centenária onde viveríamos entre os nossos, escrevendo e pintando e trabalhando na terra e cuidando dos bichos. E estaríamos tão misturados ao fluxo do dia que quando algum animal local nos notasse ali, murmuraria apenas, em amorosa e profunda prosopopeia: “lá vão aqueles dois”. E ele estaria mais do que certo em sua razão de bicho. Nós vamos mesmo. Nós vamos sempre.

Juro, eu juro que queria escrever um romance fininho, desses que nem param em pé, para você se deitar e ler na cama, antes de dormir, como porta de entrada para um sonho bom. E que ao acordar você encontrasse restabelecidas sua fé vigorosa na vida e sua disposição implacável para o trabalho.

Eu queria, Deus sabe o quanto eu queria escrever a você um bilhete de colar na porta da geladeira ou guardar na bolsa, no bolso, marcando no papel infinitas dobras, para ler e reler quantas vezes a paciência deixar e a saúde carecer. E que de tanto abrir e fechar, o papel com o tempo e o suor das mãos se deixasse esmorecer como bicho que morre de velho.

Pois quando a última dobra puída caísse exausta, você me estenderia a mão e me diria que entendeu o recado.

Então nós voaríamos daqui, tão logo chegasse a hora de fazer as malas, pegar duas coisas, três, meia dúzia, e seguir para longe. Romper a camada de ozônio, trombar nas estrelas e virar luz.

Eu juro que queria escrever tudo isso a você. Ah… como eu queria.

Ao persistirem os sintomas de ilusão, a inteligência emocional deverá ser consultada

Ao persistirem os sintomas de ilusão, a inteligência emocional deverá ser consultada

Imagem de capa: agsandrew/shutterstock

Ninguém está imune à paixão e, um dia ou outro, todos nós nos iludimos: vemos amor onde não tem, qualidade em pessoas quem nunca as possuíram e saudade do que nunca existiu. Coisas da paixão! Mas, tudo passa e logo os olhos voltam a se abrirem, o coração silencia e o cérebro toma conta das situações. Pelo menos para quem possui a tão desejada “inteligência emocional”.

Inteligência emocional não é encontrada em lojas e não está disponível para vendas. Você só a adquire depois de quebrar a cara inúmeras vezes, chorar mares de desilusão e ser traído por quem te jurou amou eterno. E sabe por que algumas pessoas possuem e outras não? Respondo: porque a ilusão dói menos que a realidade.

É melhor se iludir acreditando que a pessoa “perdeu seu número”, do que entender que ela nunca quis ligar. É mais fácil acreditar em destino, do que “fazer dar certo”. A diferença entre se iludir e tomar um porre de realidade, está na coragem de quem escolhe viver. Se para alguns o término é algo normal, corriqueiro, para outros a frustração se torna motivo de depressão, desespero e angústia.

Há quem encare um fim de amor com serenidade no olhar, já que sabe que, amanhã tudo estará melhor. Porém, em contrapartida a eles, há os iludidos de plantão que, no segundo encontro criam, mentalmente, a lista de convidados do casamento, e se frustram quando as situações não corespondem às suas expectativas.

Na verdade, toda vez que escuto a frase “estou apaixonado”, automaticamente, lembro da famosa frase de Nietzsche: “o amor é o estado no qual os homens têm mais probabilidades de ver as coisas tal como elas não são.”

Saramago, também dividida do mesmo pensamento de Nietzche. Em o “Ensaio Sobre a Cegueira dizia que: “penso que não cegámos, penso que estamos cegos, cegos que veem, cegos que, vendo, não veem”.

É preciso entender que no amor não há garantias. Estar em um relacionamento não garante ter companhia. Você pode ser um solitário acompanhado. Bauman, o famoso filósofo das relações líquidas, afirmava que “A solidão produz insegurança — mas o relacionamento não parece fazer outra coisa. Numa relação, você pode sentir-se tão inseguro quanto sem ela, ou até pior. Só mudam os nomes que você dá à ansiedade”.

Desenvolver inteligência emocional não deveria ser uma opção, já que consiste em uma opção de defesa da própria sanidade. Ter autocontrole sob os próprios sentimentos envolve muito mais do que sofrer ou não por amor. Envolve ser responsável pelos “nãos” que devem ser ditos na vida financeira, pessoal e afetiva.

Envolve saber calar quando a vontade é xingar, envolve fazer dieta quando a vontade é comer um pote de Nutella, envolve economizar quando a vontade é comprar a bolsa que custa o valor do seu salário. Isso é ter inteligência emocional: dominar sua mente para o que precisa ser feito.

