Para viver é preciso ter coragem de morrer

Para viver é preciso ter coragem de morrer

Por Adriana Vitória

Aprendi intuitivamente a lidar com a morte muito cedo em minha vida. Aos cinco anos,  perdi minha irmã mais velha. Aos nove, uma das melhores amigas da escola. Aos quinze, a senhora que trabalhava há cerca de quarenta anos na casa do meu tio avô morreu nos meus braços. Era a vida me mostrando o quanto era imprevisível.

Minha vida foi marcada por separações, centenas de mudanças de casa, de país…

Mas meu “diploma” veio em 89, quando fui fazer um curso intensivo de três meses sobre Livro “Tibetano dos Mortos”, no instituto Nyingma.

Nos anos seguintes, perdi duas das pessoas mais importantes da minha vida: minha mãe e meu avô.

Nós do ocidente ainda temos muita dificuldade em lidar com a morte. Mal mencionamos a palavra, com medo que ela nos apanhe.

Obviamente toda perda gera dor, mas se compreendemos e aceitamos que o fim é inevitável, natural e fundamental ao nosso processo evolutivo, a vida se torna de fato significativa.

O número de pessoas que se recusa a aceitar ou lidar com a perda (de um ente querido, seja causada pela morte física ou uma separação) não é nada pequeno.

Para fugirmos do luto, tão necessário de ser vivido,  recusamos-nos a abrir mão de quem, ou do quê, já teve seu papel cumprido. Insistimos em carregar pessoas, lembranças ou situações finitas, em levá-las adiante, sem ao menos nos darmos conta de que, com isso, só retardamos nosso crescimento. Poluindo o nosso presente com descartes impossibilitamos o futuro.

Entulhamos a casa só pra não termos que lidar com o vazio deixado e nem nos damos conta de que lidamos com a morte o tempo todo. Sem ela, a vida seria pura estagnação e a existência totalmente sem sentido.

Para nascermos temos que abandonar a segurança uterina. Para comermos abdicamos do leite materno. Para entrarmos na escola, temos que deixar o aconchego de casa. Para aprendermos a ler, largamos as fraldas. Para entrarmos na puberdade, deixamos  a infância. Para nos tornarmos adolescentes temos que abrir mão da puberdade e para nos tornando adultos deixar que ela se vá.

Vivemos milhares de perdas, grandes e pequenas, o tempo todo, a cada minuto. Ações são interrompidas para darem lugar a novas, afinal, não haverá vida se não pactuarmos com infinitas mortes. Simples assim.

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“Trocando baterias”…e preenchendo lacunas afetivas

“Trocando baterias”…e preenchendo lacunas afetivas

Quando os homens suspeitarem que as máquinas substituiram o afeto, constatarão, surpresos, que o Amor novamente venceu: As máquinas aprenderam a amar.

A animação ‘Changing Batteries’ (Trocando baterias) é uma produção de 2013 realizada pela Sunny Side Up Production, Malaysia.

Direção: Casandra Ng

Conheça a Página Oficial da animação.

A questão da tolerância – Flávio Gikovate

A questão da tolerância – Flávio Gikovate

O tema é extremamente relevante tanto para as questões interpessoais quanto para as relações sociais mais amplas.

É muito difícil desenvolver a capacidade genuína de respeitar pontos de vista ou modos de vida diferentes.

Para mais informações sobre Flávio Gikovate
Site: www.flaviogikovate.com.br
Facebook: www.facebook.com/FGikovate
Twitter: www.twitter.com/flavio_gikovate
Livros: www.gikovatelojavirtual.com.br


Esse blog possui a autorização de Flávio Gikovate para reprodução deste material.

Dia ou noite, bom ou mal, certo ou errado? De que lado você está?

Dia ou noite, bom ou mal, certo ou errado? De que lado você está?

Quantas vezes achamos que uma coisa é melhor que outra? Uma decisão é a mais acertada? Um caminho é o mais correto ou uma determinada consequência é a mais justa?

Quantas vezes “tomamos partido”? Ou escolhemos apenas “um lado da moeda”?

Atitudes polarizadas fazem parte da natureza humana! Afinal é difícil conseguirmos ver todas as faces de uma mesma realidade!

Se numa sala onde a minha frente vejo somente uma porta, as vezes é difícil enxergar que atrás de mim também existem janelas. É preciso ampliar o olhar, enxergar mais além e se permitir ver pelo avesso, com outros olhos, de outro jeito, de outra forma.

Quando falamos de objetos reais, tal tarefa até que pode ser simples. Basta se virar e olhar para a sala toda!

Mas quando falamos de ideias, sentimentos e tudo mais que permeia a mente humana, a questão ganha uma complexidade não dimensionável.

A subjetividade não nos permite ver tudo com objetividade plena! Ao nascermos recebemos: herança genética, sexo, cultura, família, e todos estes contextos constituem uma determinada ideia do mundo que nos cerca. Funcionam como verdadeiras lentes entre nós e o ambiente que fazemos parte.

Porém, a ação consciente é somente um dos aspectos que regem a nossa vida. Muitas questões pairam no inconsciente, “às nossas costas”. E, por mais estranho que pareça, é dele que vêm às forças necessárias para a nossa evolução no plano da consciência.

O dilema humano da unilateralidade é comumente retratado nas mais diversas artes de maneira sensível, empolgante e criativa.

É o caso do curta metragem de animação “Dia & Noite” (Day & Night) da Pixar, que retrata o interessante encontro do Dia com a Noite, cada um com seus elementos, magias e terrores característicos.

O ‘DIA’ acorda e se delicia com suas conquistas! Faz florescer, produzir, alegra as pessoas e parece estar consciente de tudo a sua volta.

De repente o DIA encontra a “NOITE” em seu mais profundo sono e estranha esse novo elemento, seu contrapólo.

A dualidade da vida encontra aqui sua representação!

Dia e noite, luz e sombra, bem e mal, feminino e masculino, inferioridade e superioridade, consciente e inconsciente. Inúmeros aspectos da vida funcionam em oposição ao seu par. A sabedoria se fará presente em quem aprender a conviver bem com a alternância dos opostos, podendo, deste modo, oferecer desenvolvimento à sua consciência.

Dia e Noite, se comparam e se confrontam! Cada oposto do par carrega uma característica essencial, uma dinâmica específica que o diferencia do outro par. Cada um quer mostrar somente o seu melhor lado e o pior do outro. Acabam brigando por isso. A rigidez em somente um dos polos causa tensão e conflito! E quanto maior a tensão, maior o desequilíbrio.

Quando falamos do ser humano, isso pode afetar mente e corpo gerando diversos sintomas e doenças.

Nos relacionamentos tais comportamentos resultam em discórdias rompimentos, mágoas e mal-entendidos.

Mas a estória dramatizada nos oferece uma solução!

Algo que somente o DIA têm chama a atenção da NOITE! E então cada um pode mostrar o seu melhor, seus encantos e suas diferenças.

Aos poucos vão percebendo, uma complementariedade. O mesmo cenário varia no DIA e na NOITE, mas em essência é o mesmo cenário. Assim, eles passam a se divertir com as diferenças e percebem o que também pode ser bom do outro lado da moeda.

Há então uma alternância entre os personagens, tal qual uma dança. Ritmada, intensa, com energia vital!

Mas ainda assim, os dois aspectos se veem como sendo separados. É preciso encontrar um ponto em comum. E isso acontece quando se deparam com a antena de transmissão.

O fato inicialmente os deixa entristecidos, pois afinal é como se toda tensão e toda magia ao mesmo tempo tivesse acabado.

Mas, então um terceiro fenômeno ocorre! Não é nem DIA e nem NOITE é o ENTARDECER!

“da colisão entre duas forças oposta, a psique inconsciente tende a criar uma terceira possibilidade” (Andrew, 1988).

Há uma reconciliação num nível ainda mais satisfatório, com o despertar de uma nova consciência.

“Onde havia uma oposição, agora surge uma configuração recém-nascida, simbólica de um todo nascente, uma figura possuidora de potenciais além daqueles que a mente consciente foi capaz de conceber” (Andrew, 1988).

Por meio da capacidade de ir além do conflito, aceitar a parcialidade, transcendendo as tendências destrutivas de empurrar (ou de ser empurrado) para um lado ou para o outro, é possível alcançar uma perspectiva diferente de uma puramente pessoal. É possível ver com outros olhos e vislumbrar um novo mistério, uma nova paisagem e um novo caminho!

Faz parte do desenvolvimento da consciência a aceitação e integração dos elementos opostos inconscientes. E a partir desta integração surge uma nova possibilidade de encarar o mundo.

Assim, a vida fica mais interessante e cheia de novos significados e aventuras!

E você, consegue se arriscar nessa travessia?

 

Referências Bibliográficas

ANDREW, S.; Sholter, B. Plaut, F. Dicionário crítico de análise Junguiana. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

JUNG, C. J. Obras Completas. São Paulo: Editora Vozes.

Esse material foi reproduzido com a autorização das autoras. 

