A perfeição sob a ótica dos adultos-Bruna Barievillo

A perfeição sob a ótica dos adultos-Bruna Barievillo

Não sou perfeita, nunca tive essa ambição. Tenho plena consciência de que as pessoas mais interessantes que já conheci são discrepantes, ousadas e não me dão vontade de abraçá-las o tempo todo. São as arestas que tornam alguém marcante, a perfeição é nada mais que uma projeção intangível ou uma visão turva, rasa e infantil do que quer que seja. Aliás, o conceito de perfeição é pueril.

Lembra de quando você vivia [ou sobrevivia] seus tenros e inexperientes anos de adolescência? Lembra do príncipe encantado? Você sabia exatamente o que queria dele. Na minha lista, admito, constava até a textura das mãos da criatura hipotética. Ele apareceu? Se apareceu foi por algumas horas e logo desceu à condição humana ou de sapo mesmo.

Mas certamente apareceu um cara melhor do que você pode imaginar naquela época. E ele não carregava um sorriso 24h por dia no rosto mas quando o abria, iluminava tudo em volta, como se o mundo tivesse começado naquele momento.

As pessoas só crescem quando descobrem que a perfeição é nada mais que ilusão. Nada é perfeito, ninguém é realmente perfeito. Pessoas são personagens bi, tridimensionais, serão boas e más dependendo da situação [aliás, nada mais limitado que o conceito de bom e mau]. Perfeito é fotografia com um único plano e só. Viver a vida real é admirar apesar das imperfeições. Só assim a gente cresce.

Pessoas autênticas jamais serão perfeitas ou desejarão sê-lo. A autenticidade está em aceitar-se, respeitar cada centímetro da própria personalidade. Seus amigos não são perfeitos, seus professores não são perfeitos, seus pais também não. São só pessoas e portanto não merecem apreço só pelos seus atos, destina-se afeto a alguém pelo que traz dentro de si, pelo modo como faz você se sentir.

Alguém um dia me disse que as pessoas que marcam de verdade a vida da gente vão nos decepcionar em algum momento, é a única garantia. As crianças guardarão seus brinquedos, se trancarão e irão para casa, para o seu lugar seguro, idealizar a perfeição, idealizar “Tristão e Isolda”. Contudo, os adultos saberão lidar com essa decepção assim como sabem conviver com as suas próprias arestas. Os adultos amarão na contemporaneidade, sem mitos, sem projeções, simplesmente vivendo a realidade. E amarão mais que a projeção de seus próprios valores, amarão pessoas.

Clarice Lispector escreveu “não faz sentido dividir as pessoas em boas ou más. Pessoas são apenas encantadoras ou monótonas”. Posso acrescentar que por conseqüência, não existem pessoas perfeitas. E  se você ainda as busca, por favor, volte logo ao Jardim de Infância.

Sou ave migratória…

Sou ave migratória…

Vim me esticar, relaxar e fugir da indecisão entre ter de ser e ter de fazer.

Vim circular, respirar, soltar as asas, escutar o silêncio e viver intensamente cada segundo.

Vim contemplar a noite a qual seduz a luz do dia, a relva ser acariciada pelo vento e os pássaros saírem em revoada.

Entro em pausa…

Respiro o lento correr do tempo, escancaro minhas portas e janelas para tragar o cheiro do jasmim, ouço o trepidar do fogo na lareira e o assovio do vento; tudo embala meu coração!

Vida sentida, refletida e renovada vai brotando, lentamente, tal como uma flor que se abre ao nascer do sol.

Há dias em que estou aqui seguindo o movimento da natureza, aprendendo a delicadeza e a força da vida que se manifesta em cada árvore, em cada bichinho que tem como única preocupação o ser.

Há dias em que converso com Deus, com o meu companheiro de vida, com o sol, com as estrelas e escuto a poesia concreta das montanhas…

Agora a chuva bate no telhado e eu a recebo alegremente. Exponho-me totalmente; quero que ela me lave e purifique. Sinto que dissipei minhas nuvens negras e densas; a saudade me diz que é hora de voltar.

Outra estação está chegando, o tempo de aflição e cansaço se foram.

Vim, agora voo, sou ave migratória…

“Mãe, onde dormem as pessoas marrons?”- Eliane Brum

“Mãe, onde dormem as pessoas marrons?”- Eliane Brum

Uma amiga me conta, na volta de uma viagem a Paris com a família. “Só quando estava lá é que percebi que minha filha estava, literalmente, andando na rua pela primeira vez”. A menina tem quatro anos. Classe média. Mora em São Paulo, num condomínio fechado. Do condomínio, vai de carro para a escola privada. Da escola privada volta para casa. No fim de semana, fica dentro do seu condomínio ou vai para outros condomínios, de casas ou prédios, cercados por muros ou grades, com guaritas e porteiros. Ou vai a shoppings, onde chega pelo estacionamento, de onde sai pelo estacionamento. Desloca-se apenas de carro, bem presa na cadeirinha, protegida atrás de janelas fechadas, vidros escurecidos com insulfilm. De muro em muro, a criança passou os primeiros quatro anos de vida sem pisar na rua, a não ser por breves e arriscados instantes. E apenas quando a rua não pôde ser evitada. E apenas como percurso rápido, temeroso, entre um muro e outro.

A cidade é uma paisagem do outro lado do vidro, uma paisagem que ela espia mas não toca. O fora, o lado exterior, é uma ameaça. O outro é aquele com quem ela não pode conviver, tanto que não deve nem enxergá-la. Até mesmo contatos visuais devem ser evitados, encontros de olhares também são perigosos. Qualquer permeabilidade entre o dentro e o fora, entre a rua e o muro, seja na casa, na escola, no shopping ou no carro, ela já aprendeu a decodificar como intrusão. O outro é o intruso, aquele que, se entrar, vai tirar dela alguma coisa. Se a tocar, vai contaminá-la. Se a enxergar, vai ameaçá-la.

A rua, o espaço público, é onde ela não pode estar. E por quê? Porque lá está o outro, o diferente. E ela só pode estar segura entre seus iguais, no lado de dentro dos muros.

Minha amiga chocou-se, de repente desconhecida de si mesma. Tinha passado os primeiros quatro anos da vida da filha preocupada em descobrir qual era a casa mais protegida que poderiam comprar juntando as economias dela e do marido, a casa dentro de muros, mas com espaço de convivência, com um “playground” em que as crianças de dentro, as crianças “certas”, se encontram. Em seguida, preocupada em escolher uma escola que garantiria mais habilidades competitivas quando a menina chegasse à vida adulta e que também fosse uma escola protegida, na qual a filha ficasse segura no lado de dentro. Não tinha sequer percebido que estava criando uma criança com horror a todos aqueles que estavam do lado de fora dos muros e com pavor de pisar na rua.

Outra mãe, esta de um menino, ficou sem respostas diante de duas perguntas sequencias do filho pequeno: “Por que ela é marrom?”, o menino perguntou, referindo-se à empregada. E, logo em seguida: “Onde dormem as pessoas marrons?”, já que as “pessoas marrons” deixavam os muros ao final do dia, tanto na casa dela quanto na casa dos amiguinhos, mas ele não sabia para onde iam. Outro condomínio?

Podem parecer acontecimentos banais para alguns, afinal, os tempos são assim. Podem parecer histórias de terror, para outros, afinal, os tempos são assim. Para mim as crianças denunciam a brutalidade do país que criamos para elas, fazendo as perguntas que os adultos preferem não fazer a si mesmos. Não sabemos que pessoas serão estas que crescem entre muros e que aprendem a escanear o outro, o diferente, como ameaça.

Mais preocupados devemos ficar quando a resposta da Câmara dos Deputados à violência se encaminha para a redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, nos crimes considerados mais graves. O que estão tentando fazer, estes que manipulam o medo? Querem garantir que esses outros, adolescentes que não tiveram educação nem saneamento nem saúde nem lazer nem acesso a nenhum de seus direitos garantidos pela Constituição, esses outros que tiveram as leis que os protegem violadas desde o nascimento, crianças dessas “pessoas marrons” que o menino não sabe para onde vão à noite nem quem cuida dos filhos delas, sejam encarcerados mais cedo porque já decretaram que, para elas, não há solução.

