A regra fundamental de vida, por José Saramago

A regra fundamental de vida, por José Saramago

Quando nós dizemos o bem, ou o mal… há uma série de pequenos satélites desses grandes planetas, e que são a pequena bondade, a pequena maldade, a pequena inveja, a pequena dedicação… No fundo é disso que se faz a vida das pessoas, ou seja, de fraquezas, de debilidades… Por outro lado, para as pessoas para quem isto tem alguma importância, é importante ter como regra fundamental de vida não fazer mal a outrem.

A partir do momento em que tenhamos a preocupação de respeitar esta simples regra de convivência humana, não vale a pena perdermo-nos em grandes filosofias sobre o bem e sobre o mal. «Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti» parece um ponto de vista egoísta, mas é o único do género por onde se chega não ao egoísmo mas à relação humana.

José Saramago, in “Revista Diário da Madeira, Junho 1994”

Via Citador

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Quero ser Bruno Mars (para compensar a dureza dos tempos)

Quero ser Bruno Mars (para compensar a dureza dos tempos)
Por Adriana Vitória
Sempre pensei que custasse o que custasse, todo ser humano tinha que tentar viver de acordo com os desejos do seu coração. Não poderia nem passar pela minha cabeça fazer algo a contragosto. Obviamente que fiz. Faz parte da vida ter que lidar com situações em momentos de necessidade e crescimento, mas assim que pude, corri pra estrada que meu coração mandava. Essa estrada era a música.
Nasci cantando. Viver sem isso era como morrer lentamente. Em tempos sombrios, nebulosos ou de sol, aqueles, sem nenhuma dúvida, eram meus melhores momentos. As aulas, os estúdios, os ensaios e as apresentações.

Bom, nem tudo eram flores, claro! O caminho da autonomia é um caminho árduo, que dirá para quem escolhe a arte como meio de vida, mas nada, nada poderia substituir aquilo.

Muitas coisas vivi de lá pra cá, e a música foi se distanciando do meu cotidiano por N motivos, mas sinto um vazio cada vez que assisto a um show. Como se algo me corroesse por dentro e a alma me cobrasse esta alegria.

Me lembro da minha avó que foi violinista dos 8 aos 87 anos.

Ela era spalla do Conservatório de Música e da Orquestra da Escola Nacional de Música. Aos 80 ficou viúva. Fiquei preocupada achando que não iria resistir muito tempo sem meu avô, mas eis que o violino a salvou.

Aos 87 a obrigaram a se aposentar, daí em diante vi seu declínio lento e doloroso. Viveu até os 99 e foi perdendo a memória aos poucos. Nunca mais teve interesse na vida. Sua maior preocupação diante da morte, me dizia: Será que tem música no céu ?

– Espero que sim. Eu sempre respondia.

Não se abandona algo que se ama. Se a felicidade tem um preço, então temos que pagar por ela.

Nunca deixei de estar atualizada no que diz respeito a música e de um ano pra cá, Bruno Mars me fascina. O homem canta, dança, compõe, toca guitarra, bateria e piano como ninguém, ninguém.

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O tempo voa. Se voa ! Ao longo dos anos também me tornei artista plástica e escritora. Hoje tenho uma família muito louca, verdade, mas maravilhosa. Vivo acumulada de trabalho vivo em um Brasil de poucas oportunidades mas, nunca se sabe o dia de amanhã. Ainda tenho tempo. Mas se não for desta, na próxima, quero ser Bruno Mars : )

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‘O tempo passou e eu vivi sem viver’, diz pernambucano de 84 anos sobre a vida

‘O tempo passou e eu vivi sem viver’, diz pernambucano de 84 anos sobre a vida

Por Gabriela Gasparin

“Eu passei a vida toda trabalhando, entendeu? Sempre cumpri com minhas obrigações e sempre fui perseguido sem fazer nada de errado, só fazendo o bem. Por isso, o tempo passou e eu vivi sem viver, entendeu? Responsabilidades.”

A frase acima é do pernambucano Edvaldo Veras, de 84 anos. O depoimento dele, que aconteceu naturalmente, sem eu pedir, é para mim um dos mais impactantes (e reflexivos) que já escutei desde que comecei a escrever “sentidos da vida” no blog Vidaria.

