Areia demais para o teu caminhãozinho

Areia demais para o teu caminhãozinho

Imagem de capa: de blog.freepeople.com

Imagine ser você uma caçamba e ter que transportar uma quantidade de areia infinita. Seriam necessárias incontáveis viagens. Nunca acabaria essa tarefa. Disto vem aquele dizer: “é areia demais para o meu caminhãozinho.”

Quem nunca se encantou com uma pessoa, calculou as probabilidades de conquistá-la e chegou ao resultado zero?

“Eu não tenho chance.”

Sem jogar, você nunca vencerá. Na desistência precoce, jamais saberá se os cálculos estão corretos. Porém, existem situações em que, de fato, é melhor tirar o time de campo, antes de levar um cartão vermelho coletivo.

Há um terceiro cenário, o mais doloroso.

Você já saiu de sua zona de conforto. A outra pessoa abriu espaço, acenou para uma possível vitória e o jogo começou. Surgiram “sins” nas respostas. O começo corria bem e uma derrota parecia distante. O placar seguia sem gols, mas a torcida já comemorava nas arquibancadas, erguiam-se as faixas: é tetra!
Então, no auge da confiança, você ouve um não.

A expectativa da conquista tornou-se num sentimento de fracasso. O coro de “é campeão” entalou e calou no estádio. Sem fazer ideia de como tudo deu errado, você então se questiona: por quê? O melhor chute bateu na trave.

Respire e pense.

Não somos carregadores de areia. Somos histórias. Cada pessoa é um roteiro desenrolando. Seremos, para o outro, vilões, coadjuvantes, atores principais. Nunca, porém, seremos diretores. Jamais iremos dirigir e isso torna todo o enredo imprevisível.

Ninguém o deixou porque é menos bonito, inteligente. Apenas aquele filme não era o do momento, por fatores misteriosos. O ser humano é complexo: detestarão e amarão pelas mesmas características.

Cuida das suas lindezas, pois, mais que um caminhão, é um Universo.

Que teus personagens sejam boas estrelas a te enfeitar.

Mergulhando nos jardins secretos da alma através dos livros para colorir

Mergulhando nos jardins secretos da alma através dos livros para colorir

Por Marcela Alice Bianco

Dentro da rotina agitada e repleta de tarefas e exigências do dia a dia, tem muita gente que está reservando um tempinho para pintar e se expressar através dos livros para colorir, que alías, tem virado uma verdadeira febre entre os adultos.

São jardins, florestas, mandalas e tantos outros desenhos que permitem o relaxamento e a criatividade. Os mesmos desenhos ganham tonalidades, combinações e versões diferentes para cada olhar e mão que rege o lápis de cor.

Assim, as pessoas se percebem desatando os nós da ansiedade, da preocupação, do estresse e se deslocam para um novo mundo, o próprio universo interior. Um verdadeiro resgate da nossa criança interna, que numa versão adulta e suportada na coletividade pode novamente adentrar no mundo do lúdico, do mágico e da imaginação.

E como faz a criança em idade escolar, nós adultos podemos voltar a treinar nossas mais diversas habilidades e capacidades pessoais.

A cada expressão artística precisamos definir as cores que farão a combinação desejada e, assim, exercitamos nossa capacidade de julgamento, de escolha e nossa visão ampliada do objetivo proposto, que, por sua vez, nos permite a previsão de onde queremos chegar.

Precisamos pensar no traçado e na força do lápis que iremos empregar e, com isso, treinamos a leveza e a delicadeza ou a força e a firmeza diante de si e do mundo.

Tomamos o cuidado para respeitar as margens, para não deixar que uma parte transborde sobre a outra e, deste modo, testamos nossos limites internos e externos. Fazemos o exercício do que está dentro e fora de nós. Aprendemos a ser cuidadosos e a fazer algo com esmero e precisão.

Escolhemos gravuras mais detalhada ou mais expansivas e, com isso, podemos identificar como anda nosso próprio humor. Se estamos mais abertos ou fechados, mas calmos ou irritados, mais serenos ou agitados.

Trabalhamos com afinco e energia até que alcançamos o resultado final. Desta forma, treinamos nosso foco e determinação. A sermos persistentes e não deixarmos para trás questões inacabadas ou assuntos mal resolvidos.

A cada trabalho terminado é possível testar algo novo, se abrir para novas combinações e materiais e, por essa via, criamos também novos caminhos mentais em nosso cérebro e espaço para condutas mais criativas no cotidiano.

Nada mais gratificante do que ver a gravura terminada e, com isso, elevarmos nossa alma com autoestima e com a sensação de que somos capazes de criar verdadeiras obras-primas a partir de nós mesmos.

Fica claro que os livros para colorir chegaram como um poderoso recurso terapêutico para nós adultos. Eles não substituem um tratamento psicoterápico, médico ou de terapia ocupacional quando indicado, mas abrem o rol de possibilidades que podemos ter as mãos para exercitarmos nossa criatividade, relaxar e apaziguar a alma em momentos de estresse e agitação.

E neste caminho de autodescoberta, há os que tem se arriscado a desenhar suas próprias florestas e mandalas, dando vazão às formas que preenchem seu Ser. Indo além das cores e dos traços e mergulhando nos verdadeiros jardins secretos da alma!

A milenar arte de educar dos povos indígenas

A milenar arte de educar dos povos indígenas

O texto de Daniel Munduruku, graduado em filosofia, história e psicologia, doutor em educação e escritor premiado da etnia Munduruku, nos faz lembrar de quem fomos um dia e nos deixa óbvia a esperança de que nem tudo esta perdido. Nossa cultura milenar tem muito a nos ensinar.

