A mão de Glória, por Lúcia Costa

A mão de Glória, por Lúcia Costa

Por Lúcia Costa

A cidade barulhenta expulsou aquelas duas famílias amigas. O vozerio exagerado dos homens e as buzinas de automóveis atormentavam – lhes.  Resolveram criar os filhos onde se escuta a algazarra dos pássaros e o assovio do vento. Mudaram-se durante o inverno para uma cidade de dez mil habitantes.

Os filhos dos casais somavam três: Beatriz , seis anos, e Antônio eram irmãos. Ele, apenas dois anos mais velho. Glória tinha um ano a mais que a amiga e era filha única. Encontrava nos companheiros, e agora vizinhos,  cumplicidade. Irmãos em casas conjugadas.

A casa de Glória tinha vários cômodos. Todos bem iluminados pelo sol que penetrava pelas grandes janelas de madeira. Os móveis eram poucos e necessários. Causavam imensidão ao interior da casa. O vento era convidado a percorrer os espaços. Era uma ordem natural.

Naquele dia, tudo acordou lavado: as plantas molhadas, a terra ensopada, o quintal era um lago raso. Os pássaros cantavam na copa, a empregada cantarolava na copa, as crianças barulhavam.

Os meninos brincavam, esticando-se no sol ainda morno das primeiras horas do dia, daquela manhã de sábado. Uma grande laranjeira cobria todos, mas os deixavam expostas às frestas de luz que se moviam lentamente, obedecendo ao passear do sol no céu, que mandava embora as últimas nuvens cansadas do trabalho na noite anterior. Chover é trabalhoso às operárias brancas. Chover é trabalho aos operários da terra. A chuva banha seres e coisas. Há sujeira sem a chuva; há sujeira com a chuva.

Glória e os amigos tinham pés e mãos enlameados. Arrumavam uma casinha de brinquedo. Faziam das pedras, banquinhos; das folhas, camas; das mãos, arquitetos. Beatriz e Antônio aproximavam-se naquela causa comum: a casinha primitiva. Glória afastou-se dos amigos e apanhou uma laranja caída durante a chuva na noite anterior. A fruta, madura demais, não resistiu ao vento que a balançou violentamente para todos os lados.

_ Glória, vem pra cá, grita Beatriz, vem ajudar a gente,

Glória, com a laranja nas mãos, dirige-se aos colegas.

_ O que é isso, Glória? Pergunta Antônio, curioso pelo segredo na mão de Glória.

_  Tô brincando de mundo, Antônio. Acabei de achar um mundo maduro caído no chão. Tá aqui, amarelinho, na palma da minha mão.

_ Traz pra cá, Glória! Beatriz fica animada com o novo brinquedo. Quer tê-lo dentro ou fora da casinha. Quer tê-lo.

Glória fez um pequeno buraco no chão e colocou a fruta para descansar. Mundo em um buraco úmido. A menina observa o brinquedo, acarinha-o o polo norte, tenta fazê-lo dormir, em vão. Recolhe-o e o coloca sobre o peito. Deita-se no chão molhado com o mundo sobre o corpo.

Sentindo a falta do brinquedo, Beatriz reclama:

_ Antônio, cadê o mundo que estava aqui?

_ O Mundo, responde Antônio, está na mão de Glória.

_ Glória!

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Edgar Morin: é preciso educar os educadores

Edgar Morin: é preciso educar os educadores

O Globo: Na sua opinião, como seria o modelo ideal de educação?
Edgar Morin: A figura do professor é determinante para a consolidação de um modelo “ideal” de educação. Através da Internet, os alunos podem ter acesso a todo o tipo de conhecimento sem a presença de um professor. Então eu pergunto, o que faz necessária a presença de um professor? Ele deve ser o regente da orquestra, observar o fluxo desses conhecimentos e elucidar as dúvidas dos alunos. Por exemplo, quando um professor passa uma lição a um aluno, que vai buscar uma resposta na Internet, ele deve posteriormente corrigir os erros cometidos, criticar o conteúdo pesquisado.

É preciso desenvolver o senso crítico dos alunos. O papel do professor precisa passar por uma transformação, já que a criança não aprende apenas com os amigos, a família, a escola. Outro ponto importante: é necessário criar meios de transmissão do conhecimento a serviço da curiosidade dos alunos. O modelo de educação, sobretudo, não pode ignorar a curiosidade das crianças.

O Globo: Quais são os maiores problemas do modelo de ensino atual?
Edgar Morin: O modelo de ensino que foi instituído nos países ocidentais é aquele que separa os conhecimentos artificialmente através das disciplinas. E não é o que vemos na natureza. No caso de animais e vegetais, vamos notar que todos os conhecimentos são interligados. E a escola não ensina o que é o conhecimento, ele é apenas transmitido pelos educadores, o que é um reducionismo. O conhecimento complexo evita o erro, que é cometido, por exemplo, quando um aluno escolhe mal a sua carreira. Por isso eu digo que a educação precisa fornecer subsídios ao ser humano, que precisa lutar contra o erro e a ilusão.

O Globo: O senhor pode explicar melhor esse conceito de conhecimento?
Edgar Morin: Vamos pensar em um conhecimento mais simples, a nossa percepção visual. Eu vejo as pessoas que estão comigo, essa visão é uma percepção da realidade, que é uma tradução de todos os estímulos que chegam à nossa retina. Por que essa visão é uma fotografia? As pessoas que estão longe são pequenas, e vice-versa. E essa visão é reconstruída de forma a reconhecermos essa alteração da realidade, já que todas as pessoas apresentam um tamanho similar.