Por causa do tom “amargo” de sua história, eu ponderei antes de publicá-la. Certo dia, porém, minha amiga Vanessa, com quem eu estava quando o encontramos em uma viagem, perguntou se eu não ia escrever a história dele. Aí eu pensei, por que não?

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Cartão que Vanessa guardou da loja ‘Tempo’, onde Edvaldo acrescentou um ‘S’ no final

Curiosamente Edvaldo, que acredita não ter aproveitado a vida, é dono de uma loja de antiguidades chamada “Tempo”. Minha amiga Vanessa, que guardou o cartão dele até hoje, diz: “Chama ‘Tempo’. Mas ele fez uma rasura em todos os cartões e acrescentou com caneta um “s” no final. “TempoS”. Sabe-se lá quantos tempos a gente tem na vida.”

Foi meio sem querer que eu e minha amiga Vanessa fomos parar dentro da lojinha do afogadense (ele nasceu em Afogados da Ingazeira- PE). “Turistávamos” pelo Recife Antigo quando ela parou para fotografar um homem que estava sentado em frente à loja. Edvaldo estava do lado, puxou papo e nos convidou para conhecer o estabelecimento.

Entramos pela porta estreita da lojinha e demos de cara com um “corredor” escuro, cheio de objetos que um dia já foram úteis para alguém, mas hoje acumulam pó dentro do comércio: porcelanas, abajures, copos, relógios, telefones antigos, estatuetas e tudo o mais que você pode imaginar.

Enquanto nos mostrava as mercadorias, Edvaldo começou a desabafar: “Isso aqui eu acumulei a vida toda. Sempre gostei de colecioná-los”. Contou que se casou com uma mulher jovem e disse que prometeu para sua mãe que cumpriria com as obrigações do casamento.

Nos cerca de 15 minutos que fiquei com minha amiga na lojinha de Edvaldo, ele contou toda sua história e, em tom amargo, lamentou a vida que levara.

Disse que sempre foi funcionário público. Após a aposentadoria, abriu a lojinha para vender e se desfazer de objetos que guardou e colecionou por toda a vida, mas que já não faziam mais sentido. Revelou que o casamento o prendia, mas que cumpria as obrigações do matrimônio. Insistia muito na tecla de ter passado os anos cumprindo obrigações. “O maior problema sempre é a responsabilidade que Deus me deu e eu vou morrer com ela.”

Eu e minha amiga deixamos o local e nos despedimos de Edvaldo. Quando já estávamos na calçada adiante eu comentei com ela: “nossa, que história triste, né? Até pensei em perguntar para ele o sentido da vida, mas não sei se devo”. “E por que não?” – ela respondeu.

Voltamos e eu, com o gravador em mãos, ouvi a resposta de Edvaldo Veras sobre o sentido da vida:

“Eu acho que a gente, quando nasce, a vida da gente já está traçada, tudo o que você vai passar. Não adianta você subir uma ladeira se você não tem condições de subir, se você está cansado. Você insistir. O que você não nasceu para ter você não terá nunca, não adianta insistir. Muitos fracassos insistem embora você tenha… E assim é a vida. Para mim, naturalmente, não tem mais sentido, não. Cheguei aos 84 anos de idade, agora é esperar que Deus me chame.”

– O senhor acredita em destino?

“Eu acho que é. O destino faz parte também… Cada um nasce com um temperamento diferente, você tem as responsabilidades. Tem uns que não ligam para nada, levam a vida à vontade e vivem. E outros são responsáveis demais, e não vivem.”

Vidaria é um projeto parceiro Conti outra.

Japão, o país onde idosos preferem a rotina da prisão a ficar sozinhos em casa

Japão, o país onde idosos preferem a rotina da prisão a ficar sozinhos em casa

NAGASAKI (IPC Digital) – Enquanto muitos países se esforçam para evitar que as pessoas entrem nas prisões, o Japão tenta convencer alguns de seus idosos a deixá-las.

O número de crimes praticados por idosos quase quadruplicou nos últimos 20 anos. Hoje, a cada cinco pessoas presas no Japão, uma tem mais de 60 anos de idade. Com o crescente número de idosos presos, muitas penitenciárias estão se transformando em verdadeiros asilos.

Não é difícil convencer um jovem que a prisão pode roubar muitos anos produtivos de sua vida, mas para os idosos, já quase no fim de suas vidas, o “conforto” e a rotina da cadeia pode ser melhor do que a solidão da liberdade.

