O silêncio é uma prece e faz bem rezar um pouquinho.

O silêncio é uma prece e faz bem rezar um pouquinho.

Pois em meio a esse barulho todo, esse debate infinito, esse falatório, esse tanto que dizer e essas coisas todas por ouvir, acontece da gente calar um instante.

É que tem hora em que falar e ouvir fazem mal. A gente sente que uma só palavra vai nos fazer explodir. Aí só o silêncio nos salva.

Ele vem voando como um anjo generoso e sutil nos acolher sob asas calmas. Então voltamos ao remanso que existia antes de nós. O silêncio da madrugada em que as crianças dormem, as plantas crescem, o pensamento repousa.

Tem dias em que toda gente só precisa ficar quieta em seu canto, dizer ao mundo: “não, hoje eu não quero sair. Vou ficar aqui dentro de mim mesmo”. Depois se deixar em franca quietude, esperando doer a dor, que doa, pode doer. E se alguém perguntar “por quê?”, a resposta será nenhuma.

É preciso fazer silêncio, respirar devagar, dormir e acordar tantas vezes quanto o corpo e a alma pedirem. Descansar os músculos na cama que nos abraça com nosso cheiro, como um carinho antigo em cada pedacinho de nós.

Que o silêncio venha nos varrer por dentro, tal qual a casa de móveis revirados em manhã de faxina, as vassouras arrastando de cantos escondidos a sujeira velha, cacos de vidro, pedaços de linha suja, botões perdidos de camisas desaparecidas, asas de inseto, unhas cortadas, emaranhados de cabelo vencidos por tanta chateação, lã de cobertor, pele morta e poeira velha arrancada de tanta sombra em nosso aqui dentro.

Ahh… silêncio, escancara essas janelas pesadas, inunda de sol nosso peito trancado de angústias gritadas em falatório inútil. Esfrega com escova grossa e sabão concentrado nossas paredes encardidas de tanta craca acumulada. Enxágua com esguicho a gordura das reclamações inúteis, o pó rasteiro das picuinhas. Limpa a imundície das falas inúteis, ofensas, injúrias, berros, misérias, invejas. Liberta as palavras de todo mau uso, mergulha suas sílabas em baldes de álcool, lava seus vãos e desvãos e reentrâncias. Deixa-as de novo frescas, livres do burburinho tacanho. Puras à espera de outros usos além do ataque, da intriga e da empáfia.

Como o corpo que jejua, toda alma precisa do silêncio que a liberte de vozes indigestas, desaforos gratuitos, elogios falsos, comentários mesquinhos.

Só o silêncio nos livra de tanto veneno. E quando estivermos restabelecidos, uma enfermeira de olhos risonhos nos encontrará silenciosa, o indicador sobre os lábios, e nos dirá palavra nenhuma, em seu aviso de que a saúde é franca, a paciência é um remédio e o silêncio a tudo refaz. Porque tem hora em que, depois de tanta falação, é preciso silêncio. Não há mais o que dizer. Tem hora em que só a mudez nos fala, nos cura e nos ensina de novo a estar em paz.

Imagem de capa: Aleshyn_Andrei/shutterstock

Sim, sua filha pode ser princesa se ela quiser

Sim, sua filha pode ser princesa se ela quiser

Por Josie Conti e Marcela Alice Bianco

Incomodadas pelo excesso de textos que colocam as princesas como as vilãs do imaginário e do futuro das meninas, gostaríamos de trazer um contraponto e defender o direito que as meninas têm de serem princesas dentro do repertório das suas fantasias infantis.

Durante toda a formação da personalidade da criança é fundamental que ela tenha acesso a um mundo infinito de personagens e papeis. Enquanto ela conhece, identifica-se e vivencia em sua fantasia esses diferentes papeis, ela encontra maneiras de entender o mundo e experimentar a diversidade de possibilidades que ele oferece.

Fantasiar e imaginar faz parte do funcionamento da psique e tem efeito regulador para o desenvolvimento da personalidade. Na verdade, quando falamos dos contos de fadas e dos mitos não devemos entende-los apenas do ponto de vista pessoal ou como preditores de modelos de comportamento a ser ou não seguidos. Precisamos compreender que eles são construções simbólicas que falam do desenvolvimento da consciência e por isso seus personagens são geralmente esquemáticos e possuem relação com uma época e cultura específica.

Nos contos de fadas tudo é muito exacerbado. Os bons tendem a ser sempre “bons”, os maus, sempre “maus”. Se pensarmos no início das formações de conceitos das crianças fica mais fácil entender que as categorizações sejam mais extremas e antagônicas.

Cinderela, por exemplo, fala da passagem de um modo de consciência imaturo e passivo para um modo mais atuante e ativo. Ela recebe um modelo da mãe, o qual cumpre invariavelmente apesar de todos os prejuízos que este incide sobre si, até que o desejo a move e a faz, mesmo que ainda precise de ajuda, contrapor-se àquilo que era imposto. Somente sua atitude parcialmente ativa a tira do borralho e a coloca numa posição vantajosa. Dentro do repertório da criança, a vivencia da Cinderela pode entrar justamente nesta fase em que ela começa a transição de uma postura dependente dos pais para uma de autonomia e firmação de seus desejos.

Além disso, quando pensamos na passagem do tempo e as mudanças na sociedade, temos visto o surgimento de outras princesas com comportamentos bastante diversos do tipo frágil, passiva e dependente. Temos Frozen, Mulan, Valente, Fiona, etc. Todas elas trazem outros aspectos do feminino atualizados para os conflitos e necessidades mais adequados à nossa época e especialmente ao lugar que a mulher ocupa na sociedade atual.

Assim, a princesa corresponde simbolicamente ao nascimento da heroína na menina e surge como auxiliadora imaginária no enfrentamento das exigências que a saída gradual do mundo infantil exige.

É importante que a criança tenha seu momento princesa. Da mesma forma é importante que seja bruxa, rainha má, guerreira ou até Perna Longa. A fantasia só existe porque para ela não existem limites e nem censuras.

E se, até hoje, as princesas foram tão importantes no imaginário das crianças não é só porque a Disney fez um bom trabalho de marketing. Nunca podemos nos esquecer que todo marketing é feito também avaliando a aceitação pública e, se existe aceitação, é porque dentro das pessoas esse papel tem sua função necessária.

