Me alugo para sonhar, um conto de Gabriel García Márquez

Me alugo para sonhar, um conto de Gabriel García Márquez

Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para esmigalhar a vidraça.

Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros, recolheram os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para o mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã, ninguém ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois pensava-se que era um dos estacionados na calçada. Mas quando o reboque tirou-o da parede descobriram o cadáver de uma mulher preso no assento do motorista pelo cinto de segurança. O golpe foi tão brutal que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto desfigurado, os sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro em forma de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado com eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para fazer compras dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada quando li a notícia nos jornais, mas fiquei intrigado por causa do anel em forma de serpente e com olhos de esmeraldas. Não consegui saber, porém, em que dedo o usava.

Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher inesquecível cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos. Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos, pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos mais temíveis.

Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre:

— Eu me alugo para sonhar.

Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira dos onze filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa, proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios.

— O que esse sonho significa — disse — não é que ele vai se afogar, mas que não deve comer doces.

A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que comia escondido, e não foi possível salvá-lo.

Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou que viveria com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela disse apenas a verdade: “Sonho”. Só precisou de uma breve explicação à dona da casa para ser aceita, com um salário que dava para as despesas miúdas, mas com um bom quarto e três refeições por dia. Principalmente o café da manhã, que era o momento em que a família sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um de seus membros: o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher alegre e apaixonada por música romântica de câmara9 e duas crianças de onze e nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às superstições arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o compromisso único de decifrar o destino diário da família através dos sonhos.

 

Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da guerra, quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram sendo a única autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi absoluto: até mesmo o suspiro mais tênue dependia da sua ordem. Naqueles dias em que estive em Viena o dono da casa havia acabado de morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma parte de suas rendas, com a única condição de que continuasse sonhando para a família até o fim de seus sonhos.

Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos dos estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As visitas imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então como festas em nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que não permitia nenhuma perda de tempo.

— Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você — disse ela. — Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos próximos cinco anos.

Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me embarcou no último trem para Roma. Eu fiquei tão sugestionado que desde então me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci. Ainda não voltei a Viena.

Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em Barcelona, de maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no dia em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a Guerra Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso. Passou conosco uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na Porter comprou um livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual pagou o que seria seu salário de dois meses no consulado de Rangum. Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava a vida.

Não conheci ninguém mais parecido à idéia que a gente tem de um papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade, sempre presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que mais parecia de barbearia que de restaurante, mas era a única maneira de impedir que se banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras foi exemplar. Comeu três lagostas inteiras, esquartejando-as com mestria de cirurgião, e ao mesmo tempo devorava com os olhos os pratos de todos, e ia provando um pouco de cada um, com um deleite que contagiava o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os perceves do Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa Brava. Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que levava no coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de siri, e me disse em voz muito baixa:

— Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar.

Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas, três mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e um cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a reconheci no ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel de serpente no dedo indicador.

Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas não tinham se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa, e a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em adivinhações de sonhos.

— Só a poesia é clarividente — disse.

Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas, fiquei para trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa casa que descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde se via todo o oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito, em sua conversa ficava claro que de sonho em sonho havia terminado por se apoderar da fortuna de seus inefáveis patrões de Viena. Não me impressionou, porém, pois sempre havia pensado que seus sonhos não eram nada além de uma artimanha para viver. E disse isso a ela.

Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. “Você continua o atrevido de sempre”, disse. E não falou mais, porque o resto do grupo havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a conversa, Frau Frida havia mudado de assunto.

— Aliás — disse ela —, você já pode voltar para Viena.

Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde que nos conhecemos.

— Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei — disse a ela. — Por via das dúvidas.

Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua sesta sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes que de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era preciso abrir umas janelas e fechar outras para que houvesse o grau de calor exato e uma certa classe de luz em certa direção, e um silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e despertou dez minutos depois, como as crianças, quando menos esperávamos. Apareceu na sala restaurado e com o monograma do travesseiro impresso na face.

— Sonhei com essa mulher que sonha — disse.

Matilde quis que ele contasse o sonho.

— Sonhei que ela estava sonhando comigo disse ele.

— Isso é coisa de Borges — comentei.

Ele me olhou desencantado.

— Está escrito?

— Se não estiver, ele vai escrever algum dia — respondi. — Será um de seus labirintos.

Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda despediu-se de nós, sentou-se em uma mesa afastada, e começou a escrever versos fluidos com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do navio buscamos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas quando já íamos embora sem nos despedir. Também ela acabava de despertar da sesta.