Saiba reconhecer seus limites, seus pontos fracos e fortes, seus medos e seus erros. Isso é ser inteligente. Recue quando precisar e avance quando se sentir seguro. A incapacidade de reconhecermos as nossas falhas deixa-nos à mercê delas. Pouco importa se você pilota um avião, se tem porte de arma ou se é piloto de fórmula 1, sem autocontrole suas habilidades estão, automaticamente, anuladas. Antes de qualquer outra qualidade, é preciso aprender a lidar com as próprias emoções e controlá-las de modo apropriado.

Não se iluda com sentimentos e ações. Lembre-se que inteligência emocional é ter o coração trabalhando em favor do cérebro e não o inverso.

O lado bom das coisas ruins pode ser ótimo!

O lado bom das coisas ruins pode ser ótimo!

Imagem de capa: Lia Koltyrina/shutterstock

Me perdoem os pessimistas, mas eu vivo em constante estado de otimismo, e em alguns momentos, euforia! Não há tempo a perder nem desperdiçar com rancores, lamentos, vinganças ou teorias.

Quando uma coisa ruim acontece, geralmente nos perguntamos porque fomos os premiados, ou, para os mais controladores, por qual razão não foi possível evitar. E para isso não há resposta. Para algumas coisas, nem solução. Resta somente a conformação. Mas não é dessas coisas que estou falando.

Coisas ruins mais corriqueiras, mas ainda ruins, que nos aborrecem, nos desiludem, entristecem, desapontam e nos tornam descrentes… Ingratidão, traição, aquela rasteira inesperada, o tratamento desigual, um esquecimento importante, enfim, coisas ruins.

As coisas em si, não. Mas quem as cometeu, esses são os sujeitos da nossa chateação.

E lá vai o tempo, usado sem qualquer parcimônia, simplesmente para analisar, julgar, condenar e jurar volta aos réus dos crimes que cometeram contra nós.

Porque somos assim. Quando fazemos, pedimos desculpas. Quando sofremos, não gostamos de perdoar. E quando perdoamos, não esquecemos, arquivamos. E vez por outra vasculhamos o arquivo para mantê-lo vivo e ativo.

A única coisa que não temos costume de fazer é agradecer aos mesmos réus, pelo bem decorrente das coisas ruins que nos fizeram. Mas, e se não houver nada de bom? Sempre há, decerto. E mais do que isso, o lado bom das coisas ruins, geralmente é ótimo.

Poderíamos passar toda uma vida sem aprender nada, não fossem as coisas ruins que nos chegam. Elas nos ensinam, nos preparam, nos trazem mais sabedoria do que qualquer livro ou conselho. Só aprendemos o que é o bem, quando entendemos o que é o mal. E então podemos inclusive, escolher.

Nosso desvio é focar somente em quem trouxe a coisa ruim. E ficar com raiva ou tristeza. Tantas vezes nem vale à pena tamanha carga de ressentimento. Cada qual faz o que julga ser melhor, ainda que seja uma coisa ruim.

Ao contrário de buscar razões e penalidades, pode-se tirar o máximo da situação e recolher todas os ótimos ensinamentos decorrentes das coisas ruins.

Dessa forma, até o tempo trabalhará a favor. Não sejamos bobos. Quem perde tempo com revanche é jogador trapaceiro e perdedor. Precisamos aprender até a perder o jogo e ver coisa boa nisso. É o jogo da vida.

A vida é igual a tomar um banho quente, com aquela gotinha gelada pingando de vez em quando

A vida é igual a tomar um banho quente, com aquela gotinha gelada pingando de vez em quando

Tomar banho é dessas experiências simples cotidianas que encerram em si mesmas a mágica capacidade da transformação energética, a possibilidade de uma pausa nas dores psicológicas e a oportunidade de purificação do corpo que se livra dos odores físicos, ao mesmo tempo em que renova forças, por meio do relaxamento emocional; é uma redenção.

Há períodos da vida em que nos vemos absolutamente absortos em rotinas alucinadas de trabalho, ou sobrecarregados pela falta de recursos financeiros, ou ainda, desorganizados em função de alterações significativas em nossas vidas.

Aquelas épocas em que ficamos tempo demais às voltas com obrigações intransferíveis e tempo de menos disponíveis para humanizar nossos dias. Todo mundo já passou por isso, seja em maior ou menor escala.

Tomar um banho, nesses casos, é aquele luxo mínimo e indispensável para nos garantir ao menos alguns minutos a sós; momentos preciosos de silêncio e solidão escolhida.

Apaga-se a luz, coloca-se uma música boa para tocar, escolhe-se um sabonete que nos faça sentir confortáveis, energizados, relaxados ou, simplesmente com um cheiro gostoso, separa-se a melhor toalha do armário… e parte-se para aquele instante sagrado do dia.

