Que a nossa fera sempre nos liberte!…  e apareça nos rasos das horas mansas…

A Bela e a Fera foi desde sempre o meu conto favorito. De fadas ou do vigário. Muito mais pelas angústias da fera, que pelos dotes da bela.

Loucuras amorosas e almas tortuosas, raspas, restos e um copo de cólera me interessam. E muito. Escrevi há um tempo sobre a vontade que as pessoas tem do lado sombrio. O fascínio arrebatado pelo beijo do vampiro ou a cilada do lobo mau. A ópera com seu fantasma e a fera a dominar… em qualquer instância de domínio.

Mesmo que só no campo da fantasia, o medo e o frio na barriga tem lá o seu potencial de feitiço. E como. Não ter a segurança do terreno em que se pisa pode ser, em tempos gelatinosos de realidade crua e muito caso pré-cozido, só um teste de sobrevivência… Mas pode também virar um vício a ponto de boicote. Muitas vezes, relações maduras e equilibradas, serenas e bem pautadas, podem ser tudo o que a gente precisa para alcançar o nirvana ou só um bom sono de saúde. Mas ao mesmo tempo podem vir com o pote de tédio no final infeliz do nosso arco-íris.

Existe uma corrente arquitetônica que preza o desapego de ornamentos, com um mantra bem ecoado e cunhado pelo arquiteto Mies van der Rohe que diz que ‘menos é mais’ (less is more). Como tudo tem o seu ponto crítico e o lado avesso, há quem conteste, em tom de travessura mas também alerta, e emende com um ‘menos é chato’ (less is a bore).

Sempre pensei que isso talvez se aplicasse às coisas da vida e aos dilemas do amor. Porque mesmo que a gente saiba, ou tenha certeza, de que menos confusão na vida, é mais garantia de felicidade no caminho, tem algo que empurra para mais adrenalina, muito risco e pouco juízo. Pro desatino e pro descalabro. Pro abismo… da gente mesmo.

Porque no fundo do peito, do poço, do posso, ou mesmo no raso das pessoas, o que todo mundo um dia vai querer é emoção. Ah, e esse coração quando se agita, “ou palpita mais ligeiro”, dispara… tem jeito não. Vale a sofrência de antes e a moda de depois, dando ou não os 10% pro garçon.

Bom mesmo era se a gente soubesse que tem e sempre que teve o controle do final feliz da nossa história. E que é ao mesmo tempo a bela que salva e a fera que prende… Aí eu me lembro do Pessoa na pessoa dele mesmo, onde em um poema lindíssimo chamado Eros e Psique, conta sobre uma princesa que dorme encantada à espera do beijo do príncipe: Ele, valente, desbrava dilemas e perigos para ir ao socorro da amada que nem sabe existir. Depois de luta e vitória, chega onde em sono ela espera, para descobrir que, sob uma grinalda de hera, era ele mesmo quem dormia encantado.

Compreender que a gente pode ser ao mesmo tempo a presa e o carrasco, o refém e o salvador, é mágica pra todo canto e encanto que dá o tom e o brilho no olho. Traz alento para na mesmice e salvaguarda na aventura. Saber que a bela te olha do espelho mas é a fera que dá forma à sua sombra, ou vice e verso!, traz a liberdade de ser, estar, sentir, brigar e brincar com qualquer outra fera, ou bela, no conto de fadas que a gente bem entender…

Sou jardineira imperfeita,
que nem faz nascer saudade.
Pequenina, da perna grossa.
E juízo curto,
que demais não gosta.
E gosta.

Deixo a trama da prenda minha,
espalhada pelo chão.
Mariazinha que quando dorme,
põe ao largo o coração…
E a mão onde tem que botar.

Sete e sete são meus vícios.
Com mais sete, eu tiro um par.
E saio jururu, da beira do cio.

Pois há muito não faço rendinhas,
nem sonho com o casamento.
Me atirei na contra dança!
Mas ainda não sei dançar…

Cadê João, José, Romeu?
Meu meio, sou eu.

::: Claro que esse texto foi motivado pelo novo e já clássico da Disney, A Bela e a Fera, live action de 2017. Totalmente baseado na animação de 1991, tenta a todo custo puxar pela memória afetiva dos fãs. Consegue o intento ao reproduzir fielmente músicas, valsas ou o vestido amarelo, assumindo-se, aliás, até mais como um musical autêntico…

Contudo, a mão pesada do diretor Bill Condon, tira muito da delicadeza do original, ficando a boa sacada para a escolha certeira do elenco. Emma Watson imprime dignidade à Bela, Luke Evans aparece perfeito como Gaston e os dubladores – Emma Thompson (Mrs. Potts ou Madame Samovar), Ewan McGregor (Lumière) e Ian McKellen (Cogsworth ou Horloge) – dão muita personalidade aos ‘objetos’ do castelo.

Já Dan Stevens fica totalmente anulado sob a carcaça dos efeitos visuais da Fera. O tão falado personagem LeFou, cuja cena abertamente gay fez o filme ser vetado em vários países, é feito com maestria pelo timing cômico de Josh Gad, e pelo papel que presta à desconstrução de preconceitos, já tem lugar de respeito. No todo o filme é amor, diversão e a moral da história é que toda forma de A Bela e a Fera sempre vai valer a pena! :::

Imagem de capa: cena do filme: “A Bela e a Fera”, 2017.







Designer de Ambientes e Produtos, por profissão. Especialista em Arquitetura Contemporânea e Cinema, por interesse. Professora Universitária, por pura vocação. Mãe em tempo integral, por um amor imenso. Catadora de palavras, por necessidade absoluta.