Amor com prazo de validade: uma entrevista com José Wilker

Por Christiane Brito

Entrevistei o José Wilker em 1997, por aí…no intervalo da gravação do programa “Sai de baixo”, da Globo. O tema da conversa foi o amor, separações. É um texto longo, mas vale para rememorar o ator, escritor, diretor, grande cara!

AMOR COM PRAZO DE VALIDADE 

José Wilker é um homem econômico, nos gestos, palavras, expressões. Começou a entrevista reticente, afirmando que nunca sabe o que vai dizer, como se falasse sem pensar, ao sabor do momento. Nada disso: suas frases pausadas revelam uma mente ágil em ação, desarquivando reflexões de toda uma vida. “Nunca foi um juízo final”, declarou a respeito de seus rompimentos, acrescentando que sempre procura preservar a amizade, o que confirmou minha impressão de estar diante de um homem ponderado, racional, que faz questão, afirma, de extrair algo de bom mesmo da pior experiência.

Oficialmente, foi “casado” duas vezes, com as atrizes Renné de Vielmond e Mônica Torres, mas quando perguntei quantas separações haviam sido, ele considerou “talvez duas, três, meia dúzia ou mais”, e não fechou a conta. Elogiou o longo casamento dos pais, quase 60 anos, mas reconheceu que faz parte de outra geração, mais exigente, que não hesita em trocar de par se o amor deixar de existir.

Quando perguntei se alguma vez, depois de encerrar um relacionamento, pensou em desistir de tentar novamente, ele foi enfático pela primeira vez em toda a entrevista: “De jeito nenhum, isso não me passa pela cabeça.” A seguir, a íntegra da entrevista:

“É uma coisa estranha. A experiência de viver junto com alguém, ao mesmo tempo em que é essencial – porque nós somos naturalmente gregários, nós nos completamos aos pares –, é dificílima de levar adiante. Com muita frequência, quando você se propõe a viver com alguém, você estabelece um acordo mútuo em que abre mão de muitas coisas. É um acordo muito mais farejado que falado, e você age no escuro, porque, num primeiro momento, não percebe, não sabe, não tem a exata noção do quanto pode abrir mão. Mesmo não tendo ainda a medida do quanto é capaz de aceitar determinadas cláusulas desse acordo, você vai aceitando tudo… e eu acho que em geral os casais se separam não depois, mas nesse justo momento em que selam o acordo, no momento inicial, em que se abre mão de um número considerável de coisas que não podem ser descartadas. Aí as cobranças começam no minuto seguinte e o casal começa a se separar.

Não estou dizendo que seja um mau começo, é um começo. Eu não costumo estabelecer uma distinção tão evidente entre o mau e o bom começo, é só um começo. Pode acontecer desse processo de separação, que tem início com o acordo, nunca ser concluído. De repente, depois de um certo tempo, você pensa: ‘que bom que eu deixei certas coisas de que eu não me achava capaz de abrir mão, porque agora está melhor, foi bom eu ter aberto mão’.

Mas pode acontecer também o oposto. Quer dizer, esse acordo não é um mau começo, é só um jeito de começar, a gente faz sempre assim. Isso é essencial para se ficar junto. Quando o acordo é desrespeitado, vem a separação. Quando eu estava me separando, há cerca de um ano e meio atrás (da atriz Mônica Torres), eu escrevi uma crônica para o Jornal do Brasil em que eu dizia que, de repente, eu tinha de conviver com uma casa que ia sendo lentamente desabitada ainda que eu permanecesse nela, mas ela estava sendo desabitada dos gestos, do cheiro, desabitada do som das vozes, desabitada da relação que se estabeleceu nela. E essa percepção traz uma sensação dupla, quer dizer, ao mesmo tempo‚ uma sensação que eu poderia chamar de boa na medida em que a separação era uma alternativa, mas também ruim, porque era a sensação de que eu tinha aberto mão de um pedaço bastante significativo de minha vida.

A gente ficou um período mantendo o casamento em casas separadas, mas, sobretudo, porque a gente é muito amigo, a gente se gosta muito, apesar disso não estávamos mais habilitados a cumprir o acordo assumido no início, aquilo que tínhamos assegurado um ao outro.

“ANTES DE SEPARAR, NÓS PASSAMOS SEMPRE POR UM PERÍODO EM QUE NÃO ACREDITAMOS QUE NÃO SEJAMOS MAIS CAPAZES DE RESPEITAR OS TERMOS DO QUE FOI ESTABELECIDO E ESSE É O PERÍODO MAIS DOLOROSO.”

Porque logo depois que a gente se separa há uma certa euforia também, que vem da sensação de você saber que se descomprometeu com um laço que, em algum nível, te limitava, te incomodava. O alívio se alterna com o sentimento de perda, e a reflexão de que, de alguma forma, você foi derrotado ou se deixou derrotar por circunstâncias.

Você começa a questionar a sua própria habilidade, a sua capacidade de sentir, de dar afeto. Estou falando exclusivamente do meu ponto de vista. Há casais que se separam e que é uma mixórdia. Eu já vi casais que chegam à agressão física e espalham essa violência ao redor, quebram a casa inteira e assim por diante, o que na verdade é uma encenação do quanto queriam quebrar dentro da outra pessoa. Quando você arrebenta um objeto que é comum a um casal, você está expressando o que queria arrebentar no parceiro.

Separações que eu vivi? Na verdade foram duas, foram três, quatro, cinco ou 12, não sei, mas nunca acabou em juízo final, foi sempre uma coisa digerida lentamente, tanto que a gente permanece muito amigo, muito próximo, também em função das minhas filhas, duas meninas, que não têm porque, absolutamente, pagar um preço por causa da nossa incompetência eventual.