Logo, talvez a questão mais importante de uma criança que passa por sua fase princesa seja que ela o faça dentro da fase certa.  O problema acontece quando, por algum motivo, papeis estereotipados ficam fixados até a idade adulta mantendo as mesmas características extremadas. É nessa fase que a fantasia pode ser tornar prejudicial se os componentes de realidade não tiverem sido suficientemente assimilados para mostrar que nem todo mundo é só bom ou só mau, de que para ser feliz não é necessário um príncipe (até porque ele não existe) e que a princesa perfeita dos contos de fadas poderia ser até chata e entediante. Neste caso, de heroína, a menina-mulher pode passar a ser alguém que perdeu a espontaneidade, a criatividade e a autonomia tornando-se o espelho do desejo alheio.

Portanto, não force ou estimule a sua filha, mas deixe ela ser uma princesa se essa atitude surgir espontaneamente. Inclusive você irá perceber que as personagens que lhe atraem se modificam com a idade, mostrando que ela precisa de diferentes papeis para abarcar a complexidade da construção da sua personalidade.

Deixar uma menina ser princesa nesses moldes nada tem a ver com educação ou com a imposição de um modelo de comportamento adequado. Não se relaciona com frases como “feche as pernas“, “se comporte como uma princesa” ou “um dia você vai encontrar seu príncipe encantado“. Isso não tem a ver com o fantasiar natural da infância, mas sim com o desejo projetivo da mãe sobre a filha dentro dos seus próprios conceitos de mundo e de comportamento social.

Neste caso, cabe à própria mãe se questionar sobre por que sua filha precisa ser uma princesa e o que isto tem a ver com o modelo de feminino que regeu sua personalidade até este ponto da sua vida. Pode ser que essa mãe também tenha uma heroína aprisionada, como a mãe da personagem Valente que precisou torna-se uma ursa para liberar seu lado instintivo e assim reconciliar-se com a própria filha que desejava seguir um caminho espontâneo e diferente.

No final, toda história encena uma trama que fala de nós, do nosso mundo e dos caminhos da ampliação da consciência. Quando sabemos transpor o concreto para alcançar o simbolismo saímos de posições extremadas e impassíveis para outras mais equilibradas e compreensivas. Façamos isso com as princesas e com suas mães!

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Josie Conti

Psicóloga, blogueira e empresária. Abandonou o serviço público para manter seus valores pessoais e hoje trabalha prioritariamente na internet com a administração de sites e redes sociais além da criação e divulgação de conteúdos. É idealizadora e responsável por toda linha editoral do CONTI outra.

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Marcela Alice Bianco

Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana formada pela UFSCar. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Sedes Sapientiae e em Gerontologia pelo HSPE. CRP: 06/77338-

Para saber mais sobre Marcela Bianco clique em: http://www.psiqueemequilibrio.com.br/

Imagem de capa: Kiselev Andrey Valerevich/shutterstock

Certezas

Certezas
 

 

A terapia do foda-se

A terapia do foda-se

Mais dia, menos dia, teremos que ser aquela pessoa que diz adeus e que briga com quem ultrapassou os limites do bom senso; teremos que nos negar a fazer um favor e que alertar para o ridículo de atitudes alheias; seremos quem não se compadece com as lágrimas do amigo, bem como quem cobra do parceiro tudo o que ele deixou de fazer. Isso nos liberta e nos garante sobrevivência.

Viver em sociedade requer um exercício contínuo de tolerância, caso não queiramos nos desgastar inutilmente. Estamos cercados de pessoas que pensam diferente de nós, que agem de maneira inapropriada, que falam sem pensar e que não medem esforços para ofender gratuitamente quem estiver no caminho. Tentar manter a calma e ser gentil será o maior bem que faremos a nós mesmos, porém, em certos momentos, teremos que nos impor às custas da contrariedade alheia.

Não nos faz bem machucar as pessoas, ainda mais quando explodimos exclusivamente por conta de problemas nossos e não pela situação em si. É preciso saber separar o que é nosso sozinho do que é nosso junto com alguém, ou estaremos fadados a descontar nossas agruras em quem não tem nada a ver com o que se passa dentro de nós. Estender nossas misérias emocionais a quem está ao nosso lado e não merece nossas indelicadezas é uma atitude covarde e que denota tão somente imaturidade e desequilíbrio.

No entanto, muito do que nos fere e nos desestabiliza emocionalmente é consequência da forma como o outro vem lidando conosco, uma vez que existem pessoas que contribuem deveras às escuridões em que mergulhamos vez ou outra. No entanto, como se diz, as pessoas agem conosco da maneira que nós mesmos permitimos, ou seja, muito do que o outro provoca de negativo em nossas vidas tem a nossa anuência, mesmo que não declarada.

Por essa razão, teremos que deixar bem claros os limites até os quais o outro poderá avançar, para que não sejamos atropelados pela tirania, pela maldade e pelas más intenções alheias. Da mesma forma que teremos encontros mágicos e especiais, sempre encontraremos quem nos tentará diminuir, quem desejará se aproveitar de nós, quem necessitará encostar as próprias fraquezas em nossa jornada. Caso não consigamos nos impor como pessoa, caso não nos fortaleçamos com a firmeza de nossas convicções e de nossa dignidade, acabaremos nos perdendo de nós mesmos.

Portanto, em determinados momentos de nossas vidas, teremos que ser aquela pessoa que diz adeus e que briga com quem ultrapassou os limites do bom senso; teremos que nos negar a fazer um favor e que alertar para o ridículo de atitudes alheias; seremos quem não se compadece com as lágrimas do amigo, bem como quem cobra do parceiro tudo o que ele deixou de fazer.  Porque ser maldoso o tempo todo é imperdoável, mas optar por ser antipático na hora certa é libertador e nos garantirá sobreviver e seguir em paz.

Sobre a importância de confiar

Sobre a importância de confiar
Certo dia, na adolescência, me juntei com algumas amigas e unidas decidimos fechar os olhos a fim de buscar nossa calma interior e assim ficamos por um longo tempo tentando não pensar em nada.

E para minha surpresa, depois do nada, do silêncio que me tomou a mente, um pensamento manso se anunciou. Nele alguém me trazia um pequeno vaso com uma planta e dizia que aquele vaso era para mim. Que a planta deveria ser cuidada e nutrida por mim.

No mesmo instante em que o pensamento me tocou compreendi a sua grandeza. Ele tinha suas raízes fincadas no confiar.

Nem sempre temos conosco a noção de como é importante confiar em nós e nos que amamos. Naquele momento não me achava apta para cuidar de coisa alguma, mas houve um pensamento que disse o contrário. De forma silenciosa, ele me fez compreender que a minha capacidade se estendia para além de mim e de meus problemas naquele momento.

