Meu amigo Amilcar Herrera é um homem sábio. Isso é surpreendente, considerando-se que ele é um cientista. O fato é que ciência e sabedoria são coisas muito diferentes. Ciência é conhecimento do mundo. Sabedoria é conhecimento da vida. A exuberância do conhecimento científico vai, frequentemente, lado a lado com uma total penúria de sabedoria. Nisso o conhecimento científico pode ficar parecido com aquela praga conhecida pelo nome de “erva-de-passarinho”, uma parasita terrível que se aloja nos troncos das árvores e, à medida que cresce, a árvore morre. Estou cansado de ver Ph.Ds tolos.
Uma das características das palavras do sábio é que elas sempre nos surpreendem. Guimarães Rosa cita um intrigante aforismo que diz assim: “Aquilo que vou saber sem saber eu já sabia”. Mas não sabia. Sabia sem palavras. Aí o sábio abre a boca e a gente se surpreende por ouvir dito aquilo que já morava adormecido no silêncio do corpo. O Amílcar falou e eu me surpreendi. Ele me disse:
Rubem, eu tenho um sonho. Sonho que um dia qualquer eu vou acordar e vou ter esquecido o meu nome. Quem sou eu? – eu vou me perguntar. E eu não saberei o que responder. Não terei memória do meu nome. O ruim é quando a gente esquece o nome, mas os outros continuam a saber quem somos. Aí os psiquiatras dizem que tivemos um ataque de amnésia. E tratam de nos curar, de fazer-nos lembrar o nome para que saibamos quem somos. O nome é uma gaiola onde o que somo mora. Declaram-nos curados quando o nosso ser aparece de novo dentro da gente. Aí eles teriam perdido a memória da gaiola que prendia o nosso ser. E o nosso ser transformaria em pássaro e voaria livre por espaços por onde nunca havia voado. O nome é uma prisão.
É preciso confessar que não foram essas, precisamente, as palavras do Amílcar. Faz muito tempo que tivemos essa conversa. Mas foram essas as associações que sua declaração provocou em mim. Eisso que ele falou, coisa na qual eu nunca havia pensado, foi para mim uma revelação. Vi repentinamente, o que eu nunca tinha visto. É isso mesmo. Nomes são gaiolas. Neles se guardam as coisas que fizemos. Existem até os currículos, gaiolas que já fizemos. Aí, com base naquilo que já fizemos, as pessoas e nós mesmos imaginamos aquilo que se pode esperar da gente.
Peirce, lógico respeitável, no seu ensaio sobre “Como tornar claras as nossas idéias”, oferece-nos a seguinte fórmula para nos ajudar a ter clareza sobre a natureza de um objeto qualquer: “Considere quais os efeitos práticos que imaginamos que esse objeto possa ter. Então, a soma desses efeitos é o que é o nosso conceito desse objeto”. Exemplificando: o objeto “galinha” – que efeitos práticos, em nosso pensamento, são invocados por esse nome? Respondo: cacarejo, ninho, ovo, cocô, ciscar na terra, molho pardo, canja etc. Esses efeitos práticos, somados, são aquilo que, na minha cabeça, está contido dentro do nome “galinha”. Aí eu pergunto: “Como foi que cheguei a associar esses efeitos práticos ao nome galinha?”. Resposta: “Pela minha experiência passada com essa entidade penosa cacarejante”.O nome, assim, é um saco onde se deposita a experiência passada. E é baseado nessa experiência que se conclui sobre o que esperar no futuro. Ninguém vai imaginar que uma galinha vai contar como pintassilgo, nem que vai botar ovos azuis, nem que vai fazer ninhos parecidos com os dos beija-flores. Galinha e galinha, para todo o sempre. Está dito no nome.
Isso que foi dito sobre a galinha vale para tudo. Para as pessoas também. Quando o meu nome é pronunciado, eu sou imediatamente informado do que fiz no passado. E, ao ser informado, pelo som enfeitiçador do meu nome, daquilo que se fiz no passado, sou também informado do meu ser e daquilo que se espera de mim no futuro. O nome, assim, obriga-me a ser de um jeito que se espera. O nome contém o programa do meu ser.
O Amilcar sabia das coisas. Imagino que aquela confissão – “Sonho que, um dia qualquer, eu vou acordar e vou ter esquecido o meu nome…” -, imagino que essa confissão nasceu de uma dor, a mesma dor que Álvaro de Campos colocou num verso: “Sou o intervalo entre o que desejo ser e o que os outros me fizeram”. Ele acorda numa manhã, com vontade sei lá de quê ´há pessoas cuja presença numa feira ou numa igreja é impensável, não combina; o lindo cirurgião de roupa branca, ele é impensável numa feira, comprando cebolas, de bermudas e sandálias, e também não se pode imaginar que o professor de economia ateu confesso ponha-se a chamar por Santa Bárbara no meio da tempestade de raios (sobre as invocações a Santa bárbara vale ser o Alberto Caeiro). Pois imagino que o Amilcar acordou com um desejo estranho qualquer, não previsto no seu nome, desejo que nunca tivera, ou que sempre tivera, mas cujo reconhecimento fora sempre proibido pelo seu nome. Mas logo veio a interdição: “Essa ação não é permitida pelo nome Amílcar Herrera. Essa ação não está prevista no programa Amílcar Herrera”.