O jornalista Kanoko Matsuyama, da rede Bloomberg, ouviu um idoso de 67 anos que está cumprindo pena na penitenciária de Nagasaki pela décima quarta vez, por furto. Sem família ou amigos, ele será solto em dezembro, mas os assistentes sociais da prisão já prevêem o seu retorno.

Muitos idosos no Japão cometem pequenos furtos em supermercados e lojas de conveniência na esperança de serem flagrados e levados pela polícia. “Eles não fazem questão de esconder que estão roubando e, muitas vezes, saem do supermercado mostrando o produto furtado para a câmera de segurança”, disse Takeshi Higashi (51), brasileiro morador de Osaka, que trabalha em um supermercado da cidade e que já presenciou a prisão de idosos por furto.

“As prisões do Japão estão em mau estado. A maioria não tem aquecimento ou ar-condicionado”. disse Koichi Hamai, professor de criminologia da Universidade de Ryukoku, à Bloomberg. “Mesmo assim, eles preferem ficar na prisão, onde encontram companheiros, alimento e são bem tratados.” completou.

O Japão gasta ¥3,2 milhões por ano para manter um presidiário, segundo cálculos do Ministério da Justiça. Esse valor é o dobro do que gasta uma pessoa para se manter, relativamente bem, fora da prisão. Com o envelhecimento dos detentos, esse valor tende a aumentar em decorrência do custo de cuidados médicos e alimentos especiais, necessários para atender as necessidades dos idosos.

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Fonte indicada: IPC digital, o portal dos brasileiros no Japão

“Via Láctea”, um poema para quem ama ouvir as estrelas

“Via Láctea”, um poema para quem ama ouvir as estrelas
Foto de Ines Rehberger

Via Láctea

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

Olavo Bilac

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Foto de Ines Rehberger

“Eu”, um poema comovente de Florbela

“Eu”, um poema comovente de Florbela
Amy Judd

Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada … a dolorida …

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!.

Sou aquela que passa e ninguém vê …
Sou a que chamam triste sem o ser …
Sou a que chora sem saber porquê …

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca, in “Livro de Mágoas”

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Amy Judd

“As sem-razões do amor”, afinal, por que explicar o que está acima de toda e qualquer razão?

“As sem-razões do amor”, afinal, por que explicar o que está acima de toda e qualquer razão?

As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade

(Poema publicado no livro “Amar se aprende amando” Rio de Janeiro: Record. 1985.)

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“O Impossível Carinho”, num transbordar de ternura

“O Impossível Carinho”, num transbordar de ternura

O Impossível Carinho

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
-Eu soubesse repor_
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

Manoel Bandeira 

 Poema publicado no livro “Os Melhores Poemas de Manuel Bandeira”, de Org. Francisco de Assis Barbosa, 1984.

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Elena Karneeva

 

Hoje tomei a decisão de ser eu, por Fernando Pessoa

Hoje tomei a decisão de ser eu, por Fernando Pessoa

Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, de viver à altura do meu mister, e, por isso, de desprezar a ideia do reclame, e plebeia sociabilizacão de mim, do Interseccionismo, reentrei de vez, de volta da minha viagem de impressões pelos outros, na posse plena do meu Génio e na divina consciência da minha Missão. Hoje só me quero tal qual meu carácter nato quer que eu seja; e meu Génio, com ele nascido, me impõe que eu não deixe de ser.

Atitude por atitude, melhor a mais nobre, a mais alta e a mais calma. Pose por pose, a pose de ser o que sou.
Nada de desafios à plebe, nada de girândolas para o riso ou a raiva dos inferiores. A superioridade não se mascara de palhaço; é de renúncia e de silêncio que se veste.
O último rasto de influência dos outros no meu carácter cessou com isto. Reconheci — ao sentir que podia e ia dominar o desejo intenso e infantil de « lançar o Interseccionismo» — a tranquila posse de mim.
Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci.

Fernando Pessoa, ‘Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação’

Via Citador

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Pintura em azulejos com base no retrato de Fernando Pessoa realizado por Almada Negreiros – Salão Nobre da Universidade Fernando Pessoa, Porto – PORTUGAL

Se me esqueceres, poema de Pablo Neruda

Se me esqueceres, poema de Pablo Neruda

Quero que saibas
uma coisa.