Adriana Vitória

A milenar arte de educar dos povos indígenas



Por Daniel Munduruku · Lorena (SP) · 15/5/2009

Educar é dar sentido. É dar sentido ao nosso estar no mundo. Nossos corpos precisam desse sentido para se realizar plenamente. Mas também nossos corpos são vazios de imagens e elas precisam fazer parte da nossa mente para possamos dar respostas ao que se nos apresenta diuturnamente como desafios da existência. É por isso que não basta dar alimento apenas ao corpo, é preciso também alimentar a alma, o espírito. Sem comida o corpo enfraquece e sem sentido é a alma que se entrega ao vazio da existência.


A educação tradicional entre os povos indígenas se preocupa com esta tríplice necessidade: do corpo, da mente e do espírito. É uma preocupação que entende o corpo como algo prenhe de necessidades para poder se manter vivo.


Esta visão de educação é sustentada pela idéia de que cada ser humano precisa viver intensamente seu momento. A criança indígena é, então, provocada para ser radicalmente criança. Não se pergunta nunca a ela o que pretende ser quando crescer. Ela sabe que nada será se não viver plenamente seu ser infantil. Nada será por que já é. Não precisará esperar crescer para ser alguém. Para ela é apresentado o desafio de viver plenamente seu ser infantil para que depois, quando estiver vivendo outra fase da vida, não se sinta vazia de infância. A ela são oferecidas atividades educativas para que aprenda enquanto brinca e brinque enquanto aprende num processo contínuo que irá fazê-la perceber que tudo faz parte de uma grande teia que se une ao infinito.


Num mesmo movimento ela vai sendo introduzida no universo espiritual. Embalada pelas histórias contadas pelos velhos da aldeia, a criança e o jovem passam a perceber que em seu corpo moram os sentidos da existência. Este sentido é oferecido pela memória ancestral concentrada nos velhos contadores de histórias. São eles que atualizam o passado e o fazem se encontrar com o presente mostrando à comunidade a presença do saber imemorial capaz de dar sentido ao estar no mundo.


Este processo todo é alimentado por rituais que lembram o passado para significar o presente. São movimentos corpóreos embalados por cantos e danças repetidos muitas vezes com o objetivo de “manter o céu suspenso”. A dança lembra a necessidade de sermos gratos aos espíritos criadores; contam que precisamos de sentidos para viver dignamente; ordena a existência. Cada grupo de idade ritualiza a seu modo. Cada um se sente responsável pelo todo, pela unidade, pela continuidade social.

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Mãe e filho Caiapo, fotografia de Antonio Carlos Ferreira Banavita

Educar é, portanto, envolver. É revelar. É significar. É mostrar os sentidos da existência. É dar presente. E não acaba quando a pessoa se “forma”. Não existe formatura. Quem vive o presente está sempre em processo.
É por isso que a criança será sempre criança. Plenamente criança. Essa é a garantia de que o jovem será jovem no seu momento. O homem adulto viverá sua fase de vida sem saudades da infância, pois ele a viveu plenamente. O mesmo diga-se dos velhos. O que cada um traz dentro de si é a alegria e as dores que viveram em cada momento. Isso não se apaga de dentro deles, mas é o que os mantém ligados ao agora.

Resumo da ópera: A educação tradicional indígena tem dado certo. As pessoas se sentem completas quando percebem que a completude só é possível num contexto social, coletivo. Cada fase porque passa um indígena – desde a mais tenra idade – alimenta um olhar para o todo, pois o conhecimento que aprendem e vivem é um saber holístico que não se desdobra em mil especialidades, mas compreende o humano como uma unidade integrada a um Todo maior e Único.

Olhar os povos indígenas brasileiros a partir de uma visão rasa de produção, de consumo, de riqueza e pobreza é, no mínimo, esvaziar os sentidos que buscam para si.

“Wild flower” by Parviz Payghamy

“Wild flower” by Parviz Payghamy

Oração
Ah! entrelinhas
Cheias de mistérios
A poesia está com você
Bendita sois vós entre as palavras
E bendito é o verso da vossa estrofe
Além
Entrelinhas mãe de enganos
Mostrai pra nós versadores
Agora e na hora de nossa criação
O que escondes
Silvana Conterno

contioutra.com - "Wild flower" by Parviz Payghamy
“Wild flower” by Parviz Payghamy

‘Qual é a medida do seu amor?’

‘Qual é a medida do seu amor?’

Por Clara Baccarin

Vamos falar sobre o ‘efêmero’. Palavra não tão usada quanto deveria, já que é um dos poucos adjetivos que podem qualificar tudo, exatamente tudo. Tudo o que você nota agora ao seu redor e em você é efêmero: computador, objetos, pensamentos, ideias e sentimentos. Nada, absolutamente nada é imutável, tudo está em constante transformação e movimento. Acredito que verdades são efêmeras, acredito que o amor é efêmero e isso apenas quer dizer que o amor, assim como tudo no mundo, se transfigura, muda, é onda, é movimento. E estou falando tudo isso pois quero discutir hoje sobre um dos nossos valores, nossos parâmetros para medir sentimentos. Medimos a importância e a legitimidade de um sentimento através do valor ‘tempo’.

Quando foi que o acúmulo de marcações em um instrumento artificial que deveria ser um facilitador das rotinas, vulgo relógio, se tornou o principal instrumento, diga-se de passagem um tanto ditador, de medida e dos valores dos sentimentos?