Tomar banho… um banho assim, com ares de ritual egípcio, deveria ser um direito humano garantido por lei. É o mínimo que cada um de nós faz por merecer depois de um dia de lutas, gloriosas ou nem tanto.

Tomar banho junto com alguém que a gente ama, então… Ahhhh… essa é das experiências mais íntimas e deliciosas a que temos acesso, quando temos a sorte de viver relacionamentos inteiros e intensos, a ponto de ser um prazer compartilhar o corpo e alma debaixo do chuveiro ou imersos na mansidão de uma banheira.

E seríamos muito tolos se não nos entregássemos a essas maravilhosas surpresas da vida, porque elas são como pequenos cristais pendentes naqueles lustres maravilhosos de castelos de sonho. São esses momentos de rara conexão, com a gente mesmo e com o outro que fazem a vida ter sabores únicos e inesquecíveis.

Porque a vida, meu amigo, a vida é feito um banho quente com aquela gotinha gelada pingando de vez em quando. A água quente é o prazer da vitória, o gozo da entrega, a embriaguez maravilhosa das coisas lindas que nos fazem querer provar do mesmo de novo, e de outros mais umas mil vezes. E a gotinha gelada é para nos lembrar da nossa natureza volátil e transitória.

A gotinha gelada é o despertar, para que nunca nos esqueçamos do valor das experiências simples e transformadoras, sem as quais somos apenas aquela gente cansada e atarefada que de tanto viver focada apenas nas batalhas, esquece que para manter a alma forte é necessário uma boa dose de redenção.

Imagem de capa meramente ilustrativa: cena do clipe Good for You, com Selena Gomes

Como a empatia de quem sofre com Depressão pode ajudar na saúde de todos.

Como a empatia de quem sofre com Depressão pode ajudar na saúde de todos.

Circulam pela internet diversos materiais mostrando como as pessoas deprimidas, ou com outros transtornos psicológicos, são mal compreendidas. Isto é fato. Muita gente, inclusive algumas deprimidas, sabem pouco ou quase nada sobre saúde mental.

Daí fiquei pensando. Mais importante tornar este conhecimento acessível do que condenar quem não sabe!

Então, resolvi falar sobre coisas que escutamos sobre saúde mental e o que podemos fazer diante dessas afirmações. Para que todos possamos nos compreender e, consequentemente, sermos melhor amparados. Confesso que não é fácil ter um transtorno psicológico e ainda conseguir reagir a algumas palavras de forma assertiva. O fato é que nem todo mundo que diz essas coisas deseja o nosso fim. Pessoas que nos amam podem ter concepções distorcidas sobre saúde mental, como nós mesmo temos de diversos assuntos. E ao terem concepções distorcidas, podem falar coisas como:

“Você está se fazendo de vítima!”

contioutra.com - Como a empatia de quem sofre com Depressão pode ajudar na saúde de todos.
Ilustração de Laura Jäger.

A resposta é talvez. Mas isso não tem nada a ver com depressão. Eu posso “estar me fazendo de vítima”, posso também “estar me fazendo de vitorioso”, e independente de qual papel cultural eu estiver usando, ter depressão. As impressões pessoais de alguém não são diagnósticos profissionais. Dizer se o que tenho é uma doença ou não, requer conhecimento científico, técnico, capacitado.

Explique a esta pessoa que depressão é uma doença, não um defeito moral. É possível fazer críticas ao comportamento de alguém sem colocar em dúvida sua saúde. Não consegui agradar suas expectativas? Normal. Acontece nas melhores relações interpessoais. Porém, isso não lhe dá direito de dizer que meu colesterol não está alto, que não gripei, ou que não tenho depressão.

Podemos conversar sobre como uma pessoa enfrenta seus desafios, sem precisar pôr em discussão sua condição clínica.

“Faça novos amigos. Arrume uma namorada. Seu namoro tá com problema? Você precisa sair mais. “

Na tentativa de te ver melhor logo, surgirão fórmulas de sucesso. Compreensível que assim façam  porque costumam associar depressão à tristeza. Por isso, elas dirão de modo simplificado coisas que você deveria fazer. Você pode explicar em situações assim que seres humanos em diversas classes sociais, inúmeros contextos, ficam doentes. Espirram, quebram dedos e podem possuir algum transtorno psicológico.

Pense em pessoas bem sucedidas que tiveram  saúde mental debilitada. Assim quem lhe diz isso vai poder entender melhor que os vitoriosos também podem adoecer mentalmente.

“Você está a tanto tempo assim? Por que não melhora logo?”

Cada organismo reage a tratamentos de diferentes formas. Há pessoas que conseguem alta em meses, outras demoram anos. Existem as que adoecem, ficam bem, depois voltam a adoecer. Isto  ocorre em qualquer doença. Inclusive nas debilitações psicológicas. Busque com profissionais que te acompanham, materiais que expliquem sobre o tempo como funciona seu tratamento.

