Shakespeare e Psicanálise – Inveja e ciúme em Otelo

“Acautelai-vos senhor, do ciúme; é um monstro de olhos verdes, que zomba do alimento de que vive.”

Otelo é uma obra extremamente profunda, a qual trabalha de forma visceral o íntimo do homem, versando sobre dois sentimentos mais precipuamente, a saber, a inveja e o ciúme.

A inveja é um dos sete pecados capitais, ou seja, o grupo dos pecados que originam os demais. Esse fato é extremamente importante, uma vez que se vive numa época em que a virtude consiste em um dever ser, ou seja, na capacidade de controlar o impulso aos pecados. Todo pecado sempre ataca uma virtude, mas a inveja tem uma peculiaridade, qual seja, ela ataca todas as virtudes e, portanto, possui uma destrutividade muito grande. Essa destrutividade é demonstrada naquilo que o outro possui de bom. Sendo assim, a inveja é um sentimento dual, isto é, dá-se na relação entre dois indivíduos, uma vez que o outro sempre tem algo que eu não tenho e, assim, como não tenho aquilo que invejo, não consigo me alegrar com nada.

Para o invejoso, receber algo de bom do outro é visto como uma humilhação, já que o invejoso entende que ele deveria possuir a virtude que o outro demonstra. Há um desejo intrínseco ao invejoso, que busca incessantemente o que lhe falta no outro. Em primeira análise, isso poderia ser entendido como algo positivo, pois há uma relação humana de troca estabelecida. Contudo, como já dito, o invejoso é incapaz de receber algo bom do outro, de modo que ele não busca o que lhe falta no outro para que, assim, possa ser preenchido, mas sim para destruir o outro.

O ciúme, por sua vez, é um sentimento que se dá numa relação triangular, em que há um terceiro envolvido. Esse sentimento, ao contrário da inveja, pode possuir algo de bom, como cuidar do outro, do qual se sente ciúme. Entretanto, o ciúme delirante pode ser tão perigoso quanto a inveja, e é esse ciúme que se apresenta em Otelo.

Para que o ciúme seja delirante, é preciso ter uma base na inveja, assim como um núcleo narcísico, em que não se suporta a ideia de não ser o centro das atenções. O ciumento entende que a vida do outro deve ser alicerçada na dele, deve se alimentar na sua vida. Assim, não lida bem com a independência do outro. Para o ciumento delirante, há sempre o sentimento de traição iminente, de forma que é apenas uma questão de tempo para que a traição aconteça.

Na obra, Otelo é descrito como um indivíduo muito virtuoso, o qual todos olham de baixo. A sua amada, Desdêmona, também é muita virtuosa, sendo que a sua principal virtude é a ingenuidade, que a faz acreditar na bondade do mundo, e sabe-se que a alegria passa por uma dose de ingenuidade.

A inveja surge na trama com Iago (alferes de Otelo) e, como sabemos, a inveja busca destruir todas as virtudes, logo, Iago, tomado pela inveja do virtuoso Otelo, buscará destruí-lo. Para Iago, conviver com alguém tão virtuoso é insuportável. Dessa forma, Iago traça a destruição de Otelo através daquilo que ele mais ama: Desdêmona. Já dizia um sábio que o caminho mais curto para destruir alguém é por meio daqueles que este ama. Assim, Iago busca pôr “veneno” na alegria do casal:

“Pois, enquanto este imbecil honesto pede à bela Desdêmona que cure a sua sorte, e ela sobre isso insiste junto ao Mouro, veneno deitarei no ouvido dele, com dizer que ela o faz só por luxúria; quanto mais houver feito ela por ele, mais, junto ao Mouro, há de perder o crédito. Transformarei em pez sua virtude, e com a própria bondade apresto a rede que há de a todos pegar.”

Iago planta em Otelo a ideia de que Desdêmona o traíra, despertando o seu ciúme. Perceba que Iago apenas desperta o ciúme que já pertence a Otelo e aqui está o nó da meada. Otelo se abastece das conquistas, como se procurasse preencher um vazio (hoje se preenche com bens materiais). Falta, portanto, sentimentos a Otelo, o que fica claro na seguinte passagem:

“Ela me amava pelos perigos pelo que eu havia passado, e eu a amava por ter ela se compadecido de mim.”

Ou seja, Desdêmona, na visão dele, não se apaixonou pelos seus sentimentos, pelo que ele é, mas por aquilo por que ele é venerado. O que o faz duvidar sobre o amor de Desdêmona, pois ela não o amou, mas antes suas glórias. Sendo assim, a semente plantada por Iago logo floresce em Otelo, pois já havia terreno próprio para isso, afinal, o ciúme delirante vê a traição como algo iminente, de tal modo que não consegue enxergar o bem no mundo, assim como o invejoso.

O polo passivo da história desenrola-se totalmente em Desdêmona. A sua ingenuidade não lhe permite desconfiar dos outros e enxergar o mal. E isso faz com que ela não consiga defender-se, já que só acredita na bondade. Mas, ainda nesse ponto, mesmo que Desdêmona quisesse se justificar, não conseguiria, dado que é impossível provar algo que não aconteceu. Isto é, Desdêmona não tinha como justificar algo que sequer aconteceu, provar um não-ser. A atmosfera criada por Iago era fantasiosa, logo, fora do real e impossível de ser provada.

Os elementos que foram construindo essa atmosfera, contudo, só foram possíveis por causa de Otelo. Se o seu sentimento de ciúme não fosse delirante, jamais chegaria ao ato de matar Desdêmona, de tal maneira que ela foi tão somente o elemento final do seu ciúme.

Esse ciúme possui um traço indispensável – a insegurança -, pois Otelo não acredita que Desdêmona possa de fato lhe amar, tampouco ser fiel. Otelo sente-se inadequado àquela sociedade, o Mouro sente-se apenas um instrumento de Veneza. A sua insegurança alimenta ainda mais seu ciúme, assim como seu narcisismo. Em Otelo, sobram as marcas de guerra e faltam-lhe sentimentos.

O narcisismo faz Otelo, em um primeiro, momento acreditar que as suas glórias fossem suficientes para fazer Desdêmona amá-lo, mas, em seguida, a insegurança trata de pulsar o ciúme, que o faz acreditar em todo o teatro criado por Iago, já que ele necessitava desses elementos para adaptar a realidade criada na sua mente, em que, inevitavelmente, Desdêmona o trairia.

A inveja de Iago o faz destruir tudo; e o ciúme de Otelo, ser ele o protagonista da destruição. Destruição das suas próprias virtudes, daquelas até que não existiam, mas em que Desdêmona acreditava. A bela jovem, essa era a grande virtude da história, a qual transpirava pureza e ingenuidade. Uma ingenuidade que parece incompreensível.

O coração do Mouro era terra arada e pronta para as sementes do Invejoso e perspicaz Iago. Este sofre por viver, mas com tudo à sua volta destruído. Aquele sofre por saber que o seu ciúme o fez destruir suas virtudes, sobretudo, a maior delas, chamada Desdêmona.

“Peço-vos, por favor, que em vossas cartas, ao relatardes estes tristes fatos, faleis de mim tal como sou, realmente, sem exagero algum, mas sem malícia. Então a alguém tereis de referir-vos que amou bastante, embora sem prudência; a alguém que não sabia ser ciumento, mas, excitado, cometeu excessos, e cuja mão, tal como o vil judeu, jogou fora uma pérola mais rica do que toda sua tribo.”







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