Todo conhecimento é uma tradução, que é seguido de uma reconstrução, e ambos os processos oferecem o risco do erro. Existe outro ponto vital que não é abordado pelo ensino: a compreensão humana. O grande problema da humanidade é que todos nós somos idênticos e diferentes, e precisamos lidar com essas duas ideias que não são compatíveis. A crise no ensino surge por conta da ausência dessas matérias que são importantes ao viver. Ensinamos apenas o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas ele também precisa se adaptar aos fatos e a si mesmo.

O Globo: O que é a transdisciplinaridade, que defende a unidade do conhecimento?
Edgar Morin: As disciplinas fechadas impedem a compreensão dos problemas do mundo. A transdisciplinaridade, na minha opinião, é o que possibilita, através das disciplinas, a transmissão de uma visão de mundo mais complexa. O meu livro “O homem e a morte” é tipicamente transdisciplinar, pois busco entender as diferentes reações humanas diante da morte através dos conhecimentos da pré-história, da psicologia, da religião. Eu precisei fazer uma viagem por todas as doenças sociais e humanas, e recorri aos saberes de áreas do conhecimento, como psicanálise e biologia.

 

O Globo: Como a associação entre a razão e a afetividade pode ser aplicada no sistema educacional?
Edgar Morin: É preciso estabelecer um jogo dialético entre razão e emoção. Descobriu-se que a razão pura não existe. Um matemático precisa ter paixão pela matemática. Não podemos abandonar a razão, o sentimento deve ser submetido a um controle racional. O economista, muitas vezes, só trabalha através do cálculo, que é um complemento cego ao sentimento humano. Ao não levar em consideração as emoções dos seres humanos, um economista opera apenas cálculos cegos. Essa postura explica em boa parte a crise econômica que a Europa está vivendo atualmente.

O Globo: A literatura e as artes deveriam ocupar mais espaço no currículo das escolas? Por quê?
Edgar Morin: Para se conhecer o ser humano, é preciso estudar áreas do conhecimento como as ciências sociais, a biologia, a psicologia. Mas a literatura e as artes também são um meio de conhecimento. Os romances retratam o indivíduo na sociedade, seja por meio de Balzac ou Dostoiévski, e transmitem conhecimentos sobre sentimentos, paixões e contradições humanas. A poesia é também importante, nos ajuda a reconhecer e a viver a qualidade poética da vida. As grandes obras de arte, como a música de Beethoven, desenvolvem em nós um sentimento vital, que é a emoção estética, que nos possibilita reconhecer a beleza, a bondade e a harmonia. Literatura e artes não podem ser tratadas no currículo escolar como conhecimento secundário.

O Globo: Qual a sua opinião sobre o sistema brasileiro de ensino?
Edgar Morin: O Brasil é um país extremamente aberto a minhas ideias pedagógicas. Mas, a revolução do seu sistema educacional vai passar pela reforma na formação dos seus educadores. É preciso educar os educadores. Os professores precisam sair de suas disciplinas para dialogar com outros campos de conhecimento. E essa evolução ainda não aconteceu. O professor possui uma missão social, e tanto a opinião pública como o cidadão precisam ter a consciência dessa missão. [Leia esta entrevista no site do O Globo]

Assista a Edgar Morin – Os limites do conhecimento na globalização | No vídeo exclusivo, Morin reflete sobre seus interesses enquanto filósofo e sociólogo: os limites do conhecimento e da razão, bem como a relação entre a poesia e a racionalidade. Ainda, questiona a possibilidade da mudança de pensamento em um mundo globalizado e acelerado. É possível sairmos de uma visão fechada em formas particulares para o pensamento complexo, capaz de ver os problemas em sua integralidade?

Fonte sempre indicada: Fronteiras do Pensamento

“Um médico tibetano sabe do que um paciente sofre a 10 metros de distância”

“Um médico tibetano sabe do que um paciente sofre a 10 metros de distância”

ENTREVISTA COM UM MÉDICO TIBETANO: LAMA TULKU LOBSANG RINPOCHE

“Sou uma pessoa normal, penso o tempo todo. Mas tenho a mente treinada. Isso quer dizer que não sigo meus pensamentos. Eles vêm, mas não afetam nem minha mente, nem meu coração.”

Quando um paciente chega para consulta, como o senhor sabe qual o problema?
R – Olhando como ele se move, sua postura, seu olhar. Não é necessário que fale nem explique o que se passa. Um doutor de medicina tibetana experiente sabe do que sofre o paciente a 10 m de distância.

Mas o senhor também verifica seus pulsos.
R – Assim obtenho a informação que necessito sobre a saúde do paciente. Com a leitura do ritmo dos pulsos é possível diagnosticar cerca de 95% das enfermidades, inclusive psicológicas. A informação dada por eles é precisa como um computador. Para lê-los, é necessária muita experiência.

E depois, como realiza a cura?
R – Com as mãos, o olhar e preparados de plantas e minerais.

Segundo a medicina tibetana, qual é a origem das doenças?
R – Nossa ignorância.

Então, perdoe a minha, mas o que entender por ignorância?
R – Não saber que não sabe. Não ver com clareza. Quando vemos com clareza, não temos que pensar. Quando não vemos claramente, colocamos o pensamento para funcionar. E, quanto mais pensamos, mais ignorantes somos, mais confusão criamos.

Como posso ser menos ignorante?
R – Vou ensinar um método muito simples: praticando a compaixão. É a maneira mais fácil de reduzir os pensamentos. E o amor. Se amamos alguém de verdade, se não o queremos só para nós, aumentamos a compaixão.

Que problemas percebe no Ocidente?
R – O medo. O medo é o assassino do coração humano.

Por quê?
R – Porque, com medo, é impossível ser feliz e fazer felizes os outros.