Compreendi, então, o curioso costume de um povo primitivo que sempre dá dois nomes às pessoas. O primeiro deles é o nome igual ao nosso, anunciado, falado, escrito, conhecido, a gente grita o nome e a pessoa responde, o nome é falado e todo mundo sabe sobe quem estamos falando. O outro nome só a própria pessoa sabe. O primeiro nome é nome falso, apenas para efeitos práticos, uma mentira socialmente necessária. O outro nome, secreto, é o lugar onde mora o meu ser verdadeiro, que é muito diferente do outro. Assim, por meio desse artifício, todo mundo sabe que ninguém está preso dentro de uma gaiola de sons, que não se pode exigir que a pessoa seja, no futuro, aquilo que foi guardado no saco do nome, no passado. Cada pessoa tem, dentro de se, um segredo, um mistério. Cada burrinho pedrês tem, dentro de si, um cavalo selvagem. Cada pato doméstico te, dentro de si, um ganso selvagem. Cada velho tem, dentro de si, uma criança que deseja brincar.
Acho que era isso que o Amílcar estava dizendo:
Se eu esquecer o meu nome e se os outros não exigirem que eu continue a ser o que sempre fui, então alguma coisa nova poderá nascer da velha: uma fonte no deserto. Afinal de contas, esta é a suprema promessa do evangelho: que os velhos nascerão de novo e virarão crianças.
A mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da rua, meio ressabiado, arriscou um passo para dentro e mediu cautelosamente a distância. Como a mãe não se voltasse para vê-lo, deu uma corridinha em direção de seu quarto.
– Meu filho? – gritou ela.
– O que é – respondeu, com o ar mais natural que lhe foi possível.
– Que é que você está carregando aí?
Como podia ter visto alguma coisa, se nem levantara a cabeça? Sentindo-se perdido,tentou ainda ganhar tempo.
– Eu? Nada…
– Está sim. Você entrou carregando uma coisa.
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Pronto: estava descoberto. Não adiantava negar – o jeito era procurar comovê-la.Veio caminhando desconsolado até a sala, mostrou à mãe o que estava carregando:
– Olha aí, mamãe: é um filhote…
Seus olhos súplices aguardavam a decisão.
– Um filhote? Onde é que você arranjou isso?
– Achei na rua. Tão bonitinho, não é, mamãe?
Sabia que não adiantava: ela já chamava o filhote de isso. Insistiu ainda:
– Deve estar com fome, olha só a carinha que ele faz.
– Trate de levar embora esse cachorro agora mesmo!
– Ah, mamãe… – já compondo uma cara de choro.
– Tem dez minutos para botar esse bicho na rua. Já disse que não quero animais aqui em casa. Tanta coisa para cuidar, Deus me livre de ainda inventar uma amolação dessas.
O menino tentou enxugar uma lágrima, não havia lágrima. Voltou para o quarto, emburrado:
A gente também não tem nenhum direito nesta casa – pensava. Um dia ainda faço um estrago louco. Meu único amigo, enxotado desta maneira!
– Que diabo também, nesta casa tudo é proibido! – gritou, lá do quarto, e ficou
esperando a reação da mãe.
– Dez minutos – repetiu ela, com firmeza.
– Todo mundo tem cachorro, só eu que não tenho.
– Você não é todo mundo.
– Também, de hoje em diante eu não estudo mais, não vou mais ao colégio, não
faço mais nada.
– Veremos – limitou-se a mãe, de novo distraída com a sua costura.
– A senhora é ruim mesmo, não tem coração!
– Sua alma, sua palma.
Conhecia bem a mãe, sabia que não haveria apelo: tinha dez minutos para brincar com seu novo amigo, e depois… ao fim de dez minutos, a voz da mãe, inexorável:
– Vamos, chega! Leva esse cachorro embora.
– Ah, mamãe, deixa! – choramingou ainda: – Meu melhor amigo, não tenho mais
ninguém nesta vida.
– E eu? Que bobagem é essa, você não tem sua mãe?
– Mãe e cachorro não é a mesma coisa.
– Deixa de conversa: obedece sua mãe.
Ele saiu, e seus olhos prometiam vingança. A mãe chegou a se preocupar: meninos nessa idade, uma injustiça praticada e eles perdem a cabeça, um recalque, complexos, essa coisa.
– Pronto, mamãe!
E exibia-lhe uma nota de vinte e uma de dez: havia vendido seu melhor amigo por trinta dinheiros.
– Eu devia ter pedido cinqüenta, tenho certeza que ele dava murmurou, pensativo.
A música. Esta entidade etérea que se manifesta no ar, incapturável, dispensa a linguagem de códigos e conversa na língua dos sons. Esta, mesmo quando dotada de letra não precisa ser explicada. Causa sensações. Diferente de tantas outras formas de arte, seja a literatura, o cinema, a pintura, o desenho, a escultura, ou o que for, é muito mais raro topar com alguém que pergunte: “o que essa música quer dizer?” do que acontece com qualquer outra forma de arte. Talvez a grande diferença esteja no fato de que a música interage com os ouvidos, com as sensações – vibrações.