Sim, porque nunca vi celebrarmos bodas que foram calculadas na intensidade dos beijos, dos carinhos, na genuinidade do contato dos olhos, na originalidade do primeiro encontro, no brilho das pupilas dilatadas de dois seres se reconhecendo, na química inexplicável e inquantificável por qualquer ponteiro. Nunca vi comemorarmos bodas de ouro que foram medidas no diâmetro do arrepio dos pelos, no choque de peles desconhecidas que se encontram como polos opostos de um imã virgem. Nunca vi comemorarmos e festejarmos o amor genuíno que durou uma noite, um mês, uma temporada, mas que marcou uma vida. Que criou na memória um álbum de retratos mais antigo e mais denso do que as fotos tantas vezes posadas e corroídas a traças dos álbuns de família. Um amor que guardou mais cenas, que criou mais lágrimas, sorrisos e gozos do que as datas comemorativas contabilizadas nos calendários de papel.

Quando foi que amor verdadeiro começou a ser medido e definido pelo tempo? Quando foi que o valor do amor foi julgado pela quantidade de minutos que um aguenta perto do outro? Quando foi que por esse modo de marcação ditar o que é o amor, o amor, muitas vezes, acabou virando tantas outras coisas, menos amor de fato? Quando foi que nos tornamos maratonistas da paciência e aprendemos a conviver com materiais em decomposição só para finalmente provarmos ao mundo que tivemos, vivemos e aturamos um amor de verdade?

Vamos falar sobre o efêmero. O efêmero que é qualidade do que passa, às vezes demora uma vida para passar, às vezes demora uma noite. Às vezes a pessoa morre ou o sentimento dela morre antes dela e do seu sentimento morrer. O efêmero não é justo ou cuidadoso, ele só é fato, ele é apenas a única lei deste mundo.

O efêmero é o nosso único destino certo. E quanto tempo temos até que algo definhe? Não sabemos. E por que então teimamos em medir tudo nesse mundo e celebrar e comemorar as vitórias atribuídas pelo tempo, se o tempo, muitas vezes, será nosso primeiro traidor?

Vamos marcar nossas bodas, nossos sentimentos, nosso amor pela qualidade, pelo transbordamento, pela genuinidade, pela intensidade ao invés do simples, inconfiável, inconstante e mecânico atributo do tempo!

Hoje faço muitas bodas! Hoje celebro as bodas dos amores intensos!

E assim, compreendendo o ‘infinito’ como palavra que qualifica ‘intensidade’ e não ‘duração’, não posso deixar de citar o sábio mestre poeta Vinícius de Moraes (Soneto da Fidelidade):

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

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Claude Monet

Para o jogo da vida: raça

Para o jogo da vida: raça

Por Tatiana Nicz

Há muito tempo quando frequentava os jogos do Atlético Paranaense, ainda na Baixadinha, lembro que sempre no começo do jogo ou quando o jogo não ia bem, a torcida gritava para os jogadores “RAÇA”. Eu que sempre enxerguei a vida com poesia achava aquilo muito emocionante. Era o momento que mais gostava no jogo. E o grito alto e compassado da torcida até hoje ecoa dentro de mim: RAÇA.

Às vezes me pego olhando para pessoas em momentos de dificuldade ou quando estão indecisas ou quando querem desistir e tenho vontade de gritar como gritava nos jogos: RAÇA! Às vezes me olho no espelho e penso: RAÇA. O mundo anda meio mal e o que sinto é que a vida nos pede raça. Porque não tem quem passe ileso por ela sem dificuldades, problemas, problemas de gente grande, daqueles que fazem você duvidar da sua capacidade e achar que não vai dar conta. Muitas vezes eu acho que não darei conta. E o que aprendi é que para dar conta é preciso saber que não estamos sozinhos, e é preciso agir, por nós e pelos outros, precisamos “arregaçar as mangas” e fazer.

E aprendi também que para ter raça é preciso ter certezas. Certeza de que você arregaçou as mangas e fez o que podia, certeza das tuas escolhas, certeza que você estava presente no momento por inteiro e que deu o seu melhor. Mesmo que “seu melhor” às vezes pareça muito pouco.

A indecisão surge quando não estamos presentes por inteiro em nossas escolhas, quando elas são tomadas por outros ou pela vida, quando somos reativos. Quem é indeciso vive sempre pela metade, dividido entre o que foi e o que poderia ter sido. Ter raça é fazer escolhas e estar disposto a assumir as consequências. Porque a felicidade não espera pelos indecisos, ela só chega para quem tem raça. E para ser feliz é preciso coragem. Ter raça nos exige completude. Para sermos inteiros precisamos olhar para a dor do outro com mais cuidado, porque nós não somos completos sem o outro.

Por isso que quando penso em ter raça, penso também em empatia. A empatia é saber que somos compreendidos, que não estamos sós. Empatia é alguém gritando para nós: raça. Empatia é mais que amor, é validar a dor do outro e estar ali presente por inteiro para ele e entender que nem sempre a vida tem a ver com os nossos dramas.

Minha melhor amiga, assim como todos nós, já passou por altos e baixos. E quando ela estava em um dos seus baixos, eu me afastei. Me afastei porque era difícil vê-la sofrendo; porque eu não sabia o que fazer para ajudá-la e porque me sentia inútil diante de sua dor. Então como não sabia o que fazer, me afastei. A verdade é que nós não sabemos lidar com a dor do outro, mas se queremos aprender sobre empatia, precisamos aprender sobre o outro e sobre suas dores.