“Deus vai te ajudar. Isso é falta de Deus. Você está rezando?”

Principalmente se você não for uma pessoa religiosa, frases do tipo podem ser difíceis de elucidar. Caso não seja algo que atrapalhe no seu tratamento, um caminho tranquilo passa a ser entender que para alguns a religião é uma forma de comunicar preocupação. Mas se, mesmo que não te atrapalhe, você queira explicar, é possível encontrar diversos líderes religiosos que já discursam com melhor embasamento técnico sobre saúde mental.

O personagem bíblico Elias após ter vencido uma batalha contra profetas de outro povo, apresentou sintomas de depressão. Embora na Bíblia não cite exatamente assim, ela faz um relato de sintomas que hoje seriam diagnosticados dessa maneira.

“Pense positivo! Seja mais otimista!”

contioutra.com - Como a empatia de quem sofre com Depressão pode ajudar na saúde de todos.
Ilustração de Laura Jäger

Um dia, eu mesmo, pensei isso sobre minha condição psicológica. Que era uma questão de otimismo. Eu me forcei a pensar que já estava devidamente curado e pronto. Confesso que algumas vezes pareceu funcionar, mas logo descobri um ponto chave. Pessoas otimistas também adoecem.

Aliás, eu sou bastante otimista. Mas é importante ser um otimista ativo. Alguém que acredita que as coisas podem melhorar, mas sabe que apenas acreditar não vai solucionar tudo. Então, quando você ouvir isso, que tal concordar? Sim! Acrescentando que vai pensar positivo, mas assim como apenas pensar em ter o quarto limpo não vai tirar a sujeira das coisas, não deve adiantar muito pensar positivo sobre saúde mental quando precisamos de ajuda profissional.

Saúde não é só questão de doente.

Cuidar das questões psicológicas, dos sentimentos, das emoções, melhora a vida de qualquer pessoa. Não só das deprimidas.  Se  conseguirmos explicar para mais pessoas sobre como é possuir um transtorno e elas entenderem, teremos mais facilidade para compreensão e algo ainda a mais do que isso. Ao entenderem melhor nossa condição, entenderão melhor sobre si mesmas e poderão buscar apoio.

E não esqueça de buscar com profissionais da área formas de se comunicar com  pessoas que  compreendem mal questões sobre psicologia. Há diversas formas possíveis de explicar e cada um consegue entender de uma determinada maneira.

Quem sabe aquela pessoa que achou que eu estava me fazendo de vítima, procure ajuda de um psicólogo para conseguir ir melhor nos estudos, fazer novos amigos, praticar exercícios, aprender uma outra língua?

A psicologia é uma ciência e quando bem usada, assim como a ciência física nos trouxe tantos avanços tecnológicos, pode facilitar diversos avanços pessoais.

As ilustrações utilizadas neste post, bem como a base do vetor pra capa, foram disponibilizadas por gentileza de Laura Jäger.

É preciso resgatar a UTOPIA como um bem social

É preciso resgatar a UTOPIA como um bem social

Imagem de capa:  nuvolanevicata/shutterstock

Para que serve a utopia? Serve para isto: para que não deixemos de caminhar. Para que o mundo seja o lugar de muitos, e não somente, o lugar de poucos.

A utopia foi privatizada, definiu Zygmunt Bauman pouco antes da sua morte. Para o sociólogo, na modernidade líquida não existe, como houvera há 50 anos, por exemplo, o sonho conjunto da busca de uma sociedade melhor, onde todos possam ter o seu lugar ao sol. O que há é a tentativa individual de melhores condições de vida ante uma sociedade cheia de problemas em que a vida coletiva se dá de modo quase que insustentável. Ou seja:

“A utopia privatizada não é sobre uma sociedade melhor, mas sobre indivíduos melhores, cada um em suas situações individuais, dentro de uma sociedade muito ruim. Sobre a sociedade, dizem que não dá para mudar.”

Se olharmos para a história, de fato, acreditaremos que não há como mudar, porque as utopias fracassaram. Os sonhos e tentativas de construir um mundo melhor – que não poderia ser deixado para depois, deveria ser feito urgentemente – sucumbiram, seja pelas próprias pernas, seja pela ação de pernas “amigas”.

Mas entre erros e acertos, a benevolência de uns e a prepotência de outros, a utopia como a luz da esperança permanece, mesmo que no imaginário de poucos. Entretanto, se ela se mostrou falha e reside em tão poucos pensamentos, para que ainda serve a utopia?

