A força de quem venceu a morte e sobre ela impera

A força de quem venceu a morte e sobre ela impera

Conviver com a morte progressiva do que se ama é dor imensurável. Ganhei, há algum tempo, uma planta exuberante. Folhagens longas de um verde intenso que deslumbraram os meus olhos e fizeram com que a minha alma gelasse: e se eu não souber cuidar dela?

Descobri, ao longo dos dias, que sou tão boa cuidadora de plantas quanto tão bem sou capaz de cuidar da minha própria alma. Por falta de cuidados, ela foi desbotando o verde, enquanto a minha alma também empalidecia. Ambas foram perdendo o viço, perdendo o frescor  que as tornava prontas para enfeitarem o mundo. Detive-me na inércia engessada que nos impede de buscar a provisão necessária, momento em que nos enamoramos da dor que nos resseca e ficamos a contemplar a nossa aridez, o nosso vazio… E amortecemos os sentidos, esquecidos do viver.

A visão da planta a secar-se era uma angústia sem tamanho. Lembrei-me das infinitas vezes que morri.  Só os intensos e profundos, aqueles que não se permitem estacionar na borda da existência, somente aqueles acostumados a mergulhos incertos em seus próprios mares interiores saberão entender, mas é certo que a vida não é medida de modo linear. Ela é mensurada pela quantidade de vezes que, dentro dela, morremos. Por todas as vezes em que pulamos de olhos fechados em nossos abismos e que, das suas profundezas, observamos os paredões dos precipícios que nos cercam.

Ver flores nos relvados e roseiras nos quintais é coisa pouca. Vida de verdade é enxergar um ramo desbotado nas frestas da parede do abismo enquanto descemos, em queda livre. É ver a alma esfolada e as certezas desfeitas e o peito sem norte. E, após ver-se em cada uma dessas mortes, respirar fundo e renascer.

Renasce-se quando você olha dentro de si e percebe que, embora morto, algo em você, aquilo que o faz eterno, ainda respira. Que nenhuma morte pode fazê-lo inexistir. Então, você percebe que venceu. Que pode caminhar, respirar e amar de novo. Entende que nenhuma outra morte poderá anular a sua existência infinita.

Eu olhei a minha samambaia e havia nela um meio broto ainda verde. E eu reguei essa planta como quem rega a própria alma e a amei como quem ama a mão amputada a que a ausência eternizou.

A folhagem está ainda aqui:  bela! Não com a beleza pronta que a vida primeira lhe ofertou, mas com a beleza madura de quem já viu a morte e sobre ela impera, com a força de quem já morreu, renasceu e reverdejou.

 

A primeira manhã de inverno – crônica de domingo

A primeira manhã de inverno – crônica de domingo

Por Josie Conti

Mesmo que não tenhamos a passagem das estações tão marcada quanto no hemisfério norte, sabemos que o inverno trará mudanças.

Na rua, já não vemos mais a sombra rendada das folhas que caíram em sua dança outonal e vestiram a mãe terra com suas próprias roupas.

Em nossas casas, as cobertas começam a ser retiradas do guarda-roupa, lembramo-nos da sensação de dormir abraçados pelo tecido que nos aquece o corpo e o nosso dormir volta a ser útero, tempo de gestação. A temperatura, levemente maior do que o necessário em nosso ambiente protegido, também nos torna mais simpáticos àqueles que sofrem com o frio, que estão desabrigados.

Aqui perto de mim também acontecem mudanças. Depois de vários anos, os vizinhos vão se mudar. Mudam-se com eles o barulho, as brigas frequentes, o choro das crianças, os cães, os gatos e até a maritaca. É como se um pequeno caos existencial deixasse de fazer parte da minha vida. E, confesso, já sinto falta deles.

Lembro-me, como se fosse ontem, da menina mais velha, ao descer um degrau, matou acidentalmente uma maritaca. A sequência dos acontecimentos foi cinematográfica: o escândalo da mãe, da avó e os berros da filha ecoavam em quarteirões. A menina injustamente punida por um crime do qual não teve intenção. A mãe, sem permitir o luto, substituindo imediatamente o animal por outro. A avó, percebendo o exagero, tentando proteger a neta.

Tê-los como vizinhos era ter em xeque diariamente crenças, valores e posturas sociais com as quais éramos acostumados. Presenciar sua vivência, de certa forma, sempre fez com que eu me sentisse um pouco morna demais.

Durante a separação do casal, as brigas com o ex-marido traziam em si as palavras que todos que um dia já passaram por um rompimento quiseram dizer. Palavras nuas, obscenas, escrachadas. Todo o ódio e frustração canalizados na forma verbal. Ouvi-los, mesmo que não intencionalmente, era um misto de catarse pessoal, observação voyer e a prova do motivo do sucesso das novelas mexicanas.

Com eles, além da intensidade humana, vai a experiência da diversidade que nos é tão rica e necessária. E, ao contrário do que jamais pensei dizer, espero que esse inverno traga vizinhos novos, polêmicos, exóticos, outras pessoas que nos façam lembrar que a beleza da vida está nos opostos e em todo o questionamento que isso pode provocar em nossas verdades.

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Porque os 40 não são os novos 30

Porque os 40 não são os novos 30

Por Tatiana Nicz

Esses dias uma colega me contou de uma cena de um filme, onde a menina diz em uma discussão: “High School is never over”, respondendo às provocações de que ela (a personagem) estava sendo infantil em seu posicionamento. O papo com minha colega era sobre a maturidade das pessoas (ou a falta dela). Maturidade de fato é um conceito complexo porque é difícil de ser mensurado. Mas, mesmo complexo, não é algo impossível de se entender.