Um dia em uma discussão em que falei sobre essa minha dificuldade para ela, ela me disse: “mas eu não esperava que você fosse curar minha dor, aliás eu não te pedi isso. Também não queria que você fizesse nada, só queria que você ficasse ao meu lado.” Empatia é isso, aprender a dar autonomia e ter fé que o outro pode dar conta do que vier, mas entender que ele não precisa estar sozinho para isso.

E é fundamental validar a dor do outro para sentir empatia. O mundo hoje pede ação e a ação só vem quando entendemos que fazemos parte de algo maior e somos empáticos perante as injustiças e dores que nos saltam aos olhos. O mundo pede empatia e ao mesmo tempo raça. Raça gera ação. E precisamos agir, precisamos nos envolver. “Se envolver” é algo que tem pouco a ver com palavras e virtualidades e muito a ver com presença e ação.

Ontem voltando do interior vi um acidente na estrada, o carro bateu atrás do caminhão, eu passei e foram poucos segundos em que pensei “não vou parar, alguém vai ajudar” e dai lembrei que quem sabe naquele momento esse “alguém” poderia ser eu. Desci do carro e vi duas crianças sentadas na beira do acostamento chorando desesperadas, o pai deitado ao lado sangrando; a mãe desacordada presa nas ferragens no banco do passageiro e a irmã mais velha gritando atrás, presa no carro.

Enquanto os poucos que estavam lá estavam indecisos do que fazer, orientei um dos rapazes para que não tirassem a menina do carro, não a deixassem sozinha e tentassem mantê-la acordada, liguei para polícia e pedi socorro. Depois me sentei com as crianças ao lado do pai para esperar ajuda. O que aconteceu nas horas seguintes em que estive lá presente e por inteira foi muito forte. E por um breve momento me lembrei da torcida do meu time que é lindamente chamado de Furacão.

Hoje, depois de ver meu pai lutando contra uma doença que lhe custou a vida, depois de assisti-lo dar seu último suspiro, ao ver a agonia de minha mãe perdendo sua consciência, ao olhar para os olhos cheios d´água daquelas duas crianças que haviam acabado de perder a mãe, entendo porque me afastei da minha amiga quando ela precisou de mim e entendo porque não nos envolvemos. A dor do mundo nos paralisa. É realmente muito difícil sentar e ficar ao lado do outro e saber que às vezes isso é a única coisa que podemos fazer, porque para mim apenas estar ao lado parecia ser tão pouco, mas hoje entendo que essa doação de estar ao lado naquele momento por inteiro para o outro, na verdade é algo muito grandioso.

Em momentos difíceis como esse é que me lembro da torcida gritando: raça. Quando as dores do mundo forem tão grandiosas que nos fazem sentir impotentes: raça. Quando a dor do outro lhe sangrar o coração: raça. Quando você sentir que não dará conta: raça. Para os indecisos: raça. Quando passa o furacão: raça. Para que todo o mal e toda dor não nos paralisem: raça. Para o jogo da vida: RAÇA.

Enquanto conversava com o garoto, perguntei do que ele mais gostava, ele me disse: futebol. Então contei para ele sobre os gritos da torcida pedindo “raça” e como aquela era a parte do jogo que eu mais gostava. E pedi para ele ter raça, raça maior que a dos jogadores em uma final de campeonato, muita raça. E depois que eles se foram, segui viagem pensando muito na vida. Que a vida é mesmo um jogo e assim como o futebol é um jogo jogado em equipe; um jogo que nos pede muita raça e o bom de ter raça é que ela não é solitária, a raça vem da certeza; e vem principalmente da plena certeza de que juntos sempre iremos mais longe.

Adendo:

Aprendi muito sobre empatia e comecei a olhar com mais atenção para esse sentimento quando assisti ao vídeo abaixo.

Só é coragem se você tiver medo

Só é coragem se você tiver medo

Por Patrícia Pinheiro

Tudo que a gente precisa, vez ou outra, é que a vida nos surpreenda.

É que, quando tudo está parado, quando dias se repetem por meses em uma sequência prevista de fatos, alguma peça se mexa, desorganizando todas as outras.

O novo assusta, desassossega, aperta o estômago e acelera o ritmo cardíaco, e ,como de tudo que nos parece ameaçador, nossa tendência é fugir, poupar nossas energias optando pelo seguro, pelo previsível, pelo que não nos tira o sono.

No entanto, se algo te instiga, te preocupa tanto a ponto de te privar de noites de sono, é porque, de alguma forma, você está vivendo.

Se você está cheio de feridas, significa que foi corajoso o suficiente para se expor a elas ou para continuar vivendo buscando uma forma de sará-las ou de conviver com elas.

Aquele que muito se protege dificilmente será ferido, mas, certamente, pouco terá vivido.

Lembro de uma passagem que me marcou bastante de um filme ao qual assisti há um tempo atrás que dizia: “Só é coragem se você tiver medo”.

Não é covardia desistir quando as coisas estão difíceis, estão sugando sua energia e lhe fazendo infeliz. Isso é inteligência.

Covarde, penso eu, é aquele que não se deixa surpreender, não se abre para o novo pelo medo do desconhecido. É quando o medo de sofrer é maior que a coragem de ser feliz.

Meu maior medo, acredite, ainda é o de não sentir medo algum.