Para estes outros é apagada a responsabilidade do Estado de ajudá-los a construir um caminho alternativo e dar-lhes acesso a direitos que sempre lhe foram negados. Sem as perguntas que as crianças poderiam fazer a adultos que preferem anular os pontos de interrogação, os adolescentes que praticam crimes são esvaziados de história para que a sociedade seja absolvida e, portanto, desresponsabilizada. Os deputados manipulam o medo de seus eleitores para torná-los uma ameaça incontornável. Varre-se então das ruas aqueles que sujam a paisagem, para que nem mesmo seja preciso enxergá-los do outro lado dos vidros, e os colocam em instituições muradas onde o lado de dentro se assemelha a campos de concentração. Se alguém acha que excluir e punir mais e mais cedo é o caminho para um país sem muros, precisa voltar a raciocinar. Não é preciso ser vidente para saber o que a vingança provoca num indivíduo e num país quando passa a ocupar o lugar da justiça. E os que estão atrás de seus tantos muros se vingam do quê, valeria a pena perguntar?

A História já nos mostrou o que acontece quando o Estado determina que um tipo de outro encarna a ameaça e deve, portanto, ser separado e confinado. E depois, qual é o próximo passo ou qual é a solução final? Pena de morte, extermínio? Cuidado. Em algum momento aqueles que se iludem que estão seguros por trás dos muros que ergueram podem se tornar o outro a ser eliminado. Uma sociedade fundada em muros cada vez mais altos sempre vai precisar de uma ameaça no lado de fora para culpar pelo seu mal-estar, para que as engrenagens continuem funcionando, garantindo a desigualdade e enriquecendo os mesmos de sempre. Em vez de se horrorizar com a violência do sistema de educação pública, que sequestra o presente e o futuro destas crianças que têm cor, classe social e endereço, preocupam-se em desumanizá-las, apagando singularidades e trajetórias, esvaziando-as de sentidos para torná-las monstruosas. Quando conseguirem encarcerar todos os filhos de pobres que não puderam converter em mão de obra barata, talvez prendendo logo no nascimento, já que o aborto é condenado pelos mesmos que defendem a redução da maioridade penal, há de se encontrar uma nova ameaça para manter o sistema de privilégios intacto.

Uma sociedade de muros sempre vai precisar forjar monstros para seguir justificando a desumanização e o sistema não oficial de castas. Aqueles que tentam se sentir seguros e criar seus filhos em segurança não estão inseguros porque há um outro ameaçador do lado de fora. Essa é só a aparência que mantém tudo como está. O que precisamos não é erguer muros cada vez mais altos, mas derrubá-los e nos misturarmos nas ruas da cidade.

O Brasil atual é uma realidade esgarçada. Entre as mais recentes tentativas de compreendê-lo destaco uma bem interessante, proposta pelo psicanalista Christian Dunker. Está num livro que ele lançou há pouco, chamado Mal-estar, sofrimento e sintoma – uma psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo). Mas poderia chamar-se “Condomínio Brasil”. Dunker pensa o país a partir da lógica do condomínio, que tem em Alphaville, construído nos anos 70 nos arredores de São Paulo, sua expressão mais marcante. Vale a pena, como aponta o autor, lembrar o filme de Jean-Luc Godard de mesmo nome. Alphaville, o do cineasta francês, se passa em outro planeta, onde tudo é controlado por um computador central, o Alpha 60. Um agente secreto é enviado a Alphaville para destruir o computador e eliminar seu criador. Em Alphaville não há singularidades. Amor, poesia ou emoção estão proibidos. São vetadas as interrogações. É banido o “por quê?”. Só é permitido o modo explicativo: “porquê”.

Numa das cenas antológicas, como lembra o filósofo Vladimir Safatle na apresentação do livro, o agente é interrogado pelo computador e responde a suas perguntas com citações de Jorge Luis Borges, Blaise Pascal e Friedrich Nietzsche. A máquina, confusa, o libera. “Esta foi a maneira encontrada por Godard para mostrar o que Alphaville havia deixado de fora de suas fronteiras: a indeterminação que vem junto à palavra poética, esse pavor pascaliano diante do silêncio dos espaços infinitos”, escreve Safatle. “Ou seja, fora de Alphaville estava toda a experiência possível.”

E este Condomínio Brasil? A hipótese formulada por Christian Dunker é de que “a vida em forma de condomínio” insere o nosso mal-estar no que chama de capitalismo à brasileira. A lógica do condomínio transforma os problemas em problemas de gestão, no qual o síndico adota o papel de regulador do sofrimento – e também do gozo. Ou, nas palavras de Dunker, “aquele que deve gerir o sofrimento da vida (…) para transformá-lo em formas palpáveis de insatisfação, que ele poderá administrar”. Ou, mais adiante: “Nosso déficit de felicidade nos leva ao sentimento, mais ou menos invejoso, de que o vizinho raptou um fragmento do nosso gozo. O síndico representa tanto a lei mal formulada quanto o gozo excessivo do vizinho”. A segregação, como diz Dunker, surge do fracasso em articular a diferença e a divisão. É um livro ousado e complexo, que pensa sobre o caminho brasileiro de “despolitização do sofrimento, medicalização do mal-estar e condominialização do sintoma”. Recomendo a leitura. Aqui, me detenho apenas em algumas reflexões que o livro me provocou.

Primeiro, é preciso estabelecer as fronteiras. Os que estão do lado de dentro, com a ilusão de proteção, os que estão do lado de fora tentando entrar porque há algo lá que eles não têm. Há ainda aqueles que entram e saem em períodos determinados, pela porta lateral ou dos fundos, para desempenhar serviços e manter a ilusão da paisagem intacta (grama aparada, árvores podadas, ruas e casas limpas etc). Estes outros, tolerados porque necessários, mas uniformizados e indistintos para reforçar a única (des)identidade que importa: a da função, esta estratégica, de maquiar a realidade, limpando a sujeira para que tudo pareça imutável. Garantindo assim a manutenção do paraíso como paraíso que não decai nem se arruína. Ao final, autolimpando-se ao deixar os muros. Vale a pena repetir a pergunta perturbadora do menino do início: “Mãe, onde dormem as pessoas marrons?”.

Há que se desempenhar essa função de “limpar e manter”, mas sendo o mais invisível possível. Entrando e saindo numa cor só, para que invisível também se torne tudo aquilo que escapa ao controle. O que nos leva à próxima pergunta: afinal, o que de fato se limpa e o que é preciso manter? É possível arrancar a erva daninha que avança sobre a grama, anunciando que essa é uma guerra perdida. É possível tirar o mais rápido possível o lixo da vista, antes que ele nos lembre de que cheiramos mal e destruímos muito. Mas não é possível barrar o envelhecimento, a doença e a morte, nem a insatisfação, a ansiedade e a angústia, nem o gosto amargo na boca que só faz aumentar porque o paraíso não era bem como o prometido e a felicidade soa cada vez mais nervosa. Tampouco é possível negar a percepção crescente de que os vizinhos, os iguais, são menos cordiais, interessantes ou suportáveis do que a publicidade garantiu. O que não se consegue deixar do lado de fora é também o mal-estar que o levou para dentro. O custo de estar dentro é alto. Talvez mais alto do que a maioria perceba.

O que acontece quando aquele que está fora decide entrar? Nesta altura, imagino que boa parte dos leitores possa pensar em assalto. Não. Lembro aqui os “rolezinhos”, ocorridos entre o final de 2013 e os primeiros meses de 2014. O momento em que jovens da periferia, a maioria deles negros, decidiram marcar pela internet passeios coletivos nos shoppings e foram humilhados, reprimidos e criminalizados. Qual foi a lei que quebraram? Jovens pretos e pobres não podem frequentar shoppings em grande número? É esta a lei não escrita? O fato é que seu passeio, chamado então de “rolezinho”, foi decodificado pela clientela habitual dos shoppings e pelas forças de segurança do Estado como “assalto”. Mas, de fato, o que se “assaltava” ali, na reivindicação de ocupar o lado de dentro do condomínio que é o shopping, para se divertir com os amigos?