Outro dia, vendo um filme antigo na tv, me lembrei desse pensamento. No filme a personagem principal recebia em sua loja um menino que junto da família realizava o sonho de conhecer alguns lugares, pois os médicos disseram que ele estava irremediavelmente doente.

Ao saber da condição do menino a dona da loja disse aos pais que ele podia ficar com o filhote de cachorro dela. A mãe interveio, sem demora, falando que ele não poderia cuidar do animal, pois tinha pouco tempo de vida. Nesse momento, a mulher insistiu dizendo que o menino certamente seria capaz de cuidar do cachorro. E ele foi.

Esse filme, assim como o pensamento do vaso de planta, me lembraram que existem muitas formas de dizer a nós e aos que amamos que confiamos na capacidade nossa e deles de superar e obter êxito em uma determinada situação.

O velhinho curvado que mora na rua de baixo e que leva pelas mãos o neto, também me conta o mesmo. Ao ser acreditado na velhice, ele se esquece do que dizem os médicos sobre suas costas e se curva feliz para guiar o neto pelas desniveladas calçadas do bairro.

O poder em crer enaltece nossas capacidades e nos diz que podemos transcender e efetivamente realizar.

O cão, a planta e a criança pequena podem ser vistos como a materialização de boas possibilidades. São sementes do bem.

No entanto, mesmo cientes dessas boas sementes, como agentes criadores dentro das possibilidades do confiar, é impossível negar que muitas vezes temos nas mãos a opção de dizer aos que nos cercam, através de atos que delegam, que eles são capazes, que eles podem muito mais do que imaginam, contudo nem sempre o fazemos.

Não só já fomos omissos no quesito acreditar em algum momento, como também já fomos vítimas de alguma descrença emancipada através de um “isso não vai dar certo” vindo de pessoas próximas. E, quando ouvimos uma frase como essa, antes de largarmos mão dos anseios, o melhor que temos a fazer é silenciar o mundo para ouvir aquele pensamento que em nós baixinho sussurra: “Eu acredito, você é capaz”.

Quando, em contraponto, a ideia do novo nos chegar pelos outros, sejam esses outros pais idosos, filhos jovens, amigos empreendedores ou colegas visionários, que sejamos nós os primeiros a dizer: “Eu acredito no seu êxito”.

Para salvar vidas, para salvar anseios, para salvar sonhos, não precisamos atravessar continentes. Para isso basta apenas que nos deixemos habitar pela beleza que mora no confiar.

Acompanhe a autora no Facebook pela sua comunidade Vanelli Doratioto – Alcova Moderna.

Imagem de capa: Geoff Goldswain/shutterstock

Mães cansadas e a difícil “arte” de colocar limites

Mães cansadas e a difícil “arte” de colocar limites

Escrevo esse texto, primeiramente,num bloco de anotações, o inicio se dá as 00:28, numa noite ou quase dia de março.
Estou do lado da cama do meu filho de 3 anos que acordou e decidiu não dormir mais, quer transgredir regras, deseja assistir televisão ou dormir comigo.

Fiz todas as peripécias possíveis para que fosse mais fácil para ele e para mim também: conversei, expliquei e contei histórias, mas tudo isso de nada adianta se a criança não quer entender e testar os limites, pois isso faz parte do desenvolvimento infantil.

No dia seguinte, terei que acordar cedo para cumprir todos os deveres de profissional, cidadã, mãe e dona de casa e já estava muito cansada de ter cumprido tudo isso durante o dia que terminou.

Certamente, seria muito mais fácil colocá-lo em frente á TV ou levá-lo para dormir comigo, pois a essa hora já estaria dormindo, não haveria esse desgaste todo para ambos, mas, lembrei que se eu esmorecesse, possivelmente, no dia seguinte essa cena se repetiria e depois no outro dia e assim por diante.

Meu filho não parava de chorar e soluçar, então, decidi sentar no chão ao lado de sua cama e escrever, já que não havia mais a possibilidade de qualquer diálogo que o convencesse.Sei que ele está numa fase de testar o poder dos seus desejos e eu como mãe, não posso permitir que ele acredite que todas as suas vontades serão satisfeitas como e na hora que ele desejar, pois o mundo lhe ensinará ao contrário.

Continua chorando e devido ao meu cansaço, quase me convenço que não há nada de mal assistir um desenho animado se ele perdeu o sono depois da meia-noite.
Entretanto, não posso permitir que ele acredite que é o seu horário que rege as pessoas, afinal terá compromissos e terá de ser pontual.

E mesmo cansada e ansiosa por descansar para cumprir a jornada do dia seguinte, permaneci sentada no chão e ao lado de sua cama, refletindo e escrevendo esse pequeno texto.
Ele adormeceu e apesar do embate desgastante, sinto-me com o dever cumprido.

Olho para ele e parece que dorme em paz e sinto-me tranquila, pois em algum momento e com a minha ajuda, entenderá que terá que se adaptar ás regras do mundo, será necessário cumprir horários, respeitar as pessoas e não ultrapassar os limites.

Verifico o relógio e marca 1:14 horas, em menos de uma hora e com muito esforço, termina o dia de uma mãe cansada, assim como todas as outras, mas com a sensação de dever cumprido.
E amanhã começa tudo de novo, certamente haverá outros embates, outras birras, mas haverá também, apesar do cansaço, uma mãe que esforça-separa ensinar o que é necessário para que ele torne-se um adulto preparado para enfrentar as exigências do mundo!

Imagem de capa: Stenko Vlad/shutterstock

Borderline: a vida à beira de um vulcão

Borderline: a vida à beira de um vulcão

A doença psíquica não é diferente das outras doenças. Ela é, apenas mais cruel, porque é invisível. Não há sinais físicos correlatos para quem sofre um transtorno de personalidade; não há febre; não há manchas espontâneas na pele; não há inchaços; nada que se possa ver num exame de raio x, ou mesmo numa sofisticada ressonância magnética. A doença psíquica é íntima apenas de quem convive com ela. E, mesmo assim, pode ser uma íntima desconhecida; dada sua natureza volátil e instável. Os transtornos de personalidade não têm nenhuma lógica que os possa explicar. E, aqueles que sofrem com essas doenças, ainda têm que lidar com um inimigo ainda mais implacável e cruel: o preconceito!

O Transtorno de Personalidade Borderline é caracterizado por um comportamento padrão regido por instabilidade nas relações interpessoais; autoimagem distorcida; dependência afetiva e excessiva impulsividade. Essa combinação explosiva mantém a pessoa numa condição mental perturbada, posto que ela pode ser acometida pelos sintomas de forma inesperada e violenta, transformando sua vida numa experiência caótica, intensa e dolorosa.

