A coragem de estar à deriva

A coragem de estar à deriva

Sentir-se à deriva na vida exige coragem, fé e desapego ao medo. Não espere não sentir medo para soltar as cordinhas que te prendem ao cais. Aceite que o medo está ali como um mecanismo de defesa muito antigo e enraizado. Entenda de onde vem seu medo. Respire e sinta-o agindo sobre você.

Normalmente, o medo vem da mente, que não é capaz de suportar o vazio da insegurança. A mente não suporta nem mesmo a falta de um plano B, quem dirá de um plano A. Mas, o que ela não sabe é que toda e qualquer segurança é pura ilusão. E não adianta tentar convencê-la do contrário.

A verdade é que, por mais seguro você pense estar, por mais bem amarradas que estejam suas cordas, quando se faz necessária a hora da mudança, com um simples sopro a vida te empurra e te muda completamente de direção. Não há corda e talvez não haja nem mesmo barco que possa impedi-la.

Seria a vida, então, cruel? Talvez, no primeiro susto, seja esta a sensação. Mas, cruel seria se ela nos poupasse de todo aprendizado inerente à mudança. A vida não nos surpreende para que soframos. Ela espera que possamos aprender algo com isso para sermos mais fortes, para liberarmos o que não nos serve mais, coisa que, às vezes, é tão difícil de ser percebida. Por mais seguro que o cais seja, nem sempre ele é abrigo da sua felicidade. A hora de partir chega quando a dor do vazio torna-se maior do que o medo do novo. 

E como saber se um desejo de mergulhar no desconhecido é puro impulso, fuga da realidade ou uma necessidade real da alma? Primeiro, é preciso garantir que, caso você decida ficar à deriva, poderá assumir e arcar com os riscos dessa mudança. Isto se chama maturidade. Claro que, se você tem o apoio voluntário daqueles que o ama, ótimo. Mas nunca solte suas cordinhas esperando ser salvo caso afogue-se. Se você estiver preparado conscientemente para lidar com qualquer consequência da sua escolha (o que não significa ausência de medo) e sentir que esse risco ainda vale mais a pena do que o vazio das suas cordinhas seguras, provavelmente trata-se de uma necessidade real.

E, finalmente, quando você se solta e vai, a dor que surge pela falta do concreto transforma-se, aos poucos, em liberdade e autodescoberta. Haverá momentos de escuridão, em que nem mesmo a lua se fará presente. Estes momentos poderão ser sombrios ou perfeitos para repousar a alma e se preparar para o dia que vem. Haverá tempestades e lindos pores-do-sol. E, então, você perceberá que tudo isso já existia antes, lá naquele cais, onde você tinha a ilusão de estar protegido. A diferença é que agora você não sabe onde e quando irá atracar seu barco outra vez. Talvez você nem queira mais deixar o mar. Enquanto isso, aproveite a viagem. Quem sabe nos cruzamos por ai.

“DOLCE FAR NIENTE”: a doçura de não fazer nada

“DOLCE FAR NIENTE”: a doçura de não fazer nada

É preciso, mesmo que por breves instantes ao longo do dia, parar, demorar-se, sentir o prazer de nada fazer, nada ter que fazer, nada a se cobrar, sem pressa, sem olhar o relógio a cada minuto, sem culpa por estender-se na cama. É preciso dar um tempo a nós mesmos, pois temos o direito, sim, de estar com preguiça vez ou outra.

Nossa sociedade vive cansada, estressada, de mau humor, correndo contra o relógio e com a impressão de que não vai dar tempo de fazer nada do que planejara. Desde crianças, somos levados a valorizar o trabalho, o movimento, o não ficar parado, pois, como diz o ditado, Deus ajuda quem cedo madruga – demorar-se na cama é sacrilégio!

Nesse contexto, acabamos por evitar a parada, a quietude, afinal, tempo é dinheiro e não deve ser jogado fora com nada que não seja produtivo. É preciso trabalhar até a exaustão, se possível pulando as refeições ou encurtando o horário de almoço, sem essa de ficar sentado conversando trivialidades à mesa, pois o serviço está urgindo à nossa espera.

E essa sistemática encontra terreno propício para que se fortaleça na atual cultura do status, em que as posses materiais é que determinam o quanto vencemos na vida. Não dá mais para trabalhar oito horas diárias, é necessário preencher os três períodos com trabalho, porque é assim – dizem – que ganhamos dinheiro, porque quem é rico trabalhou e trabalha muito.

No entanto, toda essa pressa atarefada acaba nos adoecendo, senão o físico, a alma, afastando-nos de nossa essência, da construção de sonhos e de ideais que só são possíveis na calmaria, na lentidão silenciosa de nosso respirar. Sem estacionarmos os nossos sentidos por veredas distantes da correria e do burburinho cotidiano, não conseguimos nos reequilibrar emocionalmente.

É preciso parar, demorar-se, sentir o prazer de nada fazer, nada ter que fazer, nada a se cobrar, mesmo que por breves instantes ao longo do dia, mergulhando os pensamentos no vazio das ideias aparentemente inúteis. É preciso não ter pressa, não olhar o relógio a cada minuto, não sentir culpa por se estender demoradamente na cama, após ter tocado o despertador. É preciso dar um tempo a nós mesmos, pois podemos, sim, estar com preguiça vez ou outra.