A despeito disso, Eduardo Galeano, lembrando as palavras do cineasta Fernando Birri, respondeu: “Serve para que não deixemos de caminhar”. Dessa maneira, devemos considerar que sem a utopia, as sociedades, os povos e as pessoas deixam de caminhar, de sonhar, de acreditar em algo que ainda não existe e, assim, passam a se conformar com a situação tal como ela é – imutável – sobretudo para o coletivo que habitamos.

Esse conformismo diante do status quo é responsável por fazer com que a ordem seja cada vez mais estabelecida, respeitada e, em alguns casos mais “perturbadores”, até cultuada. Mas que status é esse? É a (des)ordem no qual o mundo se encontra, em que há a paradoxalidade de muitos terem tão pouco, enquanto tão poucos têm muito. Um mundo em que pessoas fazem dieta, ao passo que outras morrem de fome. A (des)ordem da indiferença, do descaso com o próximo, consigo, com o homem. Um mundo de pessoas que aprendem a acumular, mas jamais a compartilhar (a não ser que seja algo no Facebook).

A (des)ordem que segrega, separa, cria muros invisíveis e outros de concreto. Um mundo em que capitais cruzam os oceanos na primeira classe, e pessoas morrem ao tentar atravessá-los em botes. A (des)ordem que humaniza máquinas e despersonaliza pessoas. Um mundo de almas adoecidas que circulam como fantasmas solitários em meio às multidões.

E diante dessa “ordem” não há o que fazer? Não se deve resgatar o princípio da utopia? Devemos somente aceitá-la porque ela é expert em produzir riqueza? Entretanto, de que adianta uma fornada de pão se apenas um homem pode se sentar à mesa?

A utopia foi privatizada, todavia, ela precisa ser recuperada. É necessário sonhar individualmente, mas o coletivo também precisa desfrutar de sonhos conjuntos. E isso não precisa acontecer em um plano de mundo socialista, já que a história nos mostrou mais de uma vez, que entre o ideal e a práxis, sempre haverá a inconciliável ambição humana.

Por isso a utopia não conduzirá a um mundo perfeito, e sim, a um mundo melhor, com falhas e dificuldades, certamente, mas com o horizonte sempre à vista e jamais apagado, como acontece em nossos tempos.

Que o capitalismo não será perfeito, todos nós sabemos. Que ele produz riqueza mais do qualquer outro sistema conseguiu, também sabemos. Que não há possibilidade de sistemas perfeitos, a história nos ensinou. No entanto, dar um caráter humano a um modelo destrutivo, que a cada dia destrói ainda mais o que resta de gente em nós, é a utopia urgente e necessária ao nosso mundo. É preciso acender as luzes, porque o horizonte está escurecido e, como disse Galeano, precisamos continuar caminhando, por mais que a cada passo, o horizonte se torne mais distante.

Contudo, podem indagar que de nada adianta caminhar sem chegar a um destino, mas tampouco adianta ficar parado e cair no abismo. Entre ter o conforto da escuridão, prefiro acreditar que as estrelas, que brilham no horizonte, vem nos visitar em forma de vaga-lumes para nos mostrar que embora distantes, elas anseiam pelo nosso toque, afinal, como dizem os sábios – “Somos todos poeira estelar”. Que seja essa, então, a nossa utopia: um mundo não perfeito, não no céu, mas iluminado em sua completude pelo brilho celeste das estrelas.

Voltei! Vim aqui para testar esse meu novo eu nessa velha história.

Voltei! Vim aqui para testar esse meu novo eu nessa velha história.

Voltei!
Aqui estou eu de novo: na sua casa, no seu entorno, na sua vida.
Você que não me deixou ir e nem me pediu pra ficar. Você com quem eu construí uma história que se despedaçou tantas vezes até eu desistir de acreditar que juntando os nossos cacos surgiria alguma estrutura harmônica.

Então, eu recolhi os meus próprios cacos e parti. Mas agora eu voltei, e ‘voltar’ não é um verbo muito bom para descrever o que eu estou fazendo aqui. Porque eu não vim buscar uma parte minha que ficou para trás, eu não vim para reviver o que a gente foi, eu não vim por saudades dos nossos momentos – bem na verdade, muitos deles eu não quero reviver nunca mais.

Meu querido, dos meus cacos existências eu não me reconstituí, eu não saí andando e me lamentando pelo que eu perdi, pelo que eu deixei de ser. Eu estou agora refeita sim, reconstruída, reeditada, atualizada na minha melhor e mais moderna versão. Eu me pesquisei, eu me observei, eu te escutei esse tempo todo não apenas com os ouvidos das emoções. Sai da minha própria pele e vi a história de fora, fora de mim, fora de nós, fora dos meus mitos, fora dos meus medos.