Hoje escutamos muito “os quarenta são os novos trinta” e pessoalmente acho isso papo de quem tem medo de envelhecer. Eu entendo de onde vêm os medos da velhice, numa cultura onde a juventude é exaltada e onde aprendemos a jogar fora o que é velho, não existe espaço para encontrar beleza no processo de envelhecimento, ou melhor, amadurecimento. O próprio nome já é meio pejorativo, encontramos no dicionário a palavra “velho” junto à “obsoleto”, “antigo” o que nos dá a impressão que é algo que não tem utilidade.

Minha queixa com minha amiga era essa, muita gente que conheço não amadureceu e, pior, não parece querer amadurecer. Não sou muito de falar do passado, mas é certo que na época dos meus avós e meus pais os tempos eram outros e a sensação que tenho é que eram outros principalmente porque as pessoas amadureciam e viviam de acordo com sua idade. Com minha idade meus pais já tinham três filhos, casa própria, emprego e responsabilidade de gente grande. Assistindo uma TED talk esses dias sobre a longevidade descobri que biologicamente o organismo de um ser humano foi programado para viver aproximadamente 90 anos. Nesse espaço de tempo devemos viver a infância, adolescência e a mais longa fase da vida: a fase adulta.

A natureza é sábia, as fases da vida denotam ao que viemos. Para cada uma dessas etapas nosso organismo, nossos hormônios, nossa mente trabalham de maneiras bem específicas e de acordo com nossa idade. Então os quarenta, biologicamente falando, não são os novos trinta. E não há botox, exercício, nem cirurgia plástica que mude isso. Acho importante adequar nossa mente ao nosso organismo para que possamos usufruir de todas as etapas da vida integralmente. Nesse sentido, acredito que envelhecer é um processo orgânico, útil e belo.

E, como muita coisa na vida, não existe uma fórmula que nos faça amadurecer. Acho que mais que tudo amadurecer é um processo interno de aceitação. Aceitação de nossas limitações e de da maneira com que nosso organismo vai se ajustando à elas. Não existe uma idade específica para isso, mas a impressão que tenho é que estamos invertendo etapas em demasia: enquanto adolescentes queremos ser adultos, enquanto adultos queremos ser adolescentes. Muitos dos adultos de hoje que conheço se comportam como crianças. E isso é perigoso para as futuras gerações, que crescerão sem referências de processos tão importantes como o amadurecimento e o envelhecimento.

O que tenho visto é exatamente o que a personagem do filme citada por minha amiga diz: “high school is never over”. E nesse pensamento vejo pessoas adultas que não saem das casas dos pais, pais que se comportam como os filhos, e principalmente pessoas que não assumem suas responsabilidades, se relacionam com os outros e tomam decisões da forma imprudente, algo que deveria ser natural apenas para os jovens.

É preciso aceitar que envelhecemos e fazê-lo com sabedoria. Hoje aprendi que é importante viver de acordo com a minha idade, fazendo escolhas e programas conforme meu organismo consegue absorver. Também aprendi que maturidade não tem nada a ver com emprego, conta bancária, status de relacionamento, maternidade ou paternidade. Acredito sim que a maternidade e a paternidade têm um poder enorme de transformar um ser humano e fazê-lo amadurecer, mas não é isso que tenho visto em muitos casos. Acho também que a maturidade chega de maneira diferente para cada um, suspeito que geralmente nos momentos mais difíceis da vida. Para mim, amadurecimento tem muito a ver com as porradas e os tombos que a gente toma na vida.

Digo tudo isso porque sinto que vivi por muito tempo como adolescente imprudente que fui, mesmo sendo dona do meu próprio negócio aos 24, mesmo saindo da casa dos meus pais aos 23, mesmo tendo viajado muito, morado em outros países, conhecido outras culturas e outros lugares. Isso tudo me fez crescer de várias maneiras, mas acredito que não o suficiente para tornar-me de fato adulta.

Mas acho que algumas coisas me fizeram crescer, a doença da minha mãe me fez crescer, a morte do meu pai me fez crescer, mudar de carreira, dar aula para crianças me fez crescer, e principalmente, assumir minha idade e querer viver por inteiro os meus 30 e poucos anos me fez crescer. O tempo passa para todos e mais rápido do que imaginamos, portanto aprendi a celebrar a minha idade e isso tem sido algo muito gratificante. Nesse contexto, acho que posso ser bem coerente em dizer que para mim High School is definitely over.

Mia Couto fala de quando se “auto-batizou” Mia por viver em “promiscuidade existencial” com os gatos”

Mia Couto fala de quando se “auto-batizou” Mia por viver em “promiscuidade existencial” com os gatos”

Mia Couto, escritor moçambicano, foi o Convidado de um evento do Fronteiras do Pensamento e Companhia das Letras, em agosto de 2013.

Neste trecho da entrevista concedida à Eliane Brum e à Raquel Cozer, Mia pondera sobre a importância dos nomes na criação dos seus personagens, discorrendo ainda sobre a importância do nome a cada um de nós e sobre seu “auto-batismo”, no qual escolhera o nome Mia, num momento em que vivia em “promiscuidade existencial com os gatos”.