As crianças, por exemplo, perguntam sobre as coisas que veem. São categóricos nos discursos infantis perguntas como: “por que o céu é azul?”; “Por que aquela moça é tão feia?”; “Por que aquela pessoa não tem o braço?”; “Por que as pessoas são de cores diferentes?”, e por aí vai. São perguntas feitas pelos olhos, e estes apreendem rótulos que os ouvidos ignoram. Os ouvidos são mais receptivos. Encontram respostas e, logo, se calam. É certo que seja bem menos comum que uma criança pergunte: “Por que o som do violino é diferente do som do violão?”; “Por que as pessoas têm vozes diferentes?”; “Por que o mar faz esse barulho?”. Por alguma razão, as interrogações dos ouvidos parecem ser silenciosas ou não incomodarem tanto quanto as questões dos olhos a ponto de serem manifestas. Não se fala de uma pessoa que ela é “uma pessoa de audição” com a mesma conotação qualitativa com que se fala que ela “é uma pessoa de visão”. No entanto, de que vale a alta e clara vista sem a escuta?
É como se os olhos tivessem em sua composição lentes de interrogação e logo nos questionássemos sobre tudo o que vemos. Já os ouvidos, seletivos, identificam instintivamente os ruídos ritmados, das percussões de antigas religiões aos lamentos vocalizados, dos gemidos de dor e prazer à combinação de instrumentos – hipnotizam. E quem ousa perguntar o que dizia o canto das sereias? – A música diz tanto que não importa o que quer dizer. Entretanto, enquanto presente no sistema de decodificação do verbo, dos códigos linguísticos, ouvido é parte que ouve e questiona palavras ditas, ouvidas, escritas, entidades de som e imagem consecutivas: fogem à singularidade da escuta. Racionalizam os gestos. Olhouvido.
Todavia, todos escutam música, todos entendem música, e essa compreensão talvez resida justamente no fato de não perguntarem sobre ela. Pode-se até buscar a tradução da letra de uma melodia adorada quando cantada em outra língua, mas isto diz da narrativa contida na música, e não daquilo que a levou ser amada: o som, o ritmo, os silêncios que paradoxalmente a faz ser o que é. O som é imponente, se coloca diante de nós simples mortais, sem permitir que se questione demais. Aos que a isso se arriscam, bem, se não, deveriam sempre se tornarem músicos.
Entidade indizível, habitante do movimento incessante e invisível, guarda, revela, emana emoções: afetos diversos e distintos ousam viver em uma nota só. Tristezas e angustias, alegrias e êxtases, frustrações, esperanças, raiva e resignação. Tudo pode estar presente na mesma canção. Arte do presente impossível de congelar uma só parte, no máximo se rende a repetição. Ah, a música sempre me diz algo sobre o infinito!
Essa é a menina que mora em mim. Olhar doce, sorriso tímido, muitos sonhos e alguns medos.
Essa é a menina que mora em mim. A fila andou, o tempo passou, mas ela ainda está aqui. E faz questão de me lembrar disso, sempre, a todo momento, na risada fora de hora, no medo da solidão, na interminável vontade de aprender, na sensação de que há tanto ainda por saber, no desejo , quase desesperado, que ao raiar do dia venha a confirmação de que os monstros debaixo da cama não passam de ilusão.
Essa é a menina que mora em mim. Companheira de longa data, a única que sabe como tudo se deu. Somente ela me conhece, sabe minhas dores e alegrias, medos e fantasias.
Essa é a menina que mora em mim. Apesar de todo o caminho percorrido, às vezes não acredita no que eu mesma digo e ao hesitar, me faz pensar, por vezes, mudar.
Essa é a menina que mora em mim. Carinha de criança, expressão de esperança, mas com uma alma velha, de quem também conhece o peso da vida. Talvez, por isso, mantenha o sorriso, não um sorriso inocente, mas de cumplicidade, típico entre aqueles que se conhecem não só pela metade.
Essa é a menina que mora em mim. Escondida atrás de algumas linhas de expressão, que guarda como troféus das suas pequenas batalhas. Sabe , como ninguém, o que me faz ir além, reconhece meus medos e é capaz de guardar segredos. Sabe que o tempo é curto e que por isso, não se deve perdê-lo, mas há momentos em que desiste, seja por dor, preguiça ou medo.
Essa é a menina que mora em mim. Enfrenta lutas diárias entre a alegria e a dor, a sabedoria e o rancor, a maturidade e o frescor. Já pensou em desistir, mas no fundo, deseja mesmo é seguir, seja lá pra onde for.
Essa é a menina que mora em mim. Nos conhecemos há tanto tempo, mas ela ainda me surpreende e faz questão de deixar claro que nem ela mesmo, me entende.
Quando vemos uma criança brincando muitas vezes vem em nossas mentes aquele pensamento: “Ah como era bom ser criança, não precisávamos levar nada à serio!”
Mas, brincadeira de criança pode ser algo mais complexo do que você imagina!