Como enfrentar o medo?
R – Com aceitação. O medo é resistência ao desconhecido.

Como médico, em que parte do corpo vê mais problemas?
R – Na coluna, na parte baixa da coluna: as pessoas permanecem sentadas tempo demais na mesma posição. Com isso, se tornam rígidas demais.

Temos muitos problemas.
R: Acreditamos ter muitos problemas, mas, na realidade, nosso problema é que não os temos.

O que isso quer dizer?
R – Que nos acostumamos a ter nossas necessidades básicas satisfeitas, de modo que qualquer pequena contrariedade nos parece um problema. Então, ativamos a mente e começamos a dar voltas e mais voltas sem conseguir solucioná-la.

Alguma recomendação?
R – Se o problema tem solução, já não é um problema. Se não tem, também não.

E para o estresse?
R – Para evitá-lo, é melhor estar louco.

???
R – É uma piada. Mas não tão piada assim. Eu me refiro a ser ou parecer normal por fora e, por dentro, estar louco: é a melhor maneira de viver.

Que relação o senhor tem com sua mente?
R – Sou uma pessoa normal, penso o tempo todo. Mas tenho a mente treinada. Isso quer dizer que não sigo meus pensamentos. Eles vêm, mas não afetam nem minha mente, nem meu coração.

O senhor ri muito?
R – Quando alguém ri nos abre seu coração. Se você não abre seu coração, é impossível entender o humor. Quando rimos, tudo fica claro. Essa é a linguagem mais poderosa que nos conecta uns aos outros diretamente.

O senhor acaba de lançar um CD de mantras com base eletrônica, para o público ocidental.
R – A música, os mantras e a energia do corpo são a mesma coisa. Como o riso, a música é um grande canal para nos conectar com o outro. Por meio dela, podemos nos abrir e nos transformar: assim, usamos a música em nossa tradição.

O que gostaria de ser quando ficar mais velho?
R: Gostaria de estar preparado para a morte.

E mais nada?
R – O resto não importa. A morte é o mais importante da vida. Creio que já estou preparado. Mas, antes da morte, devemos nos ocupar da vida. Cada momento é único. Se damos sentido à nossa vida, chegamos à morte com paz interior.

Aqui vivemos de costas para a morte.
R: Vocês mantêm a morte em segredo. Até que chegará um dia em sua vida em que já não será um segredo: não será possível escondê-la.

E qual o sentido da vida?
R – A vida tem sentido e não tem. Depende de quem você é. Se você realmente vive sua vida, então a vida tem sentido. Todos têm vida, mas nem todos a vivem. Todos temos direito a sermos felizes, mas temos que exercer esse direito. Do contrário, a vida não tem sentido.

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Fontes: Sabedoria Oriental Auras, Cores e Números

Traumas infantis podem gerar danos por toda a vida adulta

Traumas infantis podem gerar danos por toda a vida adulta

Crianças que apanharam, passaram fome ou foram abandonadas têm uma tendência a sofrer traumas emocionais tão severos que podem afetar o crescimento de seus corpos e cérebros.

Esses traumas, se não tratados corretamente, causam problemas de saúde perenes. Um tratamento específico para essas aflições nem sempre é realizado, deixando essas crianças vulneráveis a diagnósticos errados de doença mental ou de hiperatividade quando, na realidade, estão demonstrando estresse pós-traumático.

Como resultado, essas crianças são mais propensas a desenvolver depressão a longo prazo e até doenças do coração ou câncer. Algumas recebem drogas de que nem sempre precisam. “O que emergiu dos últimos 15 anos de pesquisas científicas é que, quando se negligencia o abuso a uma criança, isso realmente muda sua organização cerebral”, afirma o coordenador do programa de apoio a crianças sob risco do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos
Estados Unidos, Bryan Samuels.

O mecanismo tem muito a ver com os níveis de hormônio, que podem subir perigosamente durante o abuso. Altos níveis de cortisol, por exemplo, afetam o controle dos impulsos e a memória. Um estresse elevado também pode prejudicar o córtex pré-frontal, região do cérebro que regula o foco, o autocontrole e a tomada de decisões. Esses níveis podem permanecer altos mesmo depois que as vítimas são removidas das situações que lhes fazem mal.

Isso significa que tratar essas crianças frequentemente requer mais do que colocá-las em um ambiente estável. Os médicos precisam avaliar seu desenvolvimento físico, enquanto conselheiros revisam os padrões e a severidade do abuso sofrido para desenvolver uma combinação a longo prazo de cuidados médicos e psicológicos. Em vez disso, muitas são tratadas como “crianças más”.

Quanto mais complexo o abuso, mais provável é que o impacto negativo siga a criança até a vida adulta, de acordo com um estudo do Kaiser Permanente e do Centro de Controle e Prevenção de Doenças.

A situação se complica ainda mais porque o ciclo do abuso é difícil de ser quebrado. As estatísticas mostram que quase um terço das vítimas abusará de seus próprios filhos.

Traduzido por Raquel Sodré

 

O “May be man”, por Mia Couto

O “May be man”, por Mia Couto

Por Mia Couto

Existe o “Yes man”. Todos sabem quem é e o mal que causa. Mas existe o May be man. E poucos sabem quem é. Menos ainda sabem o impacto desta espécie na vida nacional. Apresento aqui essa criatura que todos, no final, reconhecerão como familiar.

O May be man vive do “talvez”. Em português, dever-se-ia chamar de “talvezeiro”. Devia tomar decisões. Não toma. Simplesmente, toma indecisões. A decisão é um risco. E obriga a agir. Um “talvez” não tem implicação nenhuma, é um híbrido entre o nada e o vazio.