“A PORTA DO LADO”, uma lição que faz toda a diferença

“A PORTA DO LADO”, uma lição que faz toda a diferença

Em entrevista dada por um famoso médico nacional, ele teria dito que a gente tem um nível de exigência absurdo em relação à vida, que queremos que absolutamente tudo dê certo, e que, às vezes, por aborrecimentos mínimos, somos capazes de passar um dia inteiro de cara amarrada.

E aí ele deu um exemplo trivial, que acontece todo dia na vida da gente…

É quando um vizinho estaciona o carro muito encostado ao seu na garagem (ou pode ser na vaga do estacionamento do shopping). Em vez de simplesmente entrar pela outra porta, sair com o carro e tratar da sua vida, você bufa, pragueja, esperneia e estraga o que resta do seu dia.

Eu acho que esta história de dois carros alinhados, impedindo a abertura da porta do motorista, é um bom exemplo do que torna a vida de algumas pessoas melhor, e de outras, pior.

Tem gente que tem a vida muito parecida com a de seus amigos, mas não entende por que eles parecem ser tão mais felizes.

Será que nada dá errado pra eles? Dá aos montes. Só que, para eles, entrar pela porta do lado, uma vez ou outra, não faz a menor diferença.

O que não falta neste mundo é gente que se acha o último biscoito do pacote. Que “audácia” contrariá-los!

São aqueles que nunca ouviram falar em saídas de emergência: fincam o pé, compram briga e não deixam barato.

Alguém aí falou em complexo de perseguição? Justamente. O mundo versus eles.

Eu entro muito pela outra porta, e às vezes saio por ela também. É incômodo, tem um freio de mão no meio do caminho, mas é um problema solúvel. E como esse, a maioria dos nossos problemões podem ser resolvidos assim, rapidinho. Basta um telefonema, um e-mail, um pedido de desculpas, um deixar barato.

Eu ando deixando de graça… Pra ser sincero, vinte e quatro horas têm sido pouco prá tudo o que eu tenho que fazer, então não vou perder ainda mais tempo ficando mal-humorado.

Se eu procurar, vou encontrar dezenas de situações irritantes e gente idem; pilhas de pessoas que vão atrasar meu dia. Então eu uso a “porta do lado” e vou tratar do que é importante de fato.

Eis a chave do mistério, a fórmula da felicidade, o elixir do bom humor, a razão por que parece que tão pouca coisa na vida dos outros dá errado.”

Quando os desacertos da vida ameaçarem o seu bom humor, não estrague o seu dia… Use a porta do lado e mantenha a sua harmonia.

Lembre-se, o humor é contagiante – para o bem e para o mal – portanto, sorria, e contagie todos ao seu redor com a sua alegria.

A “Porta do lado” pode ser uma boa entrada ou uma boa saída… Experimente!

Autoria desconhecida

Nota: Esclarecemos que o texto “A Porta do Lado”, embora tenha sido difundido na internet como do Dr. Drauzio Varella, não é dele conforme entrevista da Folha Online.

Um giro secreto em nós faz girar o universo

Um giro secreto em nós faz girar o universo

Por Josie Conti

Um giro secreto em nós
faz girar o universo
A cabeça desligada dos pés,
e os pés da cabeça. Nem se importam.
Só giram, e giram.

– Rumi

Lembro-me de, ainda bem pequena, ir para o meio da sala e começar a girar ininterruptamente. Sabia que giraria até cair e que, quando caísse, o mundo continuaria girando. Criança que era, brincava de testar limites, encantava-me com as diferentes reações que meu corpo sofria, instintivamente girava.

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Quem não se lembra de transpassar os braços com uma amiga e formar entre si o infinito sabendo que o giro dependia da velocidade e das mãos que nunca poderiam ser soltas? Quem, ainda hoje, não se emociona ao ver a alegria de uma criança quando alguém a gira no ar?

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Giro é magia de brinquedo e dono de parque de diversões sabe disso. Uma das experiências mais fantásticas da minha infância eu passei em um brinquedo assim: O chapéu mexicano. Lindo, colorido, musical. Levada pelo meu avô materno fui colocada em uma de suas cadeirinhas. Enquanto ele começa a girar as cadeiras se distanciam do eixo. Ritmo, cores, velocidade, o vento no rosto e o voo. Até hoje, nenhum voo superou aquele passeio. Naquele mesmo dia, tomei suco de caju na barraquinha. Memória realmente feliz ninguém tira da gente.

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Parece que quase tudo de bom que temos na infância gira. Bambolê, roda gigante, roda de amigos, gira-gira. Até pião gira.

Socialmente, estar em círculo faz toda diferença. O círculo coloca as pessoas em igualdade, facilita a conversa, permite o olhar. Círculo é ambiente colaborativo.

Os povos antigos já conversavam em torno da fogueira. As danças folclóricas acontecem em círculos.

Criança é mesmo um bichinho inteligente, sem saber de nada disso, gira e dança. Dá as mãos e roda.

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Bernhard Wosien – bailarino, pedagogo da dança, desenhista e pintor – dedicou muitos anos de sua vida a coletar danças étnicas. É o maior nome quando falamos hoje em danças circulares.

Danças celtas, indígenas, danças utilizadas em rituais de casamento, nascimento, pedindo por chuva ou agradecendo pela colheita. Dançar é expressão da natureza humana.

