Análise psicológica do filme O exótico Hotel Marigold

Análise psicológica do filme O exótico Hotel Marigold

Por Cine Sedes Jung e Corpo

O exótico Hotel Marigold

Reflexões compartilhadas no Cine Sedes Jung e Corpo

O Exótico Hotel Marigold” é um filme que faz com que adentremos de maneira leve e descontraída em assuntos profundos e simbólicos da vida. A trama se inicia com a apresentação dos personagens e suas respectivas histórias pessoais. Sete idosos britânicos decidem ir para Índia, cada um por um motivo distinto, mas que os une ainda no aeroporto para encarar uma aventura inesperada. Inicialmente a promessa de passar a aposentadoria e velhice em um hotel colonial para idosos e belos na Índia os seduz e os atrai para a experiência. Mas, logo na chegada percebem que tudo será inusitado e que nada será como deveria ser.

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Eles são recebido por Sonny, um jovem sonhador que tenta transformar um antigo e deteriorado hotel familiar num verdadeiro paraíso. E assim, o mito pessoal nos revela como cada um lida com os seus contrastes, conflitos, e com a fase da vida a qual está passando: a velhice ou o início da vida adulta. Temos aqui, a primeira polaridade arquetípica trazida pelo filme: Puer – Senex.

Em certo momento da vida, existe uma possibilidade de ressignificar seu sentido, experienciar um novo tempo. Ao compreender e integrar sua história de vida, o indivíduo pode retirar as projeções, repensar os papéis vividos por meio de sua persona, reconciliar-se com sua anima/animus e compreender e confrontar suas oposições para aceitar e ajustar suas diferenças.

Os personagens estão vivenciando um momento muito importante onde a vida se transforma e é preciso ter coragem para aceitar e olhar para si mesmo. Esse processo que ocorre na segunda etapa da vida é a etapa final da INDIVIDUAÇÃO, denominação atribuída por Jung à fase de elaboração psíquica dos opostos, que consolida a experiência existencial.

Os personagens têm a premência do TEMPO. Estão envelhecendo e não resta mais muito tempo para desperdiçar. Há um grande investimento afetivo com busca por autonomia interior. O envelhecimento do corpo é inevitável, mas não do espirito. No filme, esse investimento é representado por uma viagem com característica iniciática, onde ganha-se muita sabedoria, novo propósito e amizades mesmo na quarta fase da vida.

Os personagens precisam ter a coragem para embarcar nesta viagem iniciática e vivenciar a experiência do AGORA, do VIVER no PRESENTE. Essa vivência é um momento SAGRADO. A coragem de viver, aliada à vontade de estar ali, naquele momento e realidade faz com que não se automatize o viver! Conforme ouvimos no filme, na Índia a vida é um privilégio e não um direito!

A Índia apresenta muitas cores, sons/barulhos, diferenças sociais e um grande caráter espiritual do povo, que mesmo com tantas dificuldades sorriem frequentemente. É uma grande invasão sensorial e um impacto social muito grande para os padrões Ocidentais.

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Os opostos estão aqui representados como: o Oriente representando a intuição, as sensações, o sonho, o atemporal, o “doido”. Já o Ocidente representando o pensamento lógico/racional, os padrões e a organização.

Este mesmo país que às vezes até agride os cinco sentidos é também o pano de fundo para o nascimento de um novo EU. A Índia mexe com nossa organização interna Ocidental e, ao mesmo tempo, é um país de tradições fortes e castas sociais. Mais uma vez o filme nos apresenta os contrastes e oposições da vida.

Não é tão fácil viver no presente, o mais comum é viver no conformismo, nos caminhos mais conhecidos pelo Ego. Os artistas, loucos e místicos, assim como o bufão (também conhecido como bobo da corte), geralmente, são aqueles que podem mais profundamente transformar a vida.

Nossos heróis/personagens vão em busca do novo para si. Compram a ideia de ir à Índia buscar o exótico, o diferente. Pode-se entender a Índia como um paraíso perdido, um fim benevolente para a experiência temporal e não temporal.

O personagem Sonny, nos faz lembrar da figura arquetípica do Trickster ou do bufão, que consegue fugir das tendências da estabilidade e conservadorismo e transformar a vida. Ele rompe com as tradições de casar-se com alguém da mesma casta. Sonny tem a ajuda da figura do velho serviçal que aparece para relembrar a mãe de sua velha e escondida história pessoal. É através do contato com o passado e com sua Sombra que a mãe aceita o casamento do filho e integra seu passado.

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Sonny sobrepõe o tempo no que diz respeito à realidade do hotel com a fantasia do que ele (o hotel) poderia vir a ser. O resort luxuoso para terceira idade no futuro versus a casa velha, deteriorada e sem recursos do presente. Também mantém a relação do antigo com o moderno (idosos de outras culturas x tradições de seu país).

Assim como o Hotel, os personagens do filme precisam passar por uma reforma e isso precisa de um investimento físico e afetivo para acontecer. O Hotel necessita de novas portas, novas torneiras, mostrando a necessidade de fronteiras, delimitação de espaços e da necessidade de deixar a vida fluir, se renovar. Na medida em que os personagens se reformam interiormente e a dinâmica da vida se modifica, o Hotel também ganha o capital necessário para sua reforma e assim poderá reviver!