Psique em Equilíbrio é uma parceria CONTI outra 🙂

Autoras:

contioutra.com - Dia ou noite, bom ou mal, certo ou errado? De que lado você está?Juliana Pereira dos Santos – Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica Junguiana. Aprimoranda em Psicopatologia e Psicologia Simbólica pelo Instituto Sedes Sapientiae e Coach formada pela Sociedade Brasileira de Coaching. CRP: 06/ 108582

 

 

contioutra.com - Dia ou noite, bom ou mal, certo ou errado? De que lado você está?Lilian Marin Zuchelli – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana pela PUC-SP. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Institiuto Sedes Sapientiae. CRP: 06/23768

 

 

contioutra.com - Dia ou noite, bom ou mal, certo ou errado? De que lado você está?Marcela Alice Bianco – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana formada pela UFSCar. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Sedes Sapientiae. CRP: 06/77338

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Tudo em seu devido lugar

Tudo em seu devido lugar

Por Elika Takimoto

Quando somos bem ou mal educados por uma família achamos natural o que vemos ou ouvimos em casa. Ao cair no mundo, começamos a estranhar as diferenças e questionar o certo e o errado em vários referenciais diferentes da nossa morada. Quando fui pela primeira vez para a escola com seis anos, deparei-me com o fato de estar aprendendo algo errado com meus pais como a pronúncia das palavras. A partir de então, comecei a fingir que acreditava em tudo o que eles me diziam sem mais nem sequer prestar muita atenção na forma em que as palavras eram articuladas.

(Papai é japonês e possuía dificuldades naturais à sua etnia com erres e eles. Marília, colírio, por exemplo, eram um plobremaço. Mamãe, por causa de um fenômeno fonético já explicado por historiadores e que nada compromete a sua inteligência, falava Cráudia, chicrete, pranta, ingrês, frauta,…o que atrapalhava menos a papai do que a nós que aprendemos a nos expressar com os dois.)

Dentro apenas de mim mesma, decidi que não mais limitaria a duas pessoas a responsabilidade de ensinar-me o que era o direito e o desacertado a fazer nessa vida. E aos quatorze anos, já namorando com  aquele que seria o meu marido, comecei a frequentar uma residência muito distinta da minha, a começar pelo número reduzido de pessoas: a casa organizada da minha sogra. Um porta-retrato tirado do lugar e recolocado em um ângulo diferente era percebido e imediatamente reajustado de forma que em qualquer cômodo da casa em que entrávamos, tudo estava milimetricamente em ordem e organizado como nos cenários de novela. E em matéria de limpeza era tal e qual um bom consultório de dentista. Minha sogra havia me ensinado que a casa da gente reflete como anda a nossa cabeça. Se nos deparamos com um ambiente sem ordem, dizia ela, pode ter certeza de que a pessoa que lá vive está de alguma forma descompensada. Achei aquilo o máximo e mega correto.

Com o tempo, ao voltar para a minha vivenda o que jamais me incomodava começou a me importunar: a bagunça feita pelos meus irmãos e também pelos meus próprios pais. Fosse nos quartos, na sala, no banheiro ou na cozinha eu ficava boquiaberta com o desleixo de todos e fazia o que deveria ser feito: arrumar, pois assim os ajudaria a encontrar o equilíbrio interno que lhes faltava.

Aconteceu que um dia, já com mais idade, fui a uma confraternização de final de ano na casa do tio Nero e da tia Neide, pais da prima Silvana, parentes de minha sogra. Lembro-me como se fosse hoje o que senti ao observar aquela moradia em que visitei somente uma vez. Era tudo muito simples, os tios recém-conhecidos eram pessoas extremamente humildes, mas não havia dúvidas que cuidavam daquele simpático cafofo com muito amor e carinho a despeito de ter nitidamente objetos fora do lugar. Não hesito em dizer que ali foi um dos lugares mais bonitos em que já pisei.

Alguns meses se passaram. Recém-casada e completamente neurótica com a arrumação, por algum motivo ligado a comemoração e festa, fomos à casa da prima Silvana, lá no Recreio. Casa grande, bonita, em condomínio fechado e tudo! Tio Nero já era falecido, mas a tia Neide estava lá. Viria a deixar saudades de sua doçura pouco tempo depois. Como de costume, Silvana, uma mulher que aos meus olhos era bem resolvida e super determinada, convidou-me para conhecer a parte de dentro daquela imponente habitação e eu aceitei prontamente cheia de curiosidade.

A casa estava uma zona segundo meus novos parâmetros sograis! Silvana nem sequer se desculpou e mostrava cada cômodo bagunçado por seus filhos eu diria até com muito orgulho. Assim foi com a sala cheia de fitas e consoles de vídeo-game, com as camas removidas e as roupas jogadas no quarto das meninas. Mas, de uma forma estranha, senti exatamente o mesmo de quando pisei na casa de seus pais. Mais uma vez, eu estava dentro de um lar cheio de vida bem vivida.

Onde a minha sogra havia errado quando disse que anarquia de nossa casa reflete a balbúrdia de nossa mente? Em parte, ela tem razão, pois, nossa casa deve ser o centro de resolução de nossos problemas. E, para ser um local onde vivem companheiros que, mesmo na divergência, se apóiam e nas lutas se solidarizam, é bom que este seja realmente limpo e organizado. Mas, eu agora acrescentaria: de uma forma que nos reconheçamos e que nos identifiquemos quando estamos nele. Para que tenhamos pressa em chegar e para que retardemos ao máximo a nossa saída, a nossa morada deve ser arrumada de um jeito que nos sobre tempo de viver nela. 

Há de se gastar alguns minutos afofando as almofadas, esticando lençóis, limpando, esterilizando, quiçá ajeitando os porta-retratos!  Mas nada que impeça um ‘quando’ bem demorado para tirar os livros das estantes e um ‘onde’ bem espaçoso em que as crianças possam ser criativas. A forma em que vivemos em nosso lar não deve nos envergonhar mas sim nos encher de orgulho diante das visitas. E isso, a despeito de toda a admiração e carinho que tenho pela minha sogra, eu aprendi mesmo foi com os meus pais. Só percebi que eles estavam certos quando tive o prazer de conhecer tio Nero e  tia Neide e o  deleite de ser apresentada ao angu de caroço da prima Silvana pelos seus olhos repletos de vanglória.

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O quadro que ilustra esse texto é de CHILDE HASSAM e se chama A sala das flores.

A beleza da gratidão em “O Carteiro e o Poeta”

A beleza da gratidão em “O Carteiro e o Poeta”

Por Octavio Caruso

A emoção em “O Carteiro e o Poeta” (Il Postino – 1994), dirigido por Michael Radford, já nasce nos primeiros segundos, com a linda trilha sonora de Luis Bacalov, que consegue transmitir um profundo sentimento de nostalgia, como que a sociedade gritando por ajuda, a necessidade do retorno de valores já tidos como antiquados e dispensáveis. O homem humilde, vivido por Massimo Troisi, emocionalmente inseguro, que, por hábito, aprendeu a se minimizar, observando ternamente a foto amarelada, enquanto o dia lentamente desperta. Ele tenta estabelecer contato com o pai, um pescador embrutecido pela vida, porém, o velho não escuta suas desajeitadas palavras, preocupado mais com o mecânico saciar de sua fome. Ao conhecer o poeta Pablo Neruda, vivido por Philippe Noiret, em um cinejornal, o homem toca brevemente aquele mundo desconhecido, totalmente diferente de sua simples comunidade pesqueira. A escuridão da sala de cinema potencializa a mágica desse primeiro encontro, posicionando o homem, em sua pequenez, diante do gigante visitante estrangeiro na tela.

Ele tenta conseguir um emprego como carteiro, porém, num toque sutil, a câmera se foca na exigência de uma bicicleta. A sua insegurança é tanta, que, sem pensar duas vezes, ele adentra o local com a bicicleta, como que tentando garantir sua contratação, antes de precisar abrir a boca. Vale notar a postura dele ao avisar ao empregador sua fragilidade intelectual, afirmando que sabe, de forma lenta, ler e escrever, uma mentira que ele é incapaz de disfarçar, quando reage de forma defensiva ao escutar que irá trabalhar apenas para uma pessoa, já que todos na região são analfabetos. Em sua visão, Neruda é o poeta amado pelas mulheres, aquele ser superior idealizado na sala escura. A remuneração é pouca, o trabalho é cansativo, devido ao número expressivo de cartas que ele carregará, ele descobre até que o poeta é um comunista, conotação política que não entende, mas nada disso importa para o carteiro, que, com um emprego, passa a existir novamente para seu pai. Ele é aconselhado a trocar o mínimo de palavras possível com o estrangeiro, sendo submisso e prestativo, evitando incomodar.

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No primeiro encontro, ele se encanta com o carinho do poeta com sua esposa, gesto que corrobora sua imagem idealizada. Ele sorri como uma criança que flagra o beijo dos pais. A gorjeta era desnecessária, ele já tinha tido satisfeito o necessário, a confirmação de sua crença. Em sua mente, como todos que idealizam, ele cria até a ilusão de uma conversação, já que afirma ao empregador que o poeta fala de forma diferente, quando, na realidade, ele havia apenas agradecido pela entrega das cartas. No segundo encontro, após efetivamente flagrar o beijo do casal, ele toma um pouco de coragem e tenta, de forma desajeitada, estreitar a relação, colocando-se à disposição dele para qualquer trabalho extra. O carteiro precisa aprender aquele truque de mágica, aquela facilidade de encantar tantas mulheres. Com mais uma frase trocada, ele já expande sua ilusão, afirmando que o poeta também é um exímio contador de piadas. Sem cartas, ele vai até o poeta para conseguir uma dedicatória em um livro, uma prova de que ele é seu amigo, um tesouro que ele pretende utilizar com as mulheres, porém, para sua tristeza, seu nome não consta na breve dedicatória.

