Um brinde às taças que se quebram

Quando me mudei, depois de morar por doze anos na mesma casa, eu me dei conta de quanto usamos pouco certas coisas por achar que são restritas ao uso em certas datas especiais. Ao abrir a cristaleira e me deparar com aquelas taças todas, eu me lembrei de que elas viviam ali empoeiradas há anos e que algumas delas nunca tinham sido usadas. As taças foram então embaladas, vieram junto da mudança e continuaram morando na mesma cristaleira, só que em uma casa diferente. Nunca tive a ideia de usa-las para tomar suco, água ou para comer morangos com chantilly no dia a dia. Sabe-se lá porque, me ensinaram que as taças de cristal são sós para bebidas e datas especiais. Fui ensinada a separar a roupa “de missa”, o sapato de usar em casa e o de sair. Tenho quarenta e um anos e quem é “da minha época” vai entender.

Em abril de 2014 eu fui salva “pelo gongo” e muita coisa mudou aqui dentro. Se eu tivesse morrido de septicemia naquele três de abril quando a diverticulite que eu nem sabia ter perfurou e evoluiu para uma peritonite, as taças ficariam aqui e junto delas, tudo que dizem serem os meus bens materiais.

Lembro-me de um conto bem famoso no qual o marido contava que sua esposa guardara uma linda camisola por toda a vida esperando usa-la em uma data especial; ela então morre e o marido pede que a vistam com a roupa que ela então finalmente usaria. A morte chegou antes da tal data especial – se é que essa data existe. Uma parábola perfeita para lembrar-nos que só existe o hoje.

No dia vinte e quatro de dezembro de 2015 as minhas taças saíram da cristaleira e foram – junto de toda a porcelana – usadas em uma deliciosa ceia de natal que reuniu a minha família e a do meu marido. Foi aí que eu percebi que o maior valor delas está em ser usada – e se quebrar, quebrou! Uma eu quebrei quando a lavava, livrando-a do pó e do abandono, ela morreu feliz, coitadinha. A outra se quebrou lindamente quando uma das crianças esbarrou nela, correndo em direção ao Papai Noel que chegava com os presentes. Uma terceira, de champanhe, acabou se quebrando no dia seguinte porque eu a esqueci na mesa quando, já depois da festa, decidi tomar “mais uma” com o meu marido. Estávamos embriagados demais para cuidar das taças e felizes por termos passado o natal com nossos pais, com nosso filho, com os irmãos, primos, tios…

As taças também servem para serem quebradas. Não deve ser justo que vivam mais do que nós. As coisas servem para serem usadas e por isso devemos ter apenas o que realmente usamos. Cem pares de sapatos para um par de pés parece não fazer sentido, mas se você os tem, use todos eles. Não guarde nada para uma ocasião especial porque todos os dias são especiais. Tome água numa manhã de segunda-feira difícil naquela taça de cristal. Vá trabalhar com sua melhor roupa quando sentir vontade. Não deixe nada para amanhã porque ele pode não chegar.

Usar tudo que se tem e ter somente o que se usa pode nos ajudar a acumular menos e a ter menor necessidade de comprar mais do que se precisa. Relatos de colegas que trabalham atendendo pacientes acumuladores me ensinaram que uma das características deles é quase nunca usar o que adquirem.

Não deve ser saudável comprar o que não se vai usar. Nem comprar para “guardar”, nem para usar quando houver uma oportunidade. Compre e use, use o que comprou. Não se apegue às coisas, nem lamente quando as louças ou os cristais se quebrarem. Comemore porque foram usados – é para isso que servem.

A vida é traiçoeira conosco. Tive tanto apego aos meus CDs e hoje olho para eles e não consigo conter o riso de pensar que todas aquelas músicas cabem em uma geringonça menor do que a palma da minha mão. Parece que o fim de todas as coisas é não ter valor algum. Mesmo as que estão nos museus, às vezes me dão “gastura”. Quando estive em Liverpool e vi, daquela distância segura, o piano branco do John, dentro do museu The Beatles Story, pensei na hora: “O que vale ver esse piano agora, mudo?”. Chorei é claro, mas queria John vivo tocando em qualquer piano.

Quero levantar um brinde a todas as minhas taças quebradas, às que ainda restam na cristaleira e que quero usar e quebrar ao longo da minha vida. Quero comemorar por estar viva para usar as roupas lindas que compro até que fiquem velhas e também pelos sapatos e as botas que já gastei e que ainda quero gastar andando pelo mundo. Quero agradecer pelo tecido do meu sofá todo manchado pelas estripulias do meu filho e também por todos os enfeites que ele quebrou e que não me fazem a menor falta. Sou feliz por todos os tecidos da minha casa que meus gatos rasgaram ao longo desses anos todos porque uma casa com tudo intacto e no seu devido lugar é uma casa sem vida e a mais linda taça de cristal não vale nada se não for usada.

 







Psicóloga, psicoterapeuta, especialista em comportamento humano. Escritora. Apaixonada por gente. Amante da música e da literatura...