Ainda mais importante do que presentearmos a nós mesmos com esses instantes de ócio, é fazermos tudo isso sem nenhum sentimento de culpa, sem medo de sermos punidos pela vida por conta desses momentos de ócio. Teremos que estar cientes das benesses que o não fazer também nos traz, pois é desse modo que reconciliamos nossa energia mental ao restante de nosso corpo.

É assim que conseguiremos, mesmo cansados, ao fim do dia, todos os dias, abraçar quem caminha ali ao nosso lado, com ternura renovada e sincera, porque então ainda nos restarão forças para cultivar o amor que deverá sempre nos guiar a vida.

Felicidade é…

Felicidade é…

Quando o assunto é relacionamento amoroso, muitos desconfiam dos “felizes” que não são seguidos do “para sempre”, condicionam a felicidade a pré-requisitos e contratos e se esquecem de que ela é privilégio dos distraídos e não obedece à muitas regras: reside na singularidade ou na soma de momentos delicadamente arrebatadores.

Felicidade é o primeiro abrir de olhos num dia em que eles sabem que se fecharão refletidos nos teus.

Felicidade é sentir meu desejo se confirmar e renovar através da saudade que minha pele grita da tua no decorrer dos dias em que não a visita.

Felicidade é a coreografia de borboletas há muito tempo adormecidas em meu estômago que acontece a cada vez que, nos momentos mais inesperados, teus lábios se demoram nas minhas mãos.

Felicidade é a beleza acrescida aos meus dias pela simples certeza de que ainda há muito de você a ser descoberto.

Felicidade é sentir a intimidade lentamente descalçar os meus pés e desvestir a minha alma, fazendo com que o teu peito me seja descanso.

Felicidade é, enfim, o caminhar de mãos dadas no hoje em trajetos desenhados pela possibilidade de uma coleção bonita de amanhãs.

Um cafuné moral é o que precisamos

Um cafuné moral é o que precisamos

“O homem traz em si a santidade e o pecado / lutando no seu íntimo / sem que nenhum dos dois prevaleça…” (Bi Ribeirto e Herbert ViannaO Homem / Álbum Selvagem, 1986)

Já não reparamos no outro, ou melhor, até reparamos, mas quando o olhar resume-se aos julgamentos etéreos dos nossos sentimentos. O ser em busca de soluções, mas completamente indiferente ao sofrimento do próximo. Somos violados por mecanismos que nos preenchem de insensibilidade e avareza. É difícil enxergar quem está abaixo, quem está do lado. Ignoramos os gritos e sussurros sociais. Apenas reagimos quando alguma catástrofe ou ato inimaginável rouba a cena nos telejornais e outros meios de comunicação. Somos produtos enjaulados. Não criamos artes. Não fazemos caridade. E quando digo caridade, esta não quer dizer somente o gesto da doação material, mas discorro sobre a presença física, afetiva. Como dito por uma amiga; – Caridade moral é o que precisamos.

O acinzentado é evidente nas ruas. No lugar dos sorrisos, incontáveis motivos para o desespero e para o ódio. Cadê a poesia? Cadê o movimento do ser na sua busca recorrente à felicidade? Diariamente, o que parece é que mergulhamos cada vez mais nas sombras das nossas próprias escolhas e ambições, substituindo desejos por instantes momentâneos de egos inflados. Conceitos e doutrinas expostas como os mais belos e extravagantes anúncios promocionais. Somos engolidos. A satisfação aqui não reflete o ganho de acolá. Mas há algum ganho?

O perceptível acerca do atual cenário do mundo é o que o próprio não parece mais tão grande assim. Cada qual vive imerso nos seus finitos universos, imaginando ser assim a melhor forma de entrar em contato com a paz interior. Mas nessa resignação ignorante da qual só enxerga quem está de olhos vendados, a verdadeira troca, a mais pulsante caridade do ser para o ser, pode e deve residir na liberdade incondicional da simples benevolência. Os inocentes em instantes de sorrisos sublimes. Faz bem ao coração, sim. Um cafuné moral é o que precisamos.

 

Tem dias que a coisa mais importante a fazer é assistir um filme água com açúcar

Tem dias que a coisa mais importante a fazer é assistir um filme água com açúcar

Tem dias que a coisa mais importante a fazer é assistir um filme água com açúcar.

Entrar numa comédia romântica como se fosse overdose de chocolate, não exige filosofias, pensamentos, dilemas. Tem dias que a gente só precisa de um entretenimento bobo que nos tire a realidade, que nos tire de nós mesmos.

Tem dias que a gente agradece o friozinho só porque não precisa de mais desculpas para passar horas abraçada com o cobertor e quem sabe com um gato dormindo no pé da cama, nos aquecendo os pés.

Tem dias que a gente desliga a internet, pega 4 livros na estante e lê um pedaço de cada um. Nesses dias a gente esquece de tomar banho, de fazer comida, de terminar o relatório ou colocar a caixa de e-mails em dia.

A gente passa a chá, sopinha congelada, bolachas com manteiga. A gente fica de pijama e meias, não paga as contas, não abre a correspondência.

São dias que a gente diz: ‘hoje só amanhã!’.

Por isso a gente cochila à tarde e assiste 5 episódios da nova série à noite. A gente não tem horário, não atende o telefone, não arranja nenhum compromisso social.

