“Sofrimento produtivo e improdutivo”, por Flávio Gikovate

“Sofrimento produtivo e improdutivo”, por Flávio Gikovate

Podemos tentar classificar nosso sofrimento íntimo como normal ou patológico. Trata-se de uma avaliação complexa e difícil. Podemos pensar em tristeza com causa objetiva determinante e estados depressivos (tristeza e depressão são, hoje em dia, usados como sinônimos) definidos antes de tudo por alterações na química cerebral. Não se deve subestimar a dificuldade presente neste tipo de divisão, pois estados de alma interferem sobre a química e vice-versa.

Penso que é muito mais útil separar os estados depressivos em sofrimento construtivo e produtivo ou improdutivo e pouco útil – senão completamente inútil. Do ponto de vista prático, esta é a classificação que determina o tipo de interferência do profissional de saúde.

O sofrimento produtivo é aquele que deriva da tomada de consciência de erros que cometemos: a autocrítica é sempre muito dolorosa quando, por exemplo, um empresário tem que perceber que sua situação financeira se deteriorou por força de equívocos previsíveis; dói para alguém que perdeu o parceiro sentimental por razões que poderiam ter sido evitadas, dentre tantos outros exemplos.

A fase de avaliação do ocorrido é extremamente produtiva e pode levar a importantes mudanças psicológicas, melhorando as condições da vida futura. Numa situação dessas seria quase criminoso fazer uso de algum tipo de medicação que viesse a prejudicar a reflexão em toda sua profundidade.

Nos casos de luto por morte de pessoa querida a situação é diferente, já que não temos que aprender nada acerca de nossas atitudes. Talvez tenhamos muito a aprender sobre condição humana e, é claro, cabe a dor e sofrimento que, diga-se de passagem, nenhum tipo de medicamento é capaz de atenuar muito durante a fase aguda da tristeza.

Acontece que, tanto no caso da autocrítica útil e construtiva quanto no luto necessário para melhor entendermos nossa condição, pode acontecer do estado depressivo se estender para além do útil e conveniente.

No caso do empresário que aprendeu com seus erros, é claro que ele terá que sair do estado depressivo e ir atrás de salvar o que restou de seus negócios. Para conseguir fazer isso é preciso que esteja um pouco mais disposto.

Isso vale para quase todas as condições depressivas que se prolongam para além do que é produtivo e útil. Aí cabe sim tentarmos ajudar a pessoa a sair do atoleiro depressivo (que, muitas vezes, já se tornou um fato químico) por meio do uso de medicamentos e psicoterapia (que está indicada também na fase de autocrítica).

Nos casos em que a depressão é de origem essencialmente química, todo o sofrimento é inútil e a mente patina em medos e pensamentos obsessivos de caráter negativo dos quais nada de bom se pode extrair. Cabe lançar mão de todos os recursos hoje disponíveis para amenizar este tipo de dor que não leva a nada.

Para mais informações sobre Flávio Gikovate

Site: www.flaviogikovate.com.br
Facebook: www.facebook.com/FGikovate
Twitter: www.twitter.com/flavio_gikovate
Livros: www.gikovatelojavirtual.com.br

Fotografia de Anna O

“Vivemos numa sociedade falocêntrica”, é o que explica Leandro Karnal

“Vivemos numa sociedade falocêntrica”, é o que explica Leandro Karnal

Leandro Karnal, Doutor em História e professor da UNICAMP desde o ano de 1996, fala, neste vídeo, sobre a supervalorização do masculino e dos esteriótipos a ele associados em nossa sociedade, atribuindo a essa visão predominante a exaltação da violência, do ódio, do contender.

Trata-se, pois, de mais uma dentre as fantásticas reflexões de Leandro Karnal.

“Do livro do desassossego”: trechos selecionados confirmam a genialidade de Fernando Pessoa

“Do livro do desassossego”:  trechos selecionados confirmam a genialidade de Fernando Pessoa

Livro do Desassossego – Fernando Pessoa

“O coração, se pudesse pensar, pararia.”

“…não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram.”

“É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo e da alma. É o sentimento súbito de se estar enclausurado na cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só a cela é tudo?”

“A solidão desola-me. A companhia oprime-me. A presença de outra pessoa desencaminha-me os pensamentos.”

“Há momentos em que tudo cansa, até o que nos repousaria.”

“Mais terrível do que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros.”

“Dá-se em mim uma suspensão da vontade, da emoção, do pensamento, e esta suspensão dura magnos dias. (…) Nesses períodos de sombra, sou incapaz de pensar, de sentir, de querer. (…) Não posso; é como se dormisse e os meus gestos, as minhas palavras, os meus atos certos, não fossem mais que uma respiração periférica, instinto rítmico de um organismo qualquer.”

“O oráculo que disse “Conhece-te” propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge.”

“Da nascença à morte, o homem vive servo da mesma exterioridade de si mesmo que têm os animais.”

“Quem sou eu para mim? Só uma sensação minha.”

“Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a um filho morto.”

“Não sei de prazer maior, em toda a minha vida, que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória nem ilusão, o não ter passado nem futuro.”

“O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir ao que amo. (…) Quero não ver mais estes rostos, estes hábitos e estes dias.”

“Eu mesmo, que sufoco onde estou e porque estou, onde respiraria melhor, se a doença é dos meus pulmões e não das coisas que me cercam?”

“Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me. Sinto-me expulso da minha alma.”

“Sou uma prateleira de frascos vazios.”

“Sou uma espécie de carta de jogar, de naipe antigo e incógnito, restando única do baralho perdido. Não tenho sentido, não sei do meu valor, não tenho a quem me compare para que me encontre, não tenho a que sirva para que me conheça.”

“Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos – a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo.”

“Meu coração dói-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto.”

“Minhas pálpebras dormem, mas não eu.”

“Parece-me que sonho cada vez mais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionável.”

“A alma humana é um abismo escuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do mundo”

“No baile de máscaras que vivemos, basta-nos o agrado do traje, que no baile é tudo. Somos servos das luzes e das cores, vamos na dança como na verdade…”

“Sou os arredores de uma vila que não há. (…) Sou uma figura de romance por escrever.”

“A liberdade é a possibilidade de isolamento. (…) Se te é impossível viver só, nasceste escravo.”

“…certas personagens de romance tomam para nós um relevo que nunca poderiam alcançar os que são nossos conhecidos e amigos, os que falam conosco e nos ouvem na vida real.”

“…como tudo dói se o pensamos como conscientes de pensar, como seres espirituais em que se deu aquele desdobramento da consciência pelo qual sabemos que sabemos!”

“A condição essencial para ser um homem prático é a ausência de sensibilidade (…). A arte serve de fuga para a sensibilidade que a ação teve que esquecer.”

“O poema que eu sonho não tem falhas senão quando tento realizá-lo.”

“Dói-me o universo porque a cabeça me dói.”

“A memória, afinal é a sensação do passado… e toda sensação é uma ilusão.”

“Fechos subitamente portas dentro de mim, por onde certas sensações iam passar para se realizarem.”

“A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida, há um ponto final.”

“Há qualquer coisa de longínquo em mim neste momento. Estou de fato à varanda da vida, mas não é bem desta vida. (…) Sou todo eu uma vaga saudade, nem do passado, nem do futuro: sou uma saudade do presente, anônima, prolixa e incompreendida.”

“Errei sempre os gestos que ninguém erra; o que os outros nasceram para fazer, esforcei-me sempre para não deixar de fazer. Desejei sempre conseguir o que os outros conseguiram quase sem o desejar. Entre mim e a vida houve sempre vidros foscos: não soube deles pela vista, nem pelo tato; nem a vivi essa vida ou esse plano, fui o devaneio do que quis ser, o meu sonho começou na minha vontade…”

“Mas nem a dor humana é infinita, pois nada há humano de infinito, nem a nossa dor vale mais do que ser uma dor que nós temos.”

“O maior domínio de si próprio é a indiferença por si próprio.”

“A humanidade, que é pouco sensível, não se angustia com o tempo, porque sempre faz tempo; não sente a chuva senão quando lhe cai em cima.”

“Amanhã também eu – a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas (…) E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.”