A diferença entre o Yes man e o May be man não está apenas no “yes”. É que o “may be” é, ao mesmo tempo, um “may be not”. Enquanto o Yes man aposta na bajulação de um chefe, o May be man não aposta em nada nem em ninguém. Enquanto o primeiro suja a língua numa bota, o outro engraxa tudo que seja bota superior.

Sem chegar a ser chave para nada, o May be man ocupa lugares chave no Estado. Foi-lhe dito para ser do partido. Ele aceitou por conveniência. Mas o May be man não é exactamente do partido no Poder. O seu partido é o Poder. Assim, ele veste e despe cores políticas conforme as marés. Porque o que ele é não vem da alma. Vem da aparência. A mesma mão que hoje levanta uma bandeira, levantará outra amanhã. E venderá as duas bandeiras, depois de amanhã. Afinal, a sua ideologia tem um só nome: o negócio. Como não tem muito para negociar, como já se vendeu terra e ar, ele vende-se a si mesmo. E vende-se em parcelas. Cada parcela chama-se “comissão”. Há quem lhe chame de “luvas”. Os mais pequenos chamam-lhe de “gasosa”. Vivemos uma nação muito gaseificada.

Governar não é, como muitos pensam, tomar conta dos interesses de uma nação. Governar é, para o May be Man, uma oportunidade de negócios. De “business”, como convém hoje dizer. Curiosamente, o “talvezeiro” é um veemente crítico da corrupção. Mas apenas, quando beneficia outros. A que lhe cai no colo é legítima, patriótica e enquadra-se no combate contra a pobreza.

Afinal, o May be man é mais cauteloso que o andar do camaleão: aguarda pela opinião do chefe, mais ainda pela opinião do chefe do chefe. Sem luz verde vinda dos céus, não há luz nem verde para ninguém.

O May be man entendeu mal a máxima cristã de “amar o próximo”. Porque ele ama o seguinte. Isto é, ama o governo e o governante que vêm a seguir. Na senda de comércio de oportunidades, ele já vendeu a mesma oportunidade ao sul-africano. Depois, vendeu-a ao português, ao indiano. E está agora a vender ao chinês, que ele imagina ser o “próximo”. É por isso que, para a lógica do “talvezeiro” é trágico que surjam decisões. Porque elas matam o terreno do eterno adiamento onde prospera o nosso indecidido personagem.

O May be man descobriu uma área mais rentável que a especulação financeira: a área do não deixar fazer. Ou numa parábola mais recente: o não deixar. Há investimento à vista? Ele complica até deixar de haver. Há projecto no fundo do túnel? Ele escurece o final do túnel. Um pedido de uso de terra, ele argumenta que se perdeu a papelada. Numa palavra, o May be man actua como polícia de trânsito corrupto: em nome da lei, assalta o cidadão.

Eis a sua filosofia: a melhor maneira de fazer política é estar fora da política. Melhor ainda: é ser político sem política nenhuma. Nessa fluidez se afirma a sua competência: ele sai dos princípios, esquece o que disse ontem, rasga o juramento do passado. E a lei e o plano servem, quando confirmam os seus interesses. E os do chefe. E, à cautela, os do chefe do chefe.

O May be man aprendeu a prudência de não dizer nada, não pensar nada e, sobretudo, não contrariar os poderosos. Agradar ao dirigente: esse é o principal currículo. Afinal, o May be man não tem ideia sobre nada: ele pensa com a cabeça do chefe, fala por via do discurso do chefe. E assim o nosso amigo se acha apto para tudo. Podem nomeá-lo para qualquer área: agricultura, pescas, exército, saúde. Ele está à vontade em tudo, com esse conforto que apenas a ignorância absoluta pode conferir.

Apresentei, sem necessidade o May be man. Porque todos já sabíamos quem era. O nosso Estado está cheio deles, do topo à base. Podíamos falar de uma elevada densidade humana. Na realidade, porém, essa densidade não existe. Porque dentro do May be man não há ninguém. O que significa que estamos pagando salários a fantasmas. Uma fortuna bem real paga mensalmente a fantasmas. Nenhum país, mesmo rico, deitaria assim tanto dinheiro para o vazio.

O May be Man é utilíssimo no país do talvez e na economia do faz-de-conta. Para um país a sério não serve.

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O elemento inspiracional em Patch Adams, Octavio Caruso

O elemento inspiracional em Patch Adams, Octavio Caruso

Por Octavio Caruso

Que tem a morte de errado?

Por que temos esse medo mortal?

Por que não tratamos a morte com humanidade, dignidade, decência e até com humor?

A morte não é o inimigo.

Se quiserem enfrentar um mal, enfrentem o mal da indiferença.

“Patch Adams – O Amor é Contagioso” (Patch Adams – 1998), dirigido por Tom Shadyac, que havia sido responsável pelas ótimas comédias “O Mentiroso” e “Ace Ventura”. Não é um ótimo filme, longe disso, o próprio homenageado despreza a obra, tampouco a atuação de Robin Williams é acima da média, mas a mensagem que o roteiro de Steve Oedekerk transmite foi muito importante em minha formação. Eu tinha por volta de quatorze anos quando assisti pela primeira vez, estava sofrendo o momento mais tenso do bullying na escola diariamente, buscando motivos para continuar acreditando que valia a pena seguir em frente. Eu era apenas o rato de biblioteca e sebo, aquele esquisito magricela, com óculos maiores que o rosto, que tirava boas notas e passava tardes inteiras na seção de clássicos das locadoras de vídeo. Eu sonhava em encontrar na sala de aula uma menina como a namorada do personagem, vivida pela bela Monica Potter, que enxergasse em meus papos sobre cinema e literatura algum elemento interessante ou encantador. Não tive sorte, as garotas gostavam mesmo era dos meus colegas amantes do futebol na hora do recreio.