Em maio deste ano, chegou-se a um desfecho só possível num país regido pela lógica do condomínio: a condenação de três jovens que organizaram pelas redes sociais um passeio no shopping. Foi feita então uma “vaquinha” de solidariedade na internet para ajudá-los a pagar a multa de R$ 394 cada um. Para eles, que têm empregos informais e recebem salário mínimo, o valor pode inviabilizar o sustento. Eles não entendiam pelo que estavam sendo condenados. No sentido literal, mesmo. Não sabiam qual era o motivo da condenação alegado pelo juiz, mas assinaram porque foi dito que era o melhor para eles. A justiça aparece aqui como um condomínio em que um dos vários muros é a linguagem.

O condomínio, essa figura concreta, que tão bem conhecemos ou por estar dentro ou por estar fora, é também uma alegoria para compreender todos os outros condomínios dessa vida de muros. A hipótese sugerida por Christian Dunker nos ajuda a pensar sobre questões profundas da atual sociedade brasileira, expressada também nos casos mais recentes de violência, como o já mencionado esforço de um grupo de deputados para aprovar a redução da maioridade penal e encarcerar adolescentes mais cedo atrás de outros muros. Ou o apedrejamento da menina de 11 anos vestida com as roupas da sua religião, o candomblé, por dois homens que gritavam: “Sai demônio! Vão queimar no inferno, macumbeiros!”. A violência resultou num ferimento na cabeça, um desmaio e a perda momentânea da memória da criança, sem contar as sequelas psicológicas.

Entre os casos recentes de violência, podemos pensar ainda na indignação de religiosos contra a artista transexual que encenou a crucificação de Cristo na parada LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) para denunciar a crucificação cotidiana vivida por todos eles. Ao se indignarem com uma transexual no lugar de Cristo, os religiosos defenderam seus muros, na crença de que o símbolo e o sofrimento são privatizáveis e privatizados e, assim convertidos, pertencem ao seu condomínio. Sem contar a mulher que, enquanto era confundida com a “mãe” da criança, pôde permanecer no Clube Pinheiros, em São Paulo, sem ser perturbada. Ao ser descoberta como “babá” da criança passou a ter problemas para entrar e exigiram-lhe que usasse uniforme branco, para que não fosse confundida nem frequentasse espaços reservados apenas para sócios. Os lugares e as fronteiras não podem ser borrados para que os privilégios atrás dos muros se mantenham cimentados.

São condomínios murados que proliferam no Brasil, com cercas cada vez mais violentamente defendidas, porque já não basta deixar o outro do lado de fora, é preciso agora eliminá-lo. É também de condomínios e de muros que se trata quando, nas redes sociais da internet, torna-se impossível escutar o argumento do outro, porque o lado de cá, seja ele qual for, tem o privilégio das certezas ou do bem e da justiça e da crítica. E também ali o outro tem de ficar do lado de fora, porque já rotulado como ameaça ou desqualificado como direita ou esquerda, dependendo de que lado se está, não teria nada a dizer que possa ser escutado. Então já não se escuta e nem se reconhece a sua voz. Neste sentido, se nem todos moram em Alphaville, é bom olhar bem para dentro, porque pode ter uma Alphaville morando onde menos se espera, com muros disfarçados de argumentos.

Também muitos dos que se anunciam como derrubadores de muros (e defensores da diversidade de gente e de ideias) parecem, na prática, apenas fortalecer as defesas de suas cercas. Vão até onde os muros podem ser derrubados sem afetar seus privilégios, que às vezes são apenas a ilusão tão cara e afagada de estarem sempre certos e do lado certo. Mas há sempre o último muro, aquele que nos obriga a nos movermos, aquele que toca no privilégio maior, “o de não precisar pensar nos nossos privilégios”, e este precisa ser mantido a qualquer custo.

O muro mais bem guardado, afinal, é o de nossa Alphaville interna. A que nos mantém limpinhos, ao lado das boas causas, mas sem perder nada que nos é caro. “Peraí, perder também não!” Pronto. Chama o pedreiro para construir mais dois metros de muro para deixar de fora quem nos lembra do incômodo de que, para deixar o outro entrar, vai ser preciso perder alguma coisa.

São muitas as armadilhas muradas em um país tão barbaramente desigual. Volta e meia os mais atentos percebem seu pé preso em alguma arapuca, justamente quando acreditavam rumar para a liberdade e para um mundo mais justo. Agora mesmo os condomínios fechados do tipo Alphaville são vistos por muitos como algo da ordem do ridículo. Mas também estes parecem renovar sua busca pelo paraíso perdido (e jamais achado). A moda no Brasil, há algum tempo, é comprar pedaços de terra com mata nativa e fontes de água em algum lugar, como nas regiões serranas ainda disponíveis do Sul e do Sudeste ou mesmo em pedaços “paradisíacos” da Amazônia.

Seria este anseio uma atualização do ideal de uma vida sem mal-estar, cercados por outro tipo de iguais, talvez ainda mais iguais do que os outros? Vizinhos ecologicamente conscientes, equilibrados por meditação, yoga e a prática saudável de esportes, que se locomovem em bicicletas e consomem orgânicos, com espaços e propriedades privadas bem definidas. É altamente sedutor para quem pode escolher seus muros, mas não seria esta uma renovação do condomínio, tanto de suas ilusões como de seu caráter de exclusão? Para quem é deixada a luta pelo espaço público para todos, em cidades cimentadas onde falta tanto água quanto árvores quanto o reconhecimento da humanidade do outro?

“Cidades Rebeldes” é o nome de um seminário promovido pela editora Boitempo e pelo SESC, na segunda semana de junho, que reuniu alguns pensadores da maior relevância sobre o tema, tanto brasileiros, como o próprio Christian Dunker, autor do livro citado anteriormente, quanto estrangeiros como o geógrafo marxista David Harvey. Era também um encontro das esquerdas nesse momento tão desafiador, em que as ruas do país foram tomadas por gritos de direita. Mas houve uma rebelião no debate que debatia a rebelião. O Movimento Independente Mães de Maio divulgou um manifesto cortante com o seguinte título: “A rebelião não será gourmetizada”. (Leia aqui. E sugiro ler também os comentários, para compreender o quadro maior).

O “Mães de Maio” tem na origem um grupo de mulheres, a maioria negras, pobres e periféricas, que perderam seus filhos assassinados, suspeita-se que muitos deles executados pela polícia, nas ruas do estado de São Paulo em maio de 2006. O grupo faz a denúncia cotidiana da violência praticada pelo Estado contra os mais pobres. Costuma chamar Geraldo Alckmin de “governador genocida” e denuncia o que chama de “terrorismo de Estado”. Também empresta o nome à Comissão da Verdade que investiga os crimes cometidos pelo Estado no período democrático. Neste seminário, o movimento foi convidado de última hora para substituir um convidado de primeira hora que precisou cancelar sua participação. Mas recusou o convite. No manifesto explica o porquê.

Entre as justificativas, o Mães de Maio denuncia uma ausência considerada por muitos uma obscenidade: a falta do Movimento Passe Livre (MPL), que provocou as manifestações de 2013 no país, na grade dos debatedores. Também negou a legitimidade de convidados como Luiz Inácio Lula da Silva, que cancelou sua participação antes do início do seminário, e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. Este último é considerado um repressor dos protestos de 2013, contra o aumento da tarifa do transporte público, o que tornaria sua presença num seminário sobre cidades rebeldes uma ofensa. Não me recordo de nenhum outro manifesto recente de movimentos sociais tão contundente em sua crítica ao PT, definido como o “agonizante Partido dos Trabalhadores”, e a Lula, chamado a certa altura de “este sujeito”.