Evelym está em um ponto de decisão em sua vida: ou muda e toma as rédeas do seu destino ou continua a deixar que os outros decidam por si após a morte do marido e um casamento de 40 anos. Resolve partir e encarar uma nova etapa. Embarca para Índia e cria um blog para narrar seu percurso. Nele redescobre seus potenciais, sua sabedoria e a possibilidade de um novo amor. Consegue um emprego e descobre-se útil e autônoma.

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Miss Greesdale, uma governanta aposentada, precisa de cuidados médicos urgentes e nos mostra a realidade dos idosos da Inglaterra e EUA. A solução é submeter-se à um novo programa de atendimento imediato na Índia. Ela se opera e precisa ficar um período numa cadeira de rodas sendo assistida pelos indianos. Seu corpo quer continuar a caminhar e ela precisa se deparar com seus preconceitos racistas. Podemos pensar na necessidade que ela tinha de um curador indiano e associar como uma cura da alma! É através do choque com a realidade e a identificação com a serviçal que varre, e que não é reconhecida por sua casta na Índia, que ela pode começar seu processo de transformação. Pode expressar suas dores e resgatar a si mesma. No fim, descobriu-se útil e hábil para gerir e tratar da contabilidade do hotel e ainda ser o contraponto e a função pensamento organizadora em oposição a Sonny, que era um sonhador e intuitivo.

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O casal do filme mostrou a situação triste e constrangedora da aposentadoria vista com um término do trabalho rotineiro. A capacidade e a criatividade não se aposenta ou se esgota com a idade, pelo contrário, vira sabedoria. O casal, em especial o marido, vive um processo de transformação e libertação. Ele ainda tinha um afeto reprimido para ser resolvido. Sua lealdade e bondade para com a sua esposa tolhia sua personalidade. Ela, por sua vez, não suporta os contrastes trazidos pela experiência na Índia, não se entregou à vivência, resistiu a sair nas ruas, às comidas, aos costumes e se prende a uma idealização romântica em um dos personagens, no qual deposita sua esperança, mas que descobre que é homossexual. Ela não aguenta o processo e decide voltar para casa. Por lealdade, o marido a acompanha, mas a própria Índia os impede de ir embora juntos para a Inglaterra. Há uma festa, o transito está caótico, tudo parado, e o transporte só pode levar um passageiro e suas malas. Ela decidi ir só. Libera o marido da lealdade estabelecida e eles se separam. Ele encontra um novo jeito de existir e um novo amor. O confronto com seu outro lado e com a um novo aspecto de sua anima o toca pelo afeto, tornando-o mais leve e engraçado. O processo “é como uma onda, se resistir é derrubado. Se mergulhar, sai do outro lado“.

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Neste momento lembramos da imagem do pássaro branco e seu simbolismo como a ascensão do espirito. Podemos associar com o homem que morre momentos depois de reencontrar o grande amor e ressignificar toda sua existência. Ele acreditava que as experiências do passado fizeram com que seu grande amor vivesse na penúria e na vergonha. Viveu a vida toda com culpa, que se cristalizou em seu coração. Ao descobrir que o homem que amava viveu dignamente feliz e que ainda o amava, libertou-se de uma verdadeira prisão interior, sentindo-se livre dos seus fantasmas do passado. Ele sabia que estava indo para a Índia para nunca mais voltar. Aqui, vemos a transcendência pelo sexo ou pelo amor, aspectos do Eros e do Animus/ Anima.

O luto traz o questionamento: “Será que estamos tristes pela sua morte ou pelas nossas próprias perdas? Será que viajamos para tão longe para podermos chorar?”

A morte traz a constatação da finitude da vida, da necessidade de confrontarmos com nossa realidade, de enfrentarmos nossas perdas, expressar nossas emoções e resgatar um significado para a vida a cada ponto do caminho. “Se o destino for benevolente você cairá logo no buraco” (Jung).

Os personagens que buscam prazer sexual com a viagem nos mostram esse desejo. Querem “subir ao topo da montanha” mais uma vez, viver o auge! Mas esquecem que ali não é o lugar de conforto, pois também existe a descida. O confronto com a realidade impera, eles estão na última fase da vida, não há tempo a perder. Porém, precisam abandonar a Persona (aspecto da Psique a favor da adaptação social), as frases feitas, as tentativas ilusórias da conquista e se mostrar como verdadeiramente são.

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Evelyn mostra a Sonny que deve lutar por seu amor, ou seja, leva ao “Trickster” a visão do feminino e a função da experiência. Senex mostra ao Puer um caminho. E ele diz, “Pare de perfurar pois, você já encontrou petróleo“. Ela o ajudou a encontrar em si mesmo o seu amor e a sua razão de viver. Neste momento o jovem, que até então só acumulou experiências de fracasso por estar preso às regras e aprendizados culturais, se liberta e é capaz de agir com criatividade e originalidade, indo em busca da auto realização.

O filme nos transporta para uma reflexão onde nem sempre “dar certo” é o melhor no momento que um fato ocorre, devemos pensar no caminho percorrido. “Não está bom agora, mas tudo vai dar certo no fim” – diz Sonny, nosso “Trickster”. É um grande desafio viver no presente, pois fazer a transição para o agora é alcançar a ETERNIDADE!

Simbolicamente, todo nós temos que ir a nossa “Índia interna” para resgatar nossas polaridades e redinamizar a nossa existência.