O carteiro se esforça, tentando compreender o poder sedutor por trás daquelas linhas, letras pequeninas, exercitando timidamente metáforas com o poeta, ainda que não saiba o que significa a palavra, como que mostrando a ele que poderiam ser amigos. Ele não compreende a razão de algo tão simples possuir um nome tão complicado. E, numa cena bonita em simbolismo, pela primeira vez, o enquadramento mostra o poeta se colocando em posição de submissão, sentado, diante do simples carteiro, que, de pé, tenta impressioná-lo com o resultado de seu estudo dedicado. A poesia explicada torna-se banal, ele aprende que a mágica perde o fascínio quando o truque é revelado. Os dois homens, tão diferentes em teoria, acabam se descobrindo, na prática, iguais. Não há mestre e aprendiz, ambos aprendem. O efeito desse encontro, um evento transformador na vida dos dois, uma amizade nascida da improbabilidade, fortalecida com o amor pela palavra escrita. O carteiro deseja contar para o pai sua felicidade, mas, com sua sensibilidade que está sendo apurada, percebe que o velho bronco não irá compreender sua conquista, ou compartilhar seu orgulho, então, triste, ele silencia. A cultura, único elemento que verdadeiramente modifica o homem, já havia começado a libertá-lo daquela realidade simplória.

O emocionante terceiro ato, as circunstâncias de bastidores, com Troisi cada vez mais fragilizado, o adiamento de uma cirurgia cardíaca que poderia ter garantido mais alguns anos de vida, uma escolha apaixonada pela finalização da obra, decisão que evidencia a importância do filme na vida do querido ator italiano. Sua morte, por ataque cardíaco fulminante, no dia seguinte ao término, trouxe lágrimas aos rostos de cinéfilos do mundo todo. Seu legado é eterno, assim como a influência do poeta na vida do personagem. O filho, que ele não chega a conhecer, carrega o nome do estrangeiro, que, a despeito de todos os avisos do empregador, acabou se encantando pela amizade pura e sincera do tímido carteiro. Seu poema, criação que o ídolo nunca irá conhecer, perdido na revolta dos manifestantes, foi o atestado de independência e segurança emocional. A beleza da gratidão.

Abaixo, diálogo em que o carteiro diz a Neruda: ‘A poesia não é de quem faz, é de quem dela precisa’

OCTAVIO CARUSO

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Carioca, apaixonado pela Sétima Arte. Ator, autor do livro “Devo Tudo ao Cinema”, roteirista, já dirigiu uma peça, curtas e está na pré-produção de seu primeiro longa. Crítico de cinema, tendo escrito para alguns veículos, como o extinto “cinema.com”, “Omelete” e, atualmente, “criticos.com.br” e no portal do jornalista Sidney Rezende. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, sendo, consequentemente, parte da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica.

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O Outro desaparece debaixo de nosso olhar superficial e apressado

O Outro desaparece debaixo de nosso olhar superficial e apressado

Interesse

Por Ana Vieira Pereira

Heráclito de Éfeso acompanhou-me a semana toda. Alimento-me da sua proposição do mundo ser movimento e mudança constantes e fundamentar-se numa estrutura de contrários. Para ele, a origem de todas as coisas é a contradição, e o conflito é ajuste dessas forças contrapostas.

Há uma lei, entretanto, que rege esse movimento. Heráclito chama-a de Logos. Logos não só rege o devir do mundo, como “indica, dá signos”, ainda que o homem “não saiba escutar nem falar”. As aspas são palavras do próprio Heráclito. Ou seja: Logos dá-nos indícios do mundo tal qual se manifestará no futuro; Logos diz-nos, em forma de signos, o ser da mudança em nós e no mundo. Mas é preciso saber escutar e falar, o que significa saber usar a Palavra e usá-la.

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Heráclito de Éfeso

Aprender a ler os signos de Logos é uma arte. Heráclito diz-nos, em outro fragmento, que é indispensável abrir e utilizar os sentidos: o mundo entra-nos pelos olhos, pelos ouvidos, pela pele, esse tecido extenso de composição tão sutil. É preciso aprender a ler os signos que nossos sentidos captam, porque só eles, em estado bruto, não bastam. É preciso lapidar.

Lapidar significa, aqui, fazê-los acompanhar do sentido da inteligência, e essa apóia-se numa atitude indagadora. É preciso pensar, e é preciso fazer(-se) perguntas. Se não, seremos seres encastelados na matéria imprecisa dos sentidos, onde o real é invisível. A pergunta, costumo eu dizer nos cursos de escrita, é o movimento propulsor do diálogo. Se a palavra afirmativa, enunciativa, dá nome ao mundo, e é objetiva e verdadeira, embora distante e fria, a pergunta é o primeiro movimento de Um em aproximação ao Outro. Pergunto, porque me interesso, e me interesso porque a vida parte do interesse.

Inter-esse é aquilo que “está entre”. Para haver “entre” é preciso que haja dois e há de haver aquilo que os conecte, uma importância que um reconheça no outro: é entre dois ou mais que Cristo se manifesta. É entre dois ou mais que o céu se constela.

Interesse cultiva-se, e seu cultivo parte da intenção de aprender a ler os signos de Logos. Porque, a rigor, podemos passar várias existências surdos e mudos. Logos continuará e as águas dos rios continuarão passando por baixo de todas as pontes. É preciso que algo em nós se mova na direção do outro, esse interesse verdadeiro na verdade que ele carrega em si como ser divino que é, e esse interesse manifesta-se na importância que lhe conferimos, na ocupação que lhe dedicamos, para que a conexão que se anuncia seja real e verdadeira.

[quote_box_right]Somos indiferentes ao sofrer alheio, às percepções dos sentidos do Outro, desinteressamo-nos daquilo que vê e diz, porque o nosso Eu tem pressa, e tem suas próprias obrigações, compromissos, responsabilidades, interditos, exigências, territórios…[/quote_box_right]

Mas o Outro desaparece debaixo de nosso olhar superficial e apressado. Somos indiferentes ao sofrer alheio, às percepções dos sentidos do Outro, desinteressamo-nos daquilo que vê e diz, porque o nosso Eu tem pressa, e tem suas próprias obrigações, compromissos, responsabilidades, interditos, exigências, territórios… e não descansa de si, e nem se detém, porque o mundo anda rápido e tudo é veloz e são tantas tarefas e não temos tempo não temos tempo não temos – e o que não temos afinal é a chance de perceber o Outro, partilhar do seu caminho e multiplicar o nosso. Somos só superfície, um mundo raso de pele sem tato pro Outro. Esse olhar de superfície, indiferente e desinteressado, é um rolo compressor em marcha lenta por cima da alma.

Eu me pergunto, e pergunto a Heráclito, qual será a força de contraposição. Qual será a força, de igual magnitude e poder, que se oporá a esse desmantelamento da humanidade em nós. E Heráclito responde com a sua frase mais famosa, aquela em que Platão se inspira para, na sua própria e particular leitura, dizer que “um homem não se banha duas vezes no mesmo rio”.

“Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos” são as palavras proferidas por Heráclito. Embora uma parte do rio flua e mude (a água), há uma outra (o caudal, o leito), que se mantém relativamente permanente.

É esse caudal, que guia o movimento da água, o Logos que tudo rege. Ao entrarmos num rio, entramos nele e não entramos, porque ele sempre muda nas águas que passam, apesar de ser sempre o mesmo. E nós mesmos, sob a regência de Logos, somos permanentes e mutáveis a cada instante. Quanto mais conseguirmos compreender os signos que Logos indica, mais conseguiremos compreender onde se manifesta a lei regente, e onde a constante mutação modifica. É nessa condição que precisamos parar, observar, pensar, indagar e mudar. Sem esse movimento, mudaremos porque forças externas nos impelem, e não por forças de nosso próprio caminhar evolutivo.

Sem menosprezar o olhar do Outro, e mantendo o pensar do Outro em mim, pavimento o meu caminho. Nos embates entre, no interesse que se cultiva, no conflito que se estabelece e do qual não se foge, nasce uma nova possibilidade. Talvez possa ser a força de contraposição à diluição do vir a ser humano, essa força que se manifesta às vezes tão próxima, em tantas almas que se angustiam tanto que procuram a morte como refúgio. Talvez o que nelas tão cruamente chore, e chore em nós quando a parede do desinteresse e da indiferença nos atinge, seja o choro da humanidade que sofre, e que vive em cada um de nós. Cada movimento que Eu faço na direção do Outro aglutina-se em torno dos movimentos que o Outro faz, e soma e multiplica, e é dessa aritmética que nasce a força necessária de contraposição. E sempre, sempre vigiar a si mesmo e amar o outro.

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Heráclito pintado por Rafael-afresco

Reprodução do texto autorizada pelo blog parceiro

contioutra.com - O Outro desaparece debaixo de nosso olhar superficial e apressado

contioutra.com - O Outro desaparece debaixo de nosso olhar superficial e apressadoAna Vieira Pereira é mestre e doutora em Literatura Comparada pela USP. Atualmente dedica-se ao ensino e à pesquisa da escrita dentro do âmbito da criação artística. Coordena o espaço Quinta Palavra, em Botucatu, e é assessora pedagógica da Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo, e da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, em Botucatu. É autora de, entre outros, Do ventre ao berço: o parto em casa, Mistache Malabona e O dono do castelo.

“O vendedor de passados”, livro de José Eduardo Agualusa, ganha as telas do cinema.

“O vendedor de passados”, livro de José Eduardo Agualusa, ganha as telas do cinema.

Um filme muito esperado, com estreia no Brasil prevista para o dia 21 de maio, o “O Vendedor de Passados” foi escolhido para a sessão de abertura, ontem, do FESTin – Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, em Lisboa. O Festival termina no dia 15 de Abril.

Realizado por Lula Buarque de Hollanda, com Lázaro Ramos e Alinne Moraes no papeis principais, o filme é uma adaptação da obra homônima do escritor José Eduardo Agualusa.

O escritor, em sua página no facebook, comentou a estreia do filme:

“…Muita gente ontem, e muitos amigos, na estreia mundial do filme “O Vendedor de Passados”, em Lisboa. Parabéns ao realizador, Lula Buarque de Holanda, e ao Lázaro Ramos – que dá corpo a um vendedor de passados muitíssimo convincente, misterioso e melancólico.”