As brincadeiras, tanto as lúdicas quanto as educativas, têm um importante impacto para o desenvolvimento saudável e para a vida psíquica das crianças, uma vez que a ajudam a desenvolver habilidades cognitivas, físicas, sócio-afetivas e morais, além de auxiliar a estruturar suas vidas emocionais.
Ao brincar, as crianças exercitam muitas habilidades como: capacidade de expressão verbal e não verbal, linguagem, raciocínio, pensamento abstrato, representação espacial, curiosidade, criticidade, objetividade, reflexão, flexibilidade, atenção, concentração, memória, imitação, criatividade, imaginação, relacionamento intrapessoal e interpessoal, autonomia, cooperação, autoconfiança, autoestima, iniciativa e sentimentos de competência.
As brincadeiras e os jogos infantis também podem ser instrumentos facilitadores do processo de ensino-aprendizagem das crianças. Nelas as crianças aprendem, por exemplo, a contar, a classificar, a ordenar, a discriminar, a traçar estratégias, solucionar problemas, etc.Além de aprender diversas regras sociais e, a partir delas, a regular seu próprio comportamento.
Também estão relacionadas ao desenvolvimento dos sentidos (táteis, visuais, etc), da coordenação motora, da corporalidade, do movimento, do equilíbrio, da propriocepção e da imagem corporal.
Por meio das brincadeiras e de seus simbolismos, as crianças são capazes de apreender e reelaborar o universo ao seu redor. Também desenvolvem uma vida imaginária mais rica, podendo expressar e representar seus sentimentos e ideias, por meio de metáforas e da fantasia, brincando com temas próprios de sua realidade psíquica.
O brincar também pode ser uma forma da criança expressar medos, ansiedades e conflitos, na tentativa de explicitá-los e encontrar maneiras de solucioná-los e elaborá-los internamente. Assim, aprendem que podem intervir na realidade e transformá-la.
Além disso, as brincadeiras funcionam como atividade prazerosa em si mesma e que leva a satisfação e realização pessoal.
Vez ou outra há uma tendência, quando vai se falar de política, de a pessoa dizer: “Ah, eu não quero falar sobre isso, isso não é da minha conta”. Cuidado. A política é da sua conta e é da minha.
Partido é uma coisa que a pessoa decide se tem ou não. Política é da nossa conta o tempo todo, colocar-se como neutro é um ato político, porque, como a política é a tentativa de acerto de interesses que nem sempre coincidem, colocar-se neutro é ficar sempre do lado de quem é mais poderoso.
Se alguém vê um menino de 15 anos disputando uma bala com um menino de 05 anos e diz: “Não vou me meter”, bem, já se meteu. Porque ficar omisso é ficar do lado de quem vai ganhar. É claro que o menino de 15 anos tem mais força do que o menino de 5.
Por isso, o papel do cidadão não é dizer: “Isso não é da minha conta”. Ao contrário, é da tua conta, do ponto de vista do tributo, imposto, e é da tua conta como exercício de uma vida consciente.
Cada vez que eu me omito, cada vez que eu silencio, cada vez que eu suponho que problemas de governo são apenas do governo, eu não estou transferindo poder, eu estou abrindo mão dele.
E isso é algo que, entende-se, numa democracia não deva acontecer. É preciso que, cada vez mais, tenhamos clareza que nessa relação Estado-sociedade ambos tenham obrigações e ambos tenham direitos.
Não é casual que tenhamos um lema que diz: “Educação, saúde, transporte, habitação: direito do cidadão, dever do Estado”.
Mas cuidar para que o Estado cuide é um dever nosso. A tarefa do estado é cuidar. A nossa tarefa é cuidar para que o Estado cuide.
Paciente com leucemia, Abby trocou alianças (de pirulito) com Matt Hickling
Uma comovente história foi noticiada esta semana. Abby, uma menina de quatro anos, está Internada no Albany Medical Centre, de Nova York, onde luta contra a leucemia.
Ocorreu que a criança noticiou a algumas pessoas do hospital quem seria o seu enfermeiro favorito, Matt Hickling, e afirmou que seu sonho era se casar com ele. E bem entendemos o porquê dessa escolha.
Os fatos mostram a nobreza do coração do “noivo escolhido”. O enfermeiro, comovido, organizou uma surpresa. Em 24 horas, ele, com a ajuda dos colegas do hospital, propiciou à Abby uma bonita cerimônia de casamento: vestido de noiva, buquê de flores, alianças (de pirulito), bolo, madrinhas, marcha nupcial para sua entrada na “igreja” e até um carro de brinquedo com os dizeres “recém-casados”.
Situações como estas renovam a nossa fé no humano, na esperança de que atos como estes, simples, improvisados, lúdicos, possam se proliferar num reencantamento do mundo.
Toda viagem é transição, promove mudanças, amplia olhares e exige adaptações.
No último final de semana, a minha sobrinha e eu tomamos um desses caminhos que nos tira de nossos quintais rotineiros. Saímos da minha cidade, que fica no interior do Estado, e fomos até a capital, a cerca de 120 km, e, para isso, utilizando o transporte público.
Foram dias culturais e amorosos junto a pessoas queridas e em lugares desejados. Na volta, entretanto, não conseguimos passagens para que nos sentássemos uma ao lado da outra.