Por fim, encerramos com a indicação do filme: “Bosque Proibido” que conta a experiência de Mircea Eliade na Índia e “A 100 passos de um sonho”, trajeto contrário de uma família Indiana que conta a experiência na França.

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Nota da página: Reprodução realizada com autorização dos Organizadores para a CONTI outra artes e afins.

 

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Este texto foi produzido pela Comissão Organizadora do Cine Sedes Jung e Corpo com base nas reflexões realizadas durante o evento realizado em Março de 2015, com os comentários do Prof. e Psiquiatra Junguiano Paulo Toledo Machado Filho e da Psicóloga Clínica Karina Toledo Souza Silva.

O Cine Sedes Jung e Corpo é uma atividade extracurricular do curso Jung e Corpo: Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo.

É um evento gratuito e aberto ao público geral organizado pelos professores do curso em conjunto com ex-alunos e ocorre todas as últimas sextas-feiras dos meses letivos do curso.

Para maiores informações acompanhe o Blog do Cine Sedes Jung e Corpo

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Os mecanismos de defesa da razão – Flávio Gikovate

Os mecanismos de defesa da razão – Flávio Gikovate

Os mecanismos de defesa são as estratégias articuladas pela razão com a finalidade de aliviar algum tipo de sofrimento mais forte do que aqueles que podemos suportar.

Dentre eles, podemos destacar a negação, a repressão, a sublimação, a projeção, a racionalização, a formação reativa e a regressão.

Esses truques ajudam a aliviar momentaneamente um desconforto, no entanto são responsáveis pelo enfraquecimento da razão.

Para mais informações sobre Flávio Gikovate

Site: www.flaviogikovate.com.br
Facebook: www.facebook.com/FGikovate
Twitter: www.twitter.com/flavio_gikovate
Livros: www.gikovatelojavirtual.com.br

Esse blog possui a autorização de Flávio Gikovate para reprodução deste material.

A evolução não nos preparou para a vida, por Daniel Kahneman

A evolução não nos preparou para a vida, por Daniel Kahneman

Daniel Kahneman, Ph.D. em Psicologia e Nobel de Economia, analisa os prós e os contras da incapacidade humana de abarcar as ambiguidades dos acontecimentos. Segundo Kahneman, a evolução não nos preparou para o conjunto de circunstâncias da vida e, assim, vivemos com mente, emoções e corpo que não são perfeitamente adaptados para o mundo de hoje.

“…quando bancos possuem executivos altamente otimistas ou superconfiantes, esses bancos podem falir.” Daniel Kahneman

O otimisto, de modo geral, é bom, mas é preciso ter claresa do que acontece em uma esfera maior.

Encontre outros vídeos como esse em Fronteiras do Pensamento.

Novo tratamento do Alzheimer restaura totalmente a função da memória

Novo tratamento do Alzheimer restaura totalmente a função da memória
Pesquisadores australianos criaram uma tecnologia de ultra-som não-invasiva que limpa o cérebro das placas amilóides neurotóxicos responsáveis ​​pela perda de memória e pelo declínio da função cognitiva em pacientes com Alzheimer.

Se uma pessoa tem a doença de Alzheimer, isso é geralmente o resultado de uma acumulação de dois tipos de lesões – placas amilóides e emaranhados neurofibrilares. As placas amilóides ficam entre os neurônios e criam aglomerados densos de moléculas de beta-amilóide.

Os emaranhados neurofibrilares são encontrados no interior dos neurónios do cérebro, e são causados por proteínas Tau defeituosas que se aglomeram numa massa espessa e insolúvel. Isso faz com que pequenos filamentos chamados microtúbulos fiquem torcidos, perturbando o transporte de materiais essenciais, como nutrientes e organelas.
Como não temos qualquer tipo de vacina ou medida preventiva para a doença de Alzheimer – uma doença que afeta 50 milhões de pessoas em todo o mundo – tem havido uma corrida para descobrir a melhor forma de tratá-la, começando com a forma de limpar as proteínas beta-amilóide e Tau defeituosas do cérebro dos pacientes.
Agora, uma equipa do Instituto do Cérebro de Queensland, da Universidade de Queensland, desenvolveu uma solução bastante promissora. Publicando na Science Translational Medicine, a equipa descreve a técnica como a utilização de um determinado tipo de ultra-som chamado de ultra-som de foco terapêutico, que envia feixes feixes de ondas sonoras para o tecido cerebral de forma não invasiva.
Por oscilarem de forma super-rápida, estas ondas sonoras são capazes de abrir suavemente a barreira hemato-encefálica, que é uma camada que protege o cérebro contra bactérias, e estimular as células microgliais do cérebro a moverem-se. As células da microglila são basicamente resíduos de remoção de células, sendo capazes de limpar os aglomerados de beta-amilóide tóxicos.
Os pesquisadores relataram um restauro total das memórias em 75 por cento dos ratos que serviram de cobaias para os testes, havendo zero danos ao tecido cerebral circundante. Eles descobriram que os ratos tratados apresentavam melhor desempenho em três tarefas de memória – um labirinto, um teste para levá-los a reconhecer novos objetos e um para levá-los a relembrar lugares que deviam evitar.
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Fonte indicada: Ciência Online

Hoje acordei Beija Flor, por Daniel Munduruku

Hoje acordei Beija Flor, por Daniel Munduruku

Por Daniel Munduruku

Hoje vi um beija flor assentado no batente de minha janela.

