“Os discos voadores”, uma crônica de Rachel de Queiroz

Rachel de Queiroz

Eu por mim acredito. Por que não acreditaria? Nada vejo que justifique a descrença. Acredito em tudo. Que têm 15 metros de diâmetro, que são feitos de um metal desconhecido, brilhante como prata polida, que se compõem de três círculos concêntricos dos quais só um __ o do meio __ gira, fazendo o engenho mover-se; acredito que deixam um rastro luminoso por onde andam __ decerto a poeira fosforescente dos mundos siderais que percorreram. E acredito, principalmente, que sejam pilotados por homúnculos de meio metro de estatura, macrocéfalos, horrendos, vindos sabe Deus de que planeta, Marte, Vênus ou Saturno.

Ah, acredito. Por que não seria verdade? Todo o mundo os tem visto, no Oriente e no Ocidente, no Pacífico e no Atlântico, nas costas da Califórnia, no Peru e no Amazonas, em Maceió, no Uruguai; e até mesmo aqui no Rio teve um cavalheiro que os viu durante 45 minutos; viu-os com os seus olhos que a terra há de comer, se me permitem a expressão, e por sinal chamou a radiopatrulha, no que se mostrou homem muitíssimo avisado.

Ilusão coletiva uma conversa. Também a bomba voadora dizia-se que era ilusão coletiva. O povo sabe muito bem onde põe os olhos e os jornais contam muito mais verdades do que supõe o ingênuo público, viciado a acreditar em desmentidos. Se tanta gente tem visto discos voadores, é porque há discos voadores. E afinal de contas, neste mundo de aparência,  quem é que pode distinguir da realidade a dita aparência, e até onde se pode afirmar que uma coisa é concreta ou é ilusão dos sentidos? Arco-íris também é ilusão dos sentidos e neste mesmo instante lá está um, brilhando no céu, entre as nuvens molhadas, luminoso e autêntico como um corpo vivo.

Eu creio nos discos e tenho medo deles. Sei muitíssimo bem que são o sinal positivo do fim do mundo. Se até está nos livros, se foi profetizado há muito tempo! E por que não seria o fim do mundo? Quais são os nossos méritos assim tão grandes para nos defenderem da catástrofe? Os dez justos que faltaram a Sodoma, com razão ainda maior, nos faltariam a nós.
Quem tiver os seus pecados trate de ir-se arrependendo que a hora chegou e chegou feia. Quem não viu o que tinha de ver, procure olhar e fartar os olhos; quem não amou ame depressa, quem não se vingou se vingue. O tempo urge __ faça-se o que é mister ser feito, que o relógio já bateu. O mundo vai acabar-se.

Pelo menos o nosso mundo. Outro pode nascer dos nossos destroços, mas há de ser um mundo diferente, povoado sabe Deus por quem __ só o não será pelos nossos netos, que esses não chegarão sequer a formar-se nas entranhas das nossas filhas. E estas estarão mortas conosco, belas, inocentes e malfadadas, perdendo a chama da vida antes de a poderem passar adiante.

O mundo que virá depois há de ser deles, que já nos vigiam e já preparam o caminho. Então vocês não compreendem, irmãos, que esses discos misteriosos que pairam no alto, librando-se no ar como um gavião peneirando em cima da presa, pairam no alto e depois vão-se embora são os olheiros deles, são os quintas-colunas, os esculcas das multidões de homenzinhos de cabeça grande que estão destinados a ser os nossos senhores? Depois dos observadores, chegarão os exércitos com armas tão assombrosas que, perto delas, a bomba de hidrogênio do presidente Truman é como uma ronqueira de São João. E que idade terão atingido eles, se já minguaram assim no tamanho e cresceram tanto a cabeça?

Como hão de estar apurados, refinados, 90% de matéria bruta __ e não tão bruta assim, já que pode ser tão pouca? Que poderemos nós contra eles, lerdos gigantes microcéfalos, mal saídos da grosseira idade do ferro e gatinhando ainda na infância da era atômica?

Que pensarão de nós, vendo-nos tão atrasados, tão primitivos, tão irremediavelmente presos à carne e às suas misérias, divertindo-nos barbaramente com guerras de selvagens, usando engenhos grosseiros de metal rude e brutas explosões de pólvora e nitroglicerina?

Ah, tenho medo, tenho medo. Que será de nós quando eles do céu se despencarem aos cachos, tão estranhos e terríveis, implacáveis na convicção cega do divino direito da sua sobrevivência à custa da nossa? De que modo nos irão destruir ou de que meios usarão para nos escravizar __ como animais de força bruta ao seu serviço? E como serão eles __ transparentes, gelatinosos, todo o músculo e osso apurado em matéria nobre, cérebros andantes, quase sem vísceras, talvez libertos das baixas necessidades da comida e do repouso? E terão um peito capaz de piedade, terão olhos capazes de ver além da nossa grotesca feiúra, da nossa maldade e da nossa imperfeição?

Quem sabe são anjos; e virão destruir como os anjos destroem, sem ódio, sem prazer na carnificina, apenas cumprindo ordens mais altas, com a sua espada de fogo, coração feito de diamante, que nada empana, mas nada amolece. Contudo, também podem ter evoluído apenas na direção da besta, e como bestas na quinta-essência do aperfeiçoamento serão ferozes e implacáveis __ serão os próprios descendentes do Leviatã.

Cuidado que eles estão chegando. Primeiro foi o aviso, mas em breve já não haverá avisos. Hão de baixar aos milhares e aos milhões, pequeninos e atrevidos, hão de conhecer todos os segredos, decerto se multiplicam em massa, ao sabor das vãs necessidades, produzem guerreiros e chefes ao seu gosto, terão aprendido o processo de reduzir a infância a apenas alguns meses, produzindo por sistema adiantadíssimo adultos temporões de corpo transparente e cabeça grande, no mesmo espaço de tempo que nós gastamos para fabricar um automóvel.

Ah, os que não acreditam! Ah, os que zombam! Ah, os sábios que espiam nos seus estúpidos telescópios e negam o que o olho nu enxerga! Medem as estrelas com suas réguas, e depois vêm-nos dizer que não há perigo, que nos assustamos com simples meteoro. Isso mesmo deviam declarar os pajés das tribos americanas aos guerreiros assustados que pela primeira vez avistaram as asas das caravelas subindo no horizonte. São pássaros, são raios de sol __ são sonhos dos olhos! E assim os brancos chegaram, e acharam os guerreiros desprevenidos e inermes. O mesmo sucederá conosco. É mais cômodo duvidar, é muito mais fácil afirmar que tudo é engano e mentira.

E, enquanto isso, os discos voadores partem aos milhares das suas bases de céu além, e cortam zumbindo o éter vazio, e escolhem para o seu pouso o que há de mais bonito e mais sedutor no mundo __ a Califórnia, o golfo do México, a Itália, as praias amenas do Atlântico Sul…
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