Há muitas interpretações possíveis para a rebelião contra o seminário sobre a rebelião. Também há muitas versões. Todas elas fascinantes e muito mais fundamentais para compreender o atual momento do que pode parecer à primeira vista. Como estamos murados, porém, muitos dos sentidos possíveis foram apagados por polarizações (sempre elas). Alguns desqualificaram o debate já antes do manifesto, por ter nele figuras do PT. Logo, nada ali, nem todos os outros, inclusive críticos do PT, poderiam ser escutados. Outros desqualificaram o Movimento Independente Mães de Maio. Outros ainda magoaram-se porque suas melhores intenções não foram compreendidas e se viram num lugar muito incômodo, já que temos a tendência de acreditar que somos só bacanas e estamos a salvo.

Com esse gesto, o Mães de Maio dificultou a recolocação do PT no contexto das ruas e das rebeliões e também na identificação como “esquerda”, o que é muito forte. Dificultou a recolocação do PT não só como protagonista, mas também como participante do movimento mais amplo das cidades rebeldes. Mostrou também que hoje não basta incluir no debate um ou dois representantes das periferias e dos movimentos sociais, o que até pouco tempo teria sido suficiente e garantiria um ambiente controlado. O que o Mães de Maio disse talvez de mais importante é que, no Brasil atual, para ter legitimidade não é suficiente falar sobre, é preciso falar com. Para isso também é necessário que todos – todos mesmo – compreendam que “com” significa “com” – e não “só nós”. Do contrário a lógica dos muros permanece a mesma, ainda que se mude os personagens de lugar. Hoje, é urgente estar de fato com o outro e se arriscar ao que isso significa. Arriscar-se, portanto, à rebelião.

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Dito isso, escolho terminar caminhando com Tim Tim. Neste vídeo viral, a grande transgressão do pequeno rebelde é andar na rua e arriscar-se a encontros. Quanto tudo parece quase intransponível, quando me vejo cercada de muros que me encurralam, os de fora, mas também os de dentro, eu lembro do passo de Tim Tim. E encontro esperança nessa geração que está sendo educada no resgate do espaço público para todos, arriscando-se às diferenças para combater a desigualdade. Arriscando-se à experiência. Às vezes a vida pede a delicadeza de descobrir a rebelião também nos passos vacilantes, mas muito entusiasmados, de um guri com um redemoinho na cabeça.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista.

O conforto da ignorância e a nossa complicada relação com a carne

O conforto da ignorância e a nossa complicada relação com a carne

Por Germana Belo

Recentemente, a cena de um filhote de ovelha sendo abatido e esquartejado no programa de culinária Tempero de Família (GNT) causou revolta e rendeu críticas violentas ao apresentador Rodrigo Hilbert que, dizem, chegou a ter contratos publicitários cancelados devido à polêmica. Que a brutalidade das imagens tenha indignado os que lutam contra a exploração animal e baseiam nesse valor seu estilo de vida não surpreendeu. Porém, o que chamou a atenção no episódio foi perceber que muitos vociferando veementemente contra o ato se diziam não vegetarianos. Com uma crueldade tão displicente que nem se dá conta dela mesma, Rodrigo Hilbert fez espirrar sangue nos olhos que se fazem de cegos, dos que fingem não saber da história por trás daquele filé do almoço.

O desenvolvimento da sociedade industrial e o distanciamento entre cidade e campo, levaram, consequentemente, a uma desconexão entre a produção e o consumo de alimentos. Se na sociedade rural o abate de aves e quadrúpedes era atividade corriqueira do dia-a-dia, hoje, não faz parte de nossa realidade. Mal sabemos a origem do que consumimos e, em geral, não nos interessa. Essa escolha pela ignorância é um dos fatores que marcam a complicada relação que temos com a carne. Uma escolha que é facilitada pelo mundo industrializado, esse que nos permite não querer saber da crueldade que financiamos e perpetuamos, o mundo que transforma a vida animal em produto na prateleira, sobre a qual só nos preocupa a validade.

Contudo, à medida que o tratamento ético de animais vira frequente pauta de discussão e tema de denúncias e que cresce o número de organizações e indivíduos dedicados a expor a crueldade da indústria agropecuária, somos cada vez mais demovidos desse lugar de não saber e forçados a nos deparar e a nos responsabilizar pela escolha do que colocamos à mesa. A linha entre a ignorância e a hipocrisia torna-se cada vez mais tênue, e dizer que matar um animal pelo prazer de comer é mais digno que sacrificá-lo por esporte ou pelo lucro do espetáculo torna-se cada vez mais contestável.

Como algoz do cordeiro, inadvertidamente, Rodrigo Hilbert nos tirou do nosso conforto nos apresentando de maneira brutal essa verdade que preferimos não encarar, e talvez por isso muito mais do que pelo ato violento, tenha sido acusado e condenado por muitos, virando alvo da agressividade daqueles que, como mecanismo de defesa, acusam o outro projetando nele a própria culpa com a qual evitam lidar.

Episódios como este deveriam despertar indignação a quem cabe a indignação. De resto, o ideal seria que a comoção sentida diante da execução de um animal pudesse nos levar a refletir sobre nossa própria responsabilidade, sobre nossas escolhas, sobre essa complexa relação que temos com o consumo de carne, ao invés de apontar para aquele que empunha a faca.

Imagem de capa: Ethiopia, © Hans Silvester

10 sintomas de câncer que a maioria das pessoas ignora

10 sintomas de câncer que a maioria das pessoas ignora

O site Women’s Health reuniu em reportagem dez sintomas que podem indicar que uma pessoa está com câncer. Assim como esses sinais podem indicar apenas uma febre ou até mesmo uma gripe, especialistas alertam para alguns “sinais vermelhos” para você ficar atento:

1. Tosse persistente ou rouquidão

Não há o que se preocupar com uma tosse, porém uma tosse persistente ou acompanhada de sangue é definitivamente motivo de preocupação. “A maioria das tosses não são câncer”, diz Therese Bartholomew Bevers, professora e diretora do Cancer Prevention Center at the MD Anderson Cancer Center. “Mas, certamente, uma tosse persistente precisa ser avaliada para ver se ela pode ser câncer de pulmão.” O seu médico deve fazer uma radiografia no tórax ou tomografia computadorizada para descartar o câncer como uma possibilidade.

2. Mudanças persistentes no intestino

Quando seus movimentos intestinais não são tão fáceis como já foram ou suas fezes parece maior do que o normal ou um pouco deformada, esse poderia ser um sinal de câncer de cólon, diz Bartholomew Bevers. “Pode ser um sinal de que há uma massa impedindo o trânsito das fezes”, diz ela. “Esse é um sintoma que uma pessoa deve ir ao médico e agendar uma colonoscopia para ver se há de fato uma massa.”

3. Atenção na urina

“Se há sangue na urina, isso pode ser um indicativo de câncer de bexiga ou nos rins, mas mais comumente esse é um sinal de uma infecção urinária”, diz Bartholomew Bevers. Verifique a existência de uma infecção em primeiro lugar, em seguida, busque outras opções de tratamento.

4. Dor persistente e inexplicável

“Dor não é necessariamente um sinal de câncer, mas a dor persistente deve ser verificada”, diz Bartholomew Bevers. “Se você tem dores de cabeça persistentes, por exemplo, é provável que não tenha câncer, mas ainda assim você deve ser analisado. A dor persistente no peito pode ser um sinal de câncer de pulmão. E a dor em seu abdômen poderia ser câncer de ovário.”

5. Perda de peso inexplicada

“Como adultos, nós nos esforçamos muito para perder peso”, diz Bartholomew Bevers. “Mas se o seu peso está caindo muito, sem qualquer esforço de sua parte, essa é uma grande preocupação e pode ser indicativo de um problema médico sério”. Um desses problemas, diz ela, poderia ser uma doença maligna ou um tumor.

