Sobre Libras e liberdade

Outro dia tive a oportunidade de assistir a um vídeo que me tocou muito. Era sobre um homem surdo que saía de casa acompanhado de sua irmã, como de costume, sem saber que as pessoas com as quais eles cruzariam seriam capazes de se comunicar com ele.

Acontece que, previamente, todos os envolvidos na cena haviam sido orientados e saberiam usar a linguagem de sinais nas situações a que o vídeo se propunha. Assim, os dois seguiam caminhando e, de repente, alguém esbarrava neles e se desculpava, em Libras.

Mais tarde, alguém deixava algo cair perto dele para que, ao fazer a gentileza de pegar o objeto do chão, o homem pudesse receber o agradecimento, também em Libras. A reação do rapaz não podia ser outra: diante de tanta gente se comunicando daquele jeito, viu-se obrigado a perguntar à irmã se todos eram surdos.

Este simples questionamento provocou em mim o efeito de um tapa na cara. A pergunta feita à irmã, mostrou-me uma verdade cruel: aquele homem não consegue conversar com qualquer pessoa. É preciso que alguém tenha sido preparado para isso. Nunca tinha me dado conta do quão limitado é o universo de um surdo.

Ele pode se comunicar, sim. Pode aprender o que quiser, ganhar o mundo. Porém, não pode conversar com quem quiser. Não pode, não por falta da audição, mas, simplesmente, por que as pessoas não estão preparadas para entendê-lo. Eu não estou preparada. Talvez você, caro leitor, não esteja.

As pessoas só se preparam quando há necessidade. Se eu tivesse um familiar ou amigo surdo, certamente, já teria dado um jeito de aprender Libras. Inglês até já sei o básico. E me envergonho em dizer que, para mim, é mais fácil conversar com um estrangeiro do que com um surdo.

Ainda lembrando do vídeo, recordo a expressão no rosto do homem e de sua emoção no final, ao perceber que aquilo tudo foi preparado para ele. Fico pensando por que não nos preparamos todos para ele? Por que não ensinamos a linguagem de sinais nas escolas, nas famílias, independente de ter ou não alguém surdo à nossa volta.

Isso seria inclusão. Assim , o mundo estaria dando as boas-vindas e acolhendo quem não ouve, mas sente. Aí não haveria a necessidade de intérpretes no cantinho da televisão ou nas salas de aula. Imagino que esse seria um passo gigantesco rumo à igualdade de condições.

A deficiência auditiva não impede ninguém de se fazer entender. A ignorância, sim. Ora, se eu tivesse um filho surdo, adoraria que ele pudesse conversar com quem quisesse e não apenas com quem está habilitado. Odiaria ter que ver meu filho se dirigindo a um intérprete para poder falar com seus colegas, com sua professora.

Certamente, eu brigaria pelo direito que ele tem de ser compreendido por todos. Eu faria de tudo para que o professor intérprete não fosse apenas o elo entre um surdo e os ouvintes, mas, sim, um multiplicador de Libras e de liberdade.

E foi assim, assistindo a um vídeo brilhante, que me livrei de minha própria surdez. Pela primeira vez na vida, escutei o grito de socorro que emana daqueles que precisam e merecem se comunicar sem constrangimentos, sem limites.

Se os que tiveram o sentido auditivo prejudicado conseguem encontrar maneiras de conversar, o que impede os ouvintes de acompanhar este processo? Talvez seja o comodismo, a falta de necessidade. Mas essa necessidade já existe, basta prestar atenção aos sinais.

Para mim, ela se apresentou na tela do computador, por meio das lágrimas de um homem que se sentiu importante pelo simples fato de ser entendido pelas pessoas da rua. No dia em que esta emoção fizer parte da vida real, o mundo será um lugar mais aconchegante para se passar a vida.

Imagem de capa: Photographee.eu/shutterstock







Educadora com formação em Letras Português/Inglês e foquei minha carreira na alfabetização durante quinze anos. Porém, um câncer de boca (localizado na língua) me afastou da sala-de-aula e me fez descobrir o dom que adormecia em mim: a escrita. A doença me deu tempo e uma história para contar. Resolvi registrar no papel como o câncer me curou, transformando-me em alguém melhor. Assim nasceu o livro Impactos do Câncer, que foi lançado no final de 2015. Desde então, sigo escrevendo sobre o que meu coração manda, porque sinto que é essa a contribuição que sei deixar para o mundo.