Fonte indicada: Fragmentos

Três poemas de Neruda que farão com que o seu coração acelere imediatamente

Três poemas de Neruda que farão com que o seu coração acelere imediatamente

Poema 20

Posso escrever os versos mais tristes esta noite
Escrever por exemplo:
A noite está fria e tiritam, azuis, os astros à distância
Gira o vento da noite pelo céu e canta
Posso escrever os versos mais tristes esta noite
Eu a quis e por vezes ela também me quis
Em noites como esta, apertei-a em meus braços
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito
Ela me quiz e as vezes eu também a queria
Como não ter amado seus grandes olhos fixos ?
Posso escrever os versos mais lindos esta noite
Pensar que não a tenho
Sentir que já a perdi
Ouvir a noite imensa mais profunda sem ela
E cai o verso na alma como orvalho no trigo
Que importa se não pode o meu amor guardá-la ?
A noite está estrelada e ela não está comigo
Isso é tudo
A distância alguém canta. A distância
Minha alma se exaspera por havê-la perdido
Para tê-la mais perto meu olhar a procura
Meu coração procura-a, ela não está comigo
A mesma noite faz brancas as mesmas árvores
Já não somos os mesmos que antes havíamos sido
Já não a quero, é certo
Porém quanto a queria !
A minha voz no vento ia tocar-lhe o ouvido
De outro. será de outro
Como antes de meus beijos
Sua voz, seu corpo claro, seus olhos infinitos
Já não a quero, é certo,
Porém talvez a queira
Ah ! é tão curto o amor, tão demorado o olvido
Porque em noites como esta
Eu a apertei em meus braços,
Minha alma se exaspera por havê-la perdido
Mesmo que seja a última esta dor que me causa
E estes versos os últimos que eu lhe tenha escrito.

Pablo Neruda

Não te quero

Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.

Tal vez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.

Pablo Neruda

Antes

Antes de amar-te, amor, nada era meu
Vacilei pelas ruas e as coisas:
Nada contava nem tinha nome:
O mundo era do ar que esperava.
E conheci salões cinzentos,
Túneis habitados pela lua,
Hangares cruéis que se despediam,
Perguntas que insistiam na areia.
Tudo estava vazio, morto e mudo,
Caído, abandonado e decaído,
Tudo era inalienavelmente alheio,
Tudo era dos outros e de ninguém,
Até que tua beleza e tua pobreza
De dádivas encheram o outono.

Pablo Neruda

Os desafios da escolha profissional

Os desafios da escolha profissional

Por Juliana Santos  e Lilian Marin Zucchelli

O que você quer ser quando crescer? Todos nós quando crianças ouvimos esse questionamento, não é mesmo? Mas, quando chega o momento da decisão, nem sempre estamos preparados para esse grande desafio que é a escolha profissional.

Houve um tempo em que a humanidade acreditava que seus talentos eram dados pelos deuses. Assim, estes seriam como um guia a conduzir o homem em seu destino. Vivê-los, portanto, significava cumprir o próprio destino e alcançar a sensação indescritível de ter compreendido o motivo e o mistério da própria existência.

Milhares de anos se passaram e a descoberta da própria vocação continua sendo um dos temas mais inquietantes de nossas vidas. Afinal,para que estamos aqui? Nossos talentos apontam para qual direção? Que profissão escolher diante de tantas possibilidades? Estes e outros tantos questionamentos preocupam e inquietam cada vez mais cedo a mente dos adolescentese suas famílias.

Geralmente, esta escolha se faz na adolescência, fase marcada pela transição entre a infância e a vida adulta. Se pudéssemos usar uma imagem para simbolizá-la seria a de um “Portal”. Dentro dele, o espaço é intermediário, sem muitas seguranças, e o ego vai flutuando hora para lá e hora para cá, e por isso as influências ganham tanto espaço.

As demandas são muitas: modificações na personalidade; experiências de autoconhecimento; mudanças corporais e hormonais; ampliação da visão de mundo; novas definições de identidade e papéis sociais; mudanças nas relações familiares; identificações com pessoas, ideais ou grupos; novas responsabilidades ea definição de uma profissão!

Tantas transformações simultâneas podem ser exigentes o bastante para gerar angústia e ansiedade. E, por isso, é comum que muitos adolescentes e suas famílias recorramà uma Psicoterapia ou à ajuda de um Orientador Profissional que lhes auxilie a “organizar a própria casa” para então se posicionar diante de um menu recheado de profissões.

A escolha profissional é mais um momento difícil, sofrido e sentido da vida do adolescente que progressivamente, interna e externamente, vem optando por algumas coisas e tendo que abrir mão de tantas outras. Ela não é um fato isolado, mas algo que se insere no todo da vida, intrinsecamente ligada à individualidade, à realização, aos sonhos, esperanças, fantasias, medos e amor. Neste conflito heróico em que se busca a confirmação da autonomia e a autoafirmação, o adolescente mergulha dentro de si mesmo, se confronta com suas questões pessoais, e então avança para uma escolha que lhe seja capaz de satisfazer a alma e não apenas o bolso.

Na contramão deste processo, a sociedade pós-moderna capitalista tem favorecido cada vez menos espaço para o contato do ser humano com as individualidades de sua alma. As exigências sociais, bem como as expectativas familiares nem sempre respeitam o tempo necessário para o adolescente fazer o seu caminho de escolha. Isso se confirma, por exemplo, quando buscamos uma escola de educação infantil para nossos filhos e vemos na campanha de marketing da instituição que o foco da educação é o vestibular.

Mas quem, lá pelas tantas da vida, não gostaria de sentir-se no lugar certo, feliz e satisfeito com seus talentos e interesses diante da vocação escolhida?

A família e a escola são os espaços privilegiados onde os adolescentes poderão encontrar-se. Inúmeras vezes segue-se o desejo de ser como a mãe, o pai, o avô ou algum outro parente com quem se identifica e que lhe toca os talentos no coração. Alguns professores tambémpoderão influenciar esta escolha já que são capazes de arrancar do aluno uma admiração que lhes favorece a formação da autoimagem através de uma relação de afeto, onde certamente haverá espaço para o diálogo, feedbacks positivos e críticas construtivas a respeito de seu desempenho nas matérias e na vida.

Um cuidado que precisa ser tomado é que os pais e familiares precisam estar atentos, para não projetarem em seus filhos suas expectativas quanto à carreira e sucesso profissional, baseados em suas próprias crenças e experiências pessoais passadas. Frases como: “Você tem que ser médico como seu pai, que já tem um consultório onde você poderá trabalhar!” ou “Nesta profissão você não vai ganhar dinheiro ou ser bem sucedido!” podem ser extremamente prejudiciais na medida que se fazem imposições ao adolescente sem considerar seus talentos e individualidades.

Seguir uma imposição que não realize a alma é sempre optar por abrir mão da própria vida, para viver a do outro. Mais cedo ou mais tarde, a vida deixada de lado voltará a bater na porta para cobrar o seu espaço. Sempre caberá aos pais a função do aconselhamento e cuidado, mas o lugar ideal será sempre o do lado e até de mãos dadas, mas à frente, nunca.

Há também a influência do grupo de amigos, onde todos estão na mesma situação. O jovem tende a identificar-se com seus pares e, muitas vezes, para ser aceito no grupo, adere à opinião dos mais “influentes”. Isso, normalmente não dura muito tempo e faz parte do processo de amadurecimento e da formação da própria identidade.

A escolha de uma profissão precisa ser feita com sabedoria e discernimento, pois caso contrário, as chances de fracasso ou de uma futura insatisfação profissional tornam-se muito grandes. Porém, vale lembrar que sempre nossa vida e personalidade, são dinâmicas! Deste modo, pode acontecer de escolhermos algo que nos realize por algum tempo, mas que depois, com as mudanças que vamos passando, essa opção não nos satisfaça mais. É hora de desatar o barco e partir para um novo cais!

A verdade é que não existe uma profissão certa ou errada, melhor ou pior a seguir, todas podem trazer prazer, sucesso e felicidade, desde que cumpra o papel de proporcionar à pessoa a realização no mundo de suas habilidades e talentos.  Afinal, no quebra-cabeças da humanidade, toda peça é fundamental para a construção do sonhamos viver.