Katherine Mansfield no absoluto êxtase da felicidade

Katherine Mansfield no absoluto êxtase da felicidade

Por Patrícia Dantas

O que é a Felicidade, ao pé da letra? Cada um responderia de um modo um tanto quanto universal, mas outros prefeririam logo tocar na sua sensação de grandeza da felicidade mais íntima. Porque toda e qualquer pessoa é um mundo à parte – muitas vezes intocável, intransponível, irreconhecível. Um mundo que parece se bastar ao propósito que é viver. A irradiação.

Trocar histórias de lugar com pessoas pode ser uma ótima imersão nessa felicidade que muitas vezes depende do roteiro atual e da extensão da gente – da possibilidade de ser o que se espera ou acredita de si. Mas é no outro que vamos ao nosso complexo universo refletido – talvez nesse amor apegado que não dá explicação de como chegou até a sua porta, devagarzinho, flanando, sem pretensões de machucar e fazer sofrer, mas de ampliar o ser que o tocou profundamente.

Pensamentos soltos, um quarto na penumbra, a madrugada que cai ao longo de um dia inacabado, a insônia que ataca, planos de um futuro mais instigante, uma taça de vinho ao lado da cama, a idade que chega sem avisar o quanto de chão ainda temos pela frente; é o absurdo solto e veloz dentro de nós; o vulcão que carrega nosso nome, literalmente.

E há em cada dia muito mais para se descobrir, como uma infinita vocação para desvendar o mistério maior por inteiro: a infiltração nos poros que não é rasa, não é passageira, nem é tão familiar a ponto de sabermos provocá-la com nossas angústias imediatas.

Somos cada partícula desses poros que transcendem nossos limites extremos. Quantas vezes nos vem a inquietação: “Quando foi que me ultrapassei? Quando perdi a vocação de me conter dentro do meu corpo, de não extravasar o que há de mais essencial em mim?” “Quando foi?” Tudo fica e permanece tão sem resposta.

Katherine Mansfield em sua extrema invocação da Felicidade se indagou em sua criação “O que fazer se aos trinta anos, de repente, ao dobrar uma esquina, você é invadida por uma sensação de êxtase – absoluto êxtase! – como se você tivesse de repente engolido o sol de fim de tarde e ele queimasse dentro do seu peito, irradiando centelhas para cada partícula, para cada extremidade do seu corpo?” Aqui também há a extrema imersão nesse êxtase! Quando, quando por mim e pela angústia do meu encontro com o eu, por fim, “engolirei o sol de fim de tarde?”

A mim, só resta poder sentir vez ou outra as partículas do meu corpo se moverem como nunca se moveram antes – radioativas, magnéticas, cheias de mais vida e insanas -, por não entenderem, de forma tátil, a imensa capacidade de sentir o mundo todo vivo transbordar como o leito de um rio. Vou me sentindo, tateando, escavando até adquirir a forma de uma minúscula compreensão.

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Imagem do filme Comer Rezar Amar

Você conhece a dor do abandono?

Você conhece a dor do abandono?

Um vídeo que nos faz meditar sobre a responsabilidade de cada um dos humanos com relação a todos os seres que nos cercam.

Aquele que conhece a dor do abandono, a sensação de ver-se traído justamente por aquela pessoa a quem confiou, talvez, a sua própria vida, pode mensurar a dor não só humana, mas a dor que, a partir do humano, ecoa a todas as espécies que povoam a Terra.

Vale conferir o vídeo até o seu instante final.

 

Relacionamentos fugazes ou duradouros e as viagens que a vida nos oferece!

Relacionamentos fugazes ou duradouros e as viagens que a vida nos oferece!

Por Marcela Alice Bianco

Subir no topo da montanha exige sacrifício! Essa frase me veio após uma conversa entre amigos sobre porque os solteiros têm tido muita facilidade em “ficar” com alguém, mas poucos escolhem ou conseguem namorar. Uma das pessoas solteiras na roda justificou dizendo que isso ocorria simplesmente porque era muito mais fácil! Neste caminho de pensamento, a primeira conquista não exigia muitas habilidades, técnicas ou empenhos pessoais. A pessoa não precisaria se esforçar para manter a conquista diária e muito menos se preocupar em lidar com as dificuldades, os defeitos e toda multiplicidade de situações que envolvem uma relação duradoura. Por outro lado, ele dizia que em alguns momentos, isso também era cansativo e por vezes trazia um sentimento de vazio.

Foi então que me veio a seguinte comparação: vamos pensar que você queira fazer uma viagem e que adoraria conhecer um outro país, uma outra cultura, uma ilha paradisíaca, escalar uma grande montanha mas, qualquer um destes destinos teria seu desafio a ser enfrentado. Primeiramente, você teria custos, precisaria arcar com certos investimentos, se preparar física, material e afetivamente. Teria que sair da sua zona de conforto e fazer determinados “sacrifícios”. Porém, a realização desse desejo também lhe traria uma experiência única, que te ajudaria a ampliar a sua visão do mundo, a crescer, a amadurecer, a sentir novas emoções, superar medos e a construir memórias inesquecíveis.

Mas, você não quer ter esse trabalho, ou sente que ainda precisa aproveitar mais a vida daquele modo que já está acostumado a fazer, ou que é melhor agir como todo mundo, seguir o fluxo. Então, você acaba escolhendo o lugar comum, o lugar de sempre, o mais fácil. Traduzindo para os relacionamentos, acaba preferindo o efêmero, passageiro e superficial. Afinal, num primeiro momento este parece preencher suas necessidades, te deixa vibrante, entusiasmado, te faz sentir com a bola toda! Porém, é também o momento fugaz… dura somente o tempo vivido e traz apenas a ânsia de viver novamente a mesma sensação. E então você viaja sempre para o mesmo lugar!