Dias de solidão, sábado de papo pro ar, domingo de chuva, feriado no meio da semana, servem pra recuperar as energias, desligar da vida e curar o coração.

Tem dias que a coisa mais importante a fazer é fazer nada para que tudo volte a fazer sentido.

Black Mirror: um Thriller da evolução tecnológica desprovida de evolução cultural

Black Mirror: um Thriller da evolução tecnológica desprovida de evolução cultural

Em tempos de seriados eternos, de livros lançados em sagas intermináveis, de abordagens obvias ou repetitivas, Black Mirror surpreende pela sagacidade de ser uma série breve, limpa e perturbadora. Não é que estes outros estilos não sejam bons, não nos agradem e não tenham o seu mérito, mas existem diferenças entre a cultura do entretenimento meramente, as produções “cult” e propostas que consigam superar essas “divisões” de estilo e público. Há exemplos dessas produções em todas as formas de arte. Não precisa necessariamente existir uma dicotomia entre o que é para a “massa” por ser capaz de divertir, distrair e agradar e o que é para o público “culto” por engendrar reflexões, carregar referências, ter qualidade e originalidade técnica. Quanto mais uma produção cultural ou artística, de qualquer gênero, seja capaz de alcançar públicos distintos e plantar suas “sementinhas”, a meu ver, melhor é a produção. Colocaria Black Mirror entre essas produções que superam as dicotomias e, pelo formato e conteúdo, se abre ao acesso da diversidade de modos de ser que a nossa época compreende, oferecendo quase que democraticamente a todos o direito de serem perturbados em suas acomodações.

Black Mirror não é um “lançamento do momento”, foi estreada em 2012 na Inglaterra com a proposta de um formato pouco comum às séries atuais: apenas 2 temporadas com 3 episódios e um episódio extemporâneo (especial de natal), cada episódio uma história diferente, sendo que a única conexão que elas têm entre si é algo do estilo e da natureza temática. Isto significa que uma pessoa pode ver qualquer episódio da série, sem precisar ter visto os outros. Todavia, embora não necessariamente no Brasil, a série ganhou uma proporção considerável de fãs, e é possível que uma nova temporada seja exibida pela Netflix ainda em 2016. A mencionada proposta do formato dos episódios é inspirada em “The Twilight Zone” (Além da Imaginação), que ficou conhecido nos anos 50 e cujos episódios podem ser comparados a pequenos contos, que através da ficção abordam temáticas da realidade, recurso comum em épocas de censura, mas que encontra sua força para além dessa condição específica.

Assistindo a série também me lembrei dos contos de Borges e da consideração do autor de que a boa ficção não precisa de infinitas páginas para ser desenvolvida,  que o que há para ser dito pode o ser, e muito bem dito, em poucas páginas: “Desvario laborioso e empobrecedor o de compor extensos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma idéia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário.”. Embora também seja fã de longas sagas, percebo nesta declaração uma coerência com uma realidade “fast”, que desconfiada das novidades, só paga com o tempo o que tem como garantia um retorno satisfatório. Apropriando o que Borges diz sobre às narrativas literárias ao formato audiovisual de Black Mirror e afins, temos que o feito criativo em formato breve se concretiza, se imprime na realidade, sem acorrentar-se às continuações. Cumpre seu efeito no abrupto, abrindo possibilidades de desdobramentos criativos ao expectador pelo contato e não pela extensão.

Penso também na potência da ficção para refletir e tocar em questões atuais, em muitos casos, com mais impacto do que os discursos diretos. Assim, Black Mirror nos surpreende com uma proposta inusitada, atual, potente e capaz de alcançar qualquer público com a sua linguagem. A tecnologia pode ser equivocamente confundida como a protagonista dessa série. Mas não há em nenhuma de suas histórias, diferentemente de algumas ficções mais apelativas, nenhuma atuação de uma tecnologia que adquire existência própria e atua independentemente do ser humano. Há seres humanos fazendo uso das tecnologias e de outros seres humanos, de tal forma que alcançam proporções absurdas por um lado, e absolutamente familiares se considerarmos a realidade na qual vivemos por outro. É esse o principal trunfo da série no que diz respeito à sua recepção: o absurdo e a realidade se chocam num encontro diante do expectador. Não há escapatória para o desconforto deixado pelos episódios, não há como não refletir sobre a realidade, como não parar diante dela durante os minutos em que a narrativa audiovisual se desenvolve e ao menos alguns minutos depois, absorvidos pela perplexidade de estar sob efeito de um terror que não nos mete medo pela sua impossibilidade, por ser sobrenatural, mas por ser supernatural, possível e, de certa forma, apenas uma hipérbole daquilo que já vivemos. O terror em Black Mirror é um terror da realidade vivida, que não precisa de membros decepados, figuras hediondas ou espectros para causar pavor. O pavor está em constatar que tudo aquilo que nos angustia e atemoriza diante da tela, é a história radicalizada da nossa vida diante das telas.

Cada episódio da série renderia uma análise longa e aprofundada, pela quantidade de temas e complexidade com que são abordados no curto espaço de cerca de uma hora. O uso do humano pelo humano, o uso das tecnologias, a alienação política, os sistemas de punição, as relações íntimas, a dificuldade contemporânea em aceitar as limitações intrínsecas da existência humana tentando supri-las através avanços científicos, a subversão dos sonhos, queda de utopias, ausência de empatia, dentre outras questões, são abordadas pela série com um misto caótico de humor negro, suspense e absurdo compondo uma ficção de muita qualidade.