É na fase inicial da vida adulta que se observa maior ocorrência no surgimento do TPB. A denominação Transtorno de Personalidade Borderline foi usado pela primeira vez em 1884 e a partir disso, seu diagnóstico e tratamento passaram por várias modificações no decorrer dos anos. No início, enquadravam-se no termo pacientes cujo quadro oscilava entre a sanidade e a loucura, entre a neurose e a psicose; em função disso usou-se o termo “borderline”. O diagnóstico aparecia relacionado a sintomas neuróticos graves. A precisão no diagnóstico começou a se desenhar na década de 1980; antes disso, a maioria dos médicos tinha a crença de que a personalidade era algo definitivo, imutável; e, portanto não poderia ser objeto de observação e estudo para determinar qualquer tipo de doença.

São várias as causas envolvidas na instalação de um quadro de Transtorno de Personalidade Borderline: predisposição genética; experiências tráumáticas na infância ou adolescência; abuso; negligência; e, até fatores ambientais e sociais (guerras; acidentes causados por fenômenos naturais). É prevalente a ocorrência de TPB quando há parentes de 1º grau com esse transtorno. Famílias instáveis, formada por pais agressivos ou envolvidos em relações muito conflituosas e violentas são outro fator de desencadeamento de TPB. Crianças submetidas a uma educação excessivamente autoritária, com exigência completa de submissão e obediência, também podem desenvolver o transtorno, pois têm seu desenvolvimento cognitivo e emocional deformado por dúvidas profundas acerca de suas capacidades e excessivo sentimento de culpa e vergonha por seus fracassos, por mais naturais e típicos que sejam. No entanto, embora seja bem menos frequente, observa-se a ocorrência deste transtorno em indivíduos que não se enquadram em nenhum dos critérios previstos.

Aqueles que são vítimas de Transtorno de Personalidade Borderline vivem num sofrimento profundo. Empenham esforços desumanos na tentativa de evitar situações de abandono, quer elas sejam reais ou imaginárias. Repetem padrões de relacionamentos pautados pela alternância de extremos: ou idealizam demais o objeto de seu afeto, ou o desvalorizam a ponto de humilhar e romper vínculos definitivamente. Lutam com uma dualidade acerca da percepção que têm de si mesmos: ou se acham “o máximo”, ou se sentem “um lixo”. Submergem em comportamentos impulsivos ou obsessivos que podem variar de gastos excessivos; a sexo irresponsável; abuso de substâncias químicas; compulsão alimentar ou desejo de viver em risco permanente. São acometidos de forma constante por sentimento de menos valia, sentem-se vazios e entediados. Irritam-se facilmente, sendo protagonistas de explosões desproporcionais de raiva que duram algumas horas, mas depois deixam o indivíduo destruído diante de situações muitas vezes irremediáveis e que ele não tem como consertar. Não raras vezes, o portador de TPB mutila-se fisicamente e chega a tentar contra a própria vida.

O caos que envolve a vida do portador de Transtorno de Personalidade Borderline, atinge de forma inexorável aqueles que convivem com ele, sobretudo seus familiares. Muitas vezes, a família e os amigos desistem do portador de TPB, em função da dificuldade em lidar com suas intempestivas oscilações de comportamento. Entretanto, é importante salientar que os sintomas e próprio transtorno são tratáveis por meio de psicoterapia, acompanhamento médico-psiquiátrico e, quando necessário, uso de medicamentos sob prescrição, avaliação e orientação médica, para tratar condições periféricas tais como depressão, insônia, ansiedade, compulsão ou irritabilidade, por exemplo.

O prognóstico é de esperança e possibilidade de uma vida plena, organizada e com qualidade, desde que o paciente receba e persista no conjunto indicado de tratamentos e conte com um anteparo emocional, formado por uma rede afetiva de pessoas que se disponham a enfrentar cojuntamente os inúmeros desafios que os transtornos de personalidades infringem.

O fato é que aquele que vive às voltas com esse alucinante estado emocional em carne viva, sofre. Além das inúmeras contingências cruéis da doença, sofre com as catastróficas experiências amorosas nas quais se envolve; sofre com a falta de capacidade (ainda que temporária) de se comprometer com as mais simples tarefas do dia-a-dia; sofre por perder empregos, por não conseguir terminar o que começa, por não ser possível manter a concentração; sofre porque ser diferente é uma afronta que o outro não tolera porque se acha imune de qualquer tragédia dessas; sofre quando o outro à sua frente trata sua condição mental (grave) como algo imaginário ou um comportamento “para chamar a atenção”.

Assim, caso nos caiba a oportunidade de conviver com um de nós que esteja sendo tragado pelas agruras de uma doença psíquica, procuremos enxergar além da nossa tosca mania de rotular o outro com definições reducionistas. Façamos um pequeno esforço para compreender que nunca seremos capazes de mensurar de fato o quanto é dolorosa a luta de alguém cujo opositor não tem cara, nem coração. Tratemos de nos curar dessa doença epidêmica que é o preconceito. Assim, quem sabe, em vez de torcer o nariz e virar as costas, não sejamos capazes de acolher entre os braços e oferecer um tiquinho da nossa valiosa atenção!

 

Afronta!, novo programa do Futura, dá voz à juventude negra brasileira

Afronta!, novo programa do Futura, dá voz à juventude negra brasileira

Série estreia na noite de 20 de novembro e traz nomes como o da cool hunter e blogueira Loo Nascimento, do rapper Rincon Sapiência, da atriz e dramaturga Grace Passô e da bailarina Ingrid Silva. Temas como o movimento estético e cultural Afrofuturismo estarão em evidência

No dia 20 de novembro, às 21h45, o Canal Futura estreia sua nova série “Afronta!”, que dá voz à potente juventude negra brasileira contemporânea. Dirigido pela cineasta negra Juliana Vicente, o programa narra trajetórias e oportunidades geradoras da constituição do negro como indivíduo, expressadas pelos trabalhos de personagens bastante representativos. A série, que é composta por 26 episódios de 15 minutos cada, foi gravada em diversos pontos do país, como Bahia, Pernambuco, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro etc.