6. Mudança na aparência de pintas

“Uma pinta não é necessariamente um sinal de câncer, mas se você notar alguma mudança na aparência de suas pintas você deve falar com seu dermatologista, que irá fazer um exame para detectar câncer de pele”, diz Bartholomew Bevers.

7. Uma ferida que não cicatriza

Se você tiver uma ferida que não cicatriza há três semanas, você deve ir ao seu médico. “O ferimento já deveria ter cicatrizado após esse período”, diz Bartholomew Bevers, “e é aconselhável que você faça um exame para checar”. Essa ferida pode ser um sinal de carcinoma.

8. Sangramento inesperado

Sangramento vaginal fora do seu ciclo normal pode ser um sinal precoce de câncer cervical. Já o sangramento no reto pode indicar câncer de cólon, diz Bartholomew Bevers.

9. Um caroço inexplicável

“Toda vez que você tem um caroço que é novo ou que está mudando, isso é algo que deve ser olhado pelo seu médico”, diz Bartholomew Bevers. Embora possa ser um um quisto benigno, o caroço também pode ser “um câncer que está no tecido. Um nódulo na mama é um sintoma muito comum de câncer de mama”, explica. Consulte o seu médico para obter mais informações.

10. Dificuldade persistente em engolir

Dois tipos de câncer podem estar por trás desse sintoma, incluindo pescoço e câncer de esôfago. “Pessoas que têm esses sintomas começam a modificar suas dietas, comem alimentos mais macios, sem pensar que poderia haver um problema mais sério”.

Atenção: Qualquer tipo de sintoma persistente deve ser relatado ao médico.

Porque eu amo e já não quero interromper os ciclos

Porque eu amo e já não quero interromper os ciclos

Amo e já não quero interromper os ciclos, nem os dele e nem os meus.

Amo, mas já não quero interferir na vontade do meu olhar que encontrou horizontes e novas primaveras pela janela e aqui dentro a gente já não floresce mais juntos.

Amo, mas os meus galhos secaram e não é porque o seu amor é erva daninha, é apenas que somos plantas de diferentes espécies e minhas raízes já consumiram tudo o que guardavam em si mesmas e andam sedentas de renascimento.

Amo mais ainda por ver que seus galhos poderão se esparramar, crescer, frutificar depois que aprenderem a olhar para a solidão sem medo e com grandeza, depois que aprenderem a trilhar suas próprias verdades.

Por te amar, por amar a mim mesma, eu escolho vida pra gente e a gente já viu que a vida se abre inteira para os corajosos.

Por não saber mais como cultivar minhas flores sozinha e esparrama-las no seu peito, por não querer tirar de mim e doar em vão as minhas belezas, o que eu pensava que de mim era adubo, por sua terra já estar empapuçada de minhas águas e eu ter secado, por eu ter incisivamente tentado evitar as suas estiagens, e assim te preservado menor do que poderia, mais frágil, evitado que você atingisse todo o seu potencial.

Por eu saber que até Deus é cíclico e no caminho natural da vida não existem existências feitas apenas de verões e primaveras, por eu saber que o mundo não é uma incubadora e os tropeços desenvolvem asas e almas mais amplas.

Por saber de tudo isso eu vou e eu te deixo.

Porque eu amo e já não quero interromper os ciclos.

Porque amar é deixar fluir. E porque eu acredito que é isso que a vida nos pede e oferece. E eu sei que quando viermos a florescer novamente, em nossos bosques estrangeiros, poderemos oferecer ao mundo muito mais do que agora, porque a gente não vai mais dar partes da gente até encontrar o esgotamento de novo. A gente vai ceder a luz que nos sobra e o ensinamento de nossas flores, a gente vai servir de amor e espelho para que outras almas tenham também a coragem de aprender a voar na hora que a vida pede que saiam do ninho.

Porque a gente vai se reconectar com a natureza do amor e não com o medo da perda.

Amar é saber que a gente floresce espontaneamente e não por que encontramos um ao outro.

Florescemos e ponto.

Amar é dar espaço para que o outro encontre a plenitude de suas primaveras.

Amar é não interferir nos processos.

E quando eu te ver voando, robusto e lindo, nada mais precisará fazer sentido.

Pegando onda

Pegando onda

Tenho uma posição ambígua em relação às ondas. Sejam elas culturais, políticas, artísticas, de vestuário. Em princípio torço o nariz para topos de listas, cds de platina, oscars, campeões de ibope. Talvez por não gostar da ideia de ser rebanho, isto é, ir para aonde a massa vai.

Tento pensar com a minha cabeça. Manter a ideia, ou ilusão, de que sou eu quem decide. Eu decido se vou gostar do filme, do livro, do tênis. Se a maioria compra carro de cor prata, com certeza comparei um de cor vermelha. Confesso que tenho uma quedinha pelo minoritário. Um amorzinho pelo paralelo.

Esse gosto vem desde a infância. Foi uma luta brava me vestir de jeito personalizado. Quando todas as coleguinhas apareciam com sandalinhas, eu aparecia calçando botas. Mamãe queria morrer de desgosto. Mais tarde, a teimosia em ser diferente saltou dos objetos para as escolhas intelectuais.

Adolescente, preferia ler Machado de Assis, Dostoiévski, Eça de Queirós aos autores mais populares. Que ninguém me empurrasse livros da moda, leituras da onda. Na juventude, se eu podia assistir a filmes do Michelangelo Antonioni, para que gastar ingressos com um Steven Spielberg? Meu lema era: quanto mais complexo melhor. Quanto mais trabalhoso, mais valioso.

Mas ondas de amadurecimento foram corrigindo a rota. Um dia me perguntei: por que a maioria estaria necessariamente equivocada? Será que não há um mérito espetacular em conseguir agradar a muitos? Então percebi que a minha postura de remar contra a maré tinha algo de arrogante. Alguma coisa de nariz empinado.

Não que eu tenha virado uma maria-vai-com-as-outras, ou um zé-vai-com-as-mídias. Prezo meus critérios, respeito meus parâmetros. O que mudou é que fiquei menos excludente. Sigo lendo Machado de Assis, mas também curto blogs ligeiros. Vencido o preconceito, hoje aprecio o Spielberg e continuo me deleitando com o Antonioni.

Descobri a minha onda: não desprezar praia alguma. Transitar entre as mais populosas e as pouco frequentadas. Entender as famosas e as anônimas. Acatar minha régua de valores sem desmerecer réguas alheias.

Surfar nesse comportamento exige treino constante e considerável determinação. Mas o que quero mesmo é ser a senhora de Copacabana e também da Praia Grande. Ter um ouvido na Orquestra Sinfônica e outro na bateria da Mangueira.

As 5 coisas que você precisa pra viver

As 5 coisas que você precisa pra viver

Ah, fácil! Um bom carro. Uma casa própria. Férias duas vezes por ano. Um trabalho que não ocupe muito tempo. E dinheiro pra fazer o que tiver vontade.

Certo?! Não. A gente não concorda!

Há um ano, nós mudamos drasticamente a forma de pensar nossa vida e pra conseguir colocar Around The World In 80 Music Videos de pé, aprendemos que 2 coisas seriam importantes pra viver estes 3 anos viajando pelo mundo:

“Ter o necessário pra seguir” e saber que “o melhor está no mais simples”.

Coincidentemente, são os versos da música “Por um Punhado de Reais” da banda Vivendo do Ócio, que estreia clipe esta semana em nosso canal.

Então, aqui estão as 5 coisas mais importantes pra nossa vida ter muito mais sentido.

1 – Trabalho não deve ser o lugar onde você troca serviço por dinheiro. Trabalho deve ser o lugar para o qual você se entrega e aprende que nada é mais importante do que voltar pra casa melhor e mais feliz do que você era ontem. Se o seu trabalho não é assim, procure outro!

2 – Você não precisa de todo dinheiro que você quer ganhar e sua felicidade não depende disso. A vida é cara demais em todos os lugares do mundo e aprender a viver com um punhado de reais é necessário. O mundo é mais barato e mais agradável quando a gente percebe que não precisa de mais da metade das coisas que temos.