Sabes como é:
se olho
a lua de cristal, o ramo vermelho
do lento outono à minha janela,
se toco
junto do lume
a impalpável cinza
ou o enrugado corpo da lenha,
tudo me leva para ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz, metais,
fosse pequenos barcos que navegam
até às tuas ilhas que me esperam.

Mas agora,
se pouco a pouco me deixas de amar
deixarei de te amar pouco a pouco.

Se de súbito
me esqueceres
não me procures,
porque já te terei esquecido.

Se julgas que é vasto e louco
o vento de bandeiras
que passa pela minha vida
e te resolves
a deixar-me na margem
do coração em que tenho raízes,
pensa
que nesse dia,
a essa hora
levantarei os braços
e as minhas raízes sairão
em busca de outra terra.

Porém
se todos os dias,
a toda a hora,
te sentes destinada a mim
com doçura implacável,
se todos os dias uma flor
uma flor te sobe aos lábios à minha procura,
ai meu amor, ai minha amada,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga nem se esquece,
o meu amor alimenta-se do teu amor,
e enquanto viveres estará nos teus braços
sem sair dos meus.

Pablo Neruda, in “Poemas de Amor de Pablo Neruda”

Via Citador 

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Vincent Van Gogh

Sobre Viver , por Diego Engenho Novo

Sobre Viver , por  Diego Engenho Novo

Por Diego Engenho Novo

Para sobreviver, abra os olhos. Para viver, acorde. Logo em seguida, levante-se. Mas se o plano é viver, dê para si aqueles cinco minutinhos preciosos. Para sobreviver, limpe-se. Se está vivo, banhe-se cantando algo que te lembra infância. Escove bem os dentes, seja rápido, mas incisivo. Se prefere viver, faça caretas, desmascare as rugas novas, desmascare a si mesmo. Você pode sentir o cheiro e as cores das coisas que come, ou se contentar em respeitar as calorias. Quem vive, alimenta também a alma. Quem sobrevive, come.

Seja bom em alguma coisa na vida ou somente arrume um trabalho. Para sobreviver, seja prático. Para viver, prefira ser verdadeiro. Tenha piripaques pouco antes das reuniões. Reunião não é coisa de gente que vive. Mande mensagens durante o dia. Se você é sobrevivente, envie cobranças: de organização, de afeto, de dinheiro emprestado. Se você está vivo, prefira frases assanhadas, dê bom dia para um amigo que você nem sabe se mantém aquele mesmo número antigo, passe trotes inofensivos para a pobre da sua mãe, como dizer que o Palmeiras perdeu, e depois riam juntos.

Para sobreviver, vá sempre ao mesmo bar em que você já conhece as pessoas, o atendimento e o cardápio de cor. Se você está vivo será atraído por portinhas e turista da cidade em que sempre viveu. Quem sobrevive tolera gente que incomoda, porque sabe que um dia vai precisar delas. Quem vive incomoda quem só o tolera e não tem muito tempo para discutir quem tem o carro melhor. O carro melhor é o seu, ora bolas! Leve a gente pra passear.

Quem sobrevive, tem uma imagem a zelar. Quem vive, é livre dela. Quem sobrevive, mantém o curso da vida mesmo relativamente infeliz. Quem vive, jamais sobreviveria com a desconfiança de que lá na frente pode acabar não sendo feliz. Tem casamento que sobrevive. Mas amor, a gente sabe bem: ninguém sobrevive um amor. Amor a gente vive. E assim será: quem sobrevive, é. Quem vive, está. Quem sobrevive, tem. Quem vive, dá. Quem sobrevive, se culpa. Quem vive, perdoa-se. Quem sobrevive, busca a beleza, mas só quem vive a encontra.

Grandma (Oma), animação sobre o processo de superação da morte da avó

Grandma (Oma), animação sobre o processo de superação da morte da avó

Grandma (Oma) é um curta de animação, dirigido por Karolien Raeymaekers, que retrata a história de uma menina que tem de dominar o seu medo em relação à iminente perda da sua avó que está gravemente doente.

Permeada por delicadeza e um toque de suspense, a animação mostra as sutilezas da relação única entre avó e neta e o fantasma da morte e da perda.

Sozinha a criança enfrenta o luto em um processo de desbravamento do ciclo da vida. É preciso encarar o medo para que as sombras se dissipem e o sol volte a brilhar.