Ao longo do programa, serão discutidos temas como o movimento estético e filosófico Afrofuturismo, os encontros afrodiaspóricos e a criação desta rede como geradora de autonomia e potência. Entre os convidados estão Loo Nascimento, cool hunter e blogueira, Rincon Sapiência, cantor de Rap, Grace Passô, atriz e dramaturga premiada, e Ingrid Silva, bailarina do Dance Theater of Harlem, em Nova Iorque. “Os jovens negros brasileiros, em sua pluralidade, nos apresentam sua força econômica, cultural e social. A novidade transformadora de caminhos que ainda não foram devidamente percebidos pela sociedade brasileira no seu todo. O que queremos reforçar com essa série é a potência, a energia vital, o poder transformador que trazem em si e tudo o que eles têm a nos ensinar”, explica João Alegria, gerente geral do Canal Futura. (conteúdo divulgação)

AFRONTA!

Estreia: 20 de novembro, segunda-feira, às 21h45

Duração: 15 minutos

Assista também em www.futuraplay.org

Escolha fazer-se bem

Escolha fazer-se bem

Título Original: Caminhos

Ontem, a lição de casa do meu filho trazia um desafio. “Peça para seus pais lhe contarem uma escolha que tenham feito, e como isso afetou a vida deles”. Deixei a missão por conta do meu marido. Ele tem uma história bonita, de força de vontade e superação, que definiu seu destino a partir de uma escolha, inicialmente feita por seu pai, mas acatada e vivenciada por ele.

No trabalho que entregou hoje na escola, havia duas imagens. Numa, o desenho de um menino com uma enxada na mão; na outra, um médico de jaleco branco e maleta em punho.

Porém, muito além de uma escolha meramente profissional, a decisão de deixar o trabalho na lavoura e ingressar na faculdade de medicina foi uma guinada na vida do menino que até os dezessete anos não conhecia luz elétrica, vivendo num sítio onde a ocupação maior era ajudar o pai com a enxada, perturbar a vida dos bichos e ir para a escola rural, onde várias turmas, em diferentes estágios de aprendizado, tinham aulas na mesma sala. Não havia água encanada, automóvel, muito menos tv ou geladeira. Ao escolher a faculdade, uma nova versão foi escrita. E percorrer esse caminho pode ter sido tudo, menos simples.

Enquanto orientava meu menino, me veio à lembrança trechos de Eliane Brum, em seu mais recente livro, “Meus desacontecimentos”. Logo no comecinho ela questiona, indagando ‘como cada um inventa uma vida. Como cada um cria sentido para os dias, quase nu e com tão pouco. Como cada um se arranca do silêncio para virar narrativa. Como cada um habita-se’.

Por enquanto, meu menino só pode entender acerca de escolhas palpáveis _ coleção de figurinhas da Copa ou cartas pokémon, matinê no cinema ou festa do amiguinho, crocs ou tênis, pijama curto ou longo, ‘o que vou ser quando crescer’, que livro vamos ler antes de dormir. Com o amadurecimento, virão questões mais relevantes, entroncamentos no meio da estrada que fatalmente lhe desafiarão a dar uma resposta que possivelmente conduzirá seu destino.

Nesses momentos, o controle estará em suas mãos. O trajeto escolhido determinará uma nova versão de si mesmo. Porém, muito além das direções que se distribuem pelo caminho, haverão outras questões, não tão óbvias, mas ainda mais perturbadoras e íntimas. Essas serão as mais difíceis. Porque a batalha será travada não somente entre profissões, negócios, status e pessoas. Serão decisões mais profundas, que fará diariamente, dentro de si mesmo, envolvendo a forma como deseja viver e responder àquilo que não pode controlar.

Todos os dias, meu filho, você terá que escolher de que forma irá habitar-se, para o bem ou para o mal. Porque a gente escolhe fazer-se muito mal também. E o pior é que nem se dá conta disso, acostumados que estamos em não nos enxergarmos ou ouvirmos no meio de tanto barulho que há lá fora. Então imaginamos que o que não vai bem é a rua, o fulano que não vai com a nossa cara, a esposa que ronca, o marido que não colabora… mas no fundo somos nós. Nós, que nos afastamos da verdade, e preferimos nos refugiar numa vida inventada que justifique nossas mazelas.

Assim, se posso dar-lhe um conselho, escolha fazer-se bem. É importante também que saiba escolher suas batalhas. Que não perca tempo com expectativas irreais, aquelas que não levam a lugar algum. Nem imagine que seu jeito de ser e viver é o certo para todos. Certamente é o certo para você, mas não julgue nem discrimine quem reconhecer outras formas de construir uma vida. Você descobrirá que nessa selva existem leões e cordeiros, bichos preguiça e guepardos, e não cabe a você querer que todos sejam leões, só porque você escolheu ser um. Depositamos muito da gente nos outros. E muito dos outros é depositado na gente. Desejamos que o outro seja como nós mesmos seríamos no lugar dele, mas quem sabe o que vai dentro do coração alheio?

Uma das lições mais difíceis de se aprender nessa jornada é a questão da aceitação. A gente traça um roteiro próprio, estabelece metas, acrescenta vontades, junta uma grande dose de sentimentos e espera que tudo corra conforme o combinado. Criamos expectativas em cima de pessoas tão diferentes de nós, querendo que elas sigam o script, ou que, pelo menos, obedeçam nosso combinado. Se somos tigres ferozes, nos indignamos com a serenidade dos coalas. Se temos a agilidade do beija flor, nos impacientamos com a lentidão dos caracóis. E de repente você percebe que está numa batalha que nem escolheu estar, tentando se defender de quem julga lhe conhecer melhor que você. Portanto, mesmo que discorde ou acredite conhecer aqueles que ama, entenda que jamais o saberá por completo, pois cada um carrega muito mais bagagem do que supomos desvendar.

Tenho escolhido muito também. Escrever e criar esse blog foi uma das boas escolhas que fiz, num momento difícil que um dia você vai entender. Também cansei de ser um rio turbulento, e essa escolha tem feito meus barcos de papel resistirem com mais leveza desde então.

Assim, trace seus caminhos com cuidado, sem se deixar influenciar pela linhagem de sua família _ essa coisa de sobrenome ou árvore genealógica não pode ser responsável por nosso destino. Não é preciso perpetuar as características, principalmente se não concordar com elas. O que vai dentro de você é resultado de uma equação complicada, que começou antes das primeiras palavras, e dar sentido a isso é responsabilidade sua e de mais ninguém.

Quanto a seu pai, a escolha não foi simplesmente entre ser médico ou caminhoneiro, como ele tanto queria. Suas maiores batalhas foram travadas do lado de dentro, tentando superar os próprios obstáculos_ como a timidez quase paralisante_ e a resolução de habitar-se com coragem, humildade e serenidade.