3 – Passamos nossa vida inteira entre o local de trabalho (seja ele qual for) e nossa casa. Então, todo mundo precisa de um bom lugar pra viver. É um desperdício gastar metade da vida sem estar em um lugar que você se sinta em casa. Alguns querem com varanda, outros com um sofá confortável e há os que querem com o pé na areia. Não importa, nossa casa deve ser boa pra nós… mesmo que elas sejam muitas e cada uma em um canto do planeta, como a nossa.

4 – Você não precisa ter um carro. Andar a pé é a melhor forma de conhecer o lugar onde vocês está. Você vai gastar mais energia, você vai tirar mais fotos no celular, você vai economizar muito dinheiro todo ano e você vai ser mais feliz. Faça o teste por 1 mês!

5 – Amigos. Você precisa de muitos deles. Nosso projeto é colaborativo e quer diminuir a quantidade de dinheiro em circulação sem diminuir a quantidade de trabalho envolvido. Pra isso, você precisa de trocas (entendam a diferença entre pedir e trocar). E depois das trocas, você terá uma rede de pessoas muito significativas pra sua vida. Isso não tem preço e faz você conseguir viver bem em qualquer lugar.

Tenho medo de me entregar a um novo relacionamento porque já sofri antes

Tenho medo de me entregar a um novo relacionamento porque já sofri antes

Imagem de capa:  Ekaterina Pokrovsky, Shutterstock

Você já deve ter ouvido ou pronunciado essa frase, não é? Quando aquela pessoa falou isso para você, como você se sentiu? Como foi falar isso para alguém? Pois é, cada vez mais ela está presente nos nossos encontros e desencontros amorosos.

Há tempos, venho pensando em escrever algo sobre essa situação, só que, até então, parecia-me um assunto muito particular de comentar, até porque uma parte de mim acreditava que ela, de certa forma, era necessária. Principalmente quando estamos naqueles momentos mais conosco, ou após términos de relacionamentos. O tempo vai passando, nós vamos aprendendo e, hoje, convido você a ver isso de outra maneira.

Para começarmos a nossa conversa, eu vou ter que me adiantar um pouco a esse sentimento de medo de gostar, entregar-se, apaixonar-se, e conversar sobre projeção, imagem e sofrimento.

Vamos lá:

Projeção é o que eu acredito ser verdade, de acordo com o que eu capto com os meus sentidos e com o que processo em minhas memórias. Por exemplo: eu olhar um rato, processar na minha mente e identificar que, de acordo com o que vivi até agora, esse animal é para mim algo perigoso e nojento. A partir daí, ativo a minha resposta de medo e pânico. É o mesmo processo quando vejo outro rato – Mickey Mouse: esse possui uma característica inocente e bem humorada nas minhas memórias e, com isso, ativo a minha vontade de olhá-lo e de me divertir com ele. Perceba, está tudo na sua mente e está bastante envolvido com as crenças do seu passado. Eu projeto o que é bom ou ruim, de acordo com a minha interpretação.

Imagem é o resultado dessa projeção. Traços e características de objetos e pessoas, de acordo com essa percepção. Por exemplo, Fulano é tímido; uma pessoa é tímida comparada ao que internamente eu considero medida de timidez (eu mesmo, ou outra pessoa que conheça). A autoimagem é quem eu digo que sou de acordo com que existe em minhas memórias. Por exemplo, alguém pode acreditar ser feio porque as pessoas, em geral, não reparam muito nele ou porque já falaram isso para ele (e existem várias pessoas assim).

Sofrimento é quando me mostram - a vida em geral – que eu estou errado. É quando a minha projeção não funciona mais, quando o que deveria acontecer não acontece, quando aquela pessoa que deveria agir de uma forma não age e quando eu deveria ser um tipo de pessoa, mas, na realidade, não sou. Basicamente, quando minhas expectativas são frustradas.

Você pode perceber, aqui, a ligação desses 3 processos: a nossa projeção cria uma imagem (nesse ponto, cada um cria a sua) e, quando a imagem torna-se imperfeita, gera sofrimento. E esse sofrimento tende a aumentar com a nossa dificuldade de aceitar a imagem como é.

E sofrimento acumulado, o que gera?

Sem saber o que fazer com a situação e muitas vezes culpando o outro pelo ocorrido, nós começamos a construir muros à nossa volta, para que ninguém se aproxime. Isso tudo, para que não cheguem assim tão rápido, tão facilmente, e não nos levem o que temos de importante: o nosso coração. E, assim, nasce uma fortaleza oca, uma armadura, uma amargura, um medo e rejeição do outro, uma separação de outros, um não pertencimento, uma apatia, um sentimento de infelicidade e uma descrença teórica no amor.

Agora, voltemos à frase:

Tenho medo de me entregar a um novo relacionamento porque já sofri antes.

Perceba que, pela nossa mente estar condicionada a essa projeção, querendo ou não, iremos, em algum nível, sofrer. Você não é o único ou a única.

Pergunte-se:

Quando você embarcou nos relacionamentos, você a todo momento se amou?

O que muitas vezes acontece, e não estou dizendo que é o seu caso, é que deixamos a nossa casa aberta, sem dono, para qualquer um entrar. Deixamos portas e janelas escancaradas e tudo o mais abandonado. Depois alguém entra, inclusive um mero ladrão, e nos queixamos que ele se apropriou de uma parte nossa e depois fugiu. Mas quem será o real culpado: quem invadiu ou quem se abandonou? Será que isso existe? Existem vítimas? Tudo estava aberto e abandonado…

Ei, vamos fazer um muro para nos proteger?

Isso significa deixar tudo como está e ainda chamar o medo e a insegurança para morar conosco. Perceba que ser forte não é quem quer só se proteger a todo custo, mas sim quem se valoriza e se ama.

E quando você se valoriza e se ama, não precisa de escudos: quem não o amar no nível em que você se ama não terá espaço.

A sua casa está tão bem cuidada, limpa e bela, que só trazendo algo que combine com ela é que o outro terá realmente o seu lugar. Só realmente pertencendo àquele lugar é que ele ficará. Antes, com muro, alguém que conseguisse subir e passar poderia entrar, sem problemas, e mais uma vez encontraria aquela casa abandonada (outra dose de sofrimento, por favor).

Então, meus amigos, cuidem de suas casas e de seus jardins. Não criem muros, mas plantem lindas e perfumadas flores. Não percam tempo barrando quem chegar, pois, se o lugar dele for ali, ali ficará; assim como seus familiares, amigos, colegas.

Não deixe o medo tomar conta do que você tem de belo, abra-se para o amor (próprio), que ele mesmo se encarregará de tudo. Seja o amor que só você pode se dar.

O Deus de amor que habita em mim saúda o Deus de amor que habita em você. Que o amor possa ser mais do que uma palavra ou um sentimento, que ele seja o seu próprio Ser.

E assim é.

É fundamental não nascermos sabendo- Mario Sergio Cortella

É fundamental não nascermos sabendo- Mario Sergio Cortella

“Quando crianças (só as crianças?), muitas vezes, diante da tensão provocada por algum desafio que exigia esforço (estudar, treinar, emagrecer, etc), ficávamos preocupados e irritados, sonhando e pensando: Por que a gente já não nasce pronto, sabendo todas as coisas? Bela e ingênua perspectiva. É fundamental não nascermos sabendo nem prontos; o ser que nasce sabendo não terá novidades, só reiterações. Somos seres de insatisfação e precisamos ter nisso alguma dose de ambição; todavia, ambição é diferente de ganância, dado que o ambicioso quer mais e melhor, enquanto que o ganancioso quer só para si próprio.

Nascer sabendo é uma limitação porque obriga a apenas repetir e, nunca, a criar, inovar, refazer, modificar. Quanto mais se nasce pronto, mais se é refém do que já se sabe e, portanto, do passado; aprender sempre é o que mais impede que nos tornemos prisioneiros de situações que, por serem inéditas, não saberíamos enfrentar.

