Quando o mundo de fora passa a existir dentro de nós

Hoje quero falar de sentimentos contraditórios, até porque, talvez todos os sentimentos tragam em si um cadinho de lados opositores. Eu, particularmente, nunca fui uma pessoa cem por cento caseira, ou obcecada por rolês fora de casa. Sempre precisei de um certo equilíbrio entre ficar no meu cantinho e explorar o mundo exterior. Contraditório? Provavelmente.

E, nestes tempos de voltar para o casulo em período integral, o que mais tenho feito – além de aspirar e esfregar cantos, até então desconhecidos da minha casa -, tenho refletido bastante.

Lembrei-me de uma ocasião em que por um motivo de doença, tive de ficar em casa por dez dias, sem sair mesmo. Fui acometida por uma crise de labirintite, causada por uma bactéria do mar que se alojou no meu ouvido direito. Ficar quieta, naquela situação, não era uma escolha, era uma imposição do meu corpo que havia perdido o eixo de equilíbrio.

Ficar em pé, ou mesmo mover a cabeça, eram um enorme desafio, posto que, qualquer movimento me dava a sensação de estar em um barquinho numa tempestade em alto mar. Sem alternativa, aquietei-me. Nada de ler, ou desenhar, ou pintar, ou bordar ou fazer crochê. Tive de me contentar em ouvir música ou notícias pelo rádio; aprendi a relembrar histórias reais ou fictícias e conjurar filmes inteiros em minha imaginação; aprendi a meditar; fazia listas mentais de palavras em ordem alfabética; redecorava cômodos dentro da minha cabeça. Foi uma experiência bastante didática, a partir da qual compreendi o quanto somos vulneráveis e temos pouco controle sobre o que pode entrar em nossos corpos, sem nenhum tipo de convite. Bem, passados os dez dias, tenho viva na memória a sensação impactante que foi sair de casa pela primeira vez. Tudo parecia muito diferente, como se eu tivesse dormido por anos. Achei o mundo lá fora excessivamente ruidoso, iluminado e agressivo. Lembro-me de ter sentido até um desconforto físico, uma mistura de falta de ar com taquicardia. Precisei de tempo para me readaptar ao ritmo externo, depois de tanto tempo voltada para dentro de mim. Enquanto eu funcionava em câmera lenta, o mundo parecia acelerado por demais. Aos poucos, no entanto, o estranhamento foi passando; o mundo não se alterou por minha causa, mas eu tive de reaprender a me encaixar no seu ritmo.

Ontem, entretanto, pensei muito sobre uma época da minha vida em que por absoluta necessidade, passava mais de doze horas fora de casa, posto que dava aula em duas escolas. Minha casa passou a ser quase que apenas um dormitório, com uma breve parada para o jantar e um banho. Exausta, ao cair na cama, no entanto, minha mente exageradamente estimulada, se recusava a desligar. Por excesso de esforço, físico, mental e psicológico, passei a ter problemas para dormir. Desenvolvi uma relação perversa com o rádio relógio que morava na cabeceira da minha cama (se você não tiver idade para saber o que é um rádio relógio, dá um Google que você descobre), eu ficava de olhos fechados, tentando descansar o corpo, mesmo sem dormir. Acontece que a curiosidade é um tipo de coceirinha insuportável; então, vez ou outra, eu abria os olhos e era atraída para os números luminosos do maldito aparelho que exibia as horas e haveria de me acordar às cinco e trinta da manhã. Uma da manhã. Duas e quinze. Três e cinco. Quatro e dois. Então eu caía num sono profundo e acordava assustada com a buzina do diabólico instrumento.

Muitas vezes tive vontade de destruí-lo a marteladas ou lançá-lo pela janela. O fato é que tentei chás, alongamento, banho morno a luz de velas, florais, meditação. Nada adiantou. Mais ou menos um ano depois de conviver com o tormento das noites insones e uma rotina insana de trabalho, eu pifei. Tive Síndrome de Burnout. O que me obrigou a ficar em casa por outros dez dias, desta vez com direito a mobilidade e mais maneiras de me distrair. Com essa experiência aprendi que há limites aos quais devemos respeito, que não somos indestrutíveis, nem indispensáveis.

Hoje, aqui no meu retiro obrigatório, penso no quanto as nossas experiências pregressas são valiosos instrumentos de validação da nossa passagem por este mundo; penso no quanto as memórias de momentos vividos são importantes para evocar a presença de pessoas queridas, ou desafiadoras. Reflito sobre a importância dos espaços e dos tempos experienciados ou negligenciados na correria dos dias, congelados naquele tempo em que nunca havíamos ouvido falar de COVID 19. Hoje, além de querer falar de sentimentos contraditórios, quero também te contar que tenho visto, aqui da minha janela – real e virtual – que o mundo está se transformando lá fora, enquanto nos recolhemos. Quero te falar que tenho visto gente manifestar sua solidariedade a pessoas estranhas, distantes desconhecidas; mas, também tenho visto gente que, endurecida em suas crenças cristalizadas, recusam-se a ver que o mundo exige de nós uma mudança de paradigmas. O planeta, saturado de nós, está nos dando a oportunidade de ressignificarmos nossa relação com o outro, com o espaço que ocupamos, com o que é essencial, com a nossa missão no mundo, com a nossa vulnerabilidade, com o dinheiro, com o tempo, com a vida e o fim dela.

O mundo não será mais o mesmo depois dessa PANDEMIA. Nós não seremos mais os mesmos também. E eu torço para que, aqueles de nós que tiverem a honra de viver neste planeta, quando tudo tiver passado, sejam, em sua maioria, aqueles que possam dizer: EU FIZ A MINHA PARTE; EU ENTENDI QUE PARA QUE EU VIVA É PRECISO QUE EU ME RECOLHA, É PRECISO QUE EU LUTE PELA VIDA DOS MEUS IRMÃOS AQUI NA TERRA, PRINCIPALMENTE AQUELES QUE NÃO TIVERAM PERMISSÃO PARA SE RECOLHER. EU COMPREENDI QUE SE CADA UM RENUNCIAR ÀQUILO QUE TEM EXCESSO, NÃO HÁ DE TER NENHUM DE NÓS SENTINDO FOME, FRIO OU MEDO.

Em minha imaginação e em meu peito, eu conjuro uma humanidade que aprendeu – ainda que tenha sido na marra – que não existe o outro. Somos todos um único organismo vivo, quando um de nós perece, seja por falta de recursos materiais ou por irresponsabilidade, um pedacinho de nós desaparece junto com ele.

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Photo by Johan Bos from Pexels







"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"