Eu nem me preocupei, pois minha sobrinha já tem 14 anos, entretanto, achei que simplesmente pedir a pessoa da poltrona do lado seria o suficiente para que ela trocasse de lugar comigo e eu pudesse viajar lado a lado com minha acompanhante. Mas, para minha surpresa, as duas pessoas a quem pedi a inversão de lugares (uma fileira para trás ou para frente no lado oposto do ônibus) negaram imediatamente e ainda demonstraram leve ansiedade e desconforto por eu lhes direcionar a pergunta.
Tenho plena consciência de que elas não tinham nenhuma obrigação de ceder seus lugares e trocar comigo, mas, tendo em vista que eram pessoas que viajavam sozinhas, pensei que isso não seria nada além de uma pequena gentileza. Eu estava enganada.
Enquanto voltava para casa, separada da minha sobrinha, me lembrei de onde conhecia a primeira senhora que negou o pedido. Ela foi minha esteticista na adolescência e lembrei-me do seu profissionalismo e bom tratamento enquanto fui sua cliente.
A outra pessoa a quem pedi a troca de lugares estava sentada ao meu lado e, depois de um tempo, trocou algumas palavras educadas comigo, mostrou-se simpática e contou que ia até uma cidade vizinha da minha prestar um concurso. Eu subentendi que era um jovem médico.
Ficou claro que as duas pessoas que se negaram a trocar de poltrona não eram pessoas grosseiras, tinham formação e lidavam constantemente com o público.
Não diferente aconteceu quando viajei, juntamente com uma amiga, para o exterior e, para economizar, ficamos em um albergue em Praga. Como essa amiga, na verdade amiga da minha mãe, já tinha mais de 60 anos, ela pediu para a pessoa trocar de lugar no beliche com ela para que pudesse ficar na parte de baixo. Na ocasião, a pessoa que estava com a cama de baixo também negou o pedido.
É claro que esses “nãos” podem ser decorrentes de um motivo maior e pessoal, mas parece que em situações assim, essas que chegam a chamar a nossa atenção, o “não” vem seco e sem justificativa, dando a impressão de que a negativa não vai além da falta de interesse em ajudar.
E, se isso acontece com questões pequenas como essas, situações em que a ação envolvia mais uma gentileza do que uma real necessidade, o que acontece quando os pedidos partem de pessoas socialmente excluídas e que precisam do nosso olhar e de ações de verdadeira solidariedade?
Penso em alguns fatores…
Educação não se vende.
Uma das melhores definições de aprendizagem que conheço fala que a aprendizagem significa mudança de comportamento. Só aprendemos realmente quando entendemos que evoluir é fruto de mudanças e adaptações constantes e que envolvem empatia, flexibilidade e atenção.
Respeito não se compra.
Para educar é preciso humildade inclusive para entender que o tempo e a história do outro são diferentes da nossa. A polidez cultural só é verdadeira se vier acompanhada da polidez moral e social. Não se trata alguém bem apenas por que essa pessoa é nossa cliente e nos paga ou depois que vemos que ela tem cultura, por exemplo. Há que se ter atenção para as necessidades dos que estão próximos, há que se dizer um não, quando necessário, mas, um não que vá além do egoísmo e da falta de consideração.
Gentileza não se força.
A principal característica da gentileza é que ela acontece sem nenhuma obrigatoriedade. São a não obrigatoriedade e a espontaneidade dos atos gentis que os tornam nobres. Toda gentileza é ato de doação, é respeito pelo outro, é conhecimento em execução.
Apesar do interesse pelo tema, na prática, as pessoas parecem assustadas umas com as outras. É como se tivessem medo de dar e de receber, pois são exatamente esses dois atos que definem as relações humanas, cada vez mais raras e distantes.
O Dr. Flávio Gikovate, quando descreve “pessoas egoístas”, diz que algumas delas não gostam de receber porque se sentem na obrigação de retribuir. E, a meu ver, nesses casos a pessoa prefere nem ganhar a ter que dar algo em troca.
Esse texto não será viral como o outro, pois, ele não fala da “beleza da gentileza” e sim dos atos de gentileza que nos faltam, da reflexão que poderia nos educar e alimentar mudanças.
Sem mudanças, morre a chance da verdadeira gratidão, a que vem do aprender com afeto e sensibilidade sobre os relacionamentos humanos.
E, ao contrário do que muitos pensam, a essência do homem, aquela que será a base para grandes atos, aparece nos detalhes, nas sutilezas, nos gestos mais simples de cortesia cotidiana. Os atos verdadeiramente revolucionários são praticados a favor de quem está mais próximo, talvez daqueles que compartilham conosco as poltronas de um ônibus, dos ilustres desconhecidos a quem tivermos a ousadia de amar.