Finalmente lembre-se: a vida não é e.x.a.t.a.m.e.n.t.e. como a gente quer. E por mais que seja tentador ditar as regras, não temos controle sobre tudo. Então escolha somente fazer-se bem, principalmente quando tudo parecer errado, confuso ou ruim do lado de fora.
Mais importante que o enredo, o que vale é como você se portou dentro da história que contou.

Imagem de capa: Sjale/shutterstock

Sobre Peso

Sobre Peso

Não pese sua mão sobre meus dedos, não pese, por favor, seus pés sonolentos sobre os meus. Não pese sua coxa tesa sobre as minhas. Encoste em mim, mas não se deite. Dai-me ar, dai-me combustível para querer-te mais. Só não pese seus olhos sobre meu olhar, não sufoque meu beijo com sua fome. Beijo não se pede, minha querida, beijo se perde.

Eu sei que é difícil encontrar a medida, entre bem querer e querer tudo ou nada. Eu sei que é frágil a ladeira que incita para se chocar no outro como um carrinho infantil e sem freio. Há avisos por toda parte, sinalização por toda a via, mas você os evita, você ignora o que não lhe interessa. Mas no fundo, todos os avisos, todos os sinais, também sou eu.

Não vou carregar, não vou mais levar suas mágoas. Não pese seus braços sobre meus ombros, chamando-me de meu bem. Não pese seus sonhos com minhas medidas, meu passo já é largo na direção oposta aos teus. Não pese meus ouvidos com suas palavras de culpa, não pese minha solidão com seu incômodo em viver a sua. Toma-me por teu e no instante seguinte eu serei completamente outro. Como a mulher-gorila em metamorfose: a incrível Monga.

Eu sei que algum dia sua paciência vai acabar e você observará a casa em chamas do lado de fora. Eu rezo por isso. Queime tudo, meu amor. Quem sabe as chamas te iluminem também. Eu queria que você soubesse que havia amor por toda parte, afeto em todas as pausas, verdade em toda a leveza que te pedia e te oferecia.

Mas não é isso o que você quer. Você quer meu corpo sobre o seu como um peso de papel, meu afeto sob o seu como a sombra de uma nuvem. Se quer algo para chamar de seu, voilà. Mas não peça a ninguém para carregar teus pesos. O que você quer, minha querida, ninguém pode te dar. Eu tentei ser contigo, não teu. Agora nem isso mais é possível. Não pese na minha saída.

Imagem de capa: Antonio Guillem/shutterstock

Matryoshka

Matryoshka

Matryoshka, ou boneca russa, é um brinquedo tradicional da Rússia, constituído por uma série de bonecas que são colocadas umas dentro das outras, da maior (exterior) até a menor (a única que não é oca). Parece que o significado do brinquedo provém de uma lenda e pode significar fertilidade, cuidado e proteção.

Outro dia, porém, pensando no quanto a vida da gente é costurada e ajustada, cheia de bainhas, recortes e emendas, cheguei à conclusão que bom mesmo é ser a última bonequinha da Matryoshka, aquela menorzinha que encontramos ao final e que, significativamente, não é oca.
Porque evoluímos demais. Adquirimos hábitos civilizatórios, aprendemos a cumprir nossos deveres e adquirimos bons modos pra viver em sociedade. Mas também nos afastamos da matéria de que somos feitos, mais ou menos como se colocássemos bonecas em cima de bonecas e ao final acreditássemos ser a boneca maior, quando na verdade somos a menor.

Talvez a maior evolução que nosso cérebro tenha alcançado evolutivamente tenha sido essa capacidade de se adaptar e nos permitir sermos seres sociáveis. Aprendemos, desde muito cedo, quais hábitos são aceitáveis ou não. Mas ninguém nos explicou de que forma iríamos assimilar tanto “isso pode e isso não pode”. E daí que colocamos pra baixo do tapete coisas demais, que poderiam facilmente conviver bem à tona de nós mesmos sem causar prejuízo a ninguém… Varremos porque entendemos que aquilo poderia não ser tão agradável. E assim nos transformamos em Matryoshkas enormes, mas que no interior carregam um desenho original bem distante do que é visível aos olhos.

Vivendo em sociedade, aprendemos que é de bom tom ser sorridente, simpático, resignado, tranquilo, sensato, equilibrado e até obediente. Só que nem todo dia é assim, primaveril… Existem dias áridos, em que você acorda e não está a fim de seguir a cartilha, nem forçar um sorriso, e sinceramente, querendo que tudo se #¨*oda. Então você descobre que há maneiras mais saudáveis de conviver. E entende que essa história de “bonzinho” não passa de identificação _ identificação de um ego inseguro com o modelo de perfeição. Então você vai diminuindo de tamanho. Remove uma a uma as Matryoskas ocas que lhe deram essa identidade e descobre-se pequeno, mas inteiro.

Somos muitos. Assumimos papéis e interpretamos diferentes versões. Só que a identificação é muito perigosa. O perigo é acreditar que sou uma das bonecas ocas. E viver em função dessa identidade oca também _ o ego.

Não se trata de retirar máscaras. Nem acreditar que autenticidade é dizer na cara das pessoas as mais duras verdades. É, antes de tudo, viver com mais coerência e menos culpa. Descobrir, lá no fundo, o que lhe permite ser livre _ verdadeiramente, sem se levar a sério demais.

Faz parte do desejo de ser aceito renegar um pouco a si mesmo. Mas depois que a gente cresce e percebe que precisa ser mais leve, descobre que deu importância demais a regras sem sentido só em função do medo de não ser amado. E percebe que bom mesmo é ser verdadeiro, pois quando me aproximo de mim, sou mais feliz e consequentemente, fácil de conviver.

Quando renegamos a nós mesmos, é como se colocássemos bonequinhas em cima de bonequinhas, como a Matryoska, e disfarçássemos nossa essência com excesso de controle e julgamento. Quando nos aceitamos, estamos prontos para a mudança, e por mais paradoxal que isso pareça, a mudança não nos torna diferentes de quem somos e sim parecidos com quem realmente somos. E aqui não me refiro a jogar tudo pro alto, ser egoísta, negligente, promíscuo ou mau educado. Falo da busca daquilo que não faz parte do ego, nem da necessidade de agradar, mas que representa o que realmente sinto e penso. Quando conseguir chegar ao interior das bonequinhas ocas, a mudança estará completa, pois decido viver de acordo com minha verdade, e não assumindo papéis que distorcidamente acumulei durante os anos de minha vida em função de agradar, de ser perfeito, de ser aceito, de ser amado. Enfim descubro que posso ser amado pelo que sou, e não pelo que represento ser.