Nas aulas de redação eu extravasava minhas angústias, enquanto todos os colegas se focavam nos simplórios temas pedidos pela professora, o clássico “João foi pra escola com Maria…”, escrevendo o mínimo de linhas requisitado no exercício, eu desafiava a professora aprofundando os temas, normalmente criando enredos de fantasia ou suspense com vários personagens, praticamente contos, sempre excedendo as linhas e deixando minha imaginação voar pela página de trás em branco. O que me interessava não era a nota, mas o pequeno texto que a professora escreveria ao lado da nota, com sua sincera opinião sobre ele. Eu, inconscientemente, exercitava aquilo que amo fazer até hoje. E, dentre tudo que escrevi nessas redações, acho que nada foi mais repetido que os trechos do discurso final do personagem Patch Adams no filme, quando ele enfrenta o Conselho de Medicina com seus argumentos sobre o valor inestimável de se tratar o paciente, nunca tratar a doença. Isso serve para tudo na vida.

Eu me emocionava bastante quando o discurso é interrompido para a entrada do grupo de pais e filhos que tiveram a dor de suas vidas amenizadas pela terapia do riso praticada pelo personagem. A gratidão nos olhos deles, a lágrima que insinua rolar no rosto de Adams, pode ser um recurso narrativo extremamente demagógico, mas funcionava muito bem para um estudante adolescente que tentava encontrar razões para entender em sua rotina diária a violência como resposta à afabilidade. Quando Williams defendia o amor de seu personagem pela função que exercia, enfrentando uma classe que não o considerava digno de coabitar o mesmo ambiente, eu me identificava e tremia por dentro. Ele, em dado momento, recebia o olhar carinhoso de aceitação do único professor que o respeitava. Todos nós temos na vida alguém assim, que coloca a mão no fogo por nossas convicções e aposta em nossos sonhos, mesmo quando parecem ser impossíveis. Alguém como o coronel cego vivido por Al Pacino em “Perfume de Mulher”, que afirma sua confiança no futuro glorioso do jovem vivido por Chris O’Donnell. É um elemento facilmente identificável.

E o que mais me agradava no filme era constatar que, ao hilário final ambientado na cerimônia de formatura, Patch continuava sendo um rebelde. Ele não se adequou à mediocridade, mas sim a subjugou implacavelmente. Era o estímulo que eu precisava. A humilhação constante podia ferir a alma, mas não me impediria de estudar, não me impediria de sonhar. Esse é o meu trecho favorito, daquele que muitos consideram um filme medíocre, sem valor algum. Um dos aspectos mais fascinantes nessa Arte é buscar sempre o tesouro escondido onde menos se espera…

E hoje, seja qual for sua decisão, juro que vou chegar a ser o melhor médico de todo o mundo.

Vocês podem impedir minha formatura.

Podem me negar o título e a bata branca.

Mas não podem dominar meu espírito, nem evitar que eu aprenda.

Não podem me impedir de estudar.

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OCTAVIO CARUSO: colunista Conti outra

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Carioca, apaixonado pela Sétima Arte. Ator, autor do livro “Devo Tudo ao Cinema”, roteirista, já dirigiu uma peça, curtas e está na pré-produção de seu primeiro longa. Crítico de cinema, tendo escrito para alguns veículos, como o extinto “cinema.com”, “Omelete” e, atualmente, “criticos.com.br” e no portal do jornalista Sidney Rezende. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, sendo, consequentemente, parte da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica.

Blog: Devo tudo ao cinema / Octavio Caruso no Facebook

A determinação para achar o sentido da vida, Eduardo Marinho

A determinação para achar o sentido da vida, Eduardo Marinho

Eduardo Marinho, artista plástico com histórias fora do convencional, compartilhará suas perspectivas únicas e profundas da vida urbana.

Ele consegue fazer as pessoas lembrar coisas que elas sabem, mas, geralmente, esquecem.

TEDxAvCataratas

Desafio: Quantos animais você é capaz de encontrar?

Desafio: Quantos animais você é capaz de encontrar?

ByNina/ Carolina Carvalho

Essa é uma postagem para pessoas realmente determinadas e que não se intimidam com um grau de dificuldade inicial no que se propõem a fazer.

Não conseguimos localizar o número total de inclusões, entretanto, creio que podemos escrever lá nos comentários os números e até os bichos encontrados.

Aceitam o desafio?

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NOTA da CONTI outra: A reprodução deste material é uma cortesia ByNina

ByNina |Carolina Carvalhocontioutra.com - Desafio: Quantos animais você é capaz de encontrar?

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Fanpage: ByNina (https://www.facebook.com/ninabynina)
Nina tem 40 anos, é Professora de Yoga e SUP Yoga, surfista e escritora.
Trabalha com Social Media e ama tudo o que faz.

Sou mãe e pai

Sou mãe e pai

“Estou desempregada, de novo e há muito tempo, demasiado tempo.

Nunca pensei chegar a este ponto, mas não sei mais o que fazer. Parece que a vida se zangou comigo e agora faz tudo para me roubar a alegria e a esperança, que por mais que a tente segurar, me vai escapando a cada não que ouço.

Depois que o Pedro me deixou sozinha com o Tomás, sinto um mundo inteiro em cima de mim, e é pesado, muito pesado. Deixei de ser mulher para tentar ser a melhor mãe, mas sinto fracassar todos os dias.