Fica em comum do gosto amargo e sagaz deixado pelas histórias a impressão de que o avanço da tecnologia desacompanhado do avanço cultural – que este se entenda como evolução no sentido humano, do próprio ser e das suas habilidades individuais e sociais enquanto ser (não enquanto “coisa social”) – nos imerge em uma perspectiva de futuro crítica, que já pode ser visualizada em diversos desdobramentos sociais em nível global que presenciamos (precisa de exemplos?). Alienados dentro de esferas das quais não conseguimos nos desvencilhar, podemos até mesmo pensar que nos encontramos tranquilos, protegidos da crueza dessa realidade, ou prestes a vencê-la através de alguma atitude subversiva ou mesmo seguindo suas regras, mas de uma forma ou de outra, acabamos por ser engolidos por essa mesma realidade que tentamos aceitar ou ignorar.

Homens sem cultura e cheios de artifícios tecnológicos são como crianças cheias de brinquedos, mas sem orientação ou educação. Acabam por destruir tudo em seu entorno, tiranizarem umas às outras, ecoando a lógica das civilizações sem civilização. Retornamos à lei do “mais forte”, sem que tenhamos um inimigo contra o qual lutar ou um salvador ao qual recorrer. O isolamento é contraposto e intensificado pela interferência constante e imponente do “todo”, que existe apenas enquanto júri impondo modos de ser, agir ou penalidades de forma confusa e arbitrária. Nos tornamos atores do maior espetáculo de todos os tempos, que embora se repita nas figuras e tragicomédias exibidas, supera em efeitos especiais. (“Peraí!”, estou falando de Black Mirror ou da realidade?)

Embora Black Mirror não seja a primeira produção fictícia que aborde a realidade humana e social revelando o absurdo por trás de questões cotidianas banalizadas e vivenciadas de forma naturalizada até o momento em que quebramos o nosso nariz nelas, possui o mérito de trazer esse discurso à contemporaneidade utilizando de todos os artifícios que esta compreende, tanto em termos técnicos quanto no que diz respeito ao conteúdo. Resta saber se em seus novos episódios, a série não acabará tomando o destino de algumas de suas narrativas e personagens, como “Fifteen Million Merits” ou “The Waldo Moment”. Entendedores entenderão…

Obrigada, mas não, obrigada!

Obrigada, mas não, obrigada!

Dizer não é um negócio muitas vezes complicado. Pelo menos para mim. Tem aquela coisa de decepcionar, frustrar alguma expectativa, fechar uma porta, um ouvido, uma relação.

Dizer não é romper com uma ideia, desistir de um plano, sequer considerar uma possibilidade. É apontar o sim para outra direção, virar os motores para apreciar outro horizonte. Dependendo de quem estiver na reta do não, eu sofro. Sofro mais de dizer um não do que levar um não para casa.

Coisas da vida, os nãos necessários e muitas vezes indispensáveis. Para criar um filho, se diz muito não; Para barrar uma criatura espaçosa, se repete mil vezes não; Para conter uma atitude anunciada de arrependimento, se diz a si mesmo: Não!

Mas o não, embora não pareça, tem um lado, sim, positivo e libertador!

O não fortalece e empodera quem se apropria dele com justiça.
O não autêntico machuca infinitamente menos do que um sim leviano ou um talvez indiferente.

O exercício de dizer e receber os nãos da vida é de puro fortalecimento. É uma conquista de extremo valor, e acaba de vez com as manhas e mimos que a gente insiste em trazer da infância, onde a birra e o choro resolviam a maioria das dificuldades. O adulto mimado e que não sabe ser contrariado é uma criança velha que ainda esperneia a cada não que lhe atinge.

Dizer não é fantástico! Opinar sobre o que não agrada, recusar o que não convém, declinar, desistir, mudar de ideia, ser tão espontâneo quanto a educação e o convívio social recomendam. Afinal, negar ou recusar algo não é motivo para trazer de carona uma grosseria.

Receber e acatar um não é respeitar a vontade alheia, entender que as vontades e ideias não se tocaram, não houve afinidade, sem se preocupar com intenção ou falta dela. Receber e digerir, essa é a parte que interessa. Ao outro, fica a responsabilidade que o motivou.

Por essas e por outras, se me perguntam se topo dizer um sim mentiroso a contrariar um afeto, respondo sem culpa alguma: Obrigada, mas não, obrigada!

O amor não é emprego

O amor não é emprego

O amor não é sacrifício. Se você está fazendo um esforço descomunal pra provar que ama alguém, você está exercendo uma função, não está amando.

O amor escapa aos conceitos rotineiros, às definições limitantes. Sabe-se dele pelo susto da descoberta. Pela espontaneidade da entrega. Pela surpresa. Pelo caráter inédito das ações.

O amor não cobra adicional noturno. Não faz conta das horas gastas durante uma longa conversa. Não vai reclamar da cara suja de sono dizendo que perdeu a noite enquanto poderia descansar.