Na vida, a gente se ajusta como pode. E isso implica negar impulsos, necessidades, vontades. E como varremos tantos anseios, ou precisamos de tantos limites, nos incomodamos com quem se assume. Se assume imperfeito, incompleto, despreparado, descuidado, atrasado, inadequado… Isso incomoda, porque se somos tão controlados, como alguém pode não ser? Se sofro tanto pra trancar meus pecadinhos lá no fundo, como alguém pode escancará-los numa boa?

Por isso a liberdade é tão difícil de ser encontrada. Difícil porque está no fundo, camuflada por essa necessidade que temos de nos ajustar. Então desejamos, mas será que desejamos o que realmente queremos? Ou estamos tão identificados com a superfície que não sabemos mais o que no fundo queremos realmente? Sendo a liberdade a menor bonequinha da Matryoshka, a capacidade de percebê-la é um exercício difícil, que requer retirar as carapaças e identidades, descobrindo a própria verdade.
Você já parou pra pensar que aquilo que aparentemente está mais bem resolvido pra você pode ser o que lhe afeta mais? Ou que toda essa culpa que você frequentemente experimenta vem da dificuldade de ser coerente, de estar alinhado entre o adequado e o desejado? #Fica a dica, como dizem por aí… quem sabe um dia você possa perceber que a maior e mais vistosa boneca Matryoshka não lhe representa. Ao contrário, será removendo uma a uma das bonecas ocas que você encontrará a si mesmo, menor e mais compacto, mas acima de tudo, inteiro.

Imagem de capa: Amedeo Zullo/shutterstock

Relacionamento abusivo – um nome novo para algo antigo

Relacionamento abusivo – um nome novo para algo antigo

:: Relacionamento abusivo é um nome novo para algo antigo e traz luz a várias questões sociais intrínsecas onde há o excesso de poder pelo outro e de total controle – (ou descontrole) ::

Quando o assunto é “relacionamento abusivo” a primeira coisa que aparece na mente da grande maioria é a relação casal – mais comumente entre homem e mulher. Mas é importante lembrar que há histórias e características semelhantes da relação abusiva que atingem outros círculos de relacionamentos, como o familiar/parental e o profissional/empregatício.

A relação abusiva é aquela que atinge o psicológico da pessoa colocando-a num lugar de submissão e de perca do controle. O comportamento abusivo varia do verbal ao físico, chegando até mesmo ao sexual.

Numa relação parental e familiar é mais comum ocorrer este tipo de violência, já que os pais ou quem quer que seja o provedor do lar, carrega tacitamente esta autonomia de controle. Os pais são incumbidos da responsabilidade da educação que pode ser confundida e levada a uma relação abusiva, de total DEScontrole, refletindo no desenvolvimento daquele ser humano, resultando em sequelas psicológicas e emocionais. Não há educação por meios da agressão, repressão ou violência. Isso só resulta em revolta, desrespeito e mais violência.

A manipulação emocional, ou chantagem, é uma forma de violência e é perigosa, porque penetra mais fundo que uma agressão física. Não é fácil detectar uma pessoa que está sendo vítima desse tipo de comportamento, pois não são os fatores físicos que entregam as agressões, porém o abuso emocional fere enormemente uma pessoa e, em muitos casos, essa ferida pode ser permanente.

Relacionamento abusivo é um nome novo para algo antigo e traz luz a várias questões sociais intrínsecas onde há o excesso de poder pelo outro e de total controle – (ou descontrole).

É importante reconhecer um relacionamento abusivo, perceber se está vivendo este tipo de relação ou se alguém próximo vive essa realidade. É essencial buscar apoio familiar e de amigos aliado a uma ajuda psicológica.
O agressor também pode se dar conta de suas atitudes e buscar ajuda.

É comum os agressores fazerem as vítimas acreditarem que são culpadas pelos ataques, mas elas não têm culpa pelo comportamento agressivo e manipulador do seu agressor.

Falar sobre o assunto pode ajudar a despertar pessoas que vivem esta realidade e pensam que são atitudes normais para suas relações. Nenhuma relação que tenha medo, será uma relação saudável. Cuide-se.
Relacionamento abusivo existe e é preciso reconhecê-lo.
Busque ajuda quando necessário.

Imagem de capa: Roman Samborskyi/shutterstock

No dedo, uma aliança de ouro. Nos olhos, a ausência de brilho.

No dedo, uma aliança de ouro. Nos olhos, a ausência de brilho.

Ela esperava por um luto, afinal, é o que se espera após a ruptura de um relacionamento com um tempo de convivência considerável. Se o fim de um namoro já é capaz de nocautear as emoções de alguém, o que esperar, então, de um divórcio? Contudo, ela percebeu algo estranho ao se perceber ali, em seu quarto, sem aquela aliança. Ela procurou aquele vazio tão previsível que acompanha as pessoas nas separações. Ela se preparou para angustiar-se ao se perceber sozinha numa cama de casal, mas nada disso aconteceu. Pelo contrário, havia uma cama espaçosa em que ela podia mover-se sem restrições e sem censura. Havia ali, um quarto inteiro para uma mulher que viveu, por um longo período, as suas noites pelas metades.

Ela sentiu-se estranha, com um quê de culpa por estar tranquila, entretanto, continuou na expectativa de viver o luto, o vazio e a saudade. Ela chegou a pensar que estivesse vivendo algum mecanismo de fuga, uma espécie de máscara dos sentimentos e que, a qualquer hora, se depararia com aquele sentimento devastador que, no geral, assola os corações divorciados. Contudo, os dias foram passando, e ao contrário do que se esperava, ela estava cada dia mais serena, mais tranquila e mais apaixonada pela própria companhia. E a realidade veio à tona, a “ficha caiu”. Ela se deu conta de que vivia uma solidão a dois. Ela já era sozinha, ela não tinha uma companhia efetiva, tampouco afetiva. Ela apenas dividia a cama com um corpo masculino, que deitava ao seu lado, dormia e levantava todas as manhãs apressadamente, sem ao menos dar-lhe “bom dia”. Ah, não era um corpo qualquer que dividia a cama com ela, era um corpo que negava abraços e afagos a uma mulher ávida por carinho e toques.