Artigo 1.º
Não estacione o coração em becos sem saída (demore o tempo estritamente necessário para largar despedidas ou carregar abraços)
Artigo 2.º
Se beber, com o intuito de se lavar por dentro, não conduza (é quase impossível dar banho ao pensamento sem molhar a lucidez)
Artigo 3.º
Antes de atravessar a realidade, pare, escute e olhe, certifique-se de que não existem ilusões em contra-mão (descalce os caminhos que já não lhe servem – caminhos são sapatos que a terra nos oferece para descalçar irrealidades)
Artigo 4.º
Não abra a boca a beijos desconhecidos (especialmente aos conhecidos que se fazem desconhecer)
Artigo 5.º
Evite adormecer em sonos usados (cansam mais do que subir o infinito a pé)
Artigo 6.º
Seja mais sonhamor e menos sonhador (a dor não faz falta. Cria ausências)
Artigo 7.º
Nunca faça amor em locais proibidos, salvo em legítima defesa da saudade.
Heduardo Kiesse é um poeta angolano residente em Portugal dotado de inegável talento e de grande criatividade. É idealizador e administrador da página ParadoXos
Por que é tão importante escolher, ou melhor, cuidar das palavras que usamos ao nos referirmos aos nossos filhos?
Simplesmente porque os filhos acreditam nos pais.
E este fato faz toda a diferença.
Quando a criança ouve que é valiosa, querida, divertida, criativa, linda, amada, etc, ela se torna aquilo que os adultos (que lhe são referência) lhe dizem que são. Do mesmo modo, quando a criança cresce ouvindo que não presta pra nada, que só faz burradas, que é egoísta, mal educada e tantas outras palavras negativas, certamente que ocorrerá o mesmo. Ela se tornará aquilo que disseram que ela é.
Por isso devemos ter todo o cuidado com o que é dito à criança, estas palavras, ditas e repetidas por aqueles a quem elas dão o maior crédito, em quem confiam com toda a sua força, se tornam o alicerce da identidade em construção da criança. Quanta responsabilidade! E o que fazer quando o repertório de palavras positivas dos pais ou cuidadores for tão pequeno, tão limitado, em razão de uma infância também pobre neste sentido? E quando eles mesmos não ouviram nada de positivo e não foram rodeados de palavras carinhosas enquanto cresciam? Devemos nos contentar com o velho ditado “A gente só pode dar aquilo que recebeu”?
Penso que não. Quando trabalhamos com famílias em situação de violência, vemos que precisamos ir além..
Precisamos olhar para as crianças que ainda se escondem dentro dos pais, crianças muitas vezes raivosas, magoadas, solitárias e que, muitas vezes, foram vítimas de um abandono emocional atroz. Precisamos não só olhar, mas resgatar o não dito, nos aproximar da dor numa tentativa (muito difícil, é verdade) de ajudar esse adulto a olhar com um pouco mais de amor essa criança interior. Ajudá-lo a construir uma ponte, uma ligação entre o presente e o passado, para que o adulto de hoje possa atravessá-la junto com essa criança de ontem, que até então estava lá, esquecida, sozinha, magoada e sofrida. Só então, depois deste “acerto de contas” com a sua própria criança, poderá este adulto olhar verdadeiramente para o seu filho(a). sem o véu da mágoa , do ciúme e da inveja pela oportunidade que esta criança tem e que lhe fora roubada. Só então ele estará pronto, ou ao menos em melhores condições de acolher seu filho da maneira adequada.
Um coração feito de pedras jamais será um lugar de aconchego. Há que se livrar do que fere, da aridez dos sentimentos e retirar os espinhos para que haja lugar para o amor, tão mais macio e acolhedor.
Neste processo de cuidado da criança do passado, através da criança do presente, haverá lacunas que jamais poderão ser preenchidas e temos que ter esta consciência. Mas, uma vez que a criança ainda está lá, sempre será possível fazer alguma coisa.
Que sejamos capazes de ouvir este pedido de ajuda dos pais através do que nos chega hoje, ou seja, do sofrimento de suas crianças. Que possamos fazer isso, sem perder de vista a responsabilização por quaisquer violação de direitos, mas sem julgamentos desnecessários, apenas com a escuta e o olhar que lhes foi negado antes. Para que sejam capazes de perdoar seus pais, para que possam reconstruir parte do caminho e, principalmente, para que não transformem seus filhos em mais tantas outras crianças esquecidas.
Eu não vejo graça em gente que conta vantagem sobre artigos de luxo, viagens caras, restaurantes sofisticados. Assusta-me quando alguém chega dizendo de seus títulos e se apresenta como “doutor”. Mais assustada fico quando alguém me chama de “doutora”. Nas primeiras vezes em que assim fui chamada, senti uma imensa vergonha, como se fosse algum deboche que colocasse às claras tudo aquilo que reconheço não saber.
Eu gosto de conversar com gente simples. Gente que gosta de andar descalça, que não liga para etiquetas, títulos, status… Que não liga a mínima se tiver que comer sem garfo ou faca, que não se angustia com a ausência de guardanapos, que pouco entende de grifes, marcas ou coisas do gênero.
Dia desses, visitou-me uma senhora de cerca de 70 anos, dona Maria. Ela acabara de conseguir a guarda de uma menor: a Rosa, de quem ela já cuidava desde pequenininha e a levou consigo. Chegaram à sala em que eu fazia atendimento no Juizado da Infância e Juventude e logo percebi que nem a dona Maria e nem a Rosa fazia conta da realidade das coisas. Olhavam para os lados, sorriam. Olhavam para cima, também sorriam. Brincavam com as próprias mãos. Dona Maria tinha um ar um tanto mais apreensivo, temendo alguma má criação da menina.