Como ajudar as crianças a preservar sua inocência

Como ajudar as crianças a preservar sua inocência

Por Jodi Gibson

A pressão exercida pelos colegas, a cultura das celebridades e a tecnologia são responsáveis pelo crescimento precoce de nossos filhos. É o que afirmam os pais entrevistados numa recente pesquisa encomendada pela Pumpkin Patch, fabricante de roupas infantis.

 “Muitos pais estão preocupados com a duração cada vez menor da infância”, afirma Laura Demasi, Diretora de Pesquisas responsável pelo estudo. Segundo eles, “a tecnologia e a mídia têm exposto seus filhos ao mundo ‘real’ muito precocemente, roubando-lhes, em certa medida, a inocência que caracterizava a infância que eles próprios tiveram”.

De acordo com o estudo, 58% dos pais entrevistados acreditam que seus filhos estão abandonando o mundo da fantasia muito antes do que em sua geração. Além da cultura da celebridade, outra preocupação mencionada pelos pais é a pressão dos colegas para que se siga determinadas modas. E, embora quase metade dos pais entrevistados afirme que iPads, iPods e a internet ofereçam às crianças um leque de possibilidades muito maior, a preocupação deles é que esta tecnologia possa limitar a socialização e a criatividade das crianças.

Portanto, quem é o responsável por esta perda da inocência, e por este crescimento precoce? Na opinião de Dr. Justin Coulson, responsável pelo site happyfamilies.com.au e autor do livro What your child needs from you: Creating a connected Family [O que seu filho precisa obter de você – Criando uma família integrada], é fácil atribuir a culpa à sociedade e à tecnologia moderna, mas, no final das contas, esta responsabilidade cabe aos próprios pais.

 “Os pais têm se mostrado distantes, e ausentes na vida de seus filhos”, afirma ele. “Estão ocupados demais, e abarrotados de compromissos. Nos fins de semana, tudo o que querem é dormir até mais tarde, enquanto os filhos assistem à tv. Ou então se dedicam às tarefas domésticas. Mas onde foi parar o convívio com nossos filhos?”.

Eis uma ótima pergunta, que nos impele a tomar decisões urgentes.

As famílias contemporâneas têm vidas regradas, com rotinas rígidas: trabalho, escola, ter alguém para cuidar dos filhos pequenos para poder trabalhar, atividades extracurriculares etc. E o ritmo de vida deles acaba sendo ditado pela tecnologia, restando pouco tempo para as brincadeiras espontâneas e a exploração do mundo. Além disso, há a paranoia dos pais, que impede os filhos de aprender com o risco e com a experiência de vida – o que acontecia com uma frequência muito maior ao longo de nossa infância. “Temos que deixar as crianças viverem a infância”, diz Dr. Coulson.

“Para os pais, é muito mais fácil deixar o filho diante da tela da tv do que ter de lidar com uma situação complicada, ou então ter de conviver com a desarrumação do ambiente doméstico. Hoje em dia, as pessoas acham que suas casas têm que ter uma aparência impecável!”.

Portanto, o que é que nós, pais, podemos fazer para ter um maior envolvimento com a vida de nossos filhos?

Segundo Dr. Coulson, infelizmente acabamos confirmando o velho ditado “É fácil dizer, o difícil é fazer”: “A maioria dos pais admite que algo precisa ser feito, mas a mudança efetiva é muito mais difícil”. Porém, estas mudanças não precisam ser radicais, necessariamente. “Tudo o que os pais precisam fazer é tomar decisões deliberadas e conscientes”, afirma.

A seguir, Dr. Coulson dá quatro dicas para que possamos dar prioridade às nossas famílias, e ajudar nossos filhos a preservar sua infância.

  1. Defina o que você quer, de fato. O que é prioridade na sua vida? O que é mais importante para os seus filhos? Você está se empenhando para que isso seja, de fato, prioridade ou eles estão sendo deixados de lado?
  2. Se a sua prioridade é realmente a família, coloque-a em primeiro plano! Defina claramente as necessidades básicas que você pode atender, o modo como pode fazer isso, e as mudanças efetivas que pode implementar. Seus filhos precisam mesmo estudar naquela escola particular, ou será que há uma escola pública razoável perto de sua casa? Que tipo de compromissos ou atividades você pode eliminar de sua rotina semanal, para ter mais tempo para dedicar à família?
  3. De tempos em tempos, tire férias, ou alguns dias de folga. Não há necessidade de viajar para Miami, à Europa ou à Tailândia. Você pode acampar em algum lugar, ou levar seus filhos à casa dos avós. Não precisa gastar muito dinheiro nem fazer extravagâncias. Este período pode significar, simplesmente, uma oportunidade de convívio com a família. Se puderem ficar longe de aparelhos tecnológicos, melhor ainda!
  4. Limite o tempo que seus filhos passam assistindo à tv. Num nível planetário, talvez tenhamos perdido esta guerra, mas no plano familiar, acredito que ainda podemos nos engajar nesta batalha. Eles não precisam estar ligados às tecnologias o tempo todo. Saiam de casa! Convide-os para explorar o seu universo, e permita-lhes convidar você a conhecer o deles.

Do original: How to help children keep their innocence longer, de Jodi Gibson

Traduzido exclusivamente para CONTI outra pelo tradutor e revisor LUIS GONZAGA FRAGOSO

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A morte da Morte

A morte da Morte

Por Lúcia Costa

Não se falava em outra coisa no povoado: a Morte falecera durante a madrugada vítima de um câncer que paralisou sua existência: conduzir homens e brutos ao escuro gasoso.

A certeza da vida fora garantida pelo  falecimento da Morte. Todos viveriam sem interrupções.

Velhos riam, dançavam, abraçavam-se, beijavam os parentes maiores e menores, agarravam-se às sementes geradas em barrigas próximas.

Para as crianças, esse acontecimento não gerava a mesma euforia: continuavam a pedalar suas bicicletas, a pular amarelinha, a brincar de esconde-esconde. Crianças desconhecem a iminência do adeus. Escrevem no chão sua epopeia através de pés que crescem. Há uma norma à morte imposta por sua própria natureza: não se deve levar para passear pés em desenvolvimento; eles digitam, no barro e  no asfalto, a história do Mundo. Mas nem sempre essa resolução é mantida: pequenos historiadores são levados, de vez em quando, a conhecer os cavalinhos no carrossel do parque da Morte. Eles se encantam com o sobe e desce dentro de um giro sem fim. Nunca voltam. Talvez fiquem tontos demais para descobrir o caminho de volta aos braços dos pais. Talvez!

Os bichos também não demonstraram vitória: os gatos continuaram a perseguir ratos, bebiam leite e arranhavam crianças que lhe incomodavam querendo lhe acarinhar; os cães continuavam a perseguir gatos, roíam osso, andavam militantes à procura de cadelas no cio.

A Morte estava sendo velada à solidão. Era um funeral onde só a protagonista participava, inerte e distinta. Ninguém para lhe levar grinaldas, nem velas. Nenhum líder religioso veio lhe recomendar o corpo. Os sinos da igreja não anunciaram aquela perda. A única rádio da cidade não emitiu nota de pesar. A Morte não tinha vizinhos, parentes vivos, ou bichos de estimação que dessem por sua falta quando viesse a lhes faltar.

Mas o juiz da cidade ordenou que tinham de enterrá-la. Fosse onde fosse. Inútil: todos desobedeceram à ordem do magistrado. Não temiam as consequências da infração; receavam mesmo era ter que conduzir a cerimônia. Como chorar uma lágrima que vem do contentamento? Como pintar de preto aquele dia se a própria alma estava vestida de cores primárias? Não queriam, pelo menos naquela oportunidade, repetir a falsa devoção. Tentavam esconder a alegria, sem êxito; estava no hálito, nos poros, nos cabelos, nos seios das mulheres.

Diante da recusa de todas as forças oficiais, civis e militares da cidade, o juiz convoca um velho curandeiro que morava no alto de uma serra que margeava o pequeno vilarejo. Sua casa era um espaço entre pedras. Como vivera, de que se alimentava, não se sabia. Passou parte de sua vida rezando no mau-olhado dos outros e um outro atirou um mau-olhado em sua vida carregando a única mulher que conseguiu amar. Furtaram-lhe. Furtou-se às pedras.

O senhor foi à casa da Morte, envelopou-a, carregou-a nos braços até o alto da Serra, recomendou-lhe em várias preces. Chorou verdadeiro. Coroou com flores a solitária. Olhou a face da Morte e ela estava levemente rindo. Tocou-lhe o rosto sem rugas. Acariciou as tranças negras.  Armou duas redes embaixo de uma árvore enorme, depositou-a em uma, deitou-se na outra. O velho descansou os olhos e a alma da saudade da esposa. As pedras ficaram sozinhas.

Disciplinando o tigre interior

Disciplinando o tigre interior

Por Octavio Caruso

Com “As Aventuras de Pi” (Life of Pi – 2012), ocorreu um fenômeno curioso. Boa parte das pessoas que o assistiram não captou a essência de sua mensagem ou simplesmente não entenderam, dando margem a conclusões equivocadas e simplistas como: “um filme para religiosos, ou que os religiosos irão gostar mais”, “um filme para crianças”, devido ao tigre e os outros animais, “um filme bobinho”, entre outros. Excetuando-se aqueles que expuseram opiniões negativas acerca de sua temática, houve uma boa parte do público brasileiro que o rejeitou por causa da polêmica envolvendo o escritor Moacyr Scliar.