Talvez a palavra incompetência aí tenha entrado muito mais como recurso literário do que como sentimento verdadeiro. Usei incompetência para expressar o que um observador de fora pensa que é, mas não se trata de incompetência não.

A minha mãe e o meu pai ficaram casados quase 60 anos e o casamento deles acabou quando minha mãe morreu. Eu acredito que a minha expectativa fosse a de repetir a experiência deles, mas é bem diferente o mundo hoje. As mulheres como a minha mãe, no tempo delas, eram preparadas para casar, para cuidar do lar, dos filhos, e não havia muito espaço para a mulher fora do espaço doméstico, da administração da casa. Digamos que, de uns 30 anos para cá, essa situação mudou radicalmente, com a invenção da pílula, a maior presença feminina no mercado de trabalho.

“OS CASAMENTOS ACOMPANHAM ESSA ALTERAÇÃO RADICAL DO PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE, NO MUNDO, E ACREDITO QUE A PARTIR DAÍ É QUE ELE MUDOU.”

Agora as relações têm um ciclo, que tem de se completar. Antigamente, as mulheres deixavam de amar o marido ou os maridos deixavam de amar a mulher e eles continuavam casados, porque assim é que devia ser. Hoje a gente tem a liberdade de dar um basta na relação, dizer “não, não precisa ser assim”.

Não é uma condenação do casamento, mas uma nova forma de pacto a dois. Para estar junto, existem infinitas formas, quer dizer eu não preciso ir pra frente do padre pra me sentir casado, eu não preciso ir pra frente de um juiz, eu preciso, pra me sentir casado com alguém, sentir afeto, eu preciso viver numa área em que o meu amor, minha paixão, meu tesão, minha libido existam verdadeiramente, e quando isso não for mais possível, a gente tem que procurar outras alternativas.

O que acontecia no passado, não era talvez o caso de meus pais, é que havia uma quantidade monumental de casais frustrados, o que não fazia sentido. De mais a mais, como ao homem cabia o papel de prover o lar, ele também, por conta própria, se dava a liberdade de prover a própria libido fora do casamento. O cara tinha uma amante por fora com quem transava quando estava enjoado da esposa, e todas as mulheres concordavam com isso, que o homem tivesse outra vida fora do casamento. Era outra a configuração da relação homem-mulher. Eu acho que bem no fundo, no primeiro momento da minha primeira experiência conjugal, talvez a minha tendência tenha sido a de querer repetir o exemplo dado por meus pais, mas claro que no minuto seguinte eu já me tornava consciente de que nem eu queria isso de verdade nem isso era possível. Não estou querendo dizer, repito, que o início já decrete o fim, evidentemente, mas eu concordo com o Vinícius, “que seja eterno enquanto dure”.

PODE SOAR POÉTICO, MAS O QUE A GENTE QUER É ISSO, ESSA ETERNIDADE PASSAGEIRA DO AMOR.

De maneira alguma eu me fecho para novos relacionamentos depois de me separar. De maneira alguma! É sempre doloroso, mas eu acho que a dor só faz sentido para o ser humano se ela ensina alguma coisa, se ela te faz crescer, quer dizer, se você ficar enclausurado no sofrimento, torcendo por ele, é tolice.

Eu sofro, e acho até bom, não vou me proibir, não vou sonegar de mim esse sentimento que eu acho que, afinal, acaba sendo construtivo, mas não vou por causa dele dizer que não quero mais amar, porque eu quero sim, e vou entrar de cabeça em qualquer outro relacionamento que me parecer que valha a pena.

As separações, quando se somam, elas evidentemente ficam diferentes. Hoje eu me separo por erros novos, não pelos antigos, não estou repetindo mesmo, são outras situações, o que passou eu já entendi que não era daquele jeito. Eu já fui ciumento, já fui machista, arrogante, prepotente… com o tempo eu vou me vacinando contra essas tolices.

A CONVIVÊNCIA COM O OUTRO É ESSENCIAL.

A convivência com a concorrência do outro é essencial, a solidão é uma masturbação. Já vivi muita solidão, mas você tem que aprender a se fazer companhia. Eu acho que uma pessoa só consegue ser boa companhia para outra se for boa companhia para si mesma. Vejo muita gente que é péssima companhia para si mesmo e que procura uma solução para isso no convívio com o outro. Isso não adianta.

Sei disso por experiência própria. Houve um tempo em que eu não recomendaria a mim mesmo sair comigo, eu era péssima companhia, e isso é muito perigoso, porque pode-se partir para uma espécie de êxtase. Eu explico. Quando você é má companhia e está só, você quer esquecer de si mesmo, você se abandona, e quando isso acontece, quando você não está consigo mesmo, está muito próximo do terreno da morte, você se esquece de tudo, afasta-se da vida. Eu posso chegar a esse território limite da não-vida por muitos meios, como sexo, drogas…. Eu já vivi e conheci muita gente que passou por períodos assim, em que você transa com uma mulher como se ela fosse uma grande mão. Qualquer coisa.

Hoje eu convivo bem com a solidão. Quando estou solteiro, não tenho aquela fissura de procurar alguém, vasculhar a agenda em busca de nomes. Eu não consigo amarrar bode não, bode a gente mata ou come, tem que dar um fim nele”.

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Notas da página:

Indicação Luis Gonzaga Fragoso.

A reprodução nesse espaço foi autorizada pela autora.







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