O amor nunca é pontual nos regressos. Nunca acerta os ponteiros. Não sabe a hora de voltar pra casa. Fará jornada ininterrupta se for preciso. Caminhará de mãos dadas de madrugada como se fosse feriado.

O amor nunca perde a oportunidade de eternizar a companhia.

Funda o próprio tempo baseado na intensidade que distribui, no querer atento que compreende o outro pela mímica do olhar, pelo desespero das mãos que buscam o esconderijo quente dos abraços.

O amor não precisa de comprovação de renda. Vive da própria busca, da atualização de si mesmo, é a própria riqueza imanente.

O amor dispensa a necessidade do julgamento. Não vai cobrar do outro o sentimento que ele ainda não tem.

Não vai culpar o outro pelo que ainda não descobriu. Pelo que ainda não sabe dar. Pelo que ainda não aprendeu. Pelo que ainda não é.

Não vai rebaixar um sentimento que ainda engatinha, pra dizer que ele é pequeno, sem futuro. Não vai censurá-lo nem desmerecê-lo pela forma como se doa.

O amor não se sustenta na necessidade de fixar ações, de cumprir metas de encontros e prazos pra deliberação de beijos.

O amor não é uma obrigação. Não é um emprego. Não tem cláusula contratual.

O amor é um golpe na rotina. Uma sensibilidade espontânea. Não é sacrifício nem exercício de comiseração. Nasce do desejo de liberdade mútua. É uma afronta para qualquer planejamento. O amor é a predisposição de caminhar junto e se necessário for, construir a estrada.

Não tenha medo do que os outros vão pensar de você

Não tenha medo do que os outros vão pensar de você

Ninguém, a não ser que se torne um eremita, vive sozinho. Fazemos parte da sociedade e estamos ligados às pessoas que convivem conosco. Isso quer dizer que as consequências de nossas ações não se restringem apenas a nós mesmos, pois atingem também as pessoas que, de uma ou de outra forma, fazem parte de nosso caminhar.

Não poderemos, portanto, agir visando tão somente aos nossos propósitos pessoais, não nos importando com ninguém mais, como se o nosso bem estar fosse a única meta a ser atingida. Caso machuquemos quem está ao nosso lado, a fim de obtermos aquilo que queremos, estaremos agindo de forma inconsequente e egoísta, o que deve ser evitado.

No entanto, é necessário que achemos um jeito de realizar os nossos sonhos e de vivermos conforme aquilo em que acreditamos, de maneira ética e digna, sem nos desviarmos disso tudo, ou jamais seremos felizes. Ainda mais se sufocarmos os nossos anseios, por medo da reprovação de quem discorda do nosso modo de pensar e de agir.

Ouvirmos e ponderarmos frente aos conselhos de quem nos ama de verdade será sempre necessário, pois então estaremos lidando com palavras vindas de gente que se importa e quer o nosso bem. Entretanto, dar ouvidos a quem não divide nada conosco, a não ser momentos superficiais e irrelevantes, acabará nos afastando do que nos move os sentidos, do que é essencial aqui dentro de nós.

Caso estejamos agindo de acordo com as verdades que norteiam os nossos sonhos de vida, para buscar o que queremos, junto a quem amamos, sem machucar ninguém pelo caminho, é preciso continuar. Haverá sempre alguém tentando nos impedir, censurando-nos, discordando agressivamente de nossa jornada, porque ainda é difícil a muitos cuidar da própria vida e deixar a felicidade do outro em paz.

Será muito difícil errarmos a pontaria de nossos ideais, caso estejamos caminhando ao ritmo harmonioso dos sonhos que não conseguimos deixar lá no travesseiro. Jamais poderemos sufocar a nossa essência, por medo do que vão pensar, do que vão dizer. Quem vive a julgar o outro sempre vai pensar e dizer o pior, pois não sabe agir de outra forma, não importa o que o outro faça ou diga – é só isso que ele sabe fazer.

Não poderemos agir sem pensar em ninguém mais, obviamente, como se só nossa vida fosse importante, mas isso não quer dizer, de forma alguma, que deveremos temer quem possa vir a nos difamar por discordâncias baseadas em juízos de valor. O preço a se pagar pelo sufocamento dos sonhos é nada mais, nada menos, do que o arrependimento e a infelicidade. Não seja infeliz, seja quem você é de verdade.

Senta aqui que hoje eu te quero falar

Senta aqui que hoje eu te quero falar

Nas palavras do bardo ex-Los Hermanos, “é só teu coração que não te deixa amar / você precisa reagir / não se entregar assim como quem nada quer…”.

Certa vez, o norte se perdeu. Você, letárgico pelas experiências amargas dos desamores, não acredita na redenção. Quer porque quer atribuir culpa ao fracasso, no descaso incondicional e emocional que o levaram para mais um triste fim. Indo além, não se acha merecedor do mais amor e, relutante, credita que o sofrimento concebido significa ter feito o possível. Mas não é bem assim. Insistentemente, refaz os passos, delineia os fatos e vocabulários. Procura no dicionário explicação para o peito doído, dilacerado pelas mazelas do viver a dois. Acontece que, o direcionamento das frustrações não trará respostas. Seguir através dos caminhos finitos não o fará encontrar os meios. Ambos erraram. Ambos optaram por dizer adeus, ainda que, de alguma forma, um tenha acenado para a saída antes do outro.