Yann Martel obviamente usou um lampejo criativo de Scliar, ele cita isso nas próprias páginas, porém, são livros bastante diferentes. Forçar a ideia de plágio é ignorar a história da literatura. Cervantes utilizou várias fontes de inspiração para seu “Don Quixote”, “Amadis de Gaula” e as histórias folclóricas espanholas, que serviram de base para as aventuras de Sancho no segundo tomo, por exemplo, mas ninguém questiona o valor de sua obra. O próprio Shakespeare fazia uso de inspirações alheias, algo comum durante a Renascença, levando muitos estudiosos de sua obra a corroborarem algo que ele afirmava: “eu selecionei ideias interessantes de alguns livros bastante medíocres e as melhorei”. Não é muito diferente do argumento utilizado pelo escritor canadense, referindo-se ao brasileiro, mas ninguém deprecia o trabalho do baluarte inglês. O português Camilo Castelo Branco utilizou “Romeu e Julieta”, livro que, por sua vez, Shakespeare criou utilizando como molde o trabalho de Arthur Brooke: “The Tragicall History of Romeus and Juliet”, como molde para seu excelente “Amor de Perdição”. A mesma ideia pode servir de inspiração para várias histórias maravilhosas e diferentes entre si. Leonard Bernstein, Arthur Laurents e Stephen Sondheim deveriam ter sido processados por utilizarem o “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, mas antes, de Brooke, como forte inspiração para “Amor, Sublime Amor” (West Side Story)? Muito pouca coisa do que lemos ou assistimos atualmente pode ser tida como genuinamente original, ou como Abelardo Barbosa dizia: “nada se cria, tudo se copia”. Desmerecer o belo trabalho de Martel é fechar os olhos para os vários simbolismos preciosos que seu livro apresenta. Mas deixando de lado as polêmicas, analisarei o filme pelo que é: a mais simples e bela explicação sobre o sistema de crenças no ser humano, algo capturado com maestria pela direção sensível de Ang Lee. Irei analisar a obra com spoilers nos parágrafos a seguir.

Pi foi uma criança indiana extremamente curiosa, como todas, disposta a não se contentar com apenas uma explicação para os muitos mistérios da vida. Com sua ingenuidade, aventurava-se nas histórias fantásticas que sua mãe lhe contava sobre os deuses do hinduísmo. Em uma atitude inconsequente, típica da idade, acaba conhecendo um porta-voz do catolicismo, que desnorteia sua mente ao inserir a presença de um único “Deus”, que havia enviado seu filho à Terra, para que sofresse pelos seres humanos, atitude que o menino considera ilógica. Ainda não satisfeito, o menino abraça o islamismo, fascinado por seus rituais. Ao ser questionado, afirma com convicção que a fé é uma “casa de muitos quartos”. Estes “quartos” podem possuir estilos arquitetônicos diferentes, serem pintados de cores radicalmente contrastantes, porém estão inseridos em uma mesma “casa”. As religiões foram formas que os homens criaram para tentar entender o inexplicável, iluminar a escuridão, que, com o passar dos séculos, com a ajuda da ciência, torna-se cada vez menos amedrontadora. Todas elas são nascidas da mesma dúvida, do mesmo essencial questionamento: Quem nós somos? De onde viemos? Para onde vamos?

O tigre é, como grande parte do filme, uma metáfora (seu nome original é “Thirsty”, “Sedento”, exatamente como o menino estava ao adentrar a igreja católica), o seu lado instintivo, o elemento que, quando ainda criança, destrói sua inocência, ao vê-lo se alimentando, e retira brutalmente de sua vida o conceito da fantasia, a crença na ideologia espiritual. Ele tentava dialogar com esse elemento interior, encontrar uma harmonia, porém percebe ser algo impossível. Atravessando uma adolescência no chato mundo real, o jovem busca encontrar algum sentido para sua existência nos grandes filósofos e pensadores, a câmera enfoca Dostoiévski e Camus. Ele se mantinha curioso, alimentando aquela necessária fagulha questionadora, porém, com os pés no chão. Ocorre então o evento transformador, a tragédia em sua viagem marítima. A embarcação leva o nome de “Tzimtzum”, detalhe que muitos nem se atentam, que na simbologia da cabala significa: “uma forma de se manter presente em sua ausência”. Assim como o número irracional “Pi”, não é coincidência, o “Tzimtzum” transforma um círculo infinito em uma linha mensurável.

Após o filme estabelecer fortemente, mesmo que em uma breve cena, os personagens que irão ser os coadjuvantes na aventura marítima do jovem (Gérard Depardieu, com sua marcante presença física, não estaria no projeto para apenas uma cena, caso não fosse extremamente importante delinear seu personagem: o cozinheiro), somos apresentados ao segundo ato. Durante ele, muitos espectadores, metidos a sabichões, tendem a debochar do que estão vendo, acreditando estarem diante de algum projeto bobinho da Disney. Essa percepção equivocada acaba fazendo com que não percebam, ao final, o poder de sua mensagem, que é transmitida com elegância e de forma rápida. O roteiro ainda mastiga, o que achava desnecessário, mas, depois, analisando a reação de muitos, considerei uma decisão compreensível, os significados, colocando o personagem do escritor para reforçar cada descoberta. O tigre novamente é apresentado como sendo parte do próprio garoto, quando ele sai de seu esconderijo (é o último a aparecer, pois o jovem somente ativa-o quando se percebe acuado e sem alternativas) e ataca a hiena (o cozinheiro). A forma como o enquadramento é feito, deixa claro que o tigre ludicamente se projeta de dentro dele, enfrentando um problema que Pi não se mostrava apto a resolver. Ao mesmo momento em que ele fica feliz por descobrir esse seu lado mais corajoso, animalesco, passa a temê-lo, pois vai contra tudo em que acreditava. Várias cenas apresentam-no como que desafiando o tigre. Ele percebe então que a sua única forma de sobreviver é disciplinando seus instintos, domando a fera, evitando que seu elemento animalesco sobrepuje seu lado racional, humano. Caso ele se deixasse levar pela fera, acabaria se tornando como a hiena (o cozinheiro), o que o deixaria incapaz de sobreviver no mundo civilizado após seu resgate, como muitos soldados após uma guerra, que acabam se entregando às drogas ou terminando em hospitais psiquiátricos. O tigre desaparece assim que ele é encontrado na praia, sem olhar para trás. O jovem se emociona, pois gostaria de dizer: “eu te amo e obrigado por me manter vivo”. Ele é grato àquele “tigre” que o manteve “sedento” ao longo da árdua jornada, mas sabe que a única forma de retornar para a sociedade, e ter uma vida normal, constituir família, é deixando o “tigre” desaparecer, mesmo sabendo em seu interior que ele sempre estará lá, na densa floresta da alma humana, aguardando caso sua presença seja requisitada.

Ainda que o final seja didático, nada é deixado sem explicação, para aqueles que prestaram atenção, resultando num emocionante e longo monólogo do garoto, explicando a real versão da história, que envolve canibalismo e a traumatizante experiência de ter presenciado sua mãe sendo devorada por tubarões, a questão final proposta pelo personagem em sua contraparte adulta, não foi entendida por muitos: “em qual versão você prefere acreditar?”. Essa questão encerra em si a melhor definição que já conheci sobre o sistema de crenças humano. O objetivo do escritor que visita Pi é escutar algo que o levará a acreditar em “Deus”. Ele então é apresentado a duas versões de uma mesma história, onde em ambas, o garoto sofre bastante e sobrevive ao final. Uma é permeada de simbologias, elementos fantásticos (a baleia, por exemplo), animais e ilhas exóticas. A outra é dura, triste, sem brilho, exatamente como a vida pode ser. O ser humano, assim como o escritor, normalmente escolhe acreditar naquela mais fantasiosa, plena em rituais e elementos sobrenaturais. Acreditar em “Deus”, apoiar-se em religiões, nada mais é que uma necessidade humana natural, mesmo que como opção, perante a dura realidade de um mundo, em grande parte, ainda inexplicável.

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OCTAVIO CARUSO: colunista Conti outra

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Carioca, apaixonado pela Sétima Arte. Ator, autor do livro “Devo Tudo ao Cinema”, roteirista, já dirigiu uma peça, curtas e está na pré-produção de seu primeiro longa. Crítico de cinema, tendo escrito para alguns veículos, como o extinto “cinema.com”, “Omelete” e, atualmente, “criticos.com.br” e no portal do jornalista Sidney Rezende. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, sendo, consequentemente, parte da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica.

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As mil e uma noites – por Rubem Alves

As mil e uma noites – por Rubem Alves
Estou me entregando ao prazer ocioso de reler As mil e uma noites. O encantamento começa com o título que, nas palavras de Jorge Luis Borges, é um dos mais belos do mundo. Segundo ele, a sua beleza particular se deve ao fato de que a palavra mil é, para nós, quase sinônimo de infinito. “Falar em mil noites é falar em infinitas noites. E dizer mil e uma noites é acrescentar uma além do infinito.”
 
As mil e uma noites são a estória de um amor – um amor que não acaba nunca. Não existe ali lugar para os versos imortais do Vinícius (tão belos que o próprio Diabo citou em sua polêmica com o Criador) : “Que não seja eterno, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure…” Estas são palavras de alguém que já sente o sopro do vento que dentro em pouco apagará a vela: declaração de amor que anuncia uma despedida.
 
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Virginia Frances Sterrett

Mas é isto que quem ama não aceita. Mesmo aqueles em quem a chama se apagou sonham em ouvir de alguém, um dia, as palavras que Heine escreveu para uma mulher: ”Eu te amarei eternamente e ainda depois.” É preciso que a chama não se apague nunca, mesmo que a vela vá se consumindo. A arte de amar é a arte de não deixar que a chama se apague. Não se deve deixar a luz dormir. É preciso se apressar em acordá-la (Bachelard). E, coisa curiosa: a mesma chama que o vento impetuoso apaga volta a se acender pela carícia do sopro suave…
 
As mil e uma noites são uma estória da luta entre o vento impetuoso e o sopro suave. Ela revela o segredo do amor que não se apaga nunca.
 