Ele riu para mim com suas asas a mil.

Pensei nas palavras de minha avó:

“Beija-flor é bicho que liga o mundo de cá com o mundo de lá.

É mensageiro das notícias dos céus. Aquele-que-tudo-pode fez deles seres ligeiros para que pudessem levar

notícias para seus escolhidos. Quando a gente dorme pra sempre, acorda beija-flor.”

Achava vovó estranha quando assim falava. Parecia que não pensava direito! Mamãe diz que é por causa da idade. Vovó já está doente faz tempo. Mas eu sempre achei bonito o jeito dela contar histórias. Diz coisas bonitas, de tempos antigos.

Eu gostava de ficar ouvindo. Ela sempre começava assim: “Tininha, há um mundo dentro da gente. Esse mundo sai quando a gente abre o coração”…e contava coisas que ela tinha vivido…e contava coisas de papai e mamãe…e contava coisas de hoje e de ontem. Ela só não gostava de falar do futuro…dizia que não valia a pena. Futuro é tempo que não veio, ela dizia.

Pensei nisso tudo por causa do beija-flor. Até esqueci de visitar vovó em seu quarto. Fazia isso sempre que acordava. Vou fazer isso agora…

Nesse exato momento mamãe entrou no meu quarto. Estava triste. Trazia um papel na mão. Sentou-se na borda da cama e esticou para mim o papel. Abri-o devagar. Dentro tinha uma mensagem escrita com a caligrafia de vovó. Lá estava escrito:

“Tininha, hoje acordei beija-flor”.

Sorri para mamãe que nada entendeu. Eu entendi.

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Daniel Munduruku

Divertida Mente, veja o trailer da animação da Pixar que foi ovacionada em Cannes

Divertida Mente, veja o trailer da animação da Pixar que foi ovacionada em Cannes

Sinopse

Crescer pode ser uma jornada turbulenta, e com Riley não é diferente. Ela é retirada de sua vida no meio-oeste americano quando seu pai arruma um novo emprego em São Francisco. Como todos nós, Riley é guiada pelas emoções – Alegria (Amy Poehler), Medo (Bill Hader), Raiva (Lewis Black), Nojinho (Mindy Kaling) e Tristeza (Phyllis Smith). As emoções vivem no centro de controle dentro da mente de Riley, onde a ajudam com conselhos em sua vida cotidiana. Conforme Riley e suas emoções se esforçam para se adaptar à nova vida em São Francisco, começa uma agitação no centro de controle. Embora Alegria, a principal e mais importante emoção de Riley, tente se manter positiva, as emoções entram em conflito sobre qual a melhor maneira de viver em uma nova cidade, casa e escola.

Profundamente psicológica, essa animação ainda vai dar o que falar!

Corremos dentro dos corpos

Corremos dentro dos corpos

Como o sangue, corremos dentro dos corpos no momento em que abismos os puxam e devoram. Atravessamos cada ramo das árvores interiores que crescem do peito e se estendem pelos braços, pelas pernas, pelos olhares. As raízes agarram-se ao coração e nós cobrimos cada dedo fino dessas raízes que se fecham e apertam e esmagam essa pedra de fogo.
Como sangue, somos lágrimas. Como sangue, existimos dentro dos gestos. As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que significamos. E somos o vento, os caminhos do vento sobre os rostos. O vento dentro da escuridão como o único objecto que pode ser tocado. Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias, a esperança e o desencanto.

José Luís Peixoto, in ‘Antídoto’

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Art by Erin Case

Nessa vida desaprendi a jogar

Nessa vida desaprendi a jogar

Por Clara Baccarin

Nessa vida, não aprendi a jogar.

Pura mentira, aprendi sim e eu era a melhor jogadora, sabia todos os macetes e podia conquistar o mundo (se quisesse).

Não aprendi, nessa vida, a apreciar e a viver de prazeres fáceis e descartáveis. Mentira também, poderia ter sido a maior colecionadora de momentos rasos.

Me disseram que eu não encontrei os caminhos para o amadurecimento, para o enrijecimento, para a postura de mulher adulta, bem sucedida, cheia de realizações. Eu, atrasada e lerda, não soube perder a ingenuidade, entender as malícias, aprender a dissimular. Não soube desenvolver a esperteza, perceber as intenções sujas por trás dos sorrisos brancos, não soube distinguir a grande falta de amor por trás dos insistentes ‘eu te amo’. Eu não soube ser uma leoa.

Mentira, encontrei todos os caminhos, tinha o mapa completo, aprendi a encobrir minhas sujas intenções com sorrisos brancos. Aprendi como fazia para manter a cara de santa e preservar meu jogo de malícias. Saquei. Saquei tudo, senti tudo, vi tudo, captei. Eu não sou boba meu bem, eu sou é velha, eu sou é apaixonada pela vida e não poderia fazer com ela o que você faz e acha bonito. E acha que está vivendo.

Eu poderia estar hoje aqui orgulhosa, pós-graduada na área de mulher completa e fatal. Rica, cheia de amantes, daqueles que a gente não sente nada, mas caem aos pés. Eu poderia ter aprendido esse vício e ficado nele, não é o que todos fazem?

Eu poderia ter uma listinha de pessoas, pois para manter o ego massageado é preciso variar, é preciso fisgar muitos peixes e deixa-los com o anzol na boca, impossibilitados de nadar, parados nas margens, semivivos, esperando a noite em que serão finalmente intimados a participar de alguma refeição em que atuarão como prato principal, mas só para alimentar mais um pouco o meu ego insaciável.