Neste tempo de escolha, o serviço de Orientação Profissional pode ser um recurso de grande valia para afinar a visão e afunilar as muitas possibilidades, já que quando tratamos de humanidade, não existem verdades absolutas. Através de um processo estruturado e orientado, o Psicólogo poderá favorecer o autoconhecimento através do uso de diversas técnicas e estratégias de ação.São atividades que auxiliam na reflexão sobreos sonhos e aspirações, sobre si mesmo e a própria história, sobre as possíveis profissões e expectativas em relação ao futuro e ao papel que se quer ocupar na sociedade.

Testes psicológicos, entrevistas, pesquisas de profissões, jogos psicopedagógicos, escuta analítica e outras técnicas,são ferramentas que possibilitarãoa reflexão e o autoconhecimento. Este processo poderá levar o adolescente a perceber que todas as respostas para as suas questões já se encontravam dentro dele, e que só precisava de ajuda para descobri-las.

Assim, muitos adolescentes e familiares que passam por este momento tão importante, podembuscar estratégias e soluções que auxiliem os que ainda não sabem ou têm dificuldades de decidir para onde desejam mirar as suas flechas. O caminho será sempre o que realiza o coração e lhe faz crescer em humanidade. Afinal, não há valor que pague a sensação de termos encontrado nosso lugar no mundo!

Passos da Orientação Profissional

1- Despertar

No consultório, através das entrevistas iniciais, o adolescente poderá revisitar a própria história, levantar e classificar suas múltiplas inteligências, competências, aptidões, recursos, valores e princípios.

2- Desbravamento

Baseando-se nos recursos que tem, o adolescente terá a oportunidade de analisar o mercado de trabalho, escolas, cursos e grades curriculares, a fim de ganhar conscientização e criticidade para sua escolha.

3- Indo à campo

O adolescente terá a missão de conversar com vários profissionais das áreas que mais lhe interessam para, pouco a pouco, afunilar as possíveis possibilidades de escolha.

4- Encerramento

Ao final, o adolescente deverá se sentir mais autoconsciente, confiante e criativo frente o caminho que se abrirá para a continuidade de sua jornada. 

 

Autoria

contioutra.com - Os desafios da escolha profissionalLilian Marin Zuchelli – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana pela PUC-SP. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Institiuto Sedes Sapientiae. CRP: 06/23768

contioutra.com - Os desafios da escolha profissional

Juliana Pereira dos Santos – Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica Junguiana. Aprimoranda em Psicopatologia e Psicologia Simbólica pelo Instituto Sedes Sapientiae e Coach formada pela Sociedade Brasileira de Coaching. CRP: 06/ 108582             

                

A insustentável leveza do sexo

A insustentável leveza do sexo

Estar sozinho. Sentir-se sozinho. Ter apenas o próprio reflexo. A solidão é algo de que todos, de uma maneira ou de outra, buscam afastar-se. Seja pela dificuldade que temos de olhar a nós mesmos (como dizia Pascal), seja pela dificuldade de encarar a existência, com toda sua complexidade, sem nada para nos apoiarmos. A solidão nos aflige, porque há um vazio dentro de nós, o qual só pode ser preenchido por outra pessoa. Sendo assim, busca-se, no amor, a solução para o vazio existencial.

No mundo líquido, esse vazio existencial é preenchido pelo sexo. As pessoas possuem incontáveis “parceiros”, contudo, são incapazes de relacionar-se, de tal modo que o sexo casual, totalmente desconectado com um relacionamento e, consequentemente, com o amor, não pode preencher esse vazio, mas, antes, afastá-lo dos outros. Erich Fromm, sabiamente, diz:

“O sexo só pode ser um instrumento de fusão genuína – em vez de uma efêmera, dúbia e, em última instância, autodestrutiva impressão de fusão – graças a sua conjunção com o amor. Qualquer que seja capacidade de fusão que o sexo possa ter, ela vem de sua camaradagem com o amor.”

Não quero fazer um culto de negação ao corpo, mas parece-me que o sexo desvencilhado do amor ou de qualquer outra coisa, isto é, o sexo livre de ligações no dia seguinte, não conseguiu o que prometia. Em um primeiro momento, pode ser empolgante caminhar no mundo do “sexo puro”, mas e quando a correnteza não puder ser controlada? Afinal, deve-se ser livre, pois ter algo que o prenda é proibido nesse jogo. Então, estar à deriva é tão bom assim? Preenche o vazio? Segundo Bauman, não, pois,

“Voar suavemente traz contentamento, voar sem direção provoca estresse. A mudança é jubilosa; a volatilidade incômoda. A insustentável leveza do sexo?”

Essa insustentável leveza do sexo pode ser percebida nos muitos casos que chegam aos consultórios, de pessoas frustradas, já que o remédio que prometia curar causou mais moléstias. Dessa forma, o sofrimento torna-se ainda maior, pois, na medida em que se tentou afastar-se da solidão com o “sexo puro”, percebeu-se que se estava mais só do que antes. Essa frustração ocorre porque o sexo esvaziou-se de sentimentos e, portanto, não permite, em si, a capacidade de realização que se pretende. Em outras palavras,

“Quando o sexo se apresenta como um evento fisiológico do corpo e a palavra sensualidade pouca evoca senão uma prazerosa sensação física, ele não está liberado de fardos supérfluos, avulsos, inúteis, incômodos e restritivos. Está, ao contrário, sobrecarregado, inundado de expectativas que superam sua capacidade de realização.”

Assim sendo, o “sexo puro” é caracterizado pela rotatividade e não pela qualidade ou capacidade de realização. Essa rotatividade é uma das principais características do “homo consumens”, uma vez que, na modernidade líquida, o sucesso não é caracterizado pela capacidade de ter bens, pois, para que você possua algo, é preciso guardá-lo, e o homem pós-moderno, ou “consumens”, não quer ter esse trabalho. O sucesso, assim, é medido pela capacidade de usar, desfazer-se e usar algo novo.

“É a rotatividade, não o volume de compras, que mede o sucesso na vida do homo consumens.”

O “sexo puro” encontra-se em perfeita consonância com essa ideia, em que os encontros não devem passar de um episódio e todos devem estar preparados para ser descartados. O grande paradoxo nisso é que esse “sexo puro” prometia resolver o problema da solidão. Mas parece-me improvável que assim o seja, quando o outro vale menos que uma camisa, visto que esta é usada mais de uma vez.

Quando se determina que os encontros não devam passar de um episódio, cria-se uma ditadura, em que toda forma de relacionamento deve ser assim. Há, dessa maneira, o banimento dos sentimentos do sexo. Entretanto, esquecem que, quando se tenta retirar o acaso, o inesperado da vida, retira-se, imprescindivelmente, o que há de mais sublime na vida: o amor.

O “sexo puro” é a tentativa de uma sociedade insegura de sair da solidão, mas sem sair da zona de conforto. Obviamente, quando não se criam expectativas no outro, dificilmente haverá decepção. Mas, se não se espera nada no outro, talvez isso não seja amor. Para muitos estudiosos, na raiz do verbo amor está impressa a ideia de plantar, semear. Portanto, necessariamente, se há amor, há expectativas, pois ninguém semeia sem acreditar na colheita.

A insustentável leveza do sexo consiste em acreditar que pode se relacionar com outra pessoa e portá-la para dentro de si sem que haja envolvimento. Todavia, para que algo se desenvolva, é preciso envolvimento, muito embora essa não seja uma característica do homem líquido. Criar laços fortes pode deixar-nos mais vulneráveis, mas ao amor são inerentes a vulnerabilidade e a incerteza – e já disse que as melhoras coisas só acontecem no terreno do inexplicável.

Você NÃO é especial!

Você NÃO é especial!

Apesar dos mimos que você recebeu dos seus pais, apesar de ter amigos que riem das suas piadas e apesar de já ter passado por muita coisa… não caia em ilusões: você não é especial.
Você  não é especial porque estudou naquela universidade porque tem aquele trabalho. Você não é especial porque tem boa aparência ou porque há alguém que gosta de você.

Você é apenas mais um em 7 bilhões, por isso deixe de andar por aí como se o mundo te devesse alguma coisa. Essa cara de enjoado não te cai bem, e esse ar só arrogante só estraga o ânimo de quem está por perto. A sociedade não te deve um trabalho, a família não te deve uma casa e os teus amigos não te devem atenção. Nada disso: o mundo não te deve nada. Você é que deve muito ao mundo.