Josie Conti

Grandma (Oma) from Cartoon Brew on Vimeo.

E quando a família não consegue cuidar do seu ente querido em casa?

E quando a família não consegue cuidar do seu ente querido em casa?

Por Marcela Alice Bianco e Josie Conti

Em algum momento da vida de nossas famílias precisaremos lidar com o adoecimento e a dependência temporária ou permanente de um de nossos entes queridos. Tal evento configura-se como um período de crise, o qual exige adaptação às novas demandas individuais e familiares como um todo. A primeira decisão a ser tomada é quem irá assumir os cuidados e se isso ocorrerá dentro ou fora do ambiente familiar.

Momento permeado por uma variedade de sentimentos, que, dependendo de como a família está estruturada, pode ser mais ou menos estressante. Cuidar de um outro ser humano exige um grau de desprendimento que nem todos são capazes de ter, ora por características pessoais, ora por falta de disponibilidade.

“A evolução da doença leva todos ao limite, roça todos os sentimentos e chega a colocar em causa alguns afetos. A perda de dignidade é obscenamente evolutiva e depressa chega ao ponto da ruptura. O internamento é tão inevitável quanto doloroso, tão necessário quanto adiado ao limite.”
Sónia Bigodes, em “O meu pai tem Alzheimer”

Diferentemente do que ocorria no passado, em que as famílias eram maiores e o cuidado mútuo entre os membros era algo comum e cultivado geração após geração, vivemos um momento de diminuição do tamanho das famílias, com papéis mais dinâmicos e flexíveis, sendo que a mulher que antes assumia o cuidado da família, também está, na maioria das vezes, no mercado de trabalho. Múltiplas questões que afetam a disponibilidade para o cuidado e que limitam o número de cuidadores em momentos de crise.

Assim, muitas vezes, quando a família assume inicialmente o cuidado de alguém doente, a responsabilidade recai sobre um ou poucos membros, que são chamados de cuidadores principais.

Estes dividem as responsabilidades sobre o cuidado físico, emocional e material do dependente, em detrimento de suas próprias necessidades individuais. Quando esse cuidado é intenso e transcorre ao longo dos anos é que os cuidadores principais se percebem, em algum momento, cansados, estressados e exauridos em sua capacidade de cuidar.

Quando alguém adoece não há datas e “O tempo se torna opressivo quando a liberdade acaba e nossa esperança deixa de existir. Quando vivemos naquele tipo de infelicidade diária, começamos a pensar que o tempo nos oprime.” filósofo Mauro Maldonato, falando sobre o tempo.

As dificuldades encontradas no papel do cuidador surgem de diversas fontes: isolamento social dentro e fora da família, perda de liberdade, privacidade e tempo de lazer; necessidade de adaptação do ambiente doméstico ou até mudanças de moradia; conflitos familiares em consequência do papel do cuidador e da situação de cuidado; exigências do doente ou dos demais familiares; insegurança em relação ao cuidado oferecido (se é correto ou não) e falta de informações sobre a duração do comprometimento assumido, que pode perdurar até o falecimento de quem está sendo assistido.

“Para quem cuida, a maioria das necessidades pessoais passa para o segundo plano. São raríssimos os casos onde é possível dividir as funções entre pessoas próximas e manter alguma qualidade de vida. Também pode existir a intensificação de conflitos de relacionamento quando o doente e o cuidador já não tinham uma relação pessoal amistosa. Ao contrário da simplificada ideia do doente como vítima, há o contraponto de aspectos psiquiátricos que podem ser agravados pela limitação e pela revolta com relação à dependência e à nova situação de necessidade cuidados. Um doente pode escravizar toda uma família e torná-la, em diferentes aspectos, tão doente quanto ele.”

Nestes períodos, seria necessário avaliar quais os recursos pessoais e financeiros disponíveis para lidar com a situação. De um lado é possível lançar mão de estratégias de enfrentamento dentro da própria família. A contratação de um cuidador formal para auxiliar os cuidados no domicílio, a redistribuição dos cuidados entre os membros da família, o investimento no autocuidado para diminuir o estresse e manter um maior nível de qualidade de vida, a busca por informações e conhecimentos que auxiliem no cuidado. Entretanto, a urgência das circunstâncias e a cronicidade da doença podem fazer com que esse pensamento estratégico nunca seja colocado em prática. O mais comum é que um ou dois membros da família assumam desmedidamente todas as responsabilidades, tendo como resultado um processo cumulativo de desgaste e exaustão.