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Dançar em roda também permite o ritmo, a frequência, a repetição necessária para uma meditação que acontece em movimento. Quem entende do tema afirma que a energia dos membros do grupo fica harmonizada conferindo função também terapêutica.

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Nada disso, porém, teria sido escrito por mim se, após adulta, não tivesse entrado em contato com a beleza sagrada dos Dervixes Rodopiantes (Mevlevi)  da Turquia.  Com uma mão apontada para cima e outra para o chão, eles se tornam um fio condutor entre o céu e a terra. Giram para a esquerda e para direita com suas saias rodadas numa espécie de transe que, para eles, coloca-os mais perto de Alah. É simplesmente sublime.

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Girar é fortalecer a conexão consigo, com quem amamos, com nossa cultura, com o sagrado.

Então, física ou simbolicamente, giremos. Giremos até nos sentirmos livres.

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A esperança nasceu no cais

A esperança nasceu no cais

Por Clara Baccarin

A esperança nasceu no cais.

Plantou-se como rocha, paciente à passagem do tempo e às mudanças de estação. Firme e quieta, mas de coração vivo e pensamento longe, resgatando em outras épocas ou em sonhos a Beleza. Perdendo os olhos no horizonte à espera daquela velha proa, que venha por este velho caminho, cruze essas águas que nunca são as mesmas e a resgate e desencante de sua situação de pedra.

A esperança é um bonito mineral, como o amor que para não evaporar, se cristaliza em si mesmo. Não vive e não morre. Mas permanece. Como a maldição de tudo que quer ser eterno.

A esperança nasceu no cais.

E nele também pode morrer, como rocha estilhaçada pelo tempo ou como água, afogada nos braços do reencontro.

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“Os discos voadores”, uma crônica de Rachel de Queiroz

“Os discos voadores”, uma crônica de Rachel de Queiroz

Rachel de Queiroz

Eu por mim acredito. Por que não acreditaria? Nada vejo que justifique a descrença. Acredito em tudo. Que têm 15 metros de diâmetro, que são feitos de um metal desconhecido, brilhante como prata polida, que se compõem de três círculos concêntricos dos quais só um __ o do meio __ gira, fazendo o engenho mover-se; acredito que deixam um rastro luminoso por onde andam __ decerto a poeira fosforescente dos mundos siderais que percorreram. E acredito, principalmente, que sejam pilotados por homúnculos de meio metro de estatura, macrocéfalos, horrendos, vindos sabe Deus de que planeta, Marte, Vênus ou Saturno.

Ah, acredito. Por que não seria verdade? Todo o mundo os tem visto, no Oriente e no Ocidente, no Pacífico e no Atlântico, nas costas da Califórnia, no Peru e no Amazonas, em Maceió, no Uruguai; e até mesmo aqui no Rio teve um cavalheiro que os viu durante 45 minutos; viu-os com os seus olhos que a terra há de comer, se me permitem a expressão, e por sinal chamou a radiopatrulha, no que se mostrou homem muitíssimo avisado.

Ilusão coletiva uma conversa. Também a bomba voadora dizia-se que era ilusão coletiva. O povo sabe muito bem onde põe os olhos e os jornais contam muito mais verdades do que supõe o ingênuo público, viciado a acreditar em desmentidos. Se tanta gente tem visto discos voadores, é porque há discos voadores. E afinal de contas, neste mundo de aparência,  quem é que pode distinguir da realidade a dita aparência, e até onde se pode afirmar que uma coisa é concreta ou é ilusão dos sentidos? Arco-íris também é ilusão dos sentidos e neste mesmo instante lá está um, brilhando no céu, entre as nuvens molhadas, luminoso e autêntico como um corpo vivo.

Eu creio nos discos e tenho medo deles. Sei muitíssimo bem que são o sinal positivo do fim do mundo. Se até está nos livros, se foi profetizado há muito tempo! E por que não seria o fim do mundo? Quais são os nossos méritos assim tão grandes para nos defenderem da catástrofe? Os dez justos que faltaram a Sodoma, com razão ainda maior, nos faltariam a nós.
Quem tiver os seus pecados trate de ir-se arrependendo que a hora chegou e chegou feia. Quem não viu o que tinha de ver, procure olhar e fartar os olhos; quem não amou ame depressa, quem não se vingou se vingue. O tempo urge __ faça-se o que é mister ser feito, que o relógio já bateu. O mundo vai acabar-se.

Pelo menos o nosso mundo. Outro pode nascer dos nossos destroços, mas há de ser um mundo diferente, povoado sabe Deus por quem __ só o não será pelos nossos netos, que esses não chegarão sequer a formar-se nas entranhas das nossas filhas. E estas estarão mortas conosco, belas, inocentes e malfadadas, perdendo a chama da vida antes de a poderem passar adiante.

O mundo que virá depois há de ser deles, que já nos vigiam e já preparam o caminho. Então vocês não compreendem, irmãos, que esses discos misteriosos que pairam no alto, librando-se no ar como um gavião peneirando em cima da presa, pairam no alto e depois vão-se embora são os olheiros deles, são os quintas-colunas, os esculcas das multidões de homenzinhos de cabeça grande que estão destinados a ser os nossos senhores? Depois dos observadores, chegarão os exércitos com armas tão assombrosas que, perto delas, a bomba de hidrogênio do presidente Truman é como uma ronqueira de São João. E que idade terão atingido eles, se já minguaram assim no tamanho e cresceram tanto a cabeça?