Você deve ao mundo o seu tempo, energia e inteligência. A sua melhor intenção e o seu melhor empenho.
Trabalhe porque acredita que o seu trabalho é importante, não porque tem um estatuto a manter. Estude pelo entusiasmo de aprender e não apenas para passar nos exames. Namore porque adora a pessoa que está com você, não porque não aguenta estar sozinho. Viaje porque quer viajar, não para ter fotografias para mostrar. Cuide bem dos outros porque quer o bem deles, não para provar que é bonzinho.

Você pode tentar fugir disto, claro. Pode ficar escondido atrás das cortinas e se lamentar de todas as dificuldades que tem pela frente. Pode ficar à espera que alguma coisa venha te salvar…mas no fim tem apenas que decidir uma coisa:o que vai fazer com cada hora do teu dia?
Que raios vai fazer da tua vida?

O mundo precisa de você. E você precisa viver da melhor maneira possível com o que tem.
A vida é  importante demais para esperar que você se sinta especial.

O caminho será longo e difícil. Você será criticado e falhará… mas se a cada falha, a cada crítica e a cada sofrimento você continuar a dar o seu melhor…então é porque você terá finalmente se tornado alguém especial.

Traduzido e adaptado do original Tu não és especial

Temos preguiça, sentimos fadiga, criamos temores, vivemos com medo de as coisas darem certo

Temos preguiça, sentimos fadiga, criamos temores, vivemos com medo de as coisas darem certo

Sabotagem. Eis uma palavra que não é tão comum, mas também está longe de ser uma desconhecida em qualquer história de vida.

Você é sabotado, quando te omitem uma verdade, quando é lesado, enganado, injuriado, prejudicado…

Você poder ser sabotado infinitas vezes ao longo da vida. Pode descobrir, pode sequer desconfiar, pode nem querer saber e ir levando…

Você pode achar normal, que é do jogo, pode se sentir ultrajado, magoado, revoltado, enganado…

Mas, e quando a sabotagem parte da parte que deveria se defender das possíveis sabotagens, intencionais ou não?

Fazemos isso? Fazemos esse total desserviço a nós mesmos, sabotando-nos e nos subtraindo oportunidades que poderiam ser positivas para nossas próprias vidas?

Sabotamo-nos quando temos preguiça. Preguiça de tentar algo, pesquisar, preguiça de entender, considerar, analisar. Deixamos de entrar em contato com um monte de novos caminhos, possibilidades, pessoas e lugares, por conta da tal preguiça.

Sabotamo-nos quando sentimos fadiga. Com a velha desculpa de que estamos cansados de tentar isso ou aquilo, que estamos exaustos de bater com a cabeça na parede, a cara das portas, a mão na ponta da faca… sentimo-nos feridos e abatidos pela fadiga. E, para evitar mais dores e mais suores, sabotamo-nos, crendo que estamos fazendo o certo.

Sabotamo-nos quando criamos temores. Da mesma forma que criamos desenhos, textos, looks e fantasias, criamos temores. Temores robustos, bem alimentados, verdadeiros paredões que nos impedem de ultrapassar as dificuldades e enxergar possíveis soluções. E nos sabotamos, em total paralisia.

De fato, queremos demais que a vida seja leve, que o café esteja quente, que a chuva só caia, quando estivermos abrigados e agasalhados, que a saúde esteja em dia e que o mal passe bem longe.

Mas, para afastar o que não queremos por perto, para manter o que já conquistamos e para dar passos mais adiante e vislumbrar outros horizontes, precisamos urgentemente derrotar, esmagar, dizimar esse medo que nos cai tão bem quanto um par de botas de chumbo. Precisamos, finalmente, deixar as coisas darem certo!

Texto revisado por Flávia Figueirêdo

“Minha cabeça estremece com todo o esquecimento”, por Herberto Helder

“Minha cabeça estremece com todo o esquecimento”, por Herberto Helder

Herberto Helder — Poemacto II

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa,
uma só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas.
E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes sangra e canta.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

– Era uma casa – como direi? – absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
– Porque o amor das coisas no seu tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.

As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
— Era húmido, destilado, inspirado.

Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.

Era uma casabsoluta – como direi? –
um sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.

– Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem para amar e ruminar.
O leite cantante.

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
– Caneta do poema dissolvida no sentido primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia,
com furibunda concepção.
Com alguma ironia furibunda.

Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete.
Sou alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.

Herberto Helder, Poemacto II

O mundo está dividido entre os indignos e os indignados

O mundo está dividido entre os indignos e os indignados

Confira abaixo a íntegra da entrevista concedida por Eduardo Galeano ao programa Singulars, da TV3, no dia 23 de maio. Nela, ele conta as suas impressões ao se deparar com a Espanha dos “indignados”, fala sobre a crise do sistema econômico e político institucional e também comenta a respeito de futebol. Sobre as manifestações, ele acredita que “são os invisíveis se fazendo visíveis, e os que pareciam mudos fazendo-se escutar. E estão dizendo aquilo que têm que dizer. E neste mundo em que todos falam sem dizer, eles dizem dizendo”.

Eduardo, você chega e encontra as praças cheias de gente gritando “outra democracia é possível!”. Que lhe parece?

Eduardo Galeano – Me parece uma experiência estupenda. A verdade é que foi muito emocionante, para mim, estar entre essas pessoas quando cheguei a Madri e recuperar esta energia, este entusiasmo. Esta vitamina “E” de entusiasmo, que às vezes parecia perdida neste mundo que nos convida ao desânimo. Então acho que é uma experiência estupenda, e segue sendo, e a palavra entusiasmo é uma palavra linda, de origem grega, que significa “ter os deuses aqui dentro”. E isso foi o que senti quando perambulava entre as pessoas na Puerta del Sol.

“Nos tiraram a justiça e nos deixaram a lei.” Esta é uma das frases que você pôde ler na Puerta del Sol. Que lei nos deixaram, senhor Galeano?

Galeano – A lei do mais forte. É esta lei que rege hoje o mundo, dentro de cada país e entre os países também, e é uma lei insuportável. Parece hoje que os jovens vêm crescendo em matéria de desobediência contra esta lei que os condena à resignação, à aceitação do mundo tal qual é. E hoje há na América Latina toda, ou quase toda, um problema visível e preocupante que é o divórcio, a separação – eu diria que é um divórcio – entre os jovens, as novas gerações, e o sistema político e o de partidos vigentes. Eu não reduziria a política às atividades dos partidos, porque a política vai muito além. Mas, sim, me preocupa que, por exemplo, nas últimas eleições chilenas dois milhões de jovens não tenham votado. E não votaram porque não se deram ao trabalho de se registrar e porque, no fundo, não creem nisto. Suponho que, principalmente, por não acreditarem nisto. E me parece que isto não é culpa dos jovens, é muito fácil culpá-los, mas a questão vem de cima, está concentrada no topo, e a estes não importa nada de nada. E também nesse sentido gostei de estar nas manifestações, pelo menos na da Puerta del Sol que foi onde pude estar.

Sabe quanta gente não votou ontem na Espanha?

Galeano – Não, não imagino.

Dez milhões de pessoas não foram votar.

Galeano – Bem, é grave, não?

Mas também é um direito não votar, certo?

Galeano – Claro, claro que sim. E é também, por vezes, um modo silencioso de protesto. E também acho legítimo que as pessoas se expressem falando ou calando, pois o silêncio às vezes diz mais que as palavras. E o que eu gostei foi de ver toda esta ebulição de um protesto pacífico, sem violência, como o que vi circulando entre a gente nas diferentes horas do dia, e da noite também. Muito solidariamente, unidos em uma causa comum, e sustentado com convicção a partir da situação tão penosa que vivem hoje na Espanha e em muitos outros lugares do mundo sobretudo os jovens, e, sobretudo os jovens que não têm uma posição, digamos, acomodada. Lá na Sol diziam “com causa, mas sem casa!”, e isso me pareceu revelador, porque uma boa parte das pessoas que estavam ali ficaram sem casa e sem trabalho. Isto é uma coisa a ser levada em conta.