O Tomás tem oito anos e não tem culpa dos erros dos pais. O Tomás tem oito anos e não tem culpa de ter nascido neste país. O Tomás tem oito anos e tem o direito de ser feliz. O Tomás é o meu filho e é o filho que sempre quis. Tem apenas oito anos e não sabe ele que é a força de viver de uma mulher que luta todos os dias para lhe dar uma vida melhor, que é a motivação de uma mãe para se levantar a cada rasteira que a vida lhe prega. Não sabe ele que tem sido a minha esperança e a minha luz, na noite que são os meus dias.
Abençoada ingenuidade que me tem ajudado a protegê-lo.

Tive de o tirar do futebol, não tinha como pagar a mensalidade. Deixei de poder vê-lo sorrir enquanto me acenava para a bancada depois de um golo. Deixei de ouvir os seus relatos entusiasmados das jogadas que fazia, quando regressava dos treinos. Deixei de ver a pequena camisola dez a secar no estendal e os sonhos que aquele pedaço de pano carregava. Todas estas pequenas coisas cortam-me o coração pela falta que eu sei que lhe fazem e pelo sentimento de culpa e incapacidade que me cravam na alma.

Não aguentei as lágrimas quando me perguntou: porquê, mãe? E eu não consegui responder-lhe.

Chorei só, e ele abraçou-me. Naquele momento era como se tivéssemos invertido os papéis de mãe e filho.
Nunca mais me voltou a perguntar porquê, e ficou calmo.

Sinto que no fundo ele sabia exatamente o que se passava, e aceitava-o… melhor que eu. Ele é que é o meu herói.

Mas o futebol foi apenas a primeira de muitas coisas, até que um dia o Tomás foi ao frigorífico e não havia mais os iogurtes que ele tanto gostava. E no armário, os únicos cereais que havia eram os mais baratos, e até o sumo… passou a ser apenas água com limão.

Preparava-lhe todos os dias o melhor pequeno-almoço que conseguia, colocava-lhe tudo pronto na mesa e encostava-me ao balcão a olhá-lo, só.

De vez em quando perguntava-me porque não me sentava com ele a comer, e eu dizia-lhe apenas que não tinha fome… mas não era isso. Numa dessas vezes fez uma pausa nos cereais, foi à gaveta dos talheres, entregou-me uma colher e perguntou: dividimos? Sentámo-nos os dois em silêncio, naquela manhã, enquanto não chegava a hora de ele ir para a escola, e eu só me apercebi que estava a chorar quando uma lágrima me caiu sobre a mão.

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Nota da CONTI outra: Agradecemos ao autor por autorizar a reprodução do texto “Sou mãe e pai” neste site.

O tempo dos amores líquidos

O tempo dos amores líquidos

Por Letícia Maia

A necessidade de liberdade – acompanhada do medo da liberdade do outro.

A insegurança de se entregar – acompanhada pelo desejo de total entrega do outro.

A necessidade de tranquilidade – acompanhada de uma constante expectativa em relação ao outro.

Essas são apenas algumas das diversas dualidades que as atuais relações humanas contemplam. Todos esses conflitos mentais – que em sua maioria não têm reais fundamentos – geram inquietações e decepções incessantes nos relacionamentos modernos.

“A modernidade líquida em que vivemos traz consigo uma misteriosa fragilidade dos laços humanos – um amor líquido. A insegurança inspirada por essa condição estimula desejos conflitantes de estreitar esses laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos.”, afirma o sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

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Desapaixonar-se se tornou tão fugaz quanto apaixonar-se. Afinal, são tantas as opções que os meios tecnológicos me dispõem! Enquanto eu mantenho uma conversa com aquela pessoa no whatsapp, troco mensagens pelo facebook com outra. Espero ansiosamente por uma resposta rápida, mas caso nenhuma me corresponda, ainda tenho aquela outra pessoa com quem estou trocando SMS’s…

A superficialidade das relações humanas gerou um conjunto de laços e indivíduos “descartáveis”. Se algo não está bom: descarta! Mas o que nunca vem à nossa mente é que o caçador também pode se tonar caça. Lidar com diversas pessoas descartáveis o torna, da mesma maneira, descartável. É o que Bauman chama de “amor líquido”.

“É um amor a partir do padrão dos bens de consumo: mantenha-os enquanto eles trouxerem satisfação e os substitua por outros que prometem ainda mais satisfação. Na sua forma ‘líquida’, o amor tenta trocar a qualidade por quantidade – mas isso nunca pode ser feito. É o amor um espectro de eliminação imediata e, assim, também de ansiedade permanente, pairando acima dele.”.

Estas relações são reflexos da sociedade em que vivemos e não podemos anular ou ignorar este fato. Mas podemos – e devemos – passar por uma espécie de consciente introspecção e reavaliar nossos comportamentos e atitudes. Recuperar aspectos positivos de tempos passados não é necessário, mas redefinir valores hodiernos e colocá-los em prática já é um bom começo para fortalecermos possíveis vínculos sociais.

Referência: BAUMAN, Zygmunt. “Amor líquido”, Zahar; 2009.

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Nota da CONTI outra: agradecemos à Letícia Maia por nos enviar esse lindo texto e autorizar a publicação nesse local.
Letícia Maia estuda Ciências Sociais com bacharelado em Antropologia pela Universidade de Brasília.

Para Moacyr Scliar, “não podemos fabricar nossos sonhos”

Para Moacyr Scliar, “não podemos fabricar nossos sonhos”

Aqui, Moacyr Scliar, médico e escritor brasileiro, faz uma esclarecedora comparação entre o sonho e o processo criativo da escrita. Para ele, o processo da criação literária é análogo ao sonho: começa no inconsciente, mas deve ser mediado pelo consciente.

A partir dessa peculiar iluminação, a ideia é burilada pelo domínio da escrita, pelo hábito da leitura, pelo  conhecimento linguístico, dentre outros fatores, resultando, finalmente, na obra.