E assim, você não escolhe uma aventura única, dessas viagens transformadoras como subir ao alto de uma montanha. Com isso, você também não vive a experiência de ser escolhido. De ser desejado para além do primeiro encanto e das primeiras projeções. Não escolhe ter alguém que queira ser testemunha da sua vida e seu verdadeiro companheiro (a) de viagens. Alguém que queira encarar um grande desafio com você e suporte as dificuldades da subida e da descida. E que também queira te acompanhar em novas aventuras, porque a sua companhia é a que traz sentido e faz qualquer sacrifício valer a pena!

Imagino que nesta altura do texto você pode estar pensando que eu acredito que somente os relacionamentos duradouros valem a pena de serem vividos. E eu te digo que não!  Acho que todo tipo de viagem pode fazer bem. Desde aquela que você faz para a cidade vizinha até a que te leva ao topo de uma grande montanha. O que importa para a vivência ser significativa é você estar realmente presente, consciente de suas ações e seus desejos. E ter realmente escolhido estar ali naquele lugar num determinado momento da sua vida. Voltando aos relacionamentos, é preciso que você entenda o que algo fugaz ou duradouro significa para você. Por que você escolhe vivê-lo ao invés de experimentar outras coisas.

Agora, o que não precisa acontecer é viajar sempre para o mesmo lugar por medo de viver algo novo ou por não querer abrir mão do conforto e das facilidades. Pois muitas coisas boas e surpreendentes podem acontecer se você quebrar suas barreiras e se permitir novos roteiros e escaladas!

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A simbologia do trem em “Tomates Verdes Fritos”

A simbologia do trem em “Tomates Verdes Fritos”

Por Octavio Caruso

Revendo o filme após muitos anos, ainda fico surpreso com aqueles que não percebem a forte conotação sexual na cena da guerra de comida na cozinha. O livro original de Fannie Flagg não esconde o caso de amor entre a indomável Idgie e a doce Ruth, porém, temendo a polêmica, o diretor Jon Avnet preferiu deixar tudo subentendido e apostar apenas no forte laço de amizade. É uma decisão tola, já que a trama ganharia ainda mais relevância, no contexto da época em que ela se passa, em meados da década de trinta, uma sociedade intensamente racista, preconceituosa. A história é narrada pela personagem de Jessica Tandy, uma senhora que vive o crepúsculo de sua vida em um asilo. A sua vitalidade impressiona a personagem vivida por Kathy Bates, uma dona de casa sem autoestima, escrava de um relacionamento desgastado, com um homem grosseiro que só pensa em beber e assistir seus jogos de beisebol.

“Eu sou muito jovem para ser velha, e muito velha para ser jovem”.

Um tema central, no livro e no filme, é a questão do resgate da gentileza num mundo cada vez mais deselegante. A personagem de Bates, um pouco acima do peso, fica ofendida quando um moleque, sem motivo algum, debocha agressivamente de sua constituição física. Numa cena posterior, ela é vítima novamente de agressão verbal, quando duas jovens, sem cerimônia, estacionam o carro em sua vaga. O roteiro evidencia, de forma quase caricatural, o impacto do desrespeito. Ela só deixa a insegurança de lado, ousando o contra-ataque, quando começa a se inspirar com a coragem da heroína das histórias contadas pela senhora. É interessante enxergar o elemento visual do trem, que causa duas desgraças que transformam completamente a vida dos personagens, o símbolo do inescapável destino, os trilhos como o ciclo da vida, trazendo e levando pessoas embora, veículo da esperança e do sofrimento, o coração pulsante da pequena cidade.

A rebelde Idgie, vivida por Mary Stuart Masterson, ataca implacavelmente o marido de Ruth, vivida por Mary-Louise Parker, quando descobre que ele a espancava em casa. A poderosa cena transmite bem a revolta dela, sem medo de enfrentar alguém fisicamente mais forte, percebendo que a amiga já ultrapassou o estágio da resignação, mostrando-se apática. Essa força de caráter também se mostra, de forma bem mais discreta, no entendimento subliminar de que ela eventualmente teve uma relação com o irmão, ocasionando o nascimento de um bebê doente, que viveu apenas alguns anos. Uma mulher que, enquanto criança, não temia a figura do sacerdote na igreja, ela desafiava tudo e todos. No momento em que Ruth passou a conviver com ela, aprendeu a ser mais confiante, chegando até a sorrir quando soube da morte do marido. Um gesto simples, filmado de forma sutil, porém, simbólico de um importante despertar existencial.

A bonita revelação da identidade da senhora, ao final, como sendo a própria Idgie, é um exemplo de modificação eficiente na adaptação. Além de fazer mais sentido narrativamente, satisfaz plenamente o espectador após todo o investimento emocional. O tempo foi generoso com “Tomates Verdes Fritos” (Fried Green Tomatoes – 1991), um dos filmes mais comentados na década de noventa, que continua envolvente em sua estrutura episódica de flashbacks, entregando ainda uma crítica mensagem atual sobre o feminismo. Evelyn (Bates) inicialmente utiliza Idgie como muleta psicológica para conquistar a segurança necessária em sua vida, porém, percebe, após algumas cenas hilárias com o marido, que enxergar valor excessivo na rebeldia inconsequente de sua heroína, uma total irresponsável em vários sentidos, não passa de um patriarcalismo às avessas, cometendo os mesmos erros resultantes de qualquer radicalismo. A personagem acaba preferindo o meio-termo, representado pela senhora, uma versão amadurecida da rebeldia adolescente, afável e corajosa.