O que está acontecendo neste momento, em distintos países europeus – e eu suponho que no seu mundo, a América Latina, também, mas conheço mais a situação europeia – é que o povo está dizendo “basta!”, algo tão claro como nós, pais, dizendo que nossos filhos não terão o mesmo que nós. E tão claro como nós vemos que isto que nós temos é graças à luta que, em seus momentos, lutaram nossos pais e avós com sangue, suor e lágrimas, e conseguiram os direitos que nós, como pais, não podemos dar a nossos filhos.

Galeano – Claro, este é um dos dramas do mundo em nosso tempo, internacionalmente. Dois séculos de lutas operárias que conquistaram direitos muito importantes para as classes trabalhadoras, para os que trabalham, estão sendo descartados, jogados no lixo, por governos que obedecem a uma tecnocracia que se crê eleita pelos deuses para comandar o mundo, esta espécie de governo dos governos. Como este senhor que ultimamente se dedicou a violar camareiras, mas antes violava países e era aplaudido enquanto o fazia e não foi preso por isso. Ele teria que ter sido preso pelas duas coisas, não só pelas camareiras. É esta estrutura de poder que às vezes é invisível e que, no fundo, controla tudo. Então, quando se consegue aglutinar vozes capazes de dizer “basta!” ou “não, chega!”, a primeira coisa que se deve fazer é escutar estas vozes, com respeito, sem desqualificá-las de antemão, e saber esperar para ver o que é que a vida quer viver. Estas pessoas não parecem esperar ordens de ninguém, atuam espontaneamente, unindo a razão à emoção. Alguns me perguntam “como vai acabar isso?” e eu digo “Não sei como vai acabar, talvez nem acabe. E se acabar, aí veremos”. É como o amor que é infinito enquanto dura.

Sabe… O senhor, Eduardo Galeano, com José Luis Sampedro e Arcadi Oliveres, são referências internacionais de pessoas que, em seu momento, já há bastantes anos, disseram “basta!”. E Sampedro, muito maior, mas muito jovem, este fim de semana fez uma declaração, não me recordo exatamente, mas era algo assim: “As batalhas, temos que erguê-las e lutá-las. Se ganhamos, ou se perdemos, mas temos que lutá-las. Por que este ato solitário de erguê-las, e de lutá-las, é o que as torna tão valiosas.”

Galeano – Ele é um querido amigo pessoal, e eu o respeito muito. E isto é verdade. Estamos também enfermos de existir. O mundo está preso em um sistema de valores que coloca o sucesso acima de tudo, e, por outro lado, condena o fracasso. Perder é o único pecado que no mundo de hoje não tem redenção. Estamos condenados a ganhar ou ganhar. E, bem, ao longo da história muitas pessoas melhores perderam, e isto não lhes tira nem um pouco a razão. Os dois homens mais justos na história da humanidade, Sócrates e Jesus, morreram condenados pela justiça. Os mais justos foram condenados pela justiça. E não deixam de ser justos.

E nos deixaram a lei.

Galeano – E nos deixaram coisas muito importantes. Em primeiro lugar, amor e coragem.

A santíssima trindade, também chamada de Standard & Poor’s, Moody’s e Fitch, são as agências que qualificam os riscos. Hoje, elas estão fazendo cair as bolsas e o euro, na Europa, porque voltaram a baixar a qualificação da dívida grega. Quem são estas agências? E a quem obedecem?

Galeano – Segundo minha mulher, Helena Villagra, são “As Meninas Superpoderosas”. Eram personagens de um desenho que passava há não muito tempo. Então são estas meninas, que se consideram no direito de classificar e qualificar os países, e dizer se este ou aquele país está indo por um bom caminho, que é sempre o caminho da obediência às ordens ditadas por um sistema que é sempre inimigo do povo. E são dirigidas por tecnocratas que mandam mais que os governos. Ninguém os elegeu, em nenhuma eleição. Que eu saiba, ninguém votou na Standard & Poor’s – que, se não estou equivocado, significa Médios e Pobres.

Mas você conhece os crimes que cometeram estas agências? Eu entendo quando alguém se equivoca porque se equivoca, sem querer. Mas elas estão destruindo países inteiros, estão jogando contra países inteiros, e ninguém diz nada!

Galeano – E os banqueiros de Wall Street, que foram os principais protagonistas desta crise, que provavelmente é a crise mais grave que o mundo já sofreu em muitos séculos de história, talvez a maior fraude já cometida. E nenhum destes banqueiros foi preso. Vão presos os ladrões de galinhas, mas os banqueiros superpoderosos, como as meninas superpoderosas, estes não vão presos nunca. E cometem crimes de desumanidade. Eu vi agora que o Tribunal Penal Internacional quer julgar Gadafi. Sabemos que não é nenhum santo e que seguramente merece ser julgado, mas muito mais merecem ser julgados estes senhores que arruinaram o planeta.

E que hoje nos cobram mais que ontem.

Galeano – E que foram recompensados. Eu havia até proposto uma campanha, quando via os pobres banqueiros chorando suas misérias, este desastre, e junto com outros companheiros nós articulamos uma campanha que não teve muito êxito: “adote um banqueiro”. Vê-se que o mundo tem um mau coração, ninguém o fez.

Eduardo Galeano, como acha que se explica porque nestas reuniões de G20, G8, G1040 – todos dão na mesma –, por que nenhum mandatário, por que nenhum governante, e há alguns das esquerdas, por que nenhum deles se levanta e diz “Basta, acabou! Este mundo não é possível! Eu não vou condenar meus concidadãos à miséria. Não! Basta!” Por que não há nenhum que se levanta, por quê?

Galeano – Há alguns que se levantaram.

No G20?!

Galeano – Não, não, fora do G20. No “G-7 bilhões”, que é esse que abarca a humanidade inteira. Uns tantos se levantaram e disseram “basta!” e por isso foram condenados ao inferno, claro. Por exemplo, me recordo quando o presidente do Equador, Correa, anunciou que não ia pagar a dívida, que não era legítima. Ou seja, que havia nascido de uma armadilha, de uma fraude, de uma violência. E o mundo se doeu: “Mas como? O Equador vai acabar, esse país vai naufragar. Como é que alguém se atreve?”. E não se acabou nada, porque era perfeitamente legítima a decisão de não pagar as dívidas ilegítimas, que são as que estrangulam a maior parte dos países, sobretudo os países mais pobres.

Então, você vê, o problema é que não falta quem o diga, mas sim, digamos, que… Há um sistema que absolve ou condena segundo a boa ou má conduta dos diferentes governos. Mas às vezes as lições de vida, as lições de dignidade que o mundo necessita são dadas pelos menores. Por exemplo, a Islândia. A Islândia é um país minúsculo, perdido aí nos mares do Norte do mundo, habitado por pouca gente – não sei, cerca de 150 mil pessoas, algo assim –, e foi o que mais claramente disse “não”, nestas circunstâncias muito difíceis, ao Fundo Monetário Internacional e à ditadura financeira do mundo, em dois plebiscitos. Porque o FMI e a União Europeia (UE) já haviam dado a ordem à Islândia de que a população, ou seja, os islandeses, teriam que pagar a bancarrota de três bancos de lá, dois bancos muito importantes e outro não tanto, que tinham recebido depósitos de outros países e não podiam pagá-los, e, portanto, a população deveria pagar 12 mil euros per capita. Ou seja, cada cidadão deveria pagar 12 mil euros pela bancarrota dos bancos! Eu não digo que todos os banqueiros sejam delinquentes, mas há banqueiros que são os assaltantes de bancos mais perigosos que há. Eles não carregam nenhuma arma, nem avisam que estão entrando, porque, afinal de contas, estão entrando em suas “casas”. Mas estes são os mais perigosos. E a população da Islândia foi capaz de dizer “Não! Não aceitamos”, e então se fez um plebiscito.

Mas, como para o FMI e para a UE não pareceu ser suficiente, fizeram outro. E ganharam os dois. A Islândia se negou a aceitar como destino a obediência. E afinal, defenderam dignidade humana. Porque este movimento é um movimento tão lindo, que me encanta ver. Este se chama Movimento dos Indignados, e eles não se equivocam com este nome, porque afinal o mundo está dividido entre os indignos e os indignados.

A Islândia disse “Não!” aos mercados. Nós, jornalistas, dizemos “os mercados”. Quem são?

