Uma paulista morando no Nordeste

Eu morava na Zona Leste, lá no final da linha vermelha. Como todo mortal nascido e criado depois da estação Tatuapé (o único bairro da Leste que as pessoas conhecem e julgam agradável), acordava cedo e me preparava para a guerra de todos os dias: conseguir entrar no transporte público e chegar no trabalho na Zona Sul a tempo. Não sou a única, nunca fui. Somos milhões todos os dias naquela lata de sardinha que tem um ar condicionado descontrolado e gente de todo o tipo. E a mesma batalha que a gente enfrenta na Leste, enfrentam todos os outros que, onde quer que morem, tem que sair na selva de pedra e vencer.

No trabalho, passamos pela mesma coisa: ser eficiente, sorrir, obedecer, se desdobrar para agradar seu superior e entregar tudo que foi pedido a tempo – mesmo que esse tempo seja humanamente impossível. Um sorriso torto, um erro que gere débitos, uma falta não justificada vira uma palavra que a gente teme: RUA! Somos muitos, milhares, milhões. E São Paulo (e todas as outras grandes metrópoles do mundo) nos lembra diariamente o quão descartáveis podemos ser. Profissionalmente, emocionalmente, ocaceteaquatromente.

Tudo é volátil, prático, dispensável. A cidade que nunca dorme é tão corrida, tão produtiva, que me faltava amor. Olho no olho, um caminhar descalço sem medo de ser estuprada na praça do bairro, uma conversa informal no portão sem ser surpreendida por motoqueiros armados. São Paulo. Não pode ficar dentro do carro porque você fica vulnerável. Não pode usar roupa curta porque chama a atenção. Não pode expor sua opinião no happy hour porque você tem conta no final do mês e precisa desse dinheiro e desse emprego.

Um dia, muito jovem ainda, cansei. Por anos procurei outra morada e, de viagem em viagem ao Nordeste, me apaixonei pela comida regional e pela simplicidade desse povo que, diferente da gente lá no Sul, parece não ter pressa. Até que, depois de voltas e voltas, me mudei pro Ceará.

Só vivendo pra saber e entender. Somos o mesmo país, somos a mesma cultura, falamos a mesma língua mas, meu Deus, como somos diferentes. Como os anos de cidade grande me deixaram cascuda, brava e produtiva de um jeito diferente do casco deles. Sabe, o casco deles você vê no calo das mãos, no olhar descrente com promessas, na falta de ambição sobre o seu futuro. São diferentes, foram criados como humanos aqui enquanto nós lá embaixo fomos criados para ser máquinas de produção. Eu de frente com eles sou choque, faísca, trovoada. Peço algo que eu sei que pode ser feito em quinze minutos, mas aqui eu sou a estranha, eu tenho que aceitar que essa banda demora dias para me entregar o que eu combinei. São dias, não são minutos. Aqui não tem demanda de desemprego que nem tem nas nossas metrópoles. Aqui se viram como dá, informalmente mesmo. Ninguém sabe, ninguém checa, ninguém fiscaliza, ninguém se importa.

Agora vejo a eleição se aproximando em meses e minha mãe mandando áudios enormes com os absurdos que vê na tv. “Mãe, nem tv eu tenho.” Aqui a política não grita muito alto. É um Parque Nacional, protegido por todos, inclusive por políticos e por Deus. Aqui ninguém toca em nada. Aqui o dinheiro que o estrangeiro deixa é sagrado, movimenta tudo, mudou tudo.

Aos poucos o choque cultural me incomoda menos. Somos mesmo diferentes, temos mesmo outro ritmo. Nosso país continental permite essas mudanças comportamentais tão importantes, e tão regionais. Não tenho mais carro, e aqui nem transporte público tem. O conforto de uma cama de molas deu lugar à uma cama, apenas, sabe-se lá a procedência. O teto não tem forro, passa aranha, passa vento, passa folha de coqueiro. Durmo coberta com o lençol e acordo coberta de areia. O chuveiro é natural, nada de água quente. Cooktop? Aqui estamos bem de botijão. De noite vejo gringos passeando, mas também vejo burrinhos, bois, camundongos silvestres, iguanas, cassacos (o gambazinho do Nordeste), rãs, corujas e morcegos.

Meu sertanejo e meu funk de tantas noites aqui viraram samba de roda e forró pé de serra. A balada que antes virava o dia, aqui acaba às duas. A cachaça (já que eu nunca bebi vodka) ficou mais barata, a maçã mais cara, a tapioca entrou pro café da manhã junto com seu irmão, o cuscuz.

Quando sento na mesa do refeitório para almoçar, vejo rostos que já chamo de família, mas que ainda não entendo o que dizem. Entre gringos e brasileiros conversando, minha dificuldade é entender o tal do cearês. Falam rápido, juntam todo o português e jogam um sotaque bairrista de quem nasceu nessa terra e merece o respeito de nós, forasteiros.
Brasil, meu querido Brasil, como você é grande e surpreendente!

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Imagem meramente ilustrativa:  Artem Bali on Unsplash







Turismóloga e Administradora de Novos Negócios por formação. Escritora, pintora e dançarina por vocação. Planejadora de eventos, bartender, agente de viagens e vendedora por profissão. Garçonete de navio por opção. Vi o mundo e voltei, e de todos os rótulos que carrego na bagagem, só um me define bem: sou uma ótima contadora de histórias.