Como hão de estar apurados, refinados, 90% de matéria bruta __ e não tão bruta assim, já que pode ser tão pouca? Que poderemos nós contra eles, lerdos gigantes microcéfalos, mal saídos da grosseira idade do ferro e gatinhando ainda na infância da era atômica?

Que pensarão de nós, vendo-nos tão atrasados, tão primitivos, tão irremediavelmente presos à carne e às suas misérias, divertindo-nos barbaramente com guerras de selvagens, usando engenhos grosseiros de metal rude e brutas explosões de pólvora e nitroglicerina?

Ah, tenho medo, tenho medo. Que será de nós quando eles do céu se despencarem aos cachos, tão estranhos e terríveis, implacáveis na convicção cega do divino direito da sua sobrevivência à custa da nossa? De que modo nos irão destruir ou de que meios usarão para nos escravizar __ como animais de força bruta ao seu serviço? E como serão eles __ transparentes, gelatinosos, todo o músculo e osso apurado em matéria nobre, cérebros andantes, quase sem vísceras, talvez libertos das baixas necessidades da comida e do repouso? E terão um peito capaz de piedade, terão olhos capazes de ver além da nossa grotesca feiúra, da nossa maldade e da nossa imperfeição?

Quem sabe são anjos; e virão destruir como os anjos destroem, sem ódio, sem prazer na carnificina, apenas cumprindo ordens mais altas, com a sua espada de fogo, coração feito de diamante, que nada empana, mas nada amolece. Contudo, também podem ter evoluído apenas na direção da besta, e como bestas na quinta-essência do aperfeiçoamento serão ferozes e implacáveis __ serão os próprios descendentes do Leviatã.

Cuidado que eles estão chegando. Primeiro foi o aviso, mas em breve já não haverá avisos. Hão de baixar aos milhares e aos milhões, pequeninos e atrevidos, hão de conhecer todos os segredos, decerto se multiplicam em massa, ao sabor das vãs necessidades, produzem guerreiros e chefes ao seu gosto, terão aprendido o processo de reduzir a infância a apenas alguns meses, produzindo por sistema adiantadíssimo adultos temporões de corpo transparente e cabeça grande, no mesmo espaço de tempo que nós gastamos para fabricar um automóvel.

Ah, os que não acreditam! Ah, os que zombam! Ah, os sábios que espiam nos seus estúpidos telescópios e negam o que o olho nu enxerga! Medem as estrelas com suas réguas, e depois vêm-nos dizer que não há perigo, que nos assustamos com simples meteoro. Isso mesmo deviam declarar os pajés das tribos americanas aos guerreiros assustados que pela primeira vez avistaram as asas das caravelas subindo no horizonte. São pássaros, são raios de sol __ são sonhos dos olhos! E assim os brancos chegaram, e acharam os guerreiros desprevenidos e inermes. O mesmo sucederá conosco. É mais cômodo duvidar, é muito mais fácil afirmar que tudo é engano e mentira.

E, enquanto isso, os discos voadores partem aos milhares das suas bases de céu além, e cortam zumbindo o éter vazio, e escolhem para o seu pouso o que há de mais bonito e mais sedutor no mundo __ a Califórnia, o golfo do México, a Itália, as praias amenas do Atlântico Sul…
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O Grande Gatsby

O Grande Gatsby

Por Octavio Caruso

Ainda que não seja necessário, recomendo que a leitura da obra seminal de F. Scott Fitzgerald sobre a fragilidade do “Sonho Americano”, anteceda a sessão do filme. A mais famosa versão cinematográfica até o momento era a protagonizada por Robert Redford, que fracassava em diversos aspectos, inclusive como adaptação. Baz Luhrmann acerta onde todos erraram, demonstrando entender perfeitamente a essência do livro, incorporando-a ao seu próprio estilo de rebeldia elegante, que combina perfeitamente com a proposta do autor.

Nick Carraway (Tobey Maguire) e Jay Gatsby (Leonardo DiCaprio) representam facetas antagônicas da personalidade do autor: o tímido e respeitoso jovem que se deslumbra com os excessos da alta sociedade e o homem seguro, que utiliza seu carisma e posses para impressionar a mulher que deseja. No meio do fogo cruzado, Daisy Buchanan (Carey Mulligan), personagem parcialmente inspirada em Zelda, esposa do autor, escrava de seu amor pelo enriquecimento material, porém indiferente à afeição humana, uma caricatural crítica aos valores amorais da aristocracia da América dos anos 20.

Todos os personagens utilizam as pessoas como peões nos tabuleiros de seus desejos, descartando-as como se nada valessem, após o cumprimento de suas funções em seus planos. Gatsby talvez seja o único que não tenha sido corrompido pela sua riqueza, pois a utiliza objetivamente para galgar os degraus que o encaminham ao seu sonho pessoal. Ele não necessita de todo aquele luxo, conseguiria se destacar até mesmo na pobreza. Fitzgerald, captado com maestria por Luhrmann, aponta o dedo para a banalização dos valores humanos, na incessante busca pelo ilusório status que advém do sedutor e corruptível brilho do ouro.