Galeano – Sim, os mercados… É um termo que se usa. Na infância, era uma palavra lindíssima que dava nome ao local de encontro dos vizinhos do bairro. Com todas as suas cores, das verduras, das frutas, as vozes dos vendedores que vinham até os bairros para vender suas coisas. E era uma palavra muito linda. Mas depois se converteu no nome de um deus invisível e muito cruel, que é este que rege nossos destinos. Então, sempre se diz: “Não, isso não. Vai irritar o mercado!”, porque ele tem humor, este deus. E o mercado manda, mas ninguém sabe muito bem quem é ou do que se trata. É como quando se fala em “comunidade internacional”. “A comunidade internacional não deveria permitir isto”, a comunidade internacional é um clube de banqueiros e generais, senhores da guerra e senhores do dinheiro que decidem quem é democrata e quem não é, e decidem quem merece o sucesso, e quem merece a desgraça. E, no entanto, ainda há gente que acredita que outro mundo é possível.

Ontem, ocorreram na Espanha, como se sabe, eleições locais e regionais e o eleitorado espanhol resolveu, por assim dizer, castigar muito duramente o Partido Socialista Obrero Español (PSOE). Que você acha disso?

Galeano – De fora, não sou ninguém para ditar à Espanha, ou às espanhas contidas na Espanha, normas de boa ou má conduta, até porque justamente agora eu estava falando contra os sistemas autoritários de poder. E também creio que são autoritários alguns intelectuais que vão dar lições às pessoas nos lugares onde estão visitando. Eu vivi na Catalunha muitos anos, dez anos, não me considero estrangeiro aqui, mas deve se ter muito cuidado ao julgar ou emitir opiniões a respeito de acontecimentos tão complexos como é uma eleição, nada menos.

Em princípio, me pareceu muito crível uma manchete do Diário Público do dia 23, que vi, que dizia que o PSOE havia sido castigado por praticar uma política de direita. Provavelmente algo disso deve ter havido, porque o governo talvez não tivesse mais remédio. Não sei precisamente. Mas sei que sim, a Espanha concordou em fazer coisas que não coincidiam muito com o programa de governo do Partido que segue, contudo, governando a Espanha.

Eu antes fiz uma pergunta dizendo que, para um governante, pode ser cruel, especialmente se o governante luta para conseguir mais igualdade. Eu disse que nenhum governante se levantava em nenhuma reunião internacional para dizer “Basta!”. Então volto a perguntar: podem fazê-lo? Me refiro ao G20.

Eu repito: se o G20 não é capaz de tolerar, admitir e promover a diversidade no mundo, ou seja, se não é capaz de praticar a democracia – porque a democracia é isso, diversidade, escutar todas as vozes, outras vozes, em pé de igualdade –, bem, então é necessário substituir o G20 pelo “G-7 bilhões”, que é esse de toda a humanidade.

E isto, como se dará?

Não há receita para isso. Eu não conheço, pelo menos. E desconfiaria muito de alguém que quisesse me vender esta receita. São processos muito complexos, muito complicados, e, além disso, a História é uma senhora de ações lentas e andar suave. As coisas não mudam em uma semana ou um mês. É legítima a necessidade humana de que as coisas mudem enquanto estou vivo, claro, eu quero ver estas mudanças. Esta é uma paixão humana completamente compreensível e partilhável. Mas, não condiz com a realidade. A realidade tem seus tempos e o mundo tampouco caminha em linha reta.

A História é lenta, estou de acordo. Mas imagine você estas dezenas de milhares de pessoas que saíram às ruas, que estão ocupando agora mesmo a Plaza Catalunya, aqui em Barcelona, além de outras cidades da Espanha. Quando isto terminar, pois decidiram terminar daqui a algumas semanas, o que vai acontecer? Estes governantes e políticos democrática e legitimamente eleitos vão levar em conta o que foi feito nas praças, o que foi dito nas praças ou não dará em nada?

Nada dá em nada quando, digamos, se transmite energia. A energia fica, de alguma maneira. Às vezes se transforma em outra coisa, se arranja de outras maneiras. Mas é muito importante o que está ocorrendo nestas concentrações, que são sobretudo juvenis, mas não somente juvenis. Pois, em última instância, são os invisíveis se fazendo visíveis, e os que pareciam mudos fazendo-se escutar. E estão dizendo aquilo que têm que dizer. E neste mundo em que todos falam sem dizer, eles dizem dizendo. E dizem coisas que vale a pena escutar. E eu acredito que estas vozes vão seguir ressoando. Contudo, não quero ser um otimista profissional porque eu sou otimista de acordo com a hora do dia, às vezes sou muito pessimista. E a esperança é uma coisa que por vezes me cai do bolso, e tenho que buscá-la, descobrir onde ela está, recolher alguns pedacinhos, muitas vezes. Não sou um otimista full time, e, além disto, não acredito em quem é. Em muitos momentos tenho esperança, mas, quando não tenho, agarro meus cabelos e rezo para uma nave espacial me levar para outro planeta.

Por que você acha que neste último domingo, no Uruguai, se disse “Não” à suspensão da lei de anistia?

Sim, este também é um processo complicado de explicar assim. Mas, sim, se perdeu por um voto, uma coisa lamentável. Deve-se acabar com uma lei infame, que é uma lei de impunidade. Eu fui membro das duas comissões que organizaram os dois plebiscitos, e os perdemos. Por muito pouco, mas perdemos. E seguiríamos perdendo, um milhão de vezes. Porque eu não creio que valha a pena viver para ganhar, vale a pena viver para fazer o que tua consciência te diz para fazer. E não o que te convém. E isto vale para tudo, para a política, para a vida, para o amor, futebol. O futebol parece estar agora condenado a jogar pelo dever de ganhar, e não pelo prazer de jogar. Por isto estou muito contente de estar aqui em Barcelona para receber um prêmio de um clube que recuperou o prazer de jogar com beleza e limpamente.

Claro, você vai receber amanhã o Prêmio Manuel Vázquez Montalbán de Jornalismo Esportivo.

Sim, e é uma sorte para mim. Sou muito fã de futebol, muitíssimo fã de futebol. E creio que o futebol é um espelho do mundo, que a vida se reflete ali. O melhor e o pior da condição humana estão no campo.

Você é muito fã de futebol, como disse, então suponho que verá este time prodigioso que está fascinando o mundo inteiro, como o Barça, certo?

Sim, sim. Eu adoro o Barça, e, além disso, gosto muito de ver o Messi jogando. Vou contar algo que me veio à cabeça agora e que tem relação com isto… Eu estava no México e, em uma das intervenções públicas que estive, me permiti sugerir aos meus amigos mexicanos que tivessem cuidado com seu poderoso vizinho do Norte que tem o péssimo costume de “salvar” os demais países. E lhes contei que quando vou aos Estados Unidos e faço leituras de meus livros, ou vou às universidades, coisas assim, sempre começo por suplicar que, por favor, não me “salvem”. Eu não quero ser salvo, e este poderoso vizinho do México “salvou” o Iraque, convertendo-o num manicômio, está “salvando” o Afeganistão, convertendo-o em um vasto cemitério. Então eu dizia aos mexicanos “Vamos desconfiar dos messianismos, dos messiânicos. O único messianismo que não é perigoso é o que se chama Lionel Messi.”

O que é Messi?

É a alegria de jogar. Ele joga como se fosse uma criança na várzea, em um campinho, com essa mesma alegria. Espero que não a perca nunca. Ele é excepcional. Por jogar como profissional, tem que cuidar das pernas de outra maneira, mas ele joga esquecendo de que é o número um. Ou seja, Lionel Messi não acredita ser Lionel Messi, por sorte.

Guardiola?

Merece tudo isto, e repito desde que ele era um grande jogador. Não podemos esquecer de que ele foi um grande jogador antes de ser um grande técnico capaz de organizar uma equipe solidária. Um por todos, todos por um, mas onde todos podem jogar e desfrutar. A verdade é que não digo estas coisas para ficar bem com o lugar onde estou, são coisas que acredito profundamente. Não tenho o costume de elogiar quando me convém.

Você sabe que nestas últimas semanas duas equipes antagônicas, Madri e Barça, se enfrentaram quatro vezes, creio. Você enxerga um estilo diferente no Galeano Real Madrid, você que é tão fascinado por futebol?