Eu poderia estar hoje curtindo banquetes, poderia estar procurando aventuras superficiais, cultivando várias para me manter ativa.

Ou poderia então estar seguindo convenções, procurando calmarias em portos mortos, aceitando mais aos outros do que a mim mesma. Me adaptando a uma busca desenfreada de uma coisa que vai me comprar coisas e me acumular de outras coisas para ver se finalmente eu passo a me tornar alguma coisa valiosa nesse mundo.

Eu poderia estar no topo.

Mas, nessa vida eu desaprendi a jogar.

Não sei se foi por lucidez, por acaso, por inadequação. Provavelmente não foi por nobreza da minha parte, deve ter sido porque eu acho esses jogos simplesmente muito chatos. Acho uma tolice medir forças. Acho um desperdício de pessoas, sentimentos e emoções mergulhar na rasura do prazer apenas corporal ou da satisfação apenas da primeira camada do intelecto. Eu acho cansativo e monótono esse cabo de guerra de egos, esse psicologismo barato ofuscando a transparência dos olhares, essa seriedade de quem carrega a vida como um fardo e tem as costas largas e acredita que só assim é possível ser alguma coisa importante por aqui.

Eu acho bocejante e frustrante essas debilitações densas de almas, de personalidades, de posturas que se levam tão à sério. Eu não me animo a assistir ou participar da peça de teatro desses atores de quinta, que já interpretaram todos os personagens menos eles mesmos. É com pesar que vejo esses corpos esforçados, essas almas escravizadas, que parecem encarar a vida como a construção de uma pirâmide que levará ao céu. E o céu é sempre mais além. A gente sempre quer mais, e busca mais e acumula mais para chegar ao topo (de um monte de merda) e poder enfim se afogar nos excessos de si mesmo e nunca mais se encontrar. Mas quem sabe assim, possamos nos enterrar mais decentemente.

Vamos brincar de ‘verdade ou desafio’?

 Mas vê se desta vez, pelo menos desta única vez, tenha a coragem de escolher verdade.

O Nirvana de Clinton Blaindi e Pou Pipa

O Nirvana de Clinton Blaindi e Pou Pipa

Por Elika Takimoto

Clinton Blaindi nascera cego e infanciou normalmente a despeito de sua eficiência em jogar bilboquê e de sua falta de medo do escuro. Pou Pipa apareceu no morro da Rocinha, onde se passa parte dessa história, adultecendo. Tinham os dois a mesma quantidade de invernos. Clinton Blaindi sabia do mundo muito pouco. Foi criado pela sua mãe que o deixava com a vizinha para trabalhar. A vizinha era uma moça desambiciada e achava que para viver basta estar vivo. Pouco conversava e tinha preguiça de descer o morro para levar cego à escola.

Pou Pipa era pedreiro. O primeiro nome foi escolhido pelo seu pai que se dizia fã dos Beatles e que, de fato, o era à maneira dele. Amava, como quem ama Imagine, Rélpi. O segundo nome (que é um adjetivo como já percebido) veio de sua fixação (que não se foi com a sua chegada à vida adulta) em botar pipa no céu.

Nos finais de semana e das tardes de verão, Pou Pipa colocava pipa para atrapalhar as correntes de ar e tinha como companhia Clinton Blaindi que sempre estava sentado em um banquinho do lado de fora do barraco. Escuta, meu amigo, o que é isso que você faz?, perguntou Clinton Blaindi quando, enfim, chegou novembro. Pou, que não sabia se divertir de outra forma, recebeu a pergunta como se tivesse visto uma equação do segundo grau. Começou sem entender como se vive sem diversão. Mas muito menos lhe ocorria como fazer um cego dimensionar o céu.

– Primeiro você tem que entender o que é o mundo. – Respirou Pou a responsabilidade.

E assim, Clinton Blaindi, ao avesso de São Tomé, cria sem ver e entendeu como o céu fora feito para justificar as pipas e que os pássaros eram pipas sem linhas. Tempo fechado era quando o céu, o espaço absoluto newtoniano, acordava repleto de portas e janelas fechadas. Ventos fortes eram o espaço curvo einsteiniano. As nuvens eram como um tecido estampado. Não entende, Blaindi? Ah é. Você não entende. Tecido estampado é… Vem comigo, Blaindi. Pou fez Blaindi colocar as mãos nos muros. Muro de tijolo sem reboco e muro rebocado de cimento salpicado com pedrinhas. Muro rebocado de cimento sem granulado. Tudo muro, Blaindi, com estampas diferentes. Blaindi entendeu perfeitamente o que eram as nuvens e estava extremamente feliz por ter um amigo como Pou Pipa.

Pou resolveu ensinar Blaindi não a soltar pipa e sim a segurá-la. Blaindi com sua cabeça andorinhando compreendeu o céu e sua extensão. Percebeu o infinito com clareza. Quantas dessas têm no céu, Pou? A mesma quantidade de estrelas, Blaindi.

Blaindi já sabia que, de noite, as estrelas apareciam. Noite, diferente do dia, como lhe explicara Pou, era algo bem distinto de tempo fechado. Noite é quando o céu se transforma em portão trancado para as pipas. E tem hora de abrir: dia. Estrelas são grãos de feijão jogados no chão que ficam atrás desse antipático portão e esses grãos de feijão atrapalham o movimento das pipas, entende, Blaindi? Blaindi entendia tudo.