Para o amor não há condições, mas situações. Desbravar os nuances dos relacionamentos é como adentrar numa jornada épica e misteriosa rumo ao nada. Mas por que nada? Porque não existe tudo. Corações não podem ser completados, apenas somados. E esta soma apartidária, necessita de sintonia e quereres transcendentes às nossas próprias necessidades. Você procura abrigo quando deveria almejar por alguém que busque partir com você. Quer esticar as pernas no sofá e deixar o tempo passar, mas a estrada sorri através das janelas, e com elas, a oportunidade estupenda de entrelaçar mãos com alguém que quer desbravar o novo junto.

O passado sempre será presente. E neste paradoxo funcional, a cura é tentar sorrir de novo. Aportar em si para reergue-se diferente, para estar receptivo a uma nova tentativa. Mesmo sendo penoso com a desconfiança no limiar da desesperança, aspirando nada menos que a conformidade da suposta maldição para relacionamentos, de repente, numa esquina social, a empolgação rejuvenescedora esteja passando exatamente no mesmo horário, e aí o cinza pode vir a deixar de ser tão cinza.

Esculpir o “se” é irregular, prejudicial e deixa cicatrizes que nem o tempo ou lágrimas podem fazer desaparecer. Ninguém aprecia um coração sofredor, repleto de traumas e descompassado pelas estórias de um outrora. Não há tempo hábil para reestruturar os sentimentos do outro. Você não teve culpa na partida, mas quem chega não possui obrigação de sair entrando de qualquer jeito. Manter isto, torna o ciclo líquido, sem sentido e desencorajador para ambas as partes.

Para reencontrar o norte, dispa-se das expectativas, descubra serenidade e afago nos próprios pés, assim, quem sabe, o teu coração lhe conceda o alvará para amar de novo.

Francamente, cá entre nós

Francamente, cá entre nós

“Que Deus me perdoe e minha mãe me entenda” digo às vezes, assim, pra mim mesma, quando ando cansada de “grandes aglomerações”.

Nunca entediada dos meus afetos, da turminha que me acompanha, mas desejando fechar-me em minha casca, meu casulinho particular, onde teço meus pensamentos, amadureço meus sentimentos, jogo fora o que não merece ser reciclado.

Sou de natureza introspectiva e de vez em quando peço perdão por isso. Perdão porque muita gente não entende essa minha mania de ser só eu, eu e minhas caraminholas tão particulares.

Criamos o hábito de nos ferir. Acostumamos com aquilo que faz mal e perdemos tempo com o que não acrescenta.

Vivemos de aparências para que ninguém perceba o quão incomodados estamos. E por que não revelar que preferimos de outro jeito? Por que não dizer “sim” para nossas necessidades de paz, solidão, escolhas? Por que essa mania de se desagradar para agradar?

Como diz o dr. Drauzio Varella: “Se não quiser adoecer, não viva de aparências. Quem esconde a realidade, finge, faz pose, quer sempre dar a impressão de estar bem, quer mostrar-se perfeito, bonzinho, etc, está acumulando toneladas de peso… uma estátua de bronze, mas com pés de barro. Nada pior para a saúde que viver de aparências e fachadas. São pessoas com muito verniz e pouca raiz. Seu destino é a farmácia, o hospital, a dor”

Então francamente, cá entre nós, vamos tirar esse peso dos ombros, da vida.

Você só deve satisfações a quem realmente importa. Aprenda a não expôr suas dores e delícias de graça nem espere entendimento ou retribuição de onde não há.

Seja leve, diminua as poses e agrade sua alma. Selecione seus afetos e não acumule dívidas com seu interior.

Esqueça algumas pessoas. Nem todo mundo merece destaque na sua vida e manter todos por perto despende energia demais.

Não perca tempo tentando entender. Algumas coisas simplesmente não têm explicação.

Ore por aqueles que ama, entregue seus caminhos a Deus e espere que Ele tome conta. Você não tem controle sobre tudo.

E acima de tudo, se vale algum conselho, cuide do que é seu.

5 filmes para entender a verdade sobre a ditadura militar

5 filmes para entender a verdade sobre a ditadura militar

Em momentos de crise, é sempre bom retornar ao passado e tentar aprender com os erros que cometemos. Essa pequena lista de filmes ajuda a entender um pouco mais o momento negro que vivemos durante a ditadura civil-militar.

Os filmes listados vão além do óbvio e mostram a importância fundamental do apoio do empresariado brasileiro para a sustentação do Golpe, bem como a alienação da maior parte da população da época, a qual, inclusive, durante os tempos áureos do regime – leia-se milagre econômico -, avaliava o “governo” militar como maravilhoso. Pena que aqueles que lutaram pela democracia, como o Frei Tito de Alencar, não puderam dizer o mesmo.

O ano em que meus pais saíram de férias (2006) “Mesmo sem querer nem entender direito, acabei virando uma coisa chamada exilado. Acho que exilado quer dizer: ter um pai atrasado, mas tão atrasado, que nunca mais volta pra casa!”