Quando, entretanto, as necessidades de cuidado físicos e emocionais extrapolam as capacidades  de um núcleo familiar, existe a real necessidade de avaliar a possibilidade de terceirizar os cuidados, por meio de instituições especializadas que podem ser um caminho que os familiares encontram para oferecer o suporte necessário ao familiar dependente.

Cuidar é um ato de amor, reconhecer os próprios limites também. E, com o passar do tempo, abrir mão de ser o cuidador pode ser a maior gentileza de alguém para consigo mesmo e para com o doente. Atos assim evitariam maus tratos dentro da casa e a total deterioração das relações.

No imaginário social, esta decisão é, muitas vezes, permeada de crenças e tabus que precisam ser discutidos mais abertamente, evitando reações preconceituosas ou sentimentos de culpa e remorso dos familiares que tomam essa decisão.

As clínicas destinadas aos cuidados, sendo os asilos ou clinicas de repouso, ainda são estigmatizadas por nossa cultura e, mesmo na mídia, como acontece com outras matérias, o enfoque é sempre para situações isoladas de maus tratos e negligência. Os aspectos saudáveis como a assistência 24 horas, uma equipe de enfermagem que trabalha em turnos e o tratamento humanizado nunca são veiculados. E nem é preciso dizer que o mesmo pensamento acontece com relação às instituições psiquiátricas.

Inúmeras pesquisas mostram que o estresse do familiar afeta negativamente a própria saúde e a qualidade dos cuidados oferecidos ao dependente. Cuidadores estressados e desgastados ou que não possuem os recursos necessários para atender as necessidades da tarefa podem agravar a situação do doente ao invés de contribuir para sua saúde.

Inúmeras pesquisas mostram que o estresse do familiar afeta negativamente a própria saúde e a qualidade dos cuidados oferecidos ao dependente. Cuidadores estressados e desgastados ou que não possuem os recursos necessários para atender as necessidades da tarefa podem agravar a situação do doente ao invés de contribuir para sua saúde.

 

Em alguns casos, a determinação da família pela institucionalização é taxada como negligência, falta de amor, zelo ou vontade dos familiares em cuidar do ente adoecido. Porém, precisamos pensar que, apesar de realmente haver descaso e abandono em certezas situações, muitas famílias, ao contrário, tomam essa decisão exatamente por desejarem o melhor ao familiar dependente. Ter a coragem e disposição para procurar ajuda externa pode ser também um ato de amor!

Clínicas de qualidade são abertas à visitação familiar em qualquer horário e algumas delas possuem até sistema de monitoramento por câmera que os familiares podem acessar de suas casas. A família deve ter claro, também, que colocar o familiar em uma instituição não precisa afastá-lo do contato frequente.

Quando inseridos em instituições sérias e eficientes, realmente comprometidas com o bem-estar e a qualidade do suporte oferecido, o ser cuidado pode receber um tratamento e acolhimento necessários para a manutenção da sua vida, com preservação do afeto e dos vínculos familiares além de ser inserido em atividades grupais e terem contato com outras pessoas que vivem situações semelhantes podendo ampliar seus vínculos sociais e de afeto.

E nesse processo de cuidado fora da família, podemos encontrar verdadeiros “anjos da guarda”. Pessoas que possuem o dom de cuidar com dedicação, carinho e técnica. Que oferecem ao paciente e a família o acalanto e o alívio num momento de profunda dor e crise.

Nos últimos meses de vida, quando os cuidados com o meu tio em casa tornaram-se muito complexos e as relações afetadas pelo desgaste e pela personalidade forte dele, a opção por internação em uma Clínica foi a melhor decisão que pudemos tomar. Nunca é fácil e há a necessidade de uma fase de transição e adaptação, mas a vinculação progressiva de meu tio com os profissionais e os cuidados que ele obteve na Clínica Recanto dos Anjos, de Atibaia, interior de São Paulo, foi impressionante. Além da amizade com os donos e funcionários, a quem, mesmo com a dificuldade causada pelo quadro de demência que se instalara, memorizava os nomes.