Da solidão encontrei minha força e meu amor próprio. Descobri o que eu gosto, o que eu quero, o que eu não quero. Aprendi a falar não, a dizer sim, a pedir, a dar opinião em voz alta, a discordar, a sair andando, a quebrar ciclos de sofrimentos. Aprendi a dar rizada de mim mesma, da gente. Que suor danado essas andanças em mim, quantas peles troquei, quantos dias meditei, quantos corações encontrei. Aprendizado intensivo de vida.

E agora voltei, você me pediu tanto e eu podia ser só orgulho e descrença e continuar no meu caminhar feminino. Mas eu resolvi parar aqui na sua porta, na sua casa, te fazer essa visita que não sei quanto tempo e espaço do meu coração vai durar. Eu voltei pra sentir que verdade vai surgir no nosso olhar.

Vim aqui não porque acredito que você mudou, que a gente vai resgatar um amor. Vim aqui pois eu resolvi testar esse meu novo eu nessa velha história.

Antes eu esperava que você adivinhasse os meus segredos, mas agora eu sou PhD em mim mesma. Antes eu esperava que você me amasse quando eu era dor, agora eu peço colo e cuidado e só fico se assim for. Antes eu esperava que você mudasse, me olhasse, parasse de ser egoísta, agora eu tenho as rédeas da minha própria vida.

Antes eu estava sempre aqui pra você, agora eu estou por mim, para ver se eu caibo inteira, para ver se essa mulher madura tem lugar nesse seu pomar. Para ver se você me quer mesmo, essa minha inteireza, ou se queria o que eu era antes – frágil, apaixonada e manipulável.

Vai ser bom, muito bom esse reencontro, esse encontro novinho em folha dos nossos novos eus. Que beleza vai ser se você amar o que eu sou agora (festa nas estrelas!). E que beleza também se você não se adaptar a mim – eu partirei, então, sem deixar passos, sem dúvidas, sem pensar no que a gente poderia ter sido e não foi.

E assim é. Então, abra a porta, estou aqui tocando a campainha do seu coração! Voltei!

Não tenho medo de altura. Tenho medo é de cair!

Não tenho medo de altura. Tenho medo é de cair!

Imagem de capa: Orla/shutterstock

Tenho medo de altura porque tenho medo de cair, mas subir é ótimo! Encantar-se com a paisagem sob uma perspectiva ampla e livre, respirar ares diferentes, sentir o vento mais fresco.

Mas, por medo de cair, atribuo a responsabilidade à altura que ainda me brinda com uma louca vertigem.

Na vida, tenho medo da rejeição, então, muitas vezes nem me arrisco. Não subo mais do que dois degraus e fico aguardando a mão que pode me segurar e amparar. Essa queda, não vou sofrer, nem tampouco saber como seria o horizonte de um ponto de vista mais alto.

Trazemos conosco muitos medos de cair, sem nos darmos conta de que caímos mesmo quando estamos no chão, pisando nas sólidas certezas que carregamos.

Arriscar é enfrentar a vertigem, ignorar o labirinto, dar um voto de confiança à curiosidade que fica lá no final da escada. Tentar chegar em algum lugar diferente do habitual, subir conceitos, escalar relações que ofereçam outra perspectiva, outro olhar, outro horizonte.

Cair é sempre uma possibilidade, mas não por responsabilidade da altura, não pela vontade de subir, de convidar a vida a apreciar outro cenário. O que provoca a queda é o medo de cair.

E o medo desequilibra. O medo faz vacilar, desacreditar, não tirar os pés do lugar. O medo balança estruturas, faz escorregar, fechar os olhos, encolher movimentos, ímpetos e vontades.

Toda escalada oferece perigos, mas também nos presenteia com momentos únicos e eternos. A vida chama a todo instante, através de encontros e descobertas.

Da próxima vez que a vida me convidar a subir um pouco mais, não tornarei a repetir que tenho medo de altura. Sequer mencionarei o medo de cair. Abrirei bem os olhos, segurarei firme na vontade de ser ainda mais feliz, e subirei sem medo, até onde a coragem me sustentar.

Bagagem intelectual não necessariamente implica em sabedoria!

Bagagem intelectual não necessariamente implica em sabedoria!

Imagem de capa: Lia Koltyrina/shutterstock

Esses dias ouvi, sem querer, a seguinte “pérola” de um professor de Filosofia de uma escola das redondezas:

“Pois é. A falta de estudos… De um curso superior, por exemplo, deixa as pessoas ignorantes, tanto no sentido intelectual e de consciência crítica quanto no sentido de brutalidade.”

Fiquei tão abismada com o fato de uma fala como essas sair da boca de um professor de Filosofia que nem soube reagir. Apesar disso, é possível tirar uma reflexão da situação, não é?