Um sultão, descobrindo-se traído pela esposa a quem amava perdidamente, toma uma decisão cruel. Não podia viver sem o amor de uma mulher. Mas também não podia suportar a possibilidade da traição. Resolve, então, que iria se casar com as moças mais belas dos seus domínios, mas depois da primeira noite de amor, mandaria decapitá-las. Assim o amor se renovaria a cada dia em todo o seu vigor de fogo impetuoso, sem nenhum sopro de infidelidade que pudesse apagá-lo. Espalham-se logo, pelo reino, as notícias das coisas terríveis que aconteciam no palácio real: as jovens desapareciam, logo depois da noite nupcial. Sherazade, filha do vizir, procura então o seu pai e lhe anuncia sua espantosa decisão: desejava tomar-se esposa do sultão. O pai, desesperado, lhe revela o triste destino que a aguardava, pois ele mesmo era quem cuidava das execuções. Mas a jovem se mantém irredutível.
 
A forma como o texto descreve a jovem Sherazade é reveladora. Quase nada diz sobre sua beleza. Faz silêncio total sobre o seu virtuosismo erótico. Mas conta que ela lera livros de toda espécie, que havia memorizado grande quantidade de poemas e narrativas, que decorara os provérbios populares e as sentenças dos filósofos.
 
E Sherazade se casa com o sultão. Realizados os atos de amor físico que acontecem nas noites de núpcias, quando o fogo do amor carnal já se esgotara no corpo do esposo, quando só restava esperar o raiar do dia para que a jovem fosse sacrificada, ela começa a falar. Conta estórias. Suas palavras penetram os ouvidos vaginais do sultão. Suavemente, como música. 

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Charles Folkard, “Arabian nights”

O ouvido é feminino, vazio que espera e acolhe, que se permite ser penetrado. A fala é masculina, algo que cresce e penetra nos vazios da alma. Segundo antiqüíssima tradição, foi assim que o deus humano foi concebido: pelo sopro poético do Verbo divino, penetrando os ouvidos encantados e acolhedores de uma Virgem.
 
O corpo é um lugar maravilhoso de delícias. Mas Sherazade sabia que todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo o corpo se tenha esvaziado do seu fogo. O seu triste destino é ser decapitado pela madrugada: não é eterno, posto que é chama. E então, quando as chamas dos corpos já se haviam apagado, Sherazade sopra suavemente. Fala. Erotiza os vazios adormecidos do sultão. Acorda o mundo mágico da fantasia. Cada estória contém uma outra, dentro de si, infinitamente. Não há um orgasmo que ponha fim ao desejo. E ela lhe parece bela, como nenhuma outra. Porque uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela…
 
Conta a estória que o sultão, encantado pelas estórias de Sherazade, foi adiando a execução, por mil e uma noites, eternamente e um dia mais.
 
Não se trata de uma estória de amor, entre outras. É, ao contrário, a estória do nascimento e da vida do amor. O amor vive neste sutil fio de conversação, balançando-se entre a boca e o ouvido. A Sônia Braga, ao final do documentário de celebração dos 60 anos do Tom Jobim, disse que o Tom era o homem que toda mulher gostaria de ter. E explicou: ”Porque ele é masculino e feminino ao mesmo tempo…” o segredo do amor é a androgenia: somos todos, homens e mulheres, masculinos e femininos ao mesmo tempo. É preciso saber ouvir. Acolher. Deixar que o outro entre dentro da gente. Ouvir em silêncio. Sem expulsá-lo por meio de argumentos e contra-razões. Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida. Alfange que decapita. Há pessoas muito velhas cujos ouvidos ainda são virginais: nunca foram penetrados. E é preciso saber falar. Há cenas falas que são um estupro. Somente sabem falar os que sabem fazer silêncio e ouvir. E, sobretudo, os que se dedicam à difícil arte de adivinhar: adivinhar os mundos adormecidos que habitam os vazios do outro.
 
As mil e uma noites são a estória de cada um. Em cada um mora um sultão. Em cada um mora uma Sherazade. Aqueles que se dedicam à sutil e deliciosa arte de fazer amor com a boca e o ouvido (estes órgãos sexuais que nunca vi mencionados nos tratados de educação sexual…) podem ter a esperança de que as madrugadas não terminarão com o vento que apaga a vela, mas com o sopro que a faz reacender-se.  

Rubem Alves

Dica da Conti outra: Conheça o Instituto Rubem Alves e acompanhe seus projetos.

Essa publicação foi uma gentileza ByNina.

Dica de livro: Sete Vezes Rubem (Fruto do trabalho de uma década, esta obra reúne sete livros de Rubem Alves publicados pela Papirus entre 1996 e 2005.)

Amor com prazo de validade: uma entrevista com José Wilker

Amor com prazo de validade: uma entrevista com José Wilker

Por Christiane Brito

Entrevistei o José Wilker em 1997, por aí…no intervalo da gravação do programa “Sai de baixo”, da Globo. O tema da conversa foi o amor, separações. É um texto longo, mas vale para rememorar o ator, escritor, diretor, grande cara!

AMOR COM PRAZO DE VALIDADE 

José Wilker é um homem econômico, nos gestos, palavras, expressões. Começou a entrevista reticente, afirmando que nunca sabe o que vai dizer, como se falasse sem pensar, ao sabor do momento. Nada disso: suas frases pausadas revelam uma mente ágil em ação, desarquivando reflexões de toda uma vida. “Nunca foi um juízo final”, declarou a respeito de seus rompimentos, acrescentando que sempre procura preservar a amizade, o que confirmou minha impressão de estar diante de um homem ponderado, racional, que faz questão, afirma, de extrair algo de bom mesmo da pior experiência.

Oficialmente, foi “casado” duas vezes, com as atrizes Renné de Vielmond e Mônica Torres, mas quando perguntei quantas separações haviam sido, ele considerou “talvez duas, três, meia dúzia ou mais”, e não fechou a conta. Elogiou o longo casamento dos pais, quase 60 anos, mas reconheceu que faz parte de outra geração, mais exigente, que não hesita em trocar de par se o amor deixar de existir.

Quando perguntei se alguma vez, depois de encerrar um relacionamento, pensou em desistir de tentar novamente, ele foi enfático pela primeira vez em toda a entrevista: “De jeito nenhum, isso não me passa pela cabeça.” A seguir, a íntegra da entrevista:

“É uma coisa estranha. A experiência de viver junto com alguém, ao mesmo tempo em que é essencial – porque nós somos naturalmente gregários, nós nos completamos aos pares –, é dificílima de levar adiante. Com muita frequência, quando você se propõe a viver com alguém, você estabelece um acordo mútuo em que abre mão de muitas coisas. É um acordo muito mais farejado que falado, e você age no escuro, porque, num primeiro momento, não percebe, não sabe, não tem a exata noção do quanto pode abrir mão. Mesmo não tendo ainda a medida do quanto é capaz de aceitar determinadas cláusulas desse acordo, você vai aceitando tudo… e eu acho que em geral os casais se separam não depois, mas nesse justo momento em que selam o acordo, no momento inicial, em que se abre mão de um número considerável de coisas que não podem ser descartadas. Aí as cobranças começam no minuto seguinte e o casal começa a se separar.

Não estou dizendo que seja um mau começo, é um começo. Eu não costumo estabelecer uma distinção tão evidente entre o mau e o bom começo, é só um começo. Pode acontecer desse processo de separação, que tem início com o acordo, nunca ser concluído. De repente, depois de um certo tempo, você pensa: ‘que bom que eu deixei certas coisas de que eu não me achava capaz de abrir mão, porque agora está melhor, foi bom eu ter aberto mão’.

Mas pode acontecer também o oposto. Quer dizer, esse acordo não é um mau começo, é só um jeito de começar, a gente faz sempre assim. Isso é essencial para se ficar junto. Quando o acordo é desrespeitado, vem a separação. Quando eu estava me separando, há cerca de um ano e meio atrás (da atriz Mônica Torres), eu escrevi uma crônica para o Jornal do Brasil em que eu dizia que, de repente, eu tinha de conviver com uma casa que ia sendo lentamente desabitada ainda que eu permanecesse nela, mas ela estava sendo desabitada dos gestos, do cheiro, desabitada do som das vozes, desabitada da relação que se estabeleceu nela. E essa percepção traz uma sensação dupla, quer dizer, ao mesmo tempo‚ uma sensação que eu poderia chamar de boa na medida em que a separação era uma alternativa, mas também ruim, porque era a sensação de que eu tinha aberto mão de um pedaço bastante significativo de minha vida.

A gente ficou um período mantendo o casamento em casas separadas, mas, sobretudo, porque a gente é muito amigo, a gente se gosta muito, apesar disso não estávamos mais habilitados a cumprir o acordo assumido no início, aquilo que tínhamos assegurado um ao outro.

“ANTES DE SEPARAR, NÓS PASSAMOS SEMPRE POR UM PERÍODO EM QUE NÃO ACREDITAMOS QUE NÃO SEJAMOS MAIS CAPAZES DE RESPEITAR OS TERMOS DO QUE FOI ESTABELECIDO E ESSE É O PERÍODO MAIS DOLOROSO.”

Porque logo depois que a gente se separa há uma certa euforia também, que vem da sensação de você saber que se descomprometeu com um laço que, em algum nível, te limitava, te incomodava. O alívio se alterna com o sentimento de perda, e a reflexão de que, de alguma forma, você foi derrotado ou se deixou derrotar por circunstâncias.