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Dirigido por Cao Hamburger, criador do Castelo Rá-Tim-Bum, o filme se passa no ano de 1970 e conta a história de Mauro (Michel Joelsas), um garoto mineiro de 12 anos que adora futebol. O garoto se vê obrigado a mudar para São Paulo e morar com seu avô paterno, quando seus pais, perseguidos pela ditadura, precisam fugir. No entanto, Mauro pensa que eles estão saindo de férias e, por isso, vai ficar durante esse tempo com seu avô. Acostumado a trabalhar para o público infantil, Cao consegue trazer um olhar lúdico à obra, demonstrando, sob o olhar infantil, o momento turbulento por que passava o Brasil. Aproveitando-se, ainda, da Copa de 1970 e da euforia com a seleção brasileira, ele demonstra as ambiguidades da época, em que alegria se mistura com violência, tristeza e dor, o que se torna ainda mais complexo e mais triste quando observado por uma criança que não entende muito do que acontece ao seu redor.

Cidadão Boilesen (2009) – “Só existe uma democracia no Brasil, que é a democracia da tortura.”

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Documentário produzido e dirigido por Chaim Litewski, narra a história de Henning Albert Boilesen, um empresário dinamarquês naturalizado brasileiro, que dirigiu o grupo Ultra, da Ultragaz. O documentário demonstra a ligação do empresariado brasileiro com a ditadura civil-militar, financiando esta pelo “medo” da implantação de um sistema socialista no Brasil. A obra deixa claro que a ditadura não se realizaria sem a participação do empresariado, demonstrando a importância e a participação das grandes empresas nos anos de chumbo, no Brasil, quando, além de financiarem a implantação do golpe militar de 1964, também financiaram a formação da Operação Bandeirante (OBAN), que iniciou a fase mais perversa da ditadura, em que as práticas de tortura ganharam contornos inimagináveis, originando o que viria a ser o DOI-CODI. A produção de Litewski é uma obra-prima do cinema nacional, muito bem construída e estruturada, sendo imprescindível para quem quer entender um pouco mais sobre a ditadura e descobrir a própria participação da sociedade civil na implantação desta.

Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor (2012) – “O Médici também era uma pessoa muito popular, é preciso lembrar isso. Ele presidiu o Brasil num momento de grande repressão pra memória da esquerda. mas para memórias das pessoas comuns, que estavam vivendo o milagre econômico, com crédito para comprar geladeiras, fogões e carros, o governo do Médici era ótimo.”

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Documentário dirigido pelo historiador e jornalista Lúcio de Castro, a obra revela a ligação do futebol com a ditadura civil-militar no Brasil e em outros países sul-americanos. O filme demonstra a influência da mídia e do jogo mercadológico para a manutenção da ditadura militar através, sobretudo, da euforia criada ao redor do futebol e do milagre econômico, demonstrando, desde aquela época, o poder da economia e do jogo ilusório da mídia sobre as pessoas, para a manutenção da ordem estabelecida, que era, no caso, o regime militar. Lúcio de Castro constrói uma ótima análise, que evidencia as barbáries da ditadura, perseguições, como a de João Saldanha, e a influência das marcas globais, dos EUA e da mídia na construção e manutenção dos regimes ditatoriais sul-americanos, estruturados na Operação Condor. Essencial, o documentário é mais um que demonstra os elementos utilizados para a manutenção da ditadura, que iam muito além da força física. Além disso, ainda conta com a participação do grande Eduardo Galeano.

Batismo de Sangue (2007) – “Nos dias primaveris, colherei flores para meu jardim da saudade. Assim, externarei a lembrança de um passado sombrio.”

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O filme é baseado no livro homônimo do Frei Betto, vencedor do prêmio Jabuti. O filme do diretor Helvécio Ratton conta a história dos freis Tito (Caio Blat), Betto (Daniel de Oliveira), Oswaldo (Ângelo Antônio), Fernando (Léo Quintão) e Ivo (Odilon Esteves) que, movidos pelos ideais cristãos, passam a apoiar o grupo guerrilheiro Ação Libertadora Nacional, comandado por Carlos Marighella (Marku Ribas). Com o apoio, eles passam a ser vigiados pelos ditadores e acabam sendo presos e torturados.

A obra demonstra, de forma bem realista, a crueldade que cercava as sessões de torturas e a injustiça que pairava sob o estado de exceção no Brasil. O longa ainda conta com a figura de Cássio Gabus Mendes, interpretando o assassino Sérgio Fleury, delegado do DOPS, além de mostrar a intensificação da violência com a formação do DOI-CODI. Muito bem construído e com ótimas atuações, sobretudo, de Caio Blat, o filme expõe as feridas da Ditadura e como a violência levava a transtornos psicológicos terríveis naqueles que sofriam por lutarem pelo país.

Zuzu Angel (2006) – “Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho”.

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O filme conta a história de Zuzu Angel, uma famosa estilista brasileira reconhecida internacionalmente e totalmente alheia aos horrores da ditadura e seu filho Stuart (Daniel de Oliveira), que se envolve com as forças contrárias à ditadura. Com o envolvimento, Stuart é preso, torturado e morto pelos militares, o que leva sua mãe a iniciar uma difícil batalha, que consiste em enterrar o corpo do próprio filho. Ao mesmo tempo, vai tomando consciência das atrocidades cometidas e politizando-se contra o regime militar. O longa de Sergio Rezende transmite a dualidade que existia entre aqueles que lutavam contra a ditadura e os que viviam sem se importar com a barbárie do governo militar, demonstrando que, durante algum tempo, a ditadura gozou do apoio popular. Além disso, a obra mostra outro ponto importante da ditadura: o sofrimento das famílias que tinham seus entes queridos torturados e mortos, sem que pudessem nem mesmo ter o direito de enterrá-los e de chorar a sua dor.