Diante dessa realidade, é absurdo acreditar na ideia de que uma pessoa, quanto mais vive, mais velha fica; para que alguém quanto mais vivesse, mais velho ficasse, teria de ter nascido pronto e ir se gastando…

Isso não ocorre com gente, mas com fogão, sapato, geladeira. Gente não nasce pronta e vai se gastando; gente nasce não-pronta e vai se fazendo. Eu, no ano atual, sou a minha mais nova edição (revista e, às vezes, um pouco ampliada); o mais velho de mim (se é o tempo a medida) está no meu passado, não no presente.

Demora um pouco para entender tudo isso; aliás, como falou o mesmo Guimarães, “não convém fazer escândalo de começo; só aos poucos é que o escuro é claro”…

Mario Sergio Cortella
A imagem de capa é uma homenagem ao filme: O Curioso Caso de Benjamin Button

A força está em ceder

A força está em ceder

“Não”. É com essa palavra que eu gostaria de começar. Talvez pela força, pelo aparente poder que essa simples palavra tem de transformar as nossas relações uns com os outros. Dizem que quem tem a maior capacidade de dizer não em um relacionamento amoroso sempre estará na frente. Dito isto, é preciso confessar: prefiro ser um perdedor, o maior de todos.

“É preciso aprender a dizer não”, eles dizem; “ceder é para os fracos”, eles sentenciam, sem antes levar em conta que não se trata de força ou fraqueza, mas de empatia e ocasião. Quer saber? Que se fodam todos eles!

Se me perguntarem se quero roubar ou assassinar alguém, é óbvio que direi não, mas se a pergunta é se eu quero me arriscar em quebrar meu coração e a sofrer feito um cão faminto abandonado na chuva por dar amor a alguém, então a resposta será um entusiástico e retumbante SIM – e não é por gostar de me ferrar, não, longe disso. Acredito que relacionar-se com alguém não é um exercício de poder onde conquistar e dividir é tudo o que importa, afinal, o amor não é uma guerra, porra! Pode até parecer em alguns momentos, porém, se você decidir encará-lo assim, tenha em mente que não haverá um vencedor.

Só os idiotas acreditam que ceder é um sinal de fragilidade, pois eles não sabem, não fazem ideia do prazer que é participar da vida de outra pessoa, revelar-se sem medos, confessar-se homem ou mulher que cede e diz sim ao outro não como defeito, mas como qualidade. Essa dureza é fruto de uma mentalidade focada na suposta superioridade, em uma mania presunçosa de controle, a mesma que levou ao massacre de povos inteiros sob a alegação de estes eram inferiores e que precisavam de comando.

Homem lobo do homem, até mesmo quando é o coração que está em jogo. Não é isso que desejo pra mim e para você, meu amigo. É preciso entender que estar errado é mais comum e às vezes mais sadio até do que estar certo, que sempre haverá discussões, ciúmes e brigas por coisas banais (como aquela sua amiga que ela insiste em dizer que está afim de você ou aquelas fotos que ela eventualmente posta e que você acha que está ousada demais por causa do decote), mas o importante é que cada um esteja pronto a admitir que errou quando chegar o momento, e que seja sempre por empatia e confiança, nunca por condescendência.

Aprender a dizer sim. “Sim, fui eu”, “sim, eu te amo” e “sim, eu tenho medo”, isso não se ensina na academia. Às vezes um não também cai bem, como em “não, eu não vivo sem você” e “não, eu não quero te perder”. Tudo o que é preciso para equilibrar bem essas duas palavras é sinceridade, não um jogo infantil de quem ama mais quem ou quem é mais forte que quem.

“Sim”. É com essa palavra que quero encerrar. Um sim a tudo o que for bom, sincero e humano. Um “sim” àquele não que eventualmente irei dizer quando necessário e um “sim” à simplicidade de uma vida sem jogo, sem amarras e sem frescuras.

A imagem de capa é ima homenagem ao filme “Alguém tem que ceder”

Existe vida além da menopausa

Existe vida além da menopausa

A menopausa é “tipo uma TPM”; só que, em vez de durar alguns dias, dura anos seguidos e é mais perturbadora, intensa e cheia de elementos desconhecidos. Embora seja um dos inúmeros ciclos a compor a vida das mulheres, falar sobre a menopausa ainda é um tabu. Dona de muitos outros rótulos de comportamento, a sociedade também rotula a mulher madura segundo alguns critérios pouco amigáveis e muito preconceituosos. A mídia, timidamente vem tentando chamar a atenção para o fato de que as mulheres com mais de 50 podem, sim, gozar das delícias de estar mais à vontade consigo mesma, posto que conta com anos de convivência com sua própria pessoa; experimentar diferentes formas de amor, já que tem agora mais recursos para entender que não há padrões que valham perder oportunidades de dar e receber afeto; e, finalmente, relaxar diante da vida e fazer cada dia valer à pena, em propósito, experiência e fim.

O tempo inexorável cumpre seu papel em nossas vidas. O dia há de ter sempre a mesma duração cronológica, independentemente do que você tenha decidido fazer com as suas exatas 24 horas. Infelizmente, passamos um tempo enorme desperdiçando a vida, igual àqueles cachorrinhos que ficam correndo atrás do rabo. A infância, cada vez mais abreviada, nos priva de reservar algum tempo diário para fazer absolutamente nada do que possa ser programado; é nessas horas de descuido que a nossa criança tem a oportunidade de lambuzar-se de vida, de lama e de chocolate. Então, quando agendamos as horas da infância, perdemos, no mínimo, a chance de provar a liberdade. A infância é a ilha da fantasia! A adolescência, nos enche de urgências; queremos tudo, queremos muito e queremos agora! Entretanto, é essa a nossa mais cruel fase de inadequação; somos bombardeados por sensações de insegurança, ansiedade e inquietude. A adolescência é um vulcão! A juventude, cheia de seu vigor, e planos, e sonhos, e ímpetos, nos faz acreditar que viveremos para sempre, que temos o poder de manipular o tempo a nosso favor. A juventude é a montanha! A fase adulta nos coloca em cheque! Talvez seja o momento mais reflexivo de nossa vida, até então. É nesse ponto que fazemos uma parada, olhamos para trás e para frente, como o viajante que atingiu o meio do caminho. Quando ficamos satisfeitos pelas aventuras vividas, e a experiência vem com sabor de satisfação misturada com desejo, somos acometidos por uma tênue certeza de que fizemos a vida valer à pena; e então, conseguimos olhar para frente com um frio na barriga renovado, o arrepio gostoso da expectativa que nos faz acreditar que “o melhor ainda está por vir”. A fase adulta é o oceano!

Então, se tivermos sido contemplados com uma vida longa, chegaremos à maturidade! Alcançaremos esse lugar tão forte e bonito, graças às inúmeras fantasias da infância, ao fogo da adolescência, à impetuosidade da juventude, ao prazer do conhecimento da fase adulta. A maturidade é um caldo vivo e incrivelmente interessante que se constituí da mistura única, formada por nossas únicas experiências.

A maturidade é um presente, embrulhado em papel suave, intenso e delicado, tudo isso junto, assim mesmo, desse jeitinho! É com mãos habilidosas e experientes que recebemos essa nossa nova etapa da vida. É com a alma pacificada pela certeza de que não há certezas ou garantias nessa vida, que abraçamos mais essa belíssima fase, durante a qual poderemos voltar a provar as lambanças da infância, as instabilidades da adolescência, os sonhos da juventude e a reflexão da vida adulta.

Tudo estaria perfeitamente harmonizado, caso essa maturidade viesse apenas nesse viés maravilhoso e filosófico. No entanto, o fato é que não nos concedemos o direito de amadurecer em paz; de colher o fruto, agora sim, doce e pronto; de nos encontrar com a nossa melhor porção, menos ansiosa e aflita. Essa paz é perturbada por um monstrinho fisiológico que nos arrebata num encontro, cuja data marcada, nós desconhecíamos até sermos atingidas por ele.