Você começa a questionar a sua própria habilidade, a sua capacidade de sentir, de dar afeto. Estou falando exclusivamente do meu ponto de vista. Há casais que se separam e que é uma mixórdia. Eu já vi casais que chegam à agressão física e espalham essa violência ao redor, quebram a casa inteira e assim por diante, o que na verdade é uma encenação do quanto queriam quebrar dentro da outra pessoa. Quando você arrebenta um objeto que é comum a um casal, você está expressando o que queria arrebentar no parceiro.

Separações que eu vivi? Na verdade foram duas, foram três, quatro, cinco ou 12, não sei, mas nunca acabou em juízo final, foi sempre uma coisa digerida lentamente, tanto que a gente permanece muito amigo, muito próximo, também em função das minhas filhas, duas meninas, que não têm porque, absolutamente, pagar um preço por causa da nossa incompetência eventual.

Talvez a palavra incompetência aí tenha entrado muito mais como recurso literário do que como sentimento verdadeiro. Usei incompetência para expressar o que um observador de fora pensa que é, mas não se trata de incompetência não.

A minha mãe e o meu pai ficaram casados quase 60 anos e o casamento deles acabou quando minha mãe morreu. Eu acredito que a minha expectativa fosse a de repetir a experiência deles, mas é bem diferente o mundo hoje. As mulheres como a minha mãe, no tempo delas, eram preparadas para casar, para cuidar do lar, dos filhos, e não havia muito espaço para a mulher fora do espaço doméstico, da administração da casa. Digamos que, de uns 30 anos para cá, essa situação mudou radicalmente, com a invenção da pílula, a maior presença feminina no mercado de trabalho.

“OS CASAMENTOS ACOMPANHAM ESSA ALTERAÇÃO RADICAL DO PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE, NO MUNDO, E ACREDITO QUE A PARTIR DAÍ É QUE ELE MUDOU.”

Agora as relações têm um ciclo, que tem de se completar. Antigamente, as mulheres deixavam de amar o marido ou os maridos deixavam de amar a mulher e eles continuavam casados, porque assim é que devia ser. Hoje a gente tem a liberdade de dar um basta na relação, dizer “não, não precisa ser assim”.

Não é uma condenação do casamento, mas uma nova forma de pacto a dois. Para estar junto, existem infinitas formas, quer dizer eu não preciso ir pra frente do padre pra me sentir casado, eu não preciso ir pra frente de um juiz, eu preciso, pra me sentir casado com alguém, sentir afeto, eu preciso viver numa área em que o meu amor, minha paixão, meu tesão, minha libido existam verdadeiramente, e quando isso não for mais possível, a gente tem que procurar outras alternativas.

O que acontecia no passado, não era talvez o caso de meus pais, é que havia uma quantidade monumental de casais frustrados, o que não fazia sentido. De mais a mais, como ao homem cabia o papel de prover o lar, ele também, por conta própria, se dava a liberdade de prover a própria libido fora do casamento. O cara tinha uma amante por fora com quem transava quando estava enjoado da esposa, e todas as mulheres concordavam com isso, que o homem tivesse outra vida fora do casamento. Era outra a configuração da relação homem-mulher. Eu acho que bem no fundo, no primeiro momento da minha primeira experiência conjugal, talvez a minha tendência tenha sido a de querer repetir o exemplo dado por meus pais, mas claro que no minuto seguinte eu já me tornava consciente de que nem eu queria isso de verdade nem isso era possível. Não estou querendo dizer, repito, que o início já decrete o fim, evidentemente, mas eu concordo com o Vinícius, “que seja eterno enquanto dure”.

PODE SOAR POÉTICO, MAS O QUE A GENTE QUER É ISSO, ESSA ETERNIDADE PASSAGEIRA DO AMOR.

De maneira alguma eu me fecho para novos relacionamentos depois de me separar. De maneira alguma! É sempre doloroso, mas eu acho que a dor só faz sentido para o ser humano se ela ensina alguma coisa, se ela te faz crescer, quer dizer, se você ficar enclausurado no sofrimento, torcendo por ele, é tolice.

Eu sofro, e acho até bom, não vou me proibir, não vou sonegar de mim esse sentimento que eu acho que, afinal, acaba sendo construtivo, mas não vou por causa dele dizer que não quero mais amar, porque eu quero sim, e vou entrar de cabeça em qualquer outro relacionamento que me parecer que valha a pena.

As separações, quando se somam, elas evidentemente ficam diferentes. Hoje eu me separo por erros novos, não pelos antigos, não estou repetindo mesmo, são outras situações, o que passou eu já entendi que não era daquele jeito. Eu já fui ciumento, já fui machista, arrogante, prepotente… com o tempo eu vou me vacinando contra essas tolices.

A CONVIVÊNCIA COM O OUTRO É ESSENCIAL.

A convivência com a concorrência do outro é essencial, a solidão é uma masturbação. Já vivi muita solidão, mas você tem que aprender a se fazer companhia. Eu acho que uma pessoa só consegue ser boa companhia para outra se for boa companhia para si mesma. Vejo muita gente que é péssima companhia para si mesmo e que procura uma solução para isso no convívio com o outro. Isso não adianta.

Sei disso por experiência própria. Houve um tempo em que eu não recomendaria a mim mesmo sair comigo, eu era péssima companhia, e isso é muito perigoso, porque pode-se partir para uma espécie de êxtase. Eu explico. Quando você é má companhia e está só, você quer esquecer de si mesmo, você se abandona, e quando isso acontece, quando você não está consigo mesmo, está muito próximo do terreno da morte, você se esquece de tudo, afasta-se da vida. Eu posso chegar a esse território limite da não-vida por muitos meios, como sexo, drogas…. Eu já vivi e conheci muita gente que passou por períodos assim, em que você transa com uma mulher como se ela fosse uma grande mão. Qualquer coisa.

Hoje eu convivo bem com a solidão. Quando estou solteiro, não tenho aquela fissura de procurar alguém, vasculhar a agenda em busca de nomes. Eu não consigo amarrar bode não, bode a gente mata ou come, tem que dar um fim nele”.

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Notas da página:

Indicação Luis Gonzaga Fragoso.

A reprodução nesse espaço foi autorizada pela autora.

Os ceguetas somos nós

Os ceguetas somos nós

OS CEGUETAS SOMOS NÓS

(Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara)

A.E.C Souza

Nós temos medo do escuro. As criancinhas têm medo quando a luz apaga e o breu invade seu quarto por inteiro. A cama envolta na escuridão faz com que o choro seja a única saída. Os monstros debaixo da cama são a consubstanciação do terror. É Instinto. O ser humano não gosta do escuro, não gosta de se sentir só, não aceita ter de viver sem as luzes guiando sua vida, sem enxergar cada passo, rosto, cada gesto e até cada sentimento. Os olhos, em perfeito estado, dão ao homem a confiança no que ele é e no que os outros ao seu redor devem ser, fingem ser. A falta de luz, a córnea desmantelada, um olho sem função condenam o indivíduo ao declínio de sua condição de ser humano plenamente capaz. São tidos como inválidos, ceguetas, dignos de cair no esquecimento. A cegueira negra não desperta no homem coisa além da loucura ou menor que a própria insanidade. Ele corre atordoado, primeiro no mundo físico e depois dentro de si mesmo. A cegueira consome os olhos e em seguida leva o espírito para longe com uma tragada só. A cegueira torna o homem ciente de sua fragilidade. Conhecedor do próprio medo. A escuridão é o fim enquanto a brancura é salvação. Não é por menos que é atribuído ao bem, ao paraíso, ao céu, a pureza do alvo e ao mal, ao fim, ao inferno, o terror das trevas.

Nós preferimos a luz. No entanto, como proceder quando a cegueira da qual falamos não consiste na escuridão, mas sim na brancura constante, alucinante e total? Sim, amigos, falo em  uma cegueira leitosa, onde o homem está sujeito ao medo daquilo que mais o acalma, que mais o deixa seguro de si, mas ainda assim, cega. É nesse sentido que José de Saramago brilhantemente desenvolve a vida literária de suas personagens na obra ”Ensaio Sobre A Cegueira”, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. Os cegos são partes de nós.

A trama se desenrola quando um motorista, parado no trânsito esperando o sinal mudar para o verde, se vê instantaneamente cego. A sensação é como se estivesse mergulhado em um copo de leite, claro, luminoso, viscoso. Os cegos devem estar enganados já que dizem que a cegueira é escura, pensa o motorista, o que vejo é branco.  Os impacientes condutores, que esperam o carro se locomover uma vez que o sinal mudou, buzinam freneticamente, mas percebem que nada acontece. O carro está lá. Está parado. Dentro dele alguém nota um homem desorientado, em pânico, murmurando coisas inaudíveis até que, em dado momento, alguém percebe um movimento recorrente dos lábios. ”Estou cego”, dizem seus lábios através de gestos precisos. O mal branco faz a sua primeira vítima. Primeiro um motorista, em meio ao caos do trânsito de uma grande cidade. Um caso banal. Um médico oftomologista, enquanto folheia os seus livros para descobrir algo sobre o mal que acomete seu primeiro paciente, o motorista/primeiro cego, se vê imerso na brancura de um copo de leite. Está cego, ironicamente cego. Um caso brutal. Assim, vítimas de uma cegueira branca, todos se encontram diante de uma situação assustadora e de um dilema humano que é rotineiramente vivenciado. Todos estão cegos. Todos estão sozinhos. A lei que costumava reinar apenas na selva agora também se aplica à cidade. É cada um por si e o Estado contra todos. O governo, que deveria prover, não faz outra coisa senão determinar que todos os infectados, cegos, e contagiados, os que tiveram contato com os cegos sejam depositados um manicômio de forma temporária, até que haja uma explicação plausível, uma cura, uma forma de parar o mal branco. O alto falante, durante os primeiros dias, trazia as instruções e as justificativas para aquele comportamento.