Ensaio sobre a amizade – Lya Luft

Ensaio sobre a amizade – Lya Luft

“Que qualidade primeira a gente deve esperar de alguém com quem pretende um relacionamento? Perguntou-me o jovem jornalista, e lhe respondi: aquelas que se esperaria do melhor amigo. O resto, é claro, seriam os ingredientes da paixão, que vão além da amizade. Mas a base estaria ali: na confiança, na alegria de estar junto, no respeito, na admiração. Na tranqüilidade. Em não poder imaginar a vida sem aquela pessoa. Em algo além de todos os nossos limites e desastres.

Talvez seja um bom critério. Não digo de escolha, pois amor é instinto e intuição, mas uma dessas opções mais profundas, arcaicas, que a gente faz até sem saber, para ser feliz ou para se destruir. Eu não quereria como parceiro de vida quem não pudesse querer como amigo. E amigos fazem parte de meus alicerces emocionais: são um dos ganhos que a passagem do tempo me concedeu. Falo daquela pessoa para quem posso telefonar, não importa onde ela esteja nem a hora do dia ou da madrugada, e dizer: ‘Estou mal, preciso de você’. E ele ou ela estará comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns quarteirões a pé, ou simplesmente ficando ao telefone o tempo necessário para que eu me recupere, me reencontre, me reaprume, não me mate, seja lá o que for.

Mais reservada do que expansiva num primeiro momento, mais para tímida, tive sempre muitos conhecidos e poucas, mas reais, amizades de verdade, dessas que formam, com a família, o chão sobre o qual a gente sabe que pode caminhar. Sem elas, eu provavelmente nem estaria aqui. Falo daquelas amizades para as quais eu sou apenas eu, uma pessoa com manias e brincadeiras, eventuais tristezas, erros e acertos, os anos de chumbo e uma generosa parte de ganhos nesta vida. Para eles não sou escritora, muito menos conhecida de público algum: sou gente.

A amizade é um meio-amor, sem algumas das vantagens dele mas sem o ônus do ciúme – o que é, cá entre nós, uma bela vantagem. Ser amigo é rir junto, é dar o ombro para chorar, é poder criticar (com carinho, por favor), é poder apresentar namorado ou namorada, é poder aparecer de chinelo de dedo ou roupão, é poder até brigar e voltar um minuto depois, sem ter de dar explicação nenhuma. Amiga é aquela a quem se pode ligar quando a gente está com febre e não quer sair para pegar as crianças na chuva: a amiga vai, e pega junto com as dela ou até mesmo se nem tem criança naquele colégio.

Amigo é aquele a quem a gente recorre quando se angustia demais, e ele chega confortando, chamando de “minha gatona” mesmo que a gente esteja um trapo. Amigo, amiga, é um dom incrível, isso eu soube desde cedo, e não viveria sem eles. Conheci uma senhora que se vangloriava de não precisar de amigos: ‘Tenho meu marido e meus filhos, e isso me basta’. O marido morreu, os filhos seguiram sua vida, e ela ficou num deserto sem oásis, injuriada como se o destino tivesse lhe pregado uma peça. Mais de uma vez se queixou, e nunca tive coragem de lhe dizer, àquela altura, que a vida é uma construção, também a vida afetiva. E que amigos não nascem do nada como frutos do acaso: são cultivados com… amizade. Sem esforço, sem adubos especiais, sem método nem aflição: crescendo como crescem as árvores e as crianças quando não lhes faltam nem luz nem espaço nem afeto.

Quando em certo período o destino havia aparentemente tirado de baixo de mim todos os tapetes e perdi o prumo, o rumo, o sentido de tudo, foram amigos, amigas, e meus filhos, jovens adultos já revelados amigos, que seguraram as pontas. E eram pontas ásperas aquelas. Agüentei, persisti, e continuei amando a vida, as pessoas e a mim mesma (como meu amado amigo Erico Verissimo, ‘eu me amo mas não me admiro’) o suficiente para não ficar amarga. Pois, além de acreditar no mistério de tudo o que nos acontece, eu tinha aqueles amigos. Com eles, sem grandes conversas nem palavras explícitas, aprendi solidariedade, simplicidade, honestidade, e carinho.

Nesta página, hoje, sem razão especial nem data marcada, estou homenageando aqueles, aquelas, que têm estado comigo seja como for, para o que der e vier, mesmo quando estou cansada, estou burra, estou irritada ou desatinada, pois às vezes eu sou tudo isso, ah!, sim. E o bom mesmo é que na amizade, se verdadeira, a gente não precisa se sacrificar nem compreender nem perdoar nem fazer malabarismos sexuais nem inventar desculpas nem esconder rugas ou tristezas. A gente pode simplesmente ser: que alívio, neste mundo complicado e desanimador, deslumbrante e terrível, fantástico e cansativo. Pois o verdadeiro amigo é confiável e estimulante, engraçado e grave, às vezes irritante; pode se afastar, mas sabemos que retorna; ele nos aguenta e nos chama, nos dá impulso e abrigo, e nos faz ser melhores: como o verdadeiro amor.”

Lya Luft

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