Sim. Com Mourinho, sim. Mas o Real Madrid pode muito mais do que tem feito nas mãos deste senhor, que além de tudo é muito antipático, porque é muito arrogante. O médico me proibiu contato com os arrogantes.

O médico proibiu? E há muitos deles?

Sim, há muitos deles, e eu não sei lidar!

Eduardo Galeano, outra das frases, ou mensagens, das concentrações nas praças da Catalunha e da Espanha é esta: “Se não nos deixam sonhar, não vos deixaremos dormir!”. E eu vou pedir agora, espero que aceite, que nos faça sonhar com a leitura de algum de seus fragmentos.

Sim. Vou ler algumas palavrinhas que têm a ver com o direito de sonhar, com o direito ao delírio, a partir de algo que me ocorreu em Cartagena das Índias, há algum tempo, quando eu estava na universidade fazendo uma espécie de palestra com um grande amigo, diretor de cinema argentino, Fernando Birri. E então os meninos, os estudantes, faziam perguntas – às vezes a mim, às vezes a ele. E fizeram a ele a mais difícil de todas. Um estudante se levantou e perguntou “Para que serve a utopia?”. Eu o olhei com dó, pensando “Uau, o que se diz numa hora dessas?”, e ele respondeu estupendamente, da melhor maneira. Ele disse que a utopia está no horizonte, e disse “Eu sei muito bem que nunca a alcançarei, que se eu caminhar dez passos, ela ficará dez passos mais longe. Quanto mais eu buscar, menos a encontrarei, porque ela vai se afastando à medida que eu me aproximo”. Boa pergunta, não? Para que serve a utopia? Pois a utopia serve para isso: caminhar.

Já sei que você não vai gostar do que eu vou perguntar a seguir, mas devo perguntar. Vamos falar um pouco de você. Você tocou em quase todas as teclas: narrativas, crônicas, jornalismo, desenhista.

Sim, é verdade. E é verdade também que aquilo que escrevo é inclassificável e isto me dá muita alegria. Porque um dos vícios deste mundo, mundo nosso que nos cabe viver, tem um costume perverso, uma espécie de mania, de colocar uma etiqueta na testa de cada pessoa, talvez para poder manipular melhor a condição humana que, por si, tende à liberdade. Classificar-nos seria uma maneira de nos tornar prisioneiros, então o mesmo acontece com os gêneros literários. E aí é que me encanta não ser classificado, quando dizem “O que é isso que estou lendo? É ensaio, poesia, crônica, é ficção, não ficção, de que se trata?”, e eu respondo que não tenho a menor ideia e não quero saber do que é isto que faço. Porque eu sigo o conselho que um senhor me deu, estando eu perdido pelas ruas de Cádiz, há um tempo, me perco sempre porque sou muito disperso e não tenho senso de orientação, ou tenho um grande senso de desorientação, pois me perco continuamente. E estava perdido em Cádiz e eu perguntei pelo Mercado Viejo a um senhor que estava contra a parede, apoiado, e sem desencostar ele me disse: “Nada, faça o que a rua te disser!”. E eu faço aquilo que a rua me diz. Na literatura e na vida também.

 Eduardo Galeano, era escritor e jornalista uruguaio, autor de “As veias abertas da América Latina” e “Memórias do fogo”.

* Transcrição e tradução: Cainã Vidor.

** Publicado originalmente no site da Revista Fórum.

Fonte indicada: Envolverde

Antes duas mãos vazias e todos os pássaros voando

Antes duas mãos vazias e todos os pássaros voando

Quem me dera fosse certo esse ser que diz que bastaria sua presença em minha vida para eu ser feliz. Que esse tempo que consumo com o que me dá prazer, e esse gosto que degusto da vida às vezes é trabalho, às vezes é lazer, é tempo perdido se não lhe dou espaço para adentrar no meu universo.

Confundem retiro com fuga, escolha com falta de abertura. Que liberdade me ditam, que não posso simplesmente saber do que preciso? Por acaso tenho pedido ajuda? Não. Que esses bondosos mosqueteiros possam procurar suas donzelas em perigo. Estou mais para uma amazona cavalgando no prado.

Em lugar de uma noite de sexo, ando preferindo um amigo, um filme, um livro, uma noite contemplando o horizonte. Ando preferindo relações de laços e redes tecidas pela natureza das intensidades, em vez de nós embrutecidos pelos embaraços. Ando refletindo, reorientando meu caminho, e só.

Tenho visto o desespero para além das marquises e dos corpos que se abandonam nas esquinas. Tenho visto o desespero nesses corpos famintos de interesse prometendo soluções para a vida alheia, até destilarem em suspiros prazerosos suas boas intenções. Depois passarão pelos corredores como estranhos.

Troco essas promessas de salvação por novos figurinos para minhas esperanças que contracenam Sonhos de Vigília. Troco esse cofre de ilusões cumulativas por um vale de possibilidades. Troco esse fardo de convenções impositivas por um trago de liberdade.

Conversando com o vazio, descobri seus artifícios – é no vazio que há espaço para os acontecimentos, é o vazio, o espaço latente para a vida. Passando, vou, vejo o que quero deixar, o que quero levar. Que as bagagens sejam leves para poder dançar os tangos das surpresas.

Não me disponho a estar presa, quando finalmente encontrar a centelha de vida que iluminará minha existência. Até lá, alegro-me em acender minhas velas e brincar formas nas sombras. Ter as mãos vazias para colher frutos, dar piruetas, nadar nos rios, experimentar a textura das coisas, cruzá-las sob a nuca, enquanto deitada na relva, acompanho o voo dos pássaros.

Deixo a gaiola aos que temem a imensidão do céu. Deixo as mãos cheias aos que se esquecem da fugacidade da vida. Deixo as lágrimas pelos pássaros cativos e pelas mãos enrijecidas. Deixo ir… Mantenho as mãos livres e os pássaros voando. Procuro o voo meu. Hora dessas, um pássaro livre me pousa no ombro.

Texto revisado por Flávia Figueirêdo

“As Controladoras”, por Flávio Gikovate

“As Controladoras”, por Flávio Gikovate

Elas querem saber onde estão seus companheiros e o que seus filhos fazem “a esta hora ainda fora de casa”; preocupam-se excessivamente com a saúde dos seus pais e de outros parentes queridos. As mulheres controladoras temem que qualquer titubeio ou desatenção traga consequências desastrosas. Acreditam que as coisas estão calmas graças ao empenho que têm em se concentrar o tempo todo nelas. Sabem que gastam enorme energia nesse esforço, mas acham que seu sacrifício é responsável pela conquista de longos períodos de concórdia e bem-estar.

Essa tendência não é exclusividade das mulheres, mas vou refletir sobre a questão, aqui, considerando apenas o aspecto feminino. Mulheres controladoras tendem a ser muito ciumentas em relação aos seus maridos. À noite, fazem aquelas perguntas aparentemente sem importância, mas que expressam um desejo enorme de saber exatamente por onde andaram esses homens – que, segundo elas, estão sempre dispostos a viver aventuras românticas e eróticas. São possessivas também com os filhos, que tentam manter sob suas asas.

Diante de qualquer suspeita de que algo escapou do controle, entram imediatamente em pânico. Experimentam um desespero brutal ao imaginar seus maridos com outras mulheres e terríveis desastres envolvendo seus filhos. Tudo isso acontece sempre que algum deles se atrasa uns poucos minutos. Suas mentes são catastróficas e pessimistas.

A verdade é que não sabemos nada do que realmente importa. Não sabemos de onde viemos, para onde vamos, por quanto tempo estaremos aqui na Terra, nem quais as coisas boas e más que ainda estão para nos acontecer. Nem todos toleram bem essa falta de respostas. Aliás, aprender a lidar com a incerteza em torno da nossa condição é fundamental para que consigamos viver de forma mais feliz. Quem aceita isso sabe que o futuro é desconhecido e o compara a um jogo, como se estivéssemos em um grande cassino onde, todos os dias, podemos ganhar ou perder.