O diretor exercita seu estilo, misturando música contemporânea, como o hip-hop que emoldura nosso primeiro vislumbre da fictícia cidade e o primeiro encontro de Carraway com o mundo boêmio, e canções da época, como a espirituosa “Let´s Misbehave”, de Cole Porter, além de utilizar generosamente o auxílio da computação gráfica nos exteriores, o que realça o tom de artificialidade que envolve a trama e os personagens. Interessante também é a forma como o roteiro utiliza de forma inteligente a inalcançável luz verde do píer, elemento importante no livro, como um tema visual recorrente, que simboliza o desejo de Gatsby por alcançar Daisy, prendê-la em seu mundo. “O Grande Gatsby” é um filme que deixaria seu autor orgulhoso.

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OCTAVIO CARUSO

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Carioca, apaixonado pela Sétima Arte. Ator, autor do livro “Devo Tudo ao Cinema”, roteirista, já dirigiu uma peça, curtas e está na pré-produção de seu primeiro longa. Crítico de cinema, tendo escrito para alguns veículos, como o extinto “cinema.com”, “Omelete” e, atualmente, “criticos.com.br” e no portal do jornalista Sidney Rezende. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, sendo, consequentemente, parte da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica.

Blog: Devo tudo ao cinema / Octavio Caruso no Facebook

No aeroporto, uma crônica de Carlos Drummond de Andrade

No aeroporto, uma crônica de Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade

Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas o seu quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos, embora não falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito assunto, e não deixamos de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente parco de palavras, e, a bem dizer, não se digne de pronunciar nenhuma. Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões pelos quais se faz entender admiravelmente. É o seu sistema.

Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta, porque ostensiva. A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para com o mundo ocidental e oriental, e em particular o nosso trecho de rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos, gratificados com esse sorriso (encantador, apesar da falta de dentes), abonam a classificação.

Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários especiais, comidas especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados especiais. Mas sua simples presença e seu sorriso compensariam providências e privilégios maiores.

Recebia tudo com naturalidade, sabendo-se merecedor das distinções, e ninguém se lembraria de achá-lo egoísta ou importuno. Suas horas de sono – e lhe apraz dormir não só à noite como principalmente de dia – eram respeitadas como ritos sagrados, a ponto de não ousarmos erguer a voz para não acordá-lo. Acordaria sorrindo, como de costume, e não se zangaria com a gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus sonhos.

Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito concerto para violino e orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram à tortura da tevê. Andando na ponta dos pés, ou descalços, levamos tropeções no escuro, mas sendo por amor de Pedro não tinha importância.

Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de óculos alheios (e não os usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta das coisas para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pô-las na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém duvido que mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas pupilas azuis — porque me esquecia de dizer que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer suspeita ou acusação apressada, sobre a razão íntima de seus atos.

Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os cômodos, e o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com ele porque destruiu a lâmpada do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro que ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas coisas eram indiferentes à nossa amizade — e, até, que a nossa amizade lhe conferia caráter necessário de prova; ou gratuito, de poesia e jogo.

Viajou meu amigo Pedro. Fico refletindo na falta que faz um amigo de um ano de idade a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto ficou vazio.

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Aprendi muitas coisas na faculdade de medicina, mas a mortalidade não foi uma delas

Aprendi muitas coisas na faculdade de medicina, mas a mortalidade não foi uma delas

Por Josie Conti

 “Aprendi muitas coisas na faculdade de medicina, mas a mortalidade não foi uma delas.”

É com a frase acima que o médico cirurgião e escritor americano Atul Gawande introduz o seu novo livro “Mortais- Nós, a medicina e o que realmente importa no final “, da Editora Objetiva, lançado em junho de 2015 no Brasil. Escrito em tom pessoal e repleto de histórias de família e trabalho, o livro nos permite vivenciar a dor, as perdas e as consequências das escolhas finais dos profissionais, do paciente e dos familiares frente à iminência da morte.

Como escritor, Atul Gawande sabe que só o que é emocionalmente significativo fica gravado e ressoa na memória do leitor. Com muita delicadeza, coloca-nos em vivência compartilhada nos dramas que relata e questiona-nos: frente a uma doença incurável, devemos usar ilimitadamente os recursos da medicina existentes para prolongar o tempo em que um corpo permanece respirando, mesmo que ligado a aparelhos, ou deveríamos nos focar na qualidade de vida restante?

É fato que os médicos são formados para salvar vidas. Para eles, a competência, a segurança e a identidade do profissional, na maioria das vezes, está relacionada a não deixar que o paciente morra. Mas, será que o prolongamento da vida com o uso de aparelhos, alguns tipos de quimioterapia ou mesmo cirurgias agressivas não seriam “novas formas de torturas físicas a que submetemos nosso paciente?”, diz ele em um trecho do livro.

Como profissional da saúde, sempre me surpreendi com o abismo existente entre a teoria e realidade profissional. Nessa área creio que são raros os casos de pessoas que realmente têm noção do que encontrarão do lado de dentro de um consultório ou de um hospital. Os maiores exemplos de tratamento desumanizado que presenciei como pessoa vi lidando com médicos que atuavam sob uma falsa couraça de poder. Seria a arrogância e a prepotência, tantas vezes encontrada na classe, um mecanismo de defesa para lidar com as próprias inseguranças frente a limitações reais da prática profissional?

Mesmo filho de médicos, o próprio Atul Gawande confessa que não imaginava como era viverciar rotineiramente a limitação, a falta de recursos terapêuticos e, principalmente, a morte real, consumada. Como lidar com a situação quando nada mais pode ser feito?