Um dia Clinton Blaindi quis saber um pouco mais. Você vê Deus, Pou? Não. Claro que não. Tem gente que diz que ele está em tudo, mas ele não está em nada. Se esconde atrás do céu. E como O explicam? Pou não soube responder, embora, tivesse certeza de Sua existência porque tudo existia e para sermos temos que nascer e as pedras nascem de algum lugar porque são pedras, logo, Deus existe porque o que não cresce não procria e sim se cria.

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Livro serve para quê, Pou? Para quem não gosta de soltar pipa e não quer conversar. Quem lê fica em silêncio se ocupando de virar as folhas bem devagar, explicou Pou. Pareceu a Blaindi que ler era algo que ele poderia fazer e ele quis experimentar isso, então, em dias de chuva.

Clinton Blaindi passou a ler, dessa maneira assim ensinada sem alfabeto, sílabas nem palavras escritas – já que a Pou também foi-lhe negada esta paisagem – nas noites, quando os portões eram trancados para as pipas, sempre o mesmo livro que ganhou de presente de Pou. Usufruiu, sem que o sábio amigo lhe guiasse, do bem que a leitura, assim por ele assimilada, faz para a mente e ficou viciado nesse passatempo por ele inventado. Agora era Blaindi que esclarecia a Pou de que maneira uma simples atividade pode levar a gente para sei lá aonde meu deus.

Blaindi vislumbrou que talvez as pessoas que liam mudavam de página depois de passar por um determinado número de respirações que, por sua vez, era dado pelas batidas do coração já que Clinton Blaindi jamais aprendera a contar por números e muito menos entender o tempo por relógios. Passava por um processo mental não discursivo naquela estranha atividade de inspiração e expiração entendida por ele como leitura e, em plena quarta-feira anuviada, experimentou, de repente, um vazio iluminador, um êxtase quase místico e um soltar de sua alma.

Blaindi entendeu por quê um Sol de meio dia não faz sombras, assimilou-as sem nunca ter sentido a luz. E visualizou pipas coloridas na página quarenta e sete. Nuvens intateáveis e estrelas-grãos-de-feijão suspensas no ar. Meu deus como era bom ler. Clinton Blaindi que havia apreendido o tamanho do mundo com a ajuda das pipas de Pou quis lhe descortinar o Universo.

Vem, Pou, vou ensinar pra tu o caminho.

E assim, lá na Rocinha, ainda hoje, esses dois rapazes experimentam dessabendo um estado de cessação completa do sofrimento pela leitura da eterna graça alcançada somente pelos monges budistas do Tibet.

A difícil arte de realizar

A difícil arte de realizar

Por Adriana Vitória

Existe a ilusão de que tudo é fácil pra quem cria seja lá o que for.
Não posso responder por todos, mas no que me diz respeito, sou movida pela paixão intensa que sinto pela exuberância da natureza deste mundo, pela absurda complexidade e diversidade existente e pelos meus ideais quase utópicos de transformar a dor em alegria de viver.

Tudo isso gera uma nuvem que paira, quase que permanentemente, sobre minha cabeça. Imagens e palavras caem sobre mim como chuva. As vezes vem em gotas e montar o quebra cabeça fica por minha conta. Outras vem como uma tempestade, prontas e rápidas, o que gera ansiedade. Se não colocar rapidamente no papel, elas secam.

O ato de criar é solitário. Feito a partir de uma observação constante de tudo ao seu redor, é ver através, ler as emoções escondidas nas palavras, as dores por trás das cores, das formas e dos sorrisos amarelos, mas, sobretudo, estar em contato constante com o que há de melhor e pior em você: suas dores, seus amores, sem devaneios, sem distrações ou qualquer artifício que mascare quem você é e o que sente de fato.

Este processo constante também pode ser duro e é preciso esforço pra não ficar julgando. É preciso cuidar pra não se transformar em seu próprio carrasco ou se tornar um esquizofrênico, uma vez que não há ninguém pra compartilhar sua “loucura”.

A arte existe para ser consumida, tocada, sentida, ouvida, e é aí que a dificuldade aparece. Tornar o ideal em algo palpável, um “produto” que dê, além da estética e da alegria, uma utilidade para que as pessoas possam partilhar de todo o processo.

Foi pensando nisso que a Josie (Conti outra) me propôs pensarmos juntas em viabilizar algo com a minha arte. Melhor do que eu, ela sentiu que as pessoas queriam fazer parte disso quando compartilhava meus desenhos.

Sabíamos que não seria fácil, afinal, somos brasileiras, vivemos em um país nepotista que não privilegia quem luta e conquista, a duras penas, um lugar ao sol sem contar com nenhum apoio, mas não imaginávamos que seria tão difícil.

Foram longos dois anos de superação de obstáculos, tentativas e erros até chegarmos nas primeiras cadernetas hoje disponíveis na loja da CONTI online. Determinadas, burras ou insistentes, seja lá o adjetivo que queiram nos dar, aqui estamos, ofertando o que há de melhor em nós.