Meu tio, após nossas visitas de domingo e segunda, faleceu na terça feira nos braços da enfermeira Bete, uma das que ele mais estimava e que o tratava com imenso carinho.  Outro amigo que fez foi o Gê, a quem ele chamava o tempo todo e que o levava para fumar dois cigarros por dia (o vício de uma vida e que provocou seu câncer). Mesmo sendo ex fumante, o Gê, o acompanhava, ajudou-o a reduzir a quantidade de cigarros significativamente e conversava com ele por longos períodos. Em uma das últimas visitas que fizemos neste mês, Gê o carregou nos braços para levá-lo até o hospital, em um ato carinhoso que muitos filhos não são capazes de fazer por seus pais. E isso sem mencionar os demais nomes dos outros profissionais amigos que tão bem nos acolheram nesse período de nossa jornada.  Josie Conti

A esses profissionais cuidadores transmitimos nossa mais profunda admiração e respeito.

E aos familiares que precisam terceirizar os cuidados de um ente querido por amor e zelo, que se sintam acolhidos em suas decisões e amparados em suas angústias e sofrimento. Que não precisem sentir remorso ou culpa pela decisão tomada, pois ela nasceu do mais profundo sentimento de que era o melhor a se fazer.

E, para finalizar, um lindo texto que recebemos ontem a noite…

Uma carta ditada pela alma, por Isabel Sottomayor

Em dada altura da vida, raras vezes, o corpo começa a efetuar desconexões com a alma; quase imperceptíveis. Começa nas pequenas torturinhas de memorização dos ondes, dos quems e dos quandos.

Rigores pouco importantes.

Tão pouco que ninguém se importa. Ou repara ….muito. Apenas eu, no meu ego de super-eficiente, na sua intensificação, por um lado me irrito, mais irascível que estou, com a minha alma, sem saber que a culpa é do meu Corpo, por outro lado, me zango com os outros, com medo que encontrem defeitos na minha Alma, seguindo esse meu preconceito, já como defesa.

Sim, pois ao confundir já, então, a causa com a consequência e, essa, com a circunstãncia, produz-se a imagem de que tudo é apenas temporário.

Mas se permanecesse temporário, faria algo…

A permanência significa, no meu caso, um avanço de estado, ou seja, o meu gradual esquecimento das urgências anteriores, tal como os ondes…. Em simultãneo com o reconhecimento doloroso, pelos outros, dessas ocorrências, são o primeiro dado oficial que temos da separação do Corpo e da Alma. Por culpa do Corpo. Antes, parecia-me que algo de grave se passava de fora para dentro. Mas isso era no início.

Quando afinal era de dentro para fora.

E talvez não fosse tão grave, mas definitivamente não era desejado nem previsto.

A leitura médica fala numa escada descendente. Limite de anos.

Desconforto e sintomas habituais.

Isso é o que se passa com o Corpo e os seus órgãos.

Depois há a Alma!

Carta em que Fernando Pessoa esclarece a origem de seus heterônimos

Carta em que Fernando Pessoa esclarece a origem de seus heterônimos

A genialidade com que Fernando Pessoa teria criado os seus heterônimos, bem como a riqueza poética havida em cada um deles, sempre intriga e instiga-nos à compreensão. A explicação abaixo é do próprio Pessoa e certamente será esclarecedora.

[Carta a Adolfo Casais Monteiro – 13 Jan. 1935]
Caixa Postal 147
Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.

“Meu prezado Camarada:

Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.

Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica, que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe-Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.

Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a «Mensagem» não as inclui.

Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.

Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas — , englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.
Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta — em certo modo secundária — da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português parte deste mesmo livro) — precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.

(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha — e fará bem em supor, porque é verdade — que estou simplesmente falando consigo).

Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.

Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem» , que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista, essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente). Depois — e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia — tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que «Mensagem» já manifestou.

Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo — penso-o com tristeza — pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!
Creio que respondi à sua primeira pergunta.

Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…

Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas… Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo… E tenho saudades deles.

(Em eu começando a falar — e escrever à máquina é para mim falar — , custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

Quando foi da publicação de «Orpheu», foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos — um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão…

Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido — estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido — , diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!

Mais uns apontamentos nesta matéria… Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

Como escrevo em nome desses três?… Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).

Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeiro de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente — o que é facto — que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1881. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a ordem) trechos de Rituais que estão em trabalho.

Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.

Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.

Fernando Pessoa

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