Do ponto de vista orgânico, a menopausa é marcada pela ocorrência do último fluxo menstrual espontâneo; e marca a transição na vida da mulher, do período reprodutivo para o não reprodutivo. Quem dera fosse assim tão simples! Não é! A menopausa pode vir acompanhada de sintomas que geram angústia e desconforto. A ausência da menstruação traz consigo alguns “companheiros” com os quais a mulher precisa aprender a lidar. De repente, a vida é invadida por ondas de calor; declínio da libido; insônia; suores noturnos; alteração da distribuição de gordura corporal; diminuição na atenção e memória; perda de massa óssea (osteoporose) e massa muscular; aumento do risco cardiovascular e depressão.

A medicina pode trazer soluções terapêuticas, por meio da reposição hormonal e utilização de repositores de vitaminas e sais minerais; além da prática da atividade física recomendável. Organicamente, é possível aliviar os sintomas e conquistar de volta o equilíbrio das funções fisiológicas. No entanto, tantas transformações podem levar algumas mulheres a desequilíbrios emocionais, cujo impacto pode trazer grandes perdas na área afetiva, profissional, pessoal e nos relacionamentos. Toda mulher deveria ter garantidos apoio médico e psicológico para passar com mais tranquilidade pelos inúmeros desafios da menopausa. Além disso, deveria poder contar com a compreensão dos companheiros e de sua família para o fato de estarem passando por uma fase em que se sentem tão vulneráveis.

À parte das enormes provocações à nossa alma e corpo físico que acompanham a maturidade, é extremamente importante lembrar que junto com as agruras da menopausa, vêm as inevitáveis e saborosas conquistas. Mulheres maduras podem e devem apaixonar-se perdidamente, por si mesmas, por um outro alguém, por uma nova profissão, por uma atividade física divertida e desafiadora, por um talento desconhecido, por lugares nunca visitados, pelo mundo, pela vida. Mulheres maduras são donas de um encanto que só os mais sensíveis e atentos conseguirão admirar. Elas conhecem quem são, sabem o que querem, como querem; e aprenderam que a maior beleza da história de cada um está, justamente, na liberdade de viver em constante transformação.

Se não for pedir demais, eu quero um amor que saiba usar a crase.

Se não for pedir demais, eu quero um amor que saiba usar a crase.

Quero, sim. Eu quero mesmo. Você pode achar tolice. Ponderar que há coisas mais importantes a valorizar no ser amado além de sua desenvoltura com o próprio idioma. Eu concordo, mas não abro mão: quero um amor que fale e escreva direitinho.

Claro que também ajuda se for gente honesta, bondosa, perfumada, trabalhadora, engraçada e com tantos outros predicados que a tornem, no conjunto, bela. Mas eu acho mesmo que uma pessoa capaz de respeitar a sua língua, estudar gramática, conhecer suas normas e seguir suas regras é, ao menos em tese, o prenúncio de um amante exemplar.

Alguém que não desiste e nem esculhamba na primeira dúvida, que corrige quando erra, que se esforça por aprender a complexidade de um idioma é pessoa resoluta, persistente, leal. Tem firmeza de caráter, perseverança, cuidado, apreço. Todas essas coisas que melhoram a vida e, entre outros benefícios, ajudam a fazer os casais felizes.

A todo tempo, tem sempre alguém em algum lugar maltratando a Língua Portuguesa. Agorinha mesmo, para elogiar ou insultar, uma multidão de almas desavisadas vai cometer um erro de concordância, de grafia, de estilo. No bilhete dos amantes, na bronca do chefe, no discurso do político, no recado da vizinha, nos e-mails entre colegas, nas declarações de amor e em toda sorte de textos ditos ou escritos há sempre uma incorreção enxerida. Porque errar, a gente erra mesmo. Todo mundo erra.

Mas aí acontece um milagre. Entre tanta gente falando e escrevendo mal, de repente alguém diz ou escreve certo uma frase qualquer e pronto. Dá em mim uma ternura tão grande, um sentimento de compreensão, um desejo de amizade, uma vontade inocente de trocar palavras simples, de perguntar à pessoa como vai a vida. Uma intenção de melhorar. Eu quero um amor assim. Alguém que, ao fazer o que é certo, me inspire a querer ser melhor também. Começando pelo carinho com a língua que a gente fala.

E se não for pedir demais, eu quero um amor que saiba usar a crase. Sim, porque poucas coisas na Língua Portuguesa são mais bonitas e tocadas pela poesia do que a crase. Vê se pode: “crase” vem do grego. Quer dizer “fusão”, “união”, “mistura”. Em uma de suas utilizações mais comuns, a crase denota o casamento do artigo “a” com a preposição “a”. Duas vogais idênticas, almas gêmeas, se fundindo em uma só. Para marcar o idílio, a dupla ganha um sinal maroto, o acento grave ( ` ) denunciando que ali existe um casal feliz: a + a = à. Não é bonito? Eu acho muito, muito bonito.

Então afirmo sem mais. Gente que fala e escreve certinho, em conjunto com outras qualidades já reveladas aqui, provoca em mim um desejo de amor. Quem faz bom uso do próprio idioma é, para mim, como a ponta de um iceberg: esconde para baixo da superfície um mundo de coisas não reveladas que o sustentam e provocam a minha curiosidade, o meu respeito e a minha admiração.

Assim, à primeira vista, eu tenho o hábito estranho de tomar gosto precipitado por quem faz bom uso do idioma. Eu gosto mesmo. Gosto de cara. Agora, se a pessoa ainda por cima souber usar a crase, aí não tem jeito: eu caso na hora.

Minha herança, por Tailu Nascimento

Minha herança, por Tailu Nascimento

Sou herdeira de rezas e benzeduras. De mulheres que encontraram nos contornos da castração social, brechas por onde deixar infiltrar os poderes ancestrais femininos. Mulheres que cultivam remédio para todos os males, entre flores e folhas, histórias e sonhos, palavras e canções. Mulheres fortes, por vezes duras, valentes como um bicho feroz, mas com a sensibilidade de uma borboleta. Daquelas que enquanto choram pela galinha que perdeu os pintinhos, degola outra pra jogar na panela e cozinhar lentamente o almoço que sustenta toda a grande família.
Sou herdeira de mulheres simples, sabedoras, que fazem da rotina um ritual. Com a vassoura varrem os pensamentos ruins, as lembranças difíceis, e assim vão varrendo até a calçada, até a estrada. Fazem da casa um relicário, baús que guardam histórias tramadas no
algodão, o café exalando aroma de saudade gostosa. Fazem do quintal um altar, lugar maior que o mundo, composto de silêncios e de restos, repleto de símbolos de poder.

Quintal por aqui se chama terreiro, que na Umbanda é tido como ‘casa religiosa de cura espiritual que pratica o bem e o amor ao próximo’. No significado não difere muito do terreiro de nossas avós. Um pedaço de terra, às vezes um filete entre a parede e o muro do prédio moderno que acotovela a simples casinha caiçara, onde se cultiva plantas de cura e contemplação. Ali tem erva pra chá amargo que cura o estômago, pra jogar na garrafa com cachaça e aliviar dor muscular, pra emplastro e compressa, pra temperar comida e pra benzer verruga. As flores e folhagens vistosas são remédios para a alma, bálsamos em cores, formas e cheiros que acalentam as dores do dia-dia.

Sou herdeira de mulheres de muitos filhos e pouca louça, que aprenderam desde menina o poder de tirar o suficiente do pouco, porque muito é exagero, e sempre tem quem precise mais. Dessas mulheres eu trago a linha e a agulha, as garrafas de tintura curtindo no armário, a florzinha sem vergonha crescendo no quintal. A elas sou grata e peço a bênção pra seguir meu caminho.

Texto: Tailu Nascimento, A foto é da inspiradora Tasha Tudor (Google).

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