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Adriana Vitória : colunista Conti outra

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Mineira de alma e carioca de coração, a artista plástica, escritora e designer autodidata Adriana Vitória deixou Belo Horizonte com a família aos seis meses para morar no Rio de Janeiro. Se profissionalizou em canto, línguas e organização de eventos até que saiu pelo mundo sedenta por  ampliar seus horizontes. Viveu na Inglaterra, França, Portugal, Itália e Estados Unidos. Cresceu em meio à natureza, nas montanhas de Minas, Teresópolis, Visconde de Mauá, e do próprio Rio. Protetora apaixonada da Mata Atlântica e das tribos ao redor do mundo, desde a infância, buscou formas de cuidar e falar deste frágil ambiente e dos seres únicos que nele vivem. Página oficial- Adriana Vitória

Quási, por Mário de Sá-Carneiro

Quási, por Mário de Sá-Carneiro

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse àquem…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dôr! – quási vivido…

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim – quási a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo… e tudo errou…
– Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim… –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Momentos d’alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ansias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indicios…
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sôbre os precipícios…

Num impeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

Um pouco mais de sol – e fôra brasa,
Um pouco mais de azul – e fôra além.
Para atingir, faltou-me um golpe de aza…
Se ao menos eu permanecesse àquem…

Mário de Sá-Carneiro, in ‘Dispersão’

contioutra.com - Quási, por Mário de Sá-Carneiro
Andrew Wyeth

 

A epidemia do medo

A epidemia do medo

José Eduardo Agualusa 

Quando em Agosto escrevi neste mesmo espaço sobre a epidemia de Ébola, ainda os países ocidentais não pareciam muito preocupados. A situação alterou-se nas últimas semanas, após os primeiros casos de contágio nos Estados Unidos e na Europa. O ocidente despertou. Receio, contudo, que o clamor mediático em curso possa vir a gerar uma outra epidemia – uma epidemia de terror! – capaz de afectar África no seu conjunto, e por muito tempo.

Nos últimos dias, venho escutando episódios desagradáveis envolvendo cidadãos africanos em viagem. Também escutei histórias de europeus que se recusam a viajar para países africanos, ainda que estes se localizem muito longe do foco da epidemia. De resto, como todos sabemos (mas os europeus parecem não saber), é mais fácil circular entre a Europa e África do que dentro do nosso próprio continente. Há muito mais probabilidades de que o vírus chegue primeiro a Lisboa do que a Luanda. Se chegar a Lisboa, então sim, devido às frequentes ligações aéreas, corremos o risco de que surja pouco depois em Luanda. No mundo de hoje, as distâncias já não se medem em quilómetros, mas no número de ligações aéreas. Nos próximos meses, se não for possível conter o vírus, o aeroporto de Frankfurt será um lugar muito mais perigoso do que é (ou parece ser) nos dias de hoje a capital da Serra Leoa, Freetown.

Morreram até agora perto de quatro mil pessoas. Este número, contudo, perde força se comparado com as catastróficas previsões para os próximos meses. À medida que o número de vítimas for crescendo, e, em particular, o número de vítimas fora do continente africano, é de esperar que o ambiente de medo alastre, e que o preconceito alastre de braço dado com o medo.

Na última década vários países africanos conseguiram ultrapassar um desgastante ciclo de conflitos internos. Alguns vêm dando passos para uma democracia autêntica. Todos os estudos reconhecem que o continente avançou na luta pelo desenvolvimento. A actual epidemia de Ébola – e o surto de medo a ela associado – ameaçam estas ainda frágeis conquistas.

A pandemia de medo pode atingir desde logo os países com melhor estrutura turística, os quais, não por acaso, são também os mais democratizados e desenvolvidos do continente, como Cabo Verde, a Maurícia, a Namíbia ou a África do Sul. Também muitos grandes negócios podem ficar comprometidos. Em última análise, o actual surto de medo pode comprometer a entrada de imigrantes qualificados e o regresso dos quadros técnicos de que o continente tanto necessita. As consequências, a médio e a longo prazo, seriam devastadoras.

O desafio que temos pela frente, pois, envolve tanto o combate à doença quanto ao medo dela.

Desde logo parece-me importante tentar romper com a identificação perversa entre o Ébola e África. Sim, o vírus do Ébola foi pela primeira vez identificado num pais africano – mas o Ébola não é África! Além disso, África não é um país, e sim um continente imenso e extremanente diverso.

Por outro lado, é preciso que os governos de todos os países do mundo expliquem aos seus cidadãos em que consiste a doença e os modos de a prevenir. A ignorância é a mãe do medo. Ainda me recordo do tempo em que as pessoas não escondiam o terror de conviver com quem quer que fosse que tivesse contraído o vírus da Sida. Na época medieval, na Europa, os leprosos eram expulsos à pedrada das cidades e das terras férteis e caso se aproximassem de uma povoação tinham de se fazer anunciar tocando sinos e pandeiros. Não podemos permitir que estes tempos regressem.

Fonte: Rede Angola

Pássaro com asas de âncora

Pássaro com asas de âncora

Fabrício Carpinejar
Posso jogar fora nossas fotografias, posso jogar fora poemas, posso jogar fora nossos objetos em comum, posso jogar fora nossos lugares prediletos, posso jogar fora nosso dialeto, posso jogar fora nossos rituais, posso jogar fora, acredite, posso jogar, mas não consigo jogar fora o jeito bonito que lhe amei. Olho para o meu amor por você e não consigo descartar. O meu amor por você era tão bonito.

Eu lhe amei como nunca amei ninguém. Como apagar, como esquecer, como fingir que não faz parte de mim?