É impossível não se emocionar com o momento em que Evelyn, acreditando que sua amiga faleceu, parte para cima da enfermeira do asilo, que, de forma insensível, já estava rasgando as rosas coladas na parede, que a senhora tanto amava, preparando o quarto para o próximo número na estatística do estabelecimento. Uma linda cena que transmite uma forte mensagem, infelizmente, cada vez mais atual. O amor e a gratidão, que levam a mulher a se responsabilizar pelo futuro da senhora, tão frágil e desvalorizada na sociedade, responsável por sua decisiva mudança de atitude. O trem segue seu caminho, o passageiro mais calado, aquele que fica no canto, que ninguém dá valor, pode mudar totalmente o rumo de sua vida.

contioutra.com - A simbologia do trem em "Tomates Verdes Fritos"

OCTAVIO CARUSO

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Carioca, apaixonado pela Sétima Arte. Ator, autor do livro “Devo Tudo ao Cinema”, roteirista, já dirigiu uma peça, curtas e está na pré-produção de seu primeiro longa. Crítico de cinema, tendo escrito para alguns veículos, como o extinto “cinema.com”, “Omelete” e, atualmente, “criticos.com.br” e no portal do jornalista Sidney Rezende. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, sendo, consequentemente, parte da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica.

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Alimentar o Amor

Alimentar o Amor

Por Miguel Esteves Cardoso

Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.

Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter.

Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores. Criadores não nos faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Faltam-nos guardiões.

É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas — sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue os seres humanos. O nascimento e a morte não têm valor — são os fados da animalidade. Procriar é bestial. O que é lindo é educar.
Estou um pouco farto de revolucionários. Sei do que falo porque eu próprio sou revolucionário. Como toda a gente. Mudo quando posso e, apesar dos meus princípios, não suporto a autoridade.

É tão fácil ser rebelde. Pica tão bem ser irreverente. Criar é tão giro. As pessoas adoram um gozão, um malcriado, um aventureiro. É o que eu sou. Estas crónicas provam-no. Mas queria que mostrassem também que não é isso que eu prezo e que não é só isso que eu sou.
Se eu fosse forte, seria um verdadeiro conservador. Mudar é um instinto animal. Conservar, porque vai contra a natureza, é que é humano. Gosto mais de quem desenterra do que de quem planta. Gosto mais do arqueólogo do que do arquitecto. Gosto de académicos, de coleccionadores, de bibliotecários, de antologistas, de jardineiros.

Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que «salvaguardar»? É fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o amor da minha vida, rapariga de esquerda, a mim, rapaz conservador. É por esta e por outras que eu lhe dedico este livro, que escrevi à sombra dela.
Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar.

Miguel Esteves Cardoso, in ‘As Minhas Aventuras na República Portuguesa’

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Quanto vale um professor?

Quanto vale um professor?

Por Nara Rúbia Ribeiro

Na era do culto às celebridades, do elogio à desinteligência, da ânsia pelo fútil, do aplauso ao vazio, quanto vale um professor? Nada. Talvez menos que nada. Talvez seja um número negativo, uma subtração ao padrão de mundo que a maioria almeja.

Eu me considero uma eterna aluna da vida, uma estagiária da existência; e tive muitos mestres. Ainda os tenho. Daquilo que tenho aprendido, muito devo àqueles que, em sala de aula, transmitiram-me seus conhecimentos. Contudo, devo confessar que a postura dos meus verdadeiros mestres diante da vida foi o que sempre mais me ensinou.

Muitos dos meus professores ilustravam em seu currículo, de diversas formas, o ideário de suas vidas. Eles se viravam com seus baixos salários, lutando por melhor remuneração e melhores condições de trabalho. Eles tinham a audácia de se rebelar contra os ditames de nossos dias: contra a coisificação do homem e a tentativa capitalização das almas, negando-se a pactuar com a transformação dos outros em meros números, em objetos estatísticos que podem ou não nos auferir alguma vantagem patrimonial.

Sempre estudei em escola pública. Já tive aula em que o professor ditasse toda a matéria, pois o giz havia acabado. Já vi professor fazer vaquinha entre os colegas para comprar remédio de preço módico para o filho. Tive a oportunidade de ver a merenda negada ao professor, posto que o Ministério da Educação a distribuía, foi o que alegaram, apenas “para os alunos”.

Hoje, o professor, por mais que se desdobre, por mais que se dedique, por mais que tenha a sua carreira como prioritária, ganhará sempre pouco. Caso se valha apenas da docência, não terá patrimônio, não terá status, não será celebrado, não terá holofote dos veículos de comunicação. E, neste país, ainda prevalece a crença de que quem é celebridade é tudo. De que o bom profissional não é o honesto e probo: o bom é o rico.

Isso é, implicitamente, ensinado aos nossos filhos. Ser bem sucedido é ter espaço na MTv, é ser badalado por revistas de fofocas, é ser visto de “Camaro amarelo”. Bonito é ser fotografado entre as celebridades. Ser grande é ser famoso, conhecido, não importa se para isso a pessoa tenha que “ordenhar” alguém em reality transmitido nacionalmente. Que importa se o cantor só fala uma frase na música inteira e a frase é de baixo calão? Ele é rico e famoso, e é isso o que importa.