Pessoas que não suportam a ideia da incerteza vivem em um estado de permanente ameaça, a um passo do pânico e do desespero. São criaturas frágeis, pois não se sentem com força para suportar as frustrações e decepções que a vida pode nos impor a qualquer momento. Vivem eternamente preparadas para o pior. Como não podem se assegurar de que as coisas vão dar certo, optam pela certeza de que vão dar errado. E essa certeza nós conseguimos ter, uma vez que induzimos os fatos na direção negativa com muito mais facilidade do que na positiva. Por exemplo, a mulher que teme ser abandonada por um homem poderá se comportar de modo tão desagradável e destrutivo que irá contribuir para que seu pesadelo vire realidade.

É difícil conviver com mulheres tão negativas. Ainda que nem sempre seja sua intenção, elas exercem controle total sobre aqueles que lhe são caros. Transformam-se em tiranas, em criaturas que tentam mandar em tudo e em todos, sempre com o intuito de impedir as desgraças. Aborrecem aqueles que mais amam, além de tornar suas próprias vidas miseráveis. E, pior do que tudo, não conseguem impedir tragédia alguma. A única saída é aceitar a vida como ela é.

Para mais informações sobre Flávio Gikovate

Site: www.flaviogikovate.com.br
Facebook: www.facebook.com/FGikovate
Twitter: www.twitter.com/flavio_gikovate
Livros: www.gikovatelojavirtual.com.br

Casamentos são para sempre. Até que a vida os separe.

Casamentos são para sempre. Até que a vida os separe.

Em nome da felicidade dos casais, as cerimônias matrimoniais religiosas deviam ser radicalmente reconfiguradas. Tá aí uma medida para anteontem. A ladainha do “até que a morte os separe” é uma incorreção flagrante, um equívoco. No mínimo, uma brutal ingenuidade. Porque a morte não separa nada!

Ao contrário, com duas ou três exceções, alguém que enviúva fica ligado para sempre à lembrança do cônjuge que partiu. Ser viúvo é uma espécie de tatuagem emocional, um estigma indelével, uma cicatriz que até se pode amenizar, mas nunca se apaga totalmente. E se você pensar mais além, é bem possível que os casais que se amaram aqui, no solo rachado do planeta, se reencontrem na imensidão do paraíso, dependendo de sua vontade, de seu merecimento e de outras questões. Vai saber, né?

De qualquer forma, o “até que a morte os separe” é uma balela. O que separa mesmo um casal é a vida. Ela, vivinha que só, pulsando volúpia em cada nova possibilidade de afeto. Impossível ser casado, monogâmico e feliz sem fechar as portas, as janelas e os olhos para um monte de coisas da vida além do casamento, a vida que passa “lá fora”, alheia aos compromissos do casal, indiferente à rotina do matrimônio.

Em muitos sentidos, casar-se é renunciar a tudo o que está em terras de além-porta de casa. É, sim, trancar-se a chave nas possibilidades do caminho a dois — que, aliás, são inúmeras e podem ser maravilhosas, mas que a vida, em sua profusão de eventos e em sua diversidade insana, pode fazer parecer mirradas e ridículas. Nesse sentido, ser casado e ser feliz é “abrir o ângulo e fechar o foco”, só para lembrar uma musiquinha linda de Gilberto Gil, que tantas vezes se casou e em todas elas praticou a tão sonhada felicidade conjugal. Até a vida chegar com outra proposta.

Se você se casou e é feliz, parabéns! Merece mesmo toda a felicidade do mundo. Agora, ai de você se olhar para o lado. Deixe entrar no seio nupcial a vida, com suas correntes de vento, pra ver no que dá. Tchauzinho, tranquilidade do casamento. Agora, se o idílio já é nada senão solidão e tristeza, se insistir em reencontrar o amor perdido só aumenta a desilusão, se não há mais sequer respeito entre os dois, desejo do fundo do coração que a felicidade da vida lhe chegue de todos os lados. Do nada e com tudo. Derrubando muros e medos, receios e preconceitos. E que fique só o que tiver de ficar.

A vida entra impetuosa. Mais cedo ou mais tarde, invade o bunker da proteção matrimonial. Chega como uma amiga ou um amigo interessante do casal, enchendo de minhocas a imaginação da mulher, encharcando de volúpia a boca do homem. Chega como um mero desejo de um e de outro relembrarem a alegria da solteirice em inocentes saídas desacompanhadas. Chega sob a forma perversa das chateações inevitáveis do trabalho.

Ah! A vida também chega como um filho, fazendo de amantes insaciáveis pais incansáveis mas quase sempre cansados, consumidos pelo amor dedicado e emocionante da paternidade que nos transforma, por um lado, em pessoas melhores, mais cuidadosas, mais responsáveis e, por outro lado, nos rouba quase todo o tempo, o desejo e a energia que antes nos faziam atravessar a noite em ímpetos de amor louco e desejo insano. Não é regra, mas acontece também.

E aí vem uma vontade boba de viver de novo a doce irresponsabilidade de antes. Daí para o fim do casamento é um pulo. Porque a vida une de um lado e separa dos outros. Ah, a vida…

Portanto, é urgente que as cerimônias matrimoniais — e todo um estado de coisas que elas encerram e representam — ajustem de uma vez essa abordagem. Assim, livres desse peso bizantino da posse infinita sobre o outro, os casais serão mais felizes, sem ilusão, sem ingenuidade, sem cobranças impossíveis, sem mutilar seus instintos.

Liberados da fantasia do amor eterno, os noivos serão mais felizes e livres para se amar e respeitar e trabalhar por seu amor sincera e genuinamente, em seu tempo, com o que têm de melhor, na troca honesta de duas pessoas que se encontram e se doam por livre e espontânea expressão de sua vontade, não pela pressão de suas famílias e suas convenções recalcadas e vingativas. Talvez esteja aí uma boa e ampla definição para a palavra “lealdade”.

E que assim se amem lindamente. Até que a vida os separe. Ou — quem sabe? — os una para sempre.

Acumule vida, não coisas.

Acumule vida, não coisas.

Temos um conceito de necessidade bem versátil, no que diz respeito a gostos e recompensas. A palavra “necessidade” vem com tudo, quando estamos defendendo o que desejamos, sonhamos e acreditamos piamente que precisamos e sem o qual não vivemos. Necessitamos, precisamos a qualquer custo e não sossegamos, enquanto não conseguimos. E começamos a acumular necessidades…

Acumulamos tudo. Papel demais, vaidade demais, lixo demais, comida demais, promessas demais, móveis demais, manias demais, peso demais para uma vida que não depende, nem se garante por nada disso.

Se vamos ao supermercado, enlouquecemos. Compramos muito mais do que precisamos, saímos de lá exaustos, lisos, e com carrinhos abarrotados de coisas que não precisamos, que não suprem a fome que realmente temos. Mas, naquele exato momento, juramos que não haverá possibilidade de vida, se não levarmos quatro potes de cera líquida para tacos. Assim somos. Insaciáveis.

Se passamos na farmácia, viramos imediatamente doentes, de tanta medicação que precisamos ter com urgência em casa, para o caso de uma febre, uma torção, um ataque cardíaco, laringite, sinusite, tendinite…

Em viagem, perdemos totalmente a noção de estadia provisória, levando uma bagagem gigante, pesada, desnecessária, desconfortável e ridícula.

Olhando assim de passagem, eu diria que, compatível com as angústias que desejamos deixar para trás, muitas vezes.

Nós guardamos livros que não iremos ler mais, material escolar que jamais voltaremos a consultar, rolhas de garrafas, vidros vazios, revistas, sacolas, roupas, enfeites, comidas, remorsos, mágoas, invejas, lamúrias, ressentimentos e toda espécie de peso em nossos ombros.

Por fim, ficamos totalmente soterrados e engolidos, desfigurados, irreconhecíveis, distantes demais do que já ousamos sonhar em ser. Não há espaço mais para acomodar a liberdade, não há braços para carregar os sonhos, não há fôlego para acompanhar a vida que passa.

Joguemos fora, portanto, o que nos limita os movimentos. Tenhamos coragem de nos desfazer de coisas e causas que nos paralisam. Necessidade é viver em paz! Necessidade é colecionar lembranças, acumular memórias, estocar conquistas, cercar-se de afetos.

Saiamos das trincheiras, de peito aberto para vida, sem escudos nem proteções. A vida passa rápido demais para sermos unicamente vigias dos nossos pertences. Pertençamos nós à vida, da forma mais livre possível.

Texto revisado por Flávia Figueirêdo

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