Eu lhe amei com toda a minha devoção, antecipava voos para ganhar alguns minutos ao seu lado. Eu lhe amei com todas as surpresas que poderia inventar. Eu modificava minha agenda para lhe oferecer carona. Eu não reclamava de me acordar antes para preparar seu café. Você pedia, eu fazia. Você balbuciava, eu fazia. Você duvidava, eu fazia.

Derramei bilhetes pela casa, derramei gérberas pela casa, derramei roupas pela casa.

Não tive outra prioridade senão sua felicidade, mesmo que isso custasse minha paz.

Briguei demais pela nossa relação. Cada nova separação era uma esperança que voltássemos melhor.

Eu lhe amei com os sentimentos bons e ruins. Eu lhe amei com minha fé. Eu lhe amei com minha dor. Eu lhe amei com os meus traumas. Eu lhe amei com meus dramas. Eu lhe amei com minha amizade. Eu lhe amei com meu ciúme.

Todas as vezes em que me senti injustiçado, lhe ofendi para ver se recebia seu perdão.

Todas as vezes em que acabei a relação, sonhava com seu retorno.

Quis ser indispensável mais do que justo.

Eu pedi desculpa, insisti, enlouqueci. Fui um idiota, um sábio, um obstinado, um ingênuo, um ridículo. Fui até eu mesmo. Fui um pássaro com asas de âncora: rastejava pelo ar.

Só desejava ser seu, só desejava que fosse minha.

Rezava para que a saudade viesse, imponderável, suplicante, definitiva.
Nunca pensei minha vida sem você. Mesmo o meu pior procurava estar casado com você.

Até o último momento, busquei desarmá-la com a emoção. O último gesto redimiria qualquer desavença. O último gesto seria a entrega irrestrita. Um sim sonoro seria suficiente para combater as negativas sussurradas por dentro.

Empenhei tantas metamorfoses que não lembro o que entreguei. Eu me adaptava, voltava atrás, recuava, regredia, fingia segurança, simulava racionalidade, parava de fazer brincadeiras.
Por você, combatia os amigos, o mundo, a família.

Aguentei seus surtos, seus sustos, suas agressões, suas humilhações, seu deboche, suas alternâncias, sua mudança de opinião, aguentei você me deixando plantado no restaurante, nos bares, na rua, aguentei seus gritos, suas unhas, seus dentes.

Não fugi de conversar. Nunca deixei de atender um telefonema, nunca desliguei em sua cara, nunca deixei uma mensagem sem resposta.
Até o último momento, até depois do último momento, demonstrei que amava.

Não disfarcei, não omiti o que sentia. Disse com todas as palavras e todos os silêncios, para não gerar dúvidas.
Você não entendeu que eu lhe amei bonito.

E meu amor bonito não é meu, é seu. Não ficou comigo. O amor não é uma propriedade de quem sente, é uma transferência total para quem é amado. Assim como uma carta é de quem lê, não de quem mandou.

Espero que você não tenha jogado fora.

contioutra.com - Pássaro com asas de âncora

Publicado no site Vida Breve, cuja leitura recomendamos.

Amores e cartas extraviadas

Amores e cartas extraviadas

Por Patrícia Dantas

Cartas se perderam no tempo. Ninguém escreve mais cartas como antigamente. Se temos hoje como enviar uma mensagem que pode chegar ao destinatário no momento real do envio, como escrever cartas a alguém só para manter a tradição, o cheiro do papel tirado do envelope e a ansiedade da espera para logo obter uma resposta?

Já não podemos mais escrever no anonimato? Cadê àquelas cartas endereçadas, mas sem o nome do remetente? Cadê o escritor anônimo por trás de toda àquela trama, que nem Sherlock Holmes ou Aghata Christie desvendaria tão fácil? Tudo precisava de uma investigação a fundo da história de todos os envolvidos. Roteiros tão originais, dignos de filmes policiais que, ao final, emendaria outras tramas de intensa atividade dos sentidos.

Acontece assim também com nossos amores extraviados. Pessoas, relacionamentos esquecidos, ou deixados no meio do caminho. Coisas que caem no absurdo do esquecimento; pessoas que não necessitamos da presença em todas as horas, como se tivéssemos um time para chamá-las bem na hora das nossas consultas emocionais. Claro, há pessoas, amigos e amantes para horas e momentos específicos; pessoas que não exigem que todas as nossas horas sejam devotadas a elas; pessoas que entendem nossa solidão, nosso afastamento quando necessário; pessoas que entendem as nuances da solidão e quando tudo à volta está em festa e exige maior presença.

Mas existe outro meio que pede um olhar mais apurado e cuidadoso: são nossas palavras durante cada encontro, durante cada um momento de festa que nos encontramos com pessoas que talvez nem vejamos mais ou que se ausentarão sem maiores explicações. E esses encontros acontecem para nos mostrar o real valor da pessoa como pessoa-palavra, pessoa-afeto, pessoa-pessoa.

Que nossos amores e palavras não sejam extraviadas, que sobrevivam às menores lembranças. Porque um necessita do outro para não cair no esquecimento ou simplesmente dentro da saudade flutuante no tempo. Dizer, gravar a palavra no outro é o modo de viver um sentimento em tempo real, descrevê-lo e deixar algo na eternidade.

contioutra.com - Amores e cartas extraviadas

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