Quando um reality show faz seu público questionar a própria balança moral

Certa vez, minha amiga Josie Conti me disse que a profundidade está nos olhos de quem vê. Creio eu que a lucidez dessas palavras se prova no simples observar do comportamento das pessoas ao nosso redor em relação aos conteúdos que consomem. Por exemplo, há quem leia Dostoyevsky e não enxergue nada além dos ingredientes que constituem um bom e vendável folhetim romântico. Da mesma maneira, há quem consiga tirar sábios ensinamentos das mais banais ou “profanas” situações do dia a dia, como uma tarde de passeio no shopping ou três meses assistindo a um reality show de TV aberta – por que não?

Os olhares mais atentos já notaram que, por trás de todo o já conhecido espetáculo roteirizado dos reality shows mais mal afamados da nossa televisão, existe um interessante experimento social, com potencial para originar as mais complexas reflexões acerca do comportamento do homem como indivíduo e em sociedade. Neste sentido, têm se destacado nesta temporada a vigésima edição do Big Brother Brasil, exibido pela igualmente mal afamada – embora premiada e conceituada – Rede Globo. O programa surge em um momento em que o país vive em verdadeira ebulição comportamental, e o que se vê em tela é reflexo disso. Os 20 participantes confinados no reality protagonizam um emocionante duelo de certezas, em um presente em que nenhuma certeza dura para sempre – o que é certo agora, amanhã no mesmo horário pode ser errado. Nesta toada, o público também se vê obrigado a questionar a validade dos próprios conceitos e o resultado é uma inédita (des)construção coletiva de ideias e opiniões.

Para entender como o programa chegou a este cenário, é preciso remontar parte da narrativa que se desenha nesta temporada. Logo nos primeiros dias de exibição do reality, o público assistiu a um embate memorável entre homens e mulheres sobre o machismo apontado por elas nas atitudes adotadas por eles. Os telespectadores, ávidos por uma boa narrativa maniqueísta, não hesitaram em classificar mocinhos e vilões entre os participantes do programa. O que se viu a partir daí está bem próximo de um enredo de novela mexicana, com direito a vilões sendo punidos, um a um, com a eliminação no famigerado “paredão” e mocinhas recebendo suas recompensas pelo bom comportamento em forma de torcida organizada e seguidores nas redes sociais.

A discussão dentro do programa, portanto, começou da mesma maneira que se iniciam muitas discussões aqui fora, tratando o assunto superficialmente, sem adentrar todas as complexidades que permeiam todas as coisas, principalmente no campo das ideias. Mas, como sabemos, uma hora a discussão precisa evoluir, e então a narrativa do programa foi ficando cada vez mais complexa para o parco entendimento de boa parte do público do programa. Acontece que se trata de um jogo que tem como cerne a premissa de espiar a intimidade das pessoas. E bem sabemos que, na intimidade, ninguém é isento de erros. E foi assim que o público começou a notar que “mocinhos” também podem ter comportamentos moralmente condenáveis e vilões também podem ter atitudes “admiráveis”. Mulheres fortes, empoderadas, esclarecidas e defensoras dos ideais feministas foram flagradas errando – falta gravíssima em um reality show – , e homens brutos, ignorantes e praticantes de atitudes machistas, ganharam a simpatia de boa parcela do público ao demonstrarem que são seres humanos, por vezes até gentis, compreensivos ou altruístas.

Neste momento do programa, o machismo ainda está em pauta, afinal ainda há quem se espante com a facilidade com que um homem branco e privilegiado é perdoado por inúmeros erros, enquanto uma mulher é duramente crucificada logo ao primeiro deslize. Mas se somam à discussão outras pautas, mais complexas e que requerem um olhar mais sensível, como o feminismo branco – uma vez que a única mulher negra do cast do reality é praticamente invisibilizada pelos colegas e pela própria edição do programa, mesmo que sua trajetória até aqui seja digna de protagonista – e o racismo estrutural, presente em falas e atitudes de boa parte do elenco em relação ao único homem negro do programa, que é morador de favela e que está fora dos padrões de beleza impostos pela sociedade. Diante desse cenário, quase todos os participantes do programa já estiveram na “roda do cancelamento” e o público faz “malabarismos” para tentar contornar os eventuais deslizes daqueles a quem destinam sua torcida e devoção, levantando o incômodo questionamento: quais erros são perdoáveis e quais não devem, de maneira alguma, ser premiados? – Eis a pergunta que vale um milhão e meio de reais.

A resposta talvez seja a mais simples. Na balança moral de cada ser pensante que habita este planeta, pesa a própria simpatia pelo indivíduo sob análise. Deste modo, um mesmo erro pode ser imperdoável se cometido por um desafeto, ou por alguém com quem não se tem a menor identificação; ou pode ser visto como apenas um “desvio de percurso” se cometido por alguém que pertence ao meu círculo de afetos. Subentende-se daí que não há possibilidade de um julgamento completamente imparcial. Pesa sobre cada decisão uma série de outros fatores que independem do caso em questão.

Na vida, não há mocinhos e vilões, ou uma narrativa que seja coerente. Somos todos seres complexos, vivendo em uma sociedade que faz movimentos constantes para se transformar, exigindo que cada um aprenda a “desaprender” tudo o que até ontem era o “certo”. Há quem “erre” menos por saber melhor adaptar-se, e há quem “erre” mais por estar apegado às próprias certezas. No fim, quem está certo ou quem está errado, é meramente uma questão de perspectiva. E não deixa de ser interessante notar que uma reflexão como essa é resultado do entretenimento produzido por um programa de televisão destinado a vender marcas de refrigerante, esponja de aço e toda a mais variada sorte de artigos domésticos.

Por fim, cabe ressaltar que a experiência de assistir a um reality também pode ser vivenciada apenas como fonte de diversão, sem que nisso haja um problema, afinal, mesmo as peças de Shakespeare, que ainda hoje suscitam as mais complexas reflexões acerca da psiqué humana, estão embaladas no mais puro e deleitoso entretenimento.







Felipe Souza é escritor, jornalista, editor de conteúdo para a internet e agora também podcaster. E, além disso, um leitor voraz e um curioso sobre os mais diversos assuntos.