Apressei-me, curiosa para saber do que se tratava. A Rosa é uma menina com desenvolvimento mental incompleto. Loira, 15 anos de idade, de olhos amendoados e ternos. Vive não aprisionada, mas livre em seu mundo pessoal, em seu universo mental adornado de mais mistérios e mais fantasias que o nosso, mas, seguramente mais encantado que o nosso, mais rico, mais lúdico, mais humano.
Elas necessitavam de um benefício previdenciário e procuraram-me para isso. Dona Maria não soube responder nada do que perguntei, assim, analisei a documentação e coletei, após alguns minutos de leitura, os dados necessários para ajuizar a ação. Enquanto isso, a Rosa ainda sorria e brincava com as mãos, olhando-me de modo envergonhado, enquanto eu fazia as anotações.
Terminada a tarefa séria, perguntei:
– Rosa, você está na escola? Sabe ler e escrever?
No que ela respondeu-me:
– Eu estudo. Eu aprendi o “a”, mas já esqueci.
Deus, que vontade passar o restante da tarde conversando com a Rosa. Descobrindo que encanto ela via nas mãos, na parede, no teto, descobrindo a beleza de seu mundo interior, a pureza da sua alma quase infantil.
Insisti:
– Como assim, esqueceu o “a”, Rosa?
Ela, sem vexame:
– Tem nada não. Amanhã eu lembro de novo.
E saíram a Rosa e a sua guardiã Maria, pessoas que não davam fé da sobriedade do mundo. Não mensuravam suas limitações psicológicas, sua pobreza material, não se importavam com os seus pés sujos de poeira, com a unha suja de carvão, com seus cabelos despenteados.
Ao saírem, a Rosa se curva e pergunta para a dona Maria:
– Como ela chama?
– Dotora, ela chama dotora.
Daí, a Rosa grita da porta:
– Dotora, a senhora sabe fazer o “a”?
Eu fiz um sinal positivo com a cabeça e pensei comigo: Não, Rosa, eu não sei. Ao menos não sei fazer o seu “a”, ser misterioso e mutante, que chega e acontece e logo se esvai. Estou presa a um mundo de “as” fixos, rígidos e permanentes. Um mundo de letrados tolos, doutores vaidosos e letristas pouco humanos. Um mundo onde viver não é essencial e sim o ostentar a vivência. Um mundo que você não vai querer conhecer, Rosa. O meu “a” não chega ao chinelo do seu.
Desde livros filosóficos e científicos aos discursos do senso comum, nas corriqueiras queixas do dia a dia, o vazio e a fluidez das relações estão em pauta. São tantos queixando-se da solidão, da desconsideração do outro, da instabilidade dos vínculos, da dificuldade em se envolver emocionalmente quando o outro se fecha para os sentimentos, dentre tantos outros discursos semelhantes, que poder-se-ia supor que, caso essa simples constatação significasse que aqueles que o dizem vivem em condição contrário ao que criticam, teríamos no mundo pessoas em número suficiente para mudar essa perspectiva.
No entanto o sofrimento emocional, toda essa batalha contra o outro, mas pelo outro, parece sobreviver e instalar-se como uma epidemia vampiresca, sugadora das existência e multiplicadora de vácuos e vazios. Bem, não me parece que essa seja uma condição nova na sensação de ser humano. A nostalgia consoladora pode nos fazer pensar que existiram tempos melhores, até porque os registros, históricos ou não, que nos são acessíveis trazem relatos sobre grupos bem específicos. Mas quem é que se baseia em um passado melhor pensando na vida de um escravo egípcio, de uma família camponesa norte europeia que vivia verão e primavera para prevenir-se do inverno e pagar impostos aos donos de sua terra, ou das vítimas de guerra de outrora ou de ontem?
Não que devêssemos basear a nossa vida no pior, mas que “melhor” é esse tão almejado dentre tantas existências outras possíveis? Bem, para isso ou para qualquer especulação, o que poderia ter sido não é, o que foi não é mais. Temos o presente, temos a nós mesmos, as coisas como estão. Relacionar-se pode ser mesmo algo difícil em tempos nos quais todos almejam a liberdade, ainda que não tenham a menor clareza do que ela se trata. Não há sequer definição consensual do que ela seja, não há evidência empírica do que ela poderia ser. Vivendo, primeiramente, aprisionados pelo trabalho, pela necessidade de sustentar-nos através de uma atividade considerada socialmente de respeito, com uma remuneração que nos possibilite ao menos o mínimo (ou não), por uma estabilidade que não nos tire o sono de amanhã, para, então, caso esta fase básica de sobrevivência superada, ter a ilusão de que precisamos nos vestir com roupas mais caras, morar em bairros mais enobrecidos, comer em lugares mais refinados, adquirir objetos cobiçados, e então escolher nossas relações a partir disso – a partir daí, tantas sequências possíveis seguindo esta mesma perspectiva.