Um dos grandes diferenciais do autor é a sinceridade e a dignidade com que desbanca a onipotência da profissão ao analisar os aspectos emocionais dos envolvidos, ao falar da NEGAÇÃO cultural que o mundo moderno desenvolveu enquanto a medicina, o saneamento básico e outros fatos históricos permitiram o aumento da expectativa de vida das pessoas.

Sua mensagem é pela revisão dos gastos médicos realizados em tratamentos desnecessários, é pelo olhar para um paciente que precisa ser informado sobre sua real condição e, mais do que tudo, sobre a priorização da qualidade e não do tempo de vida de uma pessoa.

“Mortais- Nós, a medicina e o que realmente importa no final “

Três poemas de Sophia Andresen capazes de nos tirar o chão

Três poemas de Sophia Andresen capazes de nos tirar o chão

Terror de Te Amar

Terror de te amar
num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

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Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

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Pirata

Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Sophia de Mello Breyner Andresen, poetisa portuguesa.
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Somos todos passageiros

Somos todos passageiros

Por Gustl Rosenkranz

Ontem recebi uma notícia que me chocou: uma boa amiga me ligou para dizer que o sogro dela, que eu também conhecia, havia falecido. Ele caiu de uma escada, dentro de casa, bateu a cabeça no chão e morreu de imediato.

Pois é, por mais que saibamos que todos nós vamos um dia abandonar este mundo, por mais que a morte faça parte da vida e por mais que tenhamos maturidade suficiente para aceitá-la, sempre nos chocamos quando morre alguém que conhecemos, principalmente quando a morte vem de uma forma inesperada.

Fico imaginando a vida como um trem longuíssimo, com vários vagões. Neste trem só se embarca pela frente e tem-se então que caminhar por todos os vagões (as etapas da vida) até chegar ao último, onde então desembarcamos e deixamos de viver (neste mundo). Até aí, tudo bem: todos já embarcamos sabendo disso – ou ficamos sabendo bem cedo – e sabemos também que é inevitável. Aceitamos assim nosso destino e caminhamos de vagão para vagão, aprendendo, crescendo, vivendo. E, neste trem, viajam também diversas pessoas, algumas que embarcaram já antes de nós, outras que embarcaram conosco e já outras que vão embarcando depois nas diversas estações da vida. É também nessas estações que desembarcam aqueles que já se encontram no último vagão e que já passaram por todo o trem. Alguns vão felizes, pois sabem que tiraram o melhor proveito da viagem, outros vão amargos e solitários, pois só entenderam tarde demais que tinham muito o que aprender com aqueles outros passageiros que rejeitou e hostilizou o tempo todo. Já outros relutam, não querem desembarcar de forma alguma, tentando voltar para o vagão anterior (ou mesmo vários vagões atrás!), mas percebem que isso não é possível, pois a porta entre os vagões só permitem a passagem em um único sentido: do início para o fim, do nascimento para a morte.

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Os passageiros que se encontram mais à frente, que ainda têm vários vagões para percorrer, sabem que há pessoas queridas no fim do trem e ficam tristes, pois têm consciência de que eles logo descerão, mas aceitam, principalmente por saberem que não há outro jeito mesmo. O destino da vida é a morte, a morte faz parte da vida. Quando alguém então vai, isso dói e se fica triste, mas a dor é mais amena quando já contávamos com isso, porque houve então um tempo de familiarização, houve um tempo de despedida. Mas às vezes acontece de alguém, que ainda teria uma longa viagem pela frente, que estava ali, no meio do trem, no meio da vida, ser de repente levado para o último vagão ou mesmo para fora do trem, assim, sem que ninguém esperasse, de um momento para o outro. Alguém se vai e não conseguimos entender. Ficamos então chocados, primeiro pela perda, mas também por percebermos nossa fragilidade e por a vida nos lembrar que somos todos passageiros, passantes, viajantes no trem da vida. É como se passasse o chefe do trem pedindo para ver o bilhete e o destino de cada passageiro, lembrando a todos que estamos a caminho e que cada um de nós vai ter que descer um dia.

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Às vezes, acontece alguma coisa (uma catástrofe, uma epidemia, uma guerra…) e muitos abandonam o trem de uma vez só. E tem aqueles que, por tanto medo do que os espera nos vagões seguintes, terminam desistindo e descendo do trem muito antes de chegar sua estação.

Tenho a impressão de que a maior parte das pessoas evita pensar nisso e mais ainda falar disso. Entendo isso muito bem. Não acho que seria saudável se ocupar com a morte o tempo todo. Isso não seria bom. É mais fecundo pensar na vida. A morte é inevitável, todos vamos morrer e creio que não faz sentido algum negar isso e fazer de conta que a morte não existe, pois isso seria fugir de algo que precisamos aceitar para que possamos viver plenamente. Mas não precisamos ficar falando da morte o tempo todo. Só não devemos ignorá-la. É importante aceitá-la e ter consciência de que tudo este mundo é passageiro, tudo passa, tudo acaba. Tudo mesmo, também eu, também você. Quem aceita isso desenvolve uma maior capacidade de relativizar muitos problemas da vida e de perceber que é substancial dar a prioridade certa às coisas, que nem tudo é realmente tão importante assim. Essa pessoa entende que seu tempo no trem da vida é curto (talvez muito mais curto do que imagina) e que ainda tem muitos vagões para viver.