Para o bom escritor, não é bastante ter boas ideias.

Falsas memórias: como convencer alguém de um crime

Falsas memórias: como convencer alguém de um crime

Por Igor Leone

Um levantamento realizado nos Estados Unidos com 300 casos de presos que foram inocentados através de exames de DNA após anos na cadeia, revelou que em três quartos dos casos as acusações foram baseadas em falsas memórias dos envolvidos e falsas memórias das testemunhas oculares. Outra pesquisa publicada na Revista Psychological Science, feita com voluntários, comprovou que é possível convencer uma pessoa, ao longo de algumas horas, de que ela cometeu um crime na adolescência. Os cientistas foram capazes, inclusive, de fazer o voluntário internalizar as falsas memórias e contá-las novamente com descrições ricas de eventos que nunca ocorreram. 

Hoje em dia sabemos que é relativamente fácil gerar memórias falsas e inclusive embutir nelas a mesma complexidade de detalhes de uma memória real. A maioria de nós acredita que a memória funciona como um gravador, quando na verdade elas são constantemente construídas e reconstruídas, como uma página do Wikipedia – você pode acessar sua memória e mudar alguns fatos, mas lembre-se, outras pessoas também podem.

Estamos aprendendo que a memória é mais como um streaming em tempo real do que uma gravação de vídeo, continuamente editada por nossas percepções, imaginação, experiências e uma infinidade de outros fatores. Ainda assim, não é um costume dos juízes e jurados questionarem a autenticidade das memórias e faltam peritos que diferenciem uma memória autêntica de uma falsa memória.

O resultado disso é que pessoas inocentes vão para a cadeia todos os anos com base em testemunhas que relatam eventos de forma completamente distorcida. Na verdade, o simples comentário de um policial quando uma testemunha descreve um suspeito, algo como “bom trabalho, sua descrição corresponde a pessoa que procurávamos” já pode criar um feedback de confirmação e fazer a pessoa acreditar excessivamente no que está relatando, ainda que não se lembre direito ou não tenha certeza.

Experimento 1: “Me engana que eu gosto”

contioutra.com - Falsas memórias: como convencer alguém de um crimeUm dos experimentos para comprovar a falsa memória ocorreu em escolas do Canadá, onde cientistas pediam aos professores para que preenchessem questionários a respeito de eventos específicos que os alunos poderiam ter experimentado entre os 11 e os 14 anos. Em seguida, os alunos passavam por três entrevistas de 40 minutos, com um intervalo de uma semana entre cada uma delas.

Durante a primeira entrevista, o pesquisador contava a respeito de dois eventos que o aluno havia experimentado quando era mais jovem; no entanto, apenas um desses eventos de fato ocorreu. Para alguns, o falso evento era um crime que acabou resultando em uma detenção (furto, porte de armas, por exemplo). Para outros, o falso evento envolvia algo mais emocional, como uma briga, perda de dinheiro ou até mesmo o ataque de um cão.

Os participantes eram convidados a contarem suas memórias, tanto no evento verdadeiro quanto no falso, e por mais que não se lembrassem (obviamente) eram encorajados a lembrar da história usando estratégias específicas de recordação de memórias. A segunda e terceira entrevistas consistiam em continuar descrevendo os dois eventos, falso e verdadeiro.

Por incrível que pareça, dos 30 participantes que foram informados que cometeram um crime quando eram adolescentes, 21 (71%) desenvolveram uma falsa memória e foram capazes de contar o evento de fora detalhada, incluindo questões processuais.

76% dos participantes também recordaram das falsas memórias emocionais. É interessante notar que a porcentagem de pessoas que recordou a participação em um crime é tão alta quanto as que recordaram um evento emocional. Os participantes, nos dois casos, tendem a fornecer o mesma quantidade de detalhes e relatam o mesmo nível de confiança e vivacidade das histórias.

Para os psicólogos que desenvolveram o estudo, alguns dados fornecidos pelos professores (como o nome do melhor amigo do participante) foram fatores decisivos para encorajar a criação da falsa memória e da familiaridade com um evento que possa ser plausível.

Os resultados têm implicações claras no que se refere aos interrogatórios policiais e outros procedimentos jurídicos.

Experimento 2: “Foi você, eu vi”

Outras pesquisas revelaram dados semelhantes: a implementação de uma memória falsa tem maiscontioutra.com - Falsas memórias: como convencer alguém de um crime probabilidades de ocorrer quando um amigo ou um familiar afirmam que o suposto evento aconteceu. A corroboração de outra pessoa é decisiva durante esse processo, onde a simples alegação de que ela viu você fazendo determinado ato já é suficiente para que você acredite e confesse.

Nesse experimento os cientistas estudaram a reação de pessoas ao serem acusadas de terem quebrado um computador pelo simples fato de digitarem a tecla errada. Os participantes a princípio negavam que o teriam quebrado, mas quando outro indivíduo (um ator) afirmava que viu a tecla sendo pressionada, o participante reconhecia o erro, assinava uma confissão, internalizava a culpa e relembrava o momento com detalhes.

Ficou comprovado que a falsa acusação pode induzir as pessoas a aceitarem a culpa sobre determinado ato e até mesmo desenvolverem falsas memórias sobre ele. A pesquisa mostrou como as falsas memórias são complexas, emotivas e podem ser construídas com sugestões de terceiros.

Exemplos reais

Nessa palestra, a psicóloga Elizabeth Loftus apresenta seus estudos sobre falsas memórias e casos reais em que acusados recordavam eventos que não ocorreram e testemunhas que relatavam histórias de forma completamente distorcida. Vale a pena conferir!