Sendo assim, que liberdade conhecemos? Se há alguma coisa, a saber o dinheiro, que se interpõe entre as necessidades mais básicas da nossa vida e as nossas escolhas, é possível pensar em liberdade? Porquanto essa luta que parte dos clamores inegligenciáveis da necessidade do corpo, da sobrevivência bruta à sustentação de uma imagem criada, da sobrevivência de um simulacro; que tempo nos resta para dedicar a estas relações que tanto almejamos? Para enxergar no outro essa correspondência que buscamos? Talvez os praticantes criticados sejam também os praticantes criticantes…
A lógica material nos dá subsídio para pensar no universo dos afetos. Mesmo para executar uma multiplicação milagrosa é preciso um protótipo do que se pretende multiplicar para começar. Não se pode multiplicar pães sem nenhum pão, não se pode multiplicar peixes sem peixe algum, não se pode transformar água em nada, se não houver água. Por maior que seja o desejo de doar, é preciso ter algo consigo para reparti-lo ou fazê-lo múltiplo.
Todavia, o âmbito emocional não funciona de uma forma tão simples quanto o dos objetos. Muitos interpretam que um certo outro foi amado o suficiente, que foi querido o suficiente ou que teve qualquer outro tipo de afeto o suficiente para poder vivê-lo plenamente. Desconsideramos nesse julgamento a própria percepção do outro, e logo revelamos que somos incapazes de ter empatia com a mesma consistência com a qual julgamos. Desconsideramos o massacre diário ao qual todos estão submetidos desde a infância, pelas diversas fontes que nos perfuram com suas considerações: escola, colegas, as pessoas da rua, a televisão, os meios de comunicação, os amigos, “as famílias”, os livros e outros meios de comunicação. Há tanto que recebemos, que só quem conhece a própria armadura dá conta do que o atinge ou não. E ante as flutuações naturais da natureza lunar dos afetos, estas se reconstroem, se reconstituem, as vezes se tornam fortalezas por medo da instabilidade. O amor que vem, o amor que vai, o elogio de ontem que se converte em repreensão amanhã, a melhor amizade de anos que se torna distância. Desilusões.
Em um contexto no qual somos submetidos a insegurança em todos os níveis, desde do que se refere à sobrevivência do nosso corpo, a manutenção de nossos bens, até ao valor que temos enquanto pessoas, não surpreende que resulte nessa necessidade de proteção. Já não há instinto de proteção a um outro mais fraco, pois, embora não pareça, mesmo aqueles que se gabam: todos estão fracos demais. Não aprendemos a sentir pulsar interiormente o desejo de adotar um ato de gentileza, aprendemos a fazê-lo porque é “correto”, e isto engendra trejeitos por vezes assustadores de tão caricaturais. A exemplo da gentileza seguem-se o repertório de sentidos que não mais ultrapassam seus significados: afetos são como encontrados em dicionários, mas não como se fossem ditados pelos manuais ortográficos, mas pelos sentidos atribuídos através de meios aparentemente inocentes: um entretenimento que nos direciona a histórias que deveriam ser as nossas, que poderiam ser as nossas, que desejamos que fosse a nossa, mas não é. Não é a história de ninguém.
Essa estratégia de criar desejo tão explorada pelos meios de comunicação nos impede de conhecer os nossos próprios. Sejam os 10 quilos a menos ou o amante fantástico e aventureiro que aparece para nos salvar de uma vida de tédio, enquanto a revista acaba em alguns parágrafos, a novela em alguns capítulos, o filme em minutos, o jogo em tempos, quem sabe o que prossegue depois? Dos bastidores ao que há por trás deles, quem conhece de fato o que existe pós-final-feliz? Daquele ideal buscado na aparência, no jeito de ser, no jeito de ter, desses status que nos colocam como condição, o que de fato teria servido a nossa sensação de plenitude por mais do que alguns momentos?
Não parece mesmo possível relacionar-se com o outro quando não temos nada a oferecer porque nos ancoramos a um desejo comercial. Esse vazio do qual nos queixamos, se somos nós que sentimos, então também o alimentamos. Contribuímos para este esvaziamento que mata o mundo de fome: fome de sensibilidade. Dessa carência coletiva, o que parece inconsciente é o fato de que se somos desprezados, também desprezamos, se somos julgados, também julgamos, se somos descartados, também descartamos, e segue-se a dialética das ações, ainda que singularizadas por sutilezas. Dessa forma, como podemos esperar receber do outro o que não somos capazes de oferecer? Não seríamos também alvos das queixas que despejamos no mundo?
Não incorramos em engano, questionar-se sobre a própria posição em relação àquilo que criticamos no outro, não é semelhante à postura tão superestimada de gozar da solidão como solução mágica para os desencontros. Isso não é uma realidade: a maior parte das pessoas não estão felizes sozinhas. Essa escolha seria mais de outra natureza, e em alguns casos, mais uma defesa do que uma escolha de fato. Contraditório que seja, o próprio desenvolvimento do homem, do momento em que nasce à sua morte, nos revela uma ausência inquestionável de autonomia absoluta por parte da nossa espécie – é inevitável conviver. E essa coisa de conviver com o outro exige antes uma introspecção espinhosa para conhecer o outro em nós. Questionar-se sobre a própria posição em relação àquilo que criticamos no outro, seja outro Nós, seja outro Um, seja outro Mundo. É relacionar-se.