Era uma companhia cujos ouvidos nunca estiveram interessados em ouvir os desabafos, as risadas, tampouco o choro dela. Honestamente, acho que, o que eles tinham de unidos eram apenas os nomes na certidão de casamento, o famoso casamento de “papel passado”. Entretanto, ela sentia falta de um casamento de almas, ela sonhou com isso desde a adolescência. Ela queria um casamento onde fosse possível aquela comunicação apenas pela troca de olhares. Ela desejava abraços que lhe envolvessem a alma, afinal, abraçar o corpo qualquer um consegue, né? Ela queria ser admirada além dos seus atributos físicos, ela queria alguém que olhasse a beleza que ela traz na essência mesmo naqueles dias em que ela foge do espelho.

Ela precisava de entrega sincera e acolhimento, senhas que abrem o cofre que guarda o tesouro da mulher que ela é. Contudo, nada disso ela viveu com ele. Tudo era muito regrado e cronometrado. Tudo vinha a conta gotas para a mulher que transbordava intensidade. Quando ela deu por si, estava diagnosticada com desnutrição afetiva, um quadro grave, quase irreversível. Uma espécie de falência de múltiplas expectativas sentimentais. Sorte a dela que o diagnóstico foi feito a tempo de ela buscar providências.

Ela optou por retirar o nome daquele documento que o cartório emitiu um dia, perante alguns convidados. Ela percebeu que o carimbo que ratificava aquela união no civil, não tinha poder de unir a alma deles. E cá pra nós, quem a conhece sabe o quanto ela é avessa à hipocrisia e superficialidade. Do que adiantava um status de casada e uma realidade de solidão e frustração? Questionava ela. Ela constatou que não fazia sentido ter o dedo anelar esquerdo ostentando um anel de ouro enquanto o coração vivia choroso e sem adorno algum. Ela chutou o pau da barraca e disse “sim” para a própria dignidade. Dignidade para não aceitar migalhas de afeto e de não aceitar menos do que ela merece. Dignidade para não viver de forma contrária ao que a alma dela acredita.

Então, ela percebeu que nem toda ruptura é dolorosa, pois para doer é necessário um vínculo de alma, ainda que discreto. Ficou claro para ela que eles não se pertenciam e que aquela certidão de casamento era uma formalidade completamente dispensável diante do que ela deseja viver…e vai viver. Por fim, ela assimilou que ter um marido é uma coisa e ter um companheiro é outra coisa completamente diferente. O título de marido e esposa, um tabelião pode conceder a qualquer casal que se dispõe a ir a um cartório com essa finalidade. Em contrapartida, o título de companheiro(a) é concedido pelo amor sem reservas e  pela vontade de ser e fazer o outro feliz. Ainda não habilitaram um tabelião a fazer casamento de almas, e é esse casamento que interessa a ela.

Contrariando o que acontece com muita frequência, o divórcio não a machucou, pelo contrário, devolveu a ela a inteireza de antes, a liberdade de sonhar e a certeza de que casou-se por equívoco. Em suma, oficializou-se a separação dos corpos uma vez que, no quesito almas, eles nunca trocaram um “oi”. Nada melhor do que a sensação de ter tomado a decisão certa, revela sua alma.

Imagem de capa: Nestor Rizhniak/shutterstock

Quando preciso me pego no colo

Quando preciso me pego no colo

Ando testando e praticando na minha própria pele uma mudança de vida.
Uma mudança que tem a ver mais com observar atentamente pensamentos e emoções, tentar entender e desconstruir padrões mentais, do que mudar drasticamente o rumo dos meus passos.

Ando tentando reconstruir e reinterpretar caminhos internos independente da realidade que me circunda.
Começo a perceber e a acreditar que todo sentimento pode se transformar no momento em que acontece.

Todos os nossos pensamentos podem adquirir uma diferente conotação se olharmos para eles com cuidado e delicadeza ao invés de acharmos que eles são a mais pura e verdadeira expressão do que somos e de onde estamos. É possível deixar que os pensamentos e emoções nos transbordem sem que, no entanto, atropelem o nosso amor pela vida e por nós mesmos.

A primeira prática que faço é simples, é apenas um deslocamento de referencial.

Ao invés de ficar alimentando a autocompaixão, olhando insistentemente para um joelho ralado, sangrando, doendo, que parece tomar todo o meu tempo e energia, impossibilitando outros passos pelo medo de outras quedas, eu lembro de todas as outras partes do meu corpo que estão cheias de energia vital. Eu lembro que apesar da dor, eu não sou só um joelho, eu sou um inteiro. E não é porque um lado meu dói, que a vontade de vida em mim tem que se submeter.

Ao invés de eu ficar lamentando as folhas secas de minha árvore, os sentimentos que não vingaram, que voaram e deixaram saudades, a dor da falta, a solidão de um inverno que me acometeu. Eu celebro, cuido e sinto tão fortes e vivas minhas raízes, úmidas, crescendo vastas em meus subterrâneos. Cheias de vontade de renascimento e com coragem para novas primaveras.

Ao invés de eu olhar com intensidade para minhas doenças, dores e tristezas, coloco um pensamento de gratidão em tudo que ainda cresce livre, vivo, saudável dentro de mim.

Invisto energia em meus risos bobos, em meus pensamentos soltos, na dança dos meus sonhos, nas minhas vontades sem nexo. Deixo de ser severa comigo mesma, de me martirizar e me punir pelas quedas, pelas decisões não tomadas, pelas metas não alcançada, pelos amores não vividos, por cambalear ainda na vida.

E, quando preciso, me pego no colo, como uma mãe bondosa que segura o próprio filho e deixa que chore, que grite, que lamente. Como uma mãe que conversa com calma com a dor da criança, falando baixo e perguntando porque é que dói tanto, porque é que é tão grande, até a criança perceber que tudo foi só mais um arranhão. E enxugando as próprias lágrimas,enquanto recupera o fôlego, resgata espontaneamente a vontade de ir brincar na rua.

Ando aprendendo a cuidar da minha criança interna, que é espontânea, simples, livre, que chora, mas que no momento seguinte deixa isso de lado, esquece e sorri. Que ama sem culpa, que fala o que pensa, que olha pra dor e que se resguarda quando ainda não entende.

Porque a mãe dentro de mim sabe acalmar e cuidar. Mas a minha criança sabe, como num toque de mágica, mudar a válvula das emoções e recolorir as verdades de um dia.

Porque eu já aprendi que assim como a tristeza e o desanimo sabem se alastrar em meu corpo e mente, a paz e a leveza também. E a escolha é minha.

E isso não é autoajuda é não querer desperdiçar a vida.

Imagem de capa: DmitryBelyaev/shutterstock

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