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Imagem: www.devouringfire.com

Gosto da palavra ‘passageiro’ em alemão: ‘Fahrgast‘. ‘Gast‘ é visitante, hóspede. Ao entrar em um trem, ônibus ou táxi na Alemanha, você é um Fahrgast, que eu traduzo aqui como visitante viajante. Nós estamos visitando este mundo e viajando por ele. Ele não é nosso. Mesmo assim, entre, chegue à frente, sinta-se em casa, mas com o respeito de quem só está passando, aproveitando a viagem intensamente, mas sem se prender a nada que não seja realmente essencial, pois uma hora você vai ter que descer. E você terá que deixar para trás tudo que guardou e não cabe em sua bagagem. Por isso, é mais sábio guardar somente aquilo que realmente tem um significado verdadeiro e mais profundo. Viva sua vida plenamente, busque relações sinceras, não deixe que o medo (nem o seu, nem o de ninguém!) lhe prenda, tenha coragem, viva cada momento intensamente, de uma forma madura, sendo bom para você mesmo, tratando você com carinho, não por vaidade ou egoísmo, mas por saber que você mesmo é a melhor companhia que você tem, é a única que com certeza plena ficará ao seu lado até seu desembarque do último vagão do trem da vida.

Momentos como esses, de choque, de saber que alguém morreu, são sempre tristes. Mas é também um desses momentos que nos convida a parar e refletir, talvez com o sentimento saudável de que precisamos nos concentrar mais no que é essencial e de que vivemos correndo atrás de muita coisa que não faz sentido, que desperdiçamos nosso precioso tempo cuidando de coisas sem real importância e descuidando do que realmente conta. Para mim o sentido da vida é viver e não ficar procurando por ele. E muito menos ficar esperando pelo momento certo de começar a viver

AMOR DA MINHA VIDA, uma crônica de Maitê Proença

AMOR DA MINHA VIDA, uma crônica de Maitê Proença

O amor da minha vida eu encontrei, tem nome, é de carne e osso, e me ama também. Agora falta encontrar alguém com quem possa me relacionar. É que o homem da minha vida não cabe em mim e eu não caibo nele. Não basta que a gente se queira há muitos anos. Não basta nossos namoros longos, os rompimentos e a teimosia de desejar mais daquilo que não há de ser. Não presta que ele me visite pra acabar com as saudades e fuja correndo de pernas bambas e um bumbo no peito. Não importa que eu esqueça meu nome depois, nem que me perca num oco, ou que os sentimentos corram de ambos os lados, intensos e desarvorados. Não basta que haja amor para se viver um amor. Eu e ele somos as cruzadas da idade média, o Osama e o Tio Sam, o preto e o branco da apartheid, o falcão e o lobo, o Feitiço de Áquila. Seus mistérios me perturbam e minha clareza o ofusca. Tenho fascínio pelo plutão que ele habita, e ele vive intrigado por minha vênus, mas quando eu falo vem, ele entende vai. Enquanto ele avista o mar eu olho pra montanha. Quando um se sente em paz o outro quer a guerra. É preciso me traduzir a cada centímetro do caminho enquanto ele explica que eu também não entendi nada. Discordamos sobre o tempo, o tamanho das ondas, a cor da cadeira. O desacerto é de lascar, e não há cama que resista a tantas reconciliações – um dia a cama cai.

Esta semana fui ver a Ópera do Malandro em cartaz no Rio de Janeiro. Se o Chico Buarque nunca mais tivesse feito outra coisa na vida, ainda assim teria de ser imortalizado pelas alturas em que transita sua poesia nesta obra. Como ando as voltas com assuntos de amor, prestei atenção na cafetina Vitória que, do alto de sua experiência, ensinava: O amor jamais foi um sonho, o amor, eu bem sei, já provei, é um veneno medonho. É por isso que se há de entender que o amor não é ócio, e compreender que o amor não é um vício, o amor é sacrifício, o amor é sacerdócio.

Mais adiante Terezinha, a heroína quase ingênua, sofria:

Oh pedaço de mim, oh metade arrancada de mim, leva o vulto teu, que a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu. Leva o que há de ti, que a saudade dói latejada, é assim como uma fisgada no membro que já perdi.

Naquela noite, inspirada pelo Chico, voltei pra casa decidida – não quero mais o amor da minha vida ocupando o lugar de amor da minha vida. Venho portanto, pedir a ele publicamente, que libere a vaga. É com você mesmo que estou falando, você aí, que se instalou feito um posseiro dentro do meu coração, faça o favor de desinstalar-se. Xô. Há de haver um homem bom, me esperando em alguma esquina desse mundo. Um homem que aprecie o meu carinho, goste do meu jeito, fale a minha língua, e queira cuidar de mim. As qualidades podem até variar, mas aos interessados, se houver, vou avisando; existem defeitos que considero indispensáveis.

Meu amor tem de ter uns certos ciúmes, e reclamar quando eu precisar viajar pra longe. Pode se meter com minha roupa, com corte do cabelo, e achar que sou distraída e não sei dirigir. Quando ficar surpreso de eu ter chegado até aqui sem ele, afirmarei sem ironia, que foi mesmo por milagre. Este homem deve querer nosso lar impecável, com flores no jarro, e é imperativo que faça tromba quando não estiver assim. Ele irá me buscar no trabalho e levará direto pra casa, nada de madrugadas na rua! Desejo enfim que meu amor me reprima um pouco, e que me tolha as liberdades – esse vôo alucinante e sem rumo, anda me dando um cansaço danado.

Fonte indicada Maitê Proença- site

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