O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar, quando parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidémico de cegueira-provisoriamente designado por mal-branco – e desejaria poder contar com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio – supondo que de um contágio se trata. Supondo que não estaremos apenas perante uma série de coincidências por enquanto inexplicáveis (Página 24)

Nenhuma comunidade, por mais cega que ela seja, vive sem regras.  Mesmo naquele microcosmo deviam existir certos comportamentos a serem observados a fim de garantir o mínimo de dignidade aos encarcerados. Logo até isso cessou. Logo eles estavam sozinhos, apesar de uns terem o carinho, a solidariedade e até os olhos emprestados dos outros. Também isso não dura muito. As relações e convenções sociais começam a ser desconstruídas a partir do primeiro fornecimento das rações. O homem cego começa a mostrar a selvageria que os a visão esconde. Estão condenados.

Lá, na câmara, o homem começa a demonstrar suas várias cascas, cores, rostos, sons, máscaras, imundices. Os novos cegos são curiosos e pouco falantes. Se adaptam bem. São únicos. Cegos perdidos na brancura que mais tarde se revela seu verdadeiro encontro com aquilo que são; homens não são mais apenas homens, estão em meio a uma categoria híbrida. Homens e bichos. Homens porque ainda pensam e bichos pois não encontram mais razão e nem seguem princípio além da proteção do que é seu, além do desejo de sua carne e das necessidades de seu corpo ainda mais fragilizado.

A abordagem não apenas gira em torno do medo de inesperadamente deixar de enxergar, de perceber o mundo como se julga que ele é, sobre como é ter e perder o que lhe era natural, mas a obra também deixa claro que no momento em que se torna cega, a personagem automaticamente se torna também invisível. Cego para si, cego para o mundo. Isso pode ser afirmado ao perceber a reação dos cegos aos outros cegos ,companheiros de câmara,  no quê diz respeito às necessidades fisiológicas e aos mortos decorrentes do ambiente insalubre ao qual os contagiados e infectados foram abandonados. Claro que, em um primeiro momento, os mortos são enterrados devidamente e as necessidades feitas em latrinas, locais indicados, mas, ao passo que mais cegos aparecem, que as relações sociais ganham complexidade, a sensibilidade dos infectados é dilacerada pela cegueira e suas conseqüências. Logo não se enterra mais os mortos, não apenas porque se trata de um trabalho quase impossível dadas as condições dos coveiros, mas porque a morte não importa mais. É habitual. Para uns é até melhor do que viver na agonia da cegueira leitosa.  Logo não aliviam mais onde é devido, mas em qualquer lugar, pois pouco importa o que se faça, ”ninguém verá”.  Aos poucos os cegos viram bichos que não podem ver. Bichos, apenas.

Saramago utiliza uma ”cegueira branca” e contagiosa como metáfora orientadora da obra, justamente por ser uma alegoria das mais felizes no que diz respeito à condição dos homens quando ”vítimas da convivência”, ou seja, quando os membros do microcosmos são colocados lá contra a sua vontade.  Seria o medo, não do que temos como escuridão, mas do que temos como nítido e bom.  O medo de confiar o outro e em si mesmo é o foco da discussão. Até que ponto os sentidos são aliados e até que ponto a visão é desimportante? Ficar cego na obra do português seria apenas uma condição social e não teria apenas uma implicação meramente física. Quando colocados os novos cegos em um ambiente comum, eles percebem que lá sozinhos estão e assim exprimem em suas falas toda a fragilidade que o homem cotidianamente esconde até dele mesmo pelo simples pudor de ser notado. Ali os homens estão vivendo como no princípio de sua criação. Cada um busca o que satisfaça melhor suas necessidades. Não existe confiança no outro, pois a cegueira leva embora também o discernimento. Primeiro os menos esclarecidos e em seguida os que possuem um  maior grau de instrução, são tomados por instintos primitivos. Falam que não é possível viver sozinho, que o ser humano é um ser social, que deve viver em comunidade, mas esquecem que algumas vezes o homem é privado de integrar a sociedade, de ter voz ativa, de escrever a própria história por outros homens. Não passam de cegos manipulados pelos que, igualmente cegos, se adaptam melhor à condição e conseguem coercitivamente impor suas vontades. Saramago deixa isto claro ao colocar na obra uma espécie de gangue de cegos que troca comida por bens que ali deveriam ser considerados de segunda necessidade, ou seja, dispensáveis (jóias, relógios, dinheiro) e tem como aliado um ”antigo cego”, ou seja, um cego que não enxerga a brancura, mas a escuridão, um cego que foi doutrinado desde criança para sobreviver sem os olhos. Eis  importância dos que vêem, dos que mesmo de maneira reduzida, vêem e são capazes ainda de sentir o mundo a sua volta e a hostilidade das pessoas sem precisar enxergar o que está acontecendo. Os homens geralmente se escondem sob os personagens se criam, quando cegam perdem também a capacidade e a vontade de fingir.

Em termos de linguagem, corrobora com a semântica um recurso bastante interessante para a dinâmica da obra. O escritor não atribui nomes aos personagens, mas se refere a eles usando expressões que denunciam o que as próprias personagens julgavam ser  quando ainda não compartilhavam a condição de infectados pelo mal branco. O médico, a mulher do médico, a rapariga de óculos escuros, o primeiro cego/o motorista, o ladrão, o velho da venda preta, o rapaz, o farmacêutico, a camareira. No decorrer  da obra essas alcunhas começam a ser substituídas por um único adjetivo que claramente expressa o que todos ali são, cegos. Não mais uma condição, mas aquilo que os define agora é a própria cegueira branca. Logo não há distinção entre o médico, o ladrão, o motorista ou qualquer outro, todos que lá estão experimentam a mesma cegueira e são igualmente privados do mundo, logo, no seu novo universo, não passam de cegos.

As mulher  também ganha  papel de destaque na obra de Saramago, uma vez que é uma mulher a única que, em meio aos cegos, consegue milagrosamente não ser afetada pelo mal branco estando assim em condições de perceber como estão vivendo os demais e como deveriam viver. A mulher que vê  está sujeita a um dos maiores dilemas da trama. Fingir ver e ser parte igualmente débil da câmara ou anunciar que é capaz de enxergar e se sujeitar, ou aos mais diversos abusos, ou à expulsão do manicômio em virtude de sua falsa condição. As duas situações não são atrativas. Então, discretamente, tenta, em prol dos outros cegos, estabelecer o mínimo de ordem possível. Em diversas passagens a personagem enuncia o que vem a se tornar sua máxima. “Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais”. A mulher vê a imundice, os corpos jogados pelo chão, as pessoas agindo como animais satisfazendo seus instintos primitivos, a falta de palavras, a falta de carinho. É exaltada a sensibilidade da mulher, tanto daquela que não pode ver e cuida dos outros infectados, fazendo o possível para que estes não se comportem inteiramente como animais, quanto daquela que usa óculos escuros (é cega) e cuida de um rapaz que chama pela mãe dia e noite.

A crítica à sociedade está presente em todo o livro em consonância com os dramas filosóficos das personagens, sobretudo das mulheres, que não possuem mais a capacidade de discernir. A sobrevivência é o que importa. O que aconteceria se você cegasse?  Acreditaria se eu dissesse que também você está cego? Sobreviveria? Conseguiria enxergar?

Nossa cegueira não é branca nem escura, não é leitosa ou assustadora, não é sequer perceptível. Estamos cegos apenas diante uns dos outros. Há os visíveis, de paletó, gravata e sapato de couro legítimo e os invisíveis que andam paupérrimos pelas esquinas e sinais fazendo malabarismos em troca de centavos ou comida.  Atrás do volante do teu carro parado no sinal, quando limpam o teu vidro com esfregões e detergente dentro de uma garrafa pet, pode ser que você também tenha cegado tal como sucedeu ao primeiro cego. Talvez tenhamos um pouco de primeiro cego da mesma forma que temos um pouco do médico oftomologista, uma vez que apenas observamos, falamos e propomos soluções mas, quando o problema muda e  nos acomete, não sabemos sequer resolvê-lo e também do sentimento de culpa que aflige a rapariga dos óculos escuros. Nossos próprios conselhos, dados aos outros na mesma condição, são agora insuficientes. Os ceguedas sem bengala, cão guia ou óculos escuros somos nós. Os ceguetas de olhos perfeitos somos nós.  Os cegos mostram que a sociedade que não os vê , têm mais defeitos na córnea do que pensa. Os ceguetas, que somos nós, parecem ter problemas de percepção e de sensibilidade.

Nota: O texto acima foi publicado nesse espaço com a autorização do autor.

contioutra.com - Os ceguetas somos nós
Na imagem uma cena de “Blindness”, a adaptação do livro “Ensaio sobre a cegueira ” para o cinema

Sobre o autor

”Theu Souza não sabe se é escritor ou se finge ser. Pensa que compor às vezes não seja o bastante para merecer a alcunha de alguém que maneja as palavras. As palavras que o movimentam e ele prefere assim. Gosta de todas as coisas que não acabam, não pausam e não recomeçam. É, ele é um amante eterno do infinito, um admirador de suas voltas, de seus ciclos viciosos, das linhas que ele, como verdadeiro poeta, compõe todos os dias, desde antes dos homens serem homens e das crianças berrarem pela primeira vez. Porque antes de tudo, antes do mundo, houve uma palavra que deu a vida a todas as coisas, transformou o pó em carne e o sonho em coisa real. É um geminiano que segue esperando que os dias melhorem e que a poesia aflore nesse asfalto de descrença que vem tornando nossos dias tão cinzentos quanto uma São Paulo irrespirável e apressada.”

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