Não moço, não é bem assim… É bem provável que algum professor tenha lhe dito durante seu curso que existem quatro tipos de conhecimento. O senso comum (conhecimento empírico), o conhecimento filosófico, o teológico e o científico. Cada um tem sua relevância, porém nenhum, NENHUM deles é sinônimo de ignorância, brutalidade, sensibilidade ou falta de consciência crítica.

Pelo pouco que vi, vivi e convivi, às vezes, a experiência de vida conta muito mais que qualquer teoria que você tenha visto na universidade.

Já conheci pessoas que viveram a vida toda na roça e tinham mais sabedoria e consciência política que boa parte de meus professores universitários. Crianças que questionavam mais as injustiças do mundo que muitos estudantes universitários que conheço. Gente que viveu anos a fio na rua ou dentro de uma igreja e é mais bem informado que metade das pessoas que convivo.

Por outro lado, já conheci professores de insensibilidade preocupante, mestrandos e especialistas cheios de brutalidade e estudantes – aos montes – que se acham superiores por terem uma “bagagem intelectual” qualquer.

Conhecimento científico não é, afinal, sinônimo de sabedoria. Bagagem intelectual não pressupõe de modo algum sensibilidade. A humildade, em contrapartida, é parceira tanto da sabedoria quanto da sensibilidade. E é esta que nos falta quando caímos na tola ilusão de superioridade baseada no número livros que lemos, de anos que estudamos ou de diplomas que temos.

Já dizia Paulo Freire, pensador influente no que diz respeito a sua profissão: “Ensinar exige humildade”. É preciso usá-la para que possamos trocar conhecimento com quem está ao nosso redor e tenhamos a habilidade de tocar uns aos outros.

“A poesia não é algo que se possa incorporar com os olhos sujos de realidade”.

“A poesia não é algo que se possa incorporar com os olhos sujos de realidade”.

“A poesia não é algo que se possa incorporar com os olhos sujos de realidade”. Manoel de Barros

A poética de Manoel de Barros inspira ternura. O ser em estado primevo, admite transformar-se na coisa e a coisa convocada à existência é marca dessa poesia que restabelece em nós a pureza e a graciosidade peculiar que só é encontrada na fluidez da infância, onde os olhos são iscas e lupas de transver, cativados para a “eterna novidade do mundo”.

Se não é possível rebobinar o tempo e novamente ancorar-se às margens de uma realidade sublime que desvende o ser em seu estado legítimo de sabedoria, é possível ainda promover uma caça às borboletas e vaga-lumes que há muito deixaram de brilhar no horizonte esmaecido de nossa existência.

O aprendizado que parece brincadeira de criança tem o dom de reverberar e alcançar as mais profundas camadas lá naquele cantinho que a alma, às vezes, usa para se recolher das maldades do mundo.

Outro dia, relendo a poesia de Manoel, tomei aquele susto bom de estar em contato com uma beleza misteriosa, que dói mas sabe curar. Li com a voz embargada e as lágrimas dançando na face, “E, aquele que não morou nunca em seus próprios abismos nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas, não foi marcado. Não será exposto às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema”. A moradia nos interstícios da alma, que muitas vezes se ressente, a descida aos infernos de si mesmo, o movimento em eterna espiral (a catábase), às vezes nos coloca defronte das verdades que costumamos esconder, é o que nos restaura e torna sensível à densidade da palavra, ao abraço prolongado do poema, que pode ser o refúgio mais confortável quando tudo desaba e ficamos sem o sustentáculo das certezas.

“Poesia não é para compreender, mas para incorporar. Entender é parede; procure ser árvore”. A incorporação desse coro de vozes, que planta em nós a semente da renovação é regada pela forma graciosa com que se pinça os elementos da natureza, desvelando uma geopoética que nos aproxima de tudo que é mais singelo em nós. Quando entramos em contato com a poesia de Manoel, sentimos que a terra é o elemento que além de resgatar a nossa meninice, nos devolve a humanidade; a mania de andar com os pés nus, a predileção pelos “vazios” tão cheios de mistério, o quintal que se abre para as descobertas, “o menino que carrega água na peneira” nos ensina que a poesia não é algo que se possa incorporar com os olhos sujos de realidade.

A gente mata um pedaço da gente

A gente mata um pedaço da gente

Imagem de capa:  Rimdah1/shutterstock

A gente mata um pedaço da gente quando deixamos passar o que é mais emergencial e inadiável em nós. A gente mata um pedaço da gente quando calamos a vontade de dizer, quando nos envergonhamos da nossa vulnerabilidade e represamos nossas lágrimas com um erguer bonito de queixo. A gente mata um pedaço da gente quando cambiamos o desiludir dos sonhos dos outros pela desilusão desportiva dos nossos.

A gente mata um pedaço da gente quando dividimos refeições por educação, quando transamos em troca de falsa autoestima, quando beijamos pra sarar o medo de ficar sozinho: o nosso e o dos outros. E no afã inútil de não ferir ninguém, e no desespero de salvar a nós mesmos, a gente vai se matando lentamente.