Essa matéria foi publicada com autorização de nossa página parceira:

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Igor Leone é advogado, sócio do escritório Tardelli, Zanardo e Leone Advogados, colunista e diretor executivo do Justificando.

“A fábula africana do macaco e do peixe”, narrada por Mia Couto

“A fábula africana do macaco e do peixe”, narrada por Mia Couto

Um macaco passeava-se à beira de um rio, quando viu um peixe dentro de água. Como não conhecia aquele animal, pensou que estava a afogar-se. Conseguiu apanhá-lo e ficou muito contente quando o viu aos pulos, preso nos seus dedos,

achando que aqueles saltos eram sinais de uma grande alegria por ter sido salvo. Pouco depois, quando o peixe parou de se mexer e o macaco percebeu que estava morto, comentou – que pena eu não ter chegado mais cedo!”

Fábula africana narrada por Mia Couto

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De quando o pássaro apiedou-se do Sol

De quando o pássaro apiedou-se do Sol

Por Nara Rúbia Ribeiro

Ouvi, certa vez, uma lenda do fim de um mundo. A história era quase assim…

O fim começou com um passarinho, uma tia nada moderna e um menino muito ocupado que aniversariava.

A tia chega com um passarinho engaiolado. Um pássaro azul claro, cujas pontas das penas ganhavam um tom mais acentuado. A gaiola, de tão leve, tinha lume de abstrato e veio recoberta de um tecido de renda, no capricho da tia.

 – É seu presente de aniversário! Aqui está o alpiste. Também não se esqueça de dar água pra ele, não!

– De onde me saiu essa tia? Questiona-se o menino, no auge da sabedoria dos seus nove anos, agora completados.

Tia sem antena moderna. Desconectada do mundo. Se melhor orientada fosse, daria ao menino um game de última geração, brinquedos da alta tecnologia, um novo tablet, um iPad ou qualquer outra engenhosidade a tornar-se obsoleta em tempo record. Algo descartável, sem carne, sem vida, sem ossos: sem alma.

O que salvou algum resquício de alegria ao menino foi a ressalva da tia: 

– “E ele canta,viu!” Afirmativa que de algum modo surpreendeu o menino, no que esboçou um sorriso.

Assim o passarinho, por instantes, desafiou a atenção do menino. Cantava, embora baixinho e pouco. Voava de um lado para o outro, em seu minúsculo cativeiro.

– Pai, ele pode chamar Bird Man?

– Claro, filho, como quiser. Respondeu sem pensar o padrasto, enquanto ajeitava a gravata.

– Beijo, vou indo pro trabalho.

A comida na geladeira, seria esquentada em breve tempo no micro-ondas. A mãe, no trabalho desde muito antes do menino acordar. Embrulhados em plásticos hermeticamente fechados, doces com corantes artificiais desfilavam formatos de frutos diversos. Agora, tudo era tão artificial que, para se reconhecer o sabor dos frutos, se fazia necessário usar produtos químicos. A vida necessitava de artifícios.

Amigos virtuais o chamam, como se fossem velhos conhecidos.  Os professores, todos on line. Ele clica em uma tela e o mundo todo se abre sob o seu olhar de homem do futuro e muitas notícias disputam os seus sentidos todos.

O infinito da informação, a infinitude do conhecimento, tudo ali, aos seus pés. Pobre criança! O infinito não pontuado o que é, senão um nada disfarçado de inteiro?

O menino, por tempos, se esquece do pássaro. Quando dele se recorda, percebe que o pequenino alado já não consegue cantar, embora ainda se mexa lentamente.

– Canta, Bird Man! Será que nem pra isso você presta mais?

E o pássaro silencia-se na fraqueza da sede e da fome, como se se envergonhasse da desumanidade dos homens.

O menino olha os recipientes de água e comida e percebe que estão vazios e secos, mas sentencia:

– Não come e não bebe até cantar, passarinho mimado! E pega a gaiola e a leva à varanda da casa, deixando-a sob um sol causticante do verão.

– Acho que o sol vai ser bom pra você acordar.

E o menino corre à sala e retorna aos jogos: –  Pega,  pega. Mata, explode a cabeça dele. Vou recuar e você joga a bomba. Anda!….

E o passarinho acorda de um sono delicado e austero. Ao abrir os olhos, percebe uma invisível mão girar a maçaneta da portinhola de seu cárcere. A porta se abre e ele e entende que pode partir… E voa e se deslumbra do céu, e se encanta da luz.

Nesse momento ele vê o Sol e a sua alma se apieda do grande astro, pássaro de luz desprovido de asas, condenado a tentar degelar, por eternidades interias, o coração de homens que se fizeram desprovidos da emoção para abraçarem a o pragmatismo de um tempo.

Comovido, o pássaro volta à varanda e segura e suspende, em seu minúsculo bico, as grades de sua antiga prisão. E assim ele voa ao encontro do Sol. Seu canto faz com que o astro rei compreenda a dignidade de seus propósitos, e se permita aprisionar-se.

O passarinho aprisiona o Sol em sua quase abstrata gaiola e o leva a visitar e a aquecer outros mundos. Mundos mais condizentes com a luz, mais afeitos ao canto, mais atentos ao azul e à beleza que os cercam. Cujos homens se permitissem o exercício de sua pessoal humanidade.

E do mundo do menino ocupado nunca mais falar se ouviu. 

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Messenger of spring – © Katerina Pyatakova Pastel

Nara Rúbia Ribeiro: colunista CONTI outra

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Escritora, advogada e professora universitária.
Administradora da página oficial do escritor moçambicano Mia Couto.
No Facebook: Escritos de Nara Rúbia Ribeiro
Mia Couto oficial

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