Muitos andam preocupados com a crise econômica, mas quem anda se ocupando da crise dos valores? Quem anda se dedicando ao conhecimento, à busca por novas leituras do mundo, à quebra, à ruptura do modelo desumano de sociedade que criamos? Quem se dedica a questionar padrões e a não cotejar o conformismo? Quem, além dos profissionais da Educação?

Por isso, quando vejo um professor sangrando ao legitimamente lutar por um direito seu, a minha alma sangra junto. Mas a ignorância que nos sangra não é capaz de drenar os nossos sonhos. Sabemos que o culto à celebridade, bem como o elogio à ignorância, não se sustenta se iluminado pela razão, uma vez acordada a sensibilidade de cada um.

Ser nada a uma geração onde o vazio é aplaudido de pé, remar contra o mar da mediocridade do mundo é uma glória sem preço. Em tempos como o nosso, ser menos é mais.

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“Em algum lugar do passado”: o reencontro entre a matéria e o sonho

“Em algum lugar do passado”: o reencontro entre a matéria e o sonho

Por Octavio Caruso

O espírita absorve o que ocorre no filme como uma metáfora sobre reencarnação, mas esse elemento, além de simplificar demais a sensibilidade do tema, não existe na obra original: “Bid Time Return” (1975), de Richard Matheson, diferente de outra obra do escritor, “Amor Além da Vida”, que é essencialmente espiritualista em sua noção de céu e inferno, mesmo que sendo utilizados metaforicamente, posto que o espiritismo, como doutrina, mesmo existindo de forma modesta em outros países, foi abraçado com maior respeito pelo Brasil. Matheson inspirou-se no livro “Man and Time”, de J.B. Priestley, que abordava uma viagem no tempo realizada por meio da auto-hipnose, para contar uma fantasia envolta em romance.

O escritor que já tinha um histórico de contos de terror e ficção científica intencionou desafiar-se com uma abordagem diferente, mais lúdica, da desgastada fórmula da viagem no tempo. Seu protagonista no livro descobre-se com um tumor inoperável no cérebro, o que o leva a impulsivamente hospedar-se em um refinado hotel, onde encontra o retrato de uma bela e jovem atriz. Disposto a voltar no tempo e encontrá-la, ele incorre à auto-hipnose, fazendo sua mente acreditar que sua matéria se transferiu para aquele ponto no espaço-tempo. Ao final, fica implícito que aquela aventura romântica foi apenas o delírio de um moribundo. Já ao escrever o roteiro para a adaptação cinematográfica, cinco anos depois, o escritor decidiu modificar bastante o percurso do protagonista, suavizando ainda mais o conceito romântico, pois não haveria mais o tumor no cérebro, mas, sim, uma morte causada pela intensa frustração amorosa, por não poder mais estar próximo da mulher que ama. Incluiu também a cena inicial, onde vemos uma senhora idosa se aproximar do jovem e clamar enigmaticamente que ele a reencontrasse, aspecto que torna compreensível o tom espiritualista que a obra então recebeu entre os cinéfilos brasileiros. Um filme que pode ser tido como objetivamente espírita é o fraco “A Reencarnação de Peter Proud” (1975), que, inclusive, é similar ao trabalho de Matheson, mesmo que não trate o tema como algo possível, mas, sim, como um bom material para que o diretor J. Lee Thompson exercitasse o suspense e terror, na fase em que vários produtores buscavam pegar carona no sucesso de “O Exorcista” (1973).

A atriz Jane Seymour admirava tanto seu colega Christopher Reeve, que colocou o nome dele em seu filho. Os dois continuaram amigos até o falecimento dele. O diretor Jeannot Szwarc não obteve nenhum outro sucesso em sua carreira, chegou a atrair a atenção popular novamente com o fracasso de “Supergirl”, em 1984. No belo “Em Algum Lugar do Passado” (Somewhere in Time – 1980), sua direção melíflua combina perfeitamente com o tom do roteiro, podendo soar sacarina demais para alguns, mas coerente com a proposta. A trilha sonora de John Barry é uma das mais belas compostas por ele, com inserções marcantes da décima oitava variação de “Rapsódia Sobre um Tema de Paganini”, de Rachmaninoff. Um detalhe interessante é que, na emocionante cena próxima ao final, onde Reeve passa seus últimos momentos no passado com Seymour, o ator havia acabado de saber que seria pai pela primeira vez, tornando muito difícil para que ele se concentrasse no personagem.

Retirando os elementos fantásticos, a razão do encantamento perene que provoca nos cinéfilos do mundo todo, a profunda identificação que todos nós sentimos com o conflito do protagonista. Quem não gostaria de poder rever um ente querido ou um amor que não existe mais? Passar alguns minutos na presença de alguém que vive apenas na memória, poder falar coisas que não foram ditas, reviver momentos felizes por alguns segundos. Não existe cena mais bela que aquela onde Reeve percebe estar fora de seu tempo, vivendo uma ilusão, sendo brutalmente transportado para sua realidade. A sua reação ao descobrir-se sozinho novamente, após tantos momentos agradáveis com a mulher que amava, sabendo que não a veria novamente, contorcendo-se de desespero em sua cama. Resignado em sua profunda dor, ele aguarda seu fim. Na presença da morte ele volta a sorrir, sua mente refaz o longo caminho até ela, que o aguarda como se nunca houvesse partido. No exato segundo em que ocorre o aguardado enlaçar de suas mãos com as da mulher que ama, simbolizando o reencontro entre a matéria e o sonho, o filme termina.

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OCTAVIO CARUSO

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