A gente mata um pedaço da gente a cada novo arrependimento sem tentativa, a cada vez que nos dizemos não sem motivo real. A gente mata um pedaço da gente quando deixamos o medo tomar o guidão e pegar embalo. A gente mata um pedaço da gente quando nos obrigamos a sair de casa, mas nossa vontade é apenas chorar ouvindo um disco da Gal.

Um dia alguém ensinou que é preciso lutar contra a tristeza que mora em nós. Levianamente não nos disseram que às vezes ela precisa ser vivida e não contornada como um copo quebrado no chão. Vez ou outra, é preciso atravessá-las devagar, com um respeito solene. A gente mata um pedaço da gente porque esquecemos que sentimento nenhum é acidental.

E assim, a gente vai matando um pedaço da gente até não restar mais pedaço nenhum pra juntar.

Você está educando seu filho para ser um cara decente?

Você está educando seu filho para ser um cara decente?

Este é um texto em defesa dos meninos. Um texto em busca de oferecer uma chance de transformação a todos os meninos que ainda são criados para serem machos e não homens.

É um pedido de socorro em nome desses pequenos que têm negadas suas necessidades de afeto e doçura, em nome de crenças nocivas e ultrapassadas segundo as quais “homem que é homem, não chora”; “homem que é homem, não nega fogo”; “homem que é homem, não leva desaforo para casa”; e, sobretudo “homem que é homem, gosta é de mulher”.

Ouso fazer um convite para que nos despojemos de todas as verdades cristalizadas que nos impedem de olhar para essas crianças como seres em cuja alma há, mais do que tudo, um anseio pela liberdade. Infelizmente, liberdade é uma palavra que anda meio desbotada e cujo significado mais orgânico, deixou de fazer sentido.

A liberdade é o único caminho possível para as inúmeras outras estradas dessa vida que possam nos levar a lugares que realmente valham a pena. Só é possível ser livre quando temos todas nossas dúvidas, inseguranças, anseios, talentos, naturezas e dificuldades aceitas com a mesma força amorosa; e somos capazes de oferecer todas essas coisas ao outro na mesma medida em que esperamos recebê-las.

Meninos criados para serem livres em suas múltiplas formas de se manifestar, existir, sentir, pensar, acreditar e duvidar têm a real oportunidade de se transformarem em homens íntegros. E nossos meninos, por mais incrível que pareça, ainda são privados desses direitos.

Muitos dos nossos meninos são estimulados sexualmente de maneira precoce e equivocada, para atender uma expectativa social que os induz a olharem para suas parceiras meninas como seres de outra natureza; seres que precisam de alguma forma aplacar ou satisfazer suas necessidades supostamente incontroláveis de natureza masculina.

Ainda existem famílias que consideram mais difícil e constrangedor lidar com um menino que goste de se vestir de princesa, ou que tenha atração pelas sereias e bonecas, do que lidar com filhos agressivos, que machucam os amigos pela necessidade de se impor, no fundo, no fundo, para atender uma expectativa mais ou menos explícita sobre a sua masculinidade.

E por mais que a gente acredite que os tempos mudaram, que existe muito menos preconceito hoje do que havia cinco ou dez anos atrás, o fato é que ainda educamos nossos garotos sob padrões e modelos extremamente estereotipados.

Você está criando seu filho para ser um cara decente? E… não, não existe essa história de “depende do ponto de vista” ou “afinal, o que é ser decente?”. A decência humana não tem nenhuma relação com habilidades cognitivas, aparências externas ou comportamentos politicamente corretos.

Ser decente é ter em cada fibra, do corpo e da alma, o anseio por oferecer ao mundo o que há de mais nobre dentro de nós. É agir de forma ética, principalmente quando ninguém estiver olhando ou quando o nosso comportamento não for passível de prêmio ou punição.

E, principalmente, porque o mundo parece estar virado do avesso e os valores parecem ter sido varridos para uma galáxia distante, é que temos a obrigação de oferecer para esses pequenos de nós que nasceram homens, nosso maior e mais valioso bem: exemplo moral.

Este é um texto em defesa dos meninos. Pois, sendo eu uma menina, tenho a mais absoluta certeza de que somos todos feitos da mesma constituição humana. Não há de haver nada nesse mundo que ameace nossos movimentos na busca de uma relação de equidade. E, mais ainda, sendo eu uma menina que já é mulher há muitos anos, posso afirmar que todos os homens de caráter que eu tive o privilégio de conhecer e conviver, foram educados por pessoas que se preocuparam em criar caras decentes.

Imagem de capa meramente ilustrativa: cena do filme “A pomba branca”

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