— Sonhei com o poeta — nos disse.

Assombrado, pedi que me contasse o sonho.

— Sonhei que ele estava sonhando comigo disse, e minha cara de assombro a espantou.

— O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum que não tem nada a ver com a vida real.

Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube do anel em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera. Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao embaixador português quando coincidimos, meses depois, em uma recepção diplomática. O embaixador me falou dela com um grande entusiasmo e uma enorme admiração. “O senhor não imagina como ela era extraordinária”, me disse. “O senhor não resistiria à tentação de escrever um conto sobre ela”. E prosseguiu no mesmo tom, com detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma conclusão final.

— Em termos concretos — perguntei no fim —, o que ela fazia?

— Nada — respondeu ele, com certo desencanto. — Sonhava.

Março de 1980

Via Pessoa

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5 dicas para lidar com a TV na educação do seu filho

5 dicas para lidar com a TV na educação do seu filho

Por Cristina Cançado

Qual é a influência da televisão no desenvolvimento do seu filho?

O que de fato ele tem assistido nesses programas infantis? O que é bom e o que é ruim? Você costuma assistir a esses programas com seu filho? O que ele assiste está de acordo com os valores da sua família?

CUIDADO!

Saiba que deixar a criança na frente da televisão tem aspectos positivos e negativos. Por isso, é bom ficar atenta para decidir com segurança sobre o que e por quanto tempo seu filho vai ficar na frente da telinha.

Aspectos positivos no uso da TV

Assistir televisão possibilita à criança:

  • Compreender as histórias.

  • Construir narrativas.

  • Desenvolver a imaginação.

  • Ter referências únicas, mesmo que pertencendo a ambientes diferentes.

  • Aumentar o repertório de brincadeiras, canções e histórias.

  • Aos 4 e 5 anos, ter uma noção do início e término dos programas (noção de tempo).

  • Conhecer culturas diferentes.

A televisão é a principal companhia de muitas crianças e vários canais têm sua programação totalmente dedicada exclusivamente à elas. Desenhos, novelas e filmes são apenas alguns dos programas produzidos para atrair a atenção dos pequenos e mantê-los em frente ao aparelho por horas. Cabe a você, mãe, ficar de olho e não permitir que a telinha invada a vida do seu filho de tal maneira que, como diz Branca Maria de Paula no livro Truques Coloridos, “As crianças acham que ele é o maior mágico do mundo. As crianças e milhares de pessoas que vivem por aí. Vivem caladinhas, prestando atenção, sem fazer nada, só vendo, sem fazer nada, só respirando… televisão.”

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Aspectos negativos no uso da TV

Assistir televisão pode levar a criança a desenvolver:

  • Tendência à imitação

  • Submissão

  • Isolamento ou apatia

  • Agressividade

  • Atividade sexual precoce

  • Diminuição da comunicação familiar

  • Insônia

  • Obesidade

  • Consumismo

  • A criança até 2 anos que fica muito tempo diante da TV pode ter o desenvolvimento da visão periférica comprometida.

Diante disso, fique alerta para os programas que seu filho assiste. Veja 5 dicas que irão te ajudar a fazer da TV uma aliada na criação do seu filho!

Dicas para você começar hoje

1) Limite o uso da TV a uma hora ou no máximo a duas horas por dia e lembre-se de escolher um programa de boa qualidade. Para isso, procure conhecer os programas que seu filho gosta de assistir. Você pode fazer isso nos finais de semana ou gravá-los para assistir depois.

2) Selecione os programas que você assiste quando as crianças estiverem por perto. Lembre-se: educamos pelo exemplo.

3) Não faça da TV o ponto central da sua casa. Apenas um aparelho em casa é o suficiente. Essa dica é importante! Na minha casa, por exemplo, só temos um aparelho.

4) Procure assistir alguns dos programas com seu filho e o ensine a ter opiniões críticas sobre o que assiste.

5) Não perca a oportunidade de estar com seu filho. Mas se for para escolher entre a TV ou uma brincadeira, prefira brincar com ele. Vai ser mais divertido!

Você deve estar se perguntando como poderá acompanhar os programas que seu filho assiste com essa falta de tempo e correria. Mas, é fundamental que você saiba o que seu filho anda assistindo. Não perca tempo! Pesquise, leia, converse com outra pessoas, procure dentro da sua rotina uma forma de conhecer que tipo de informação a TV está transmitindo para seu filho. Afinal, você não quer permitir que a TV molde os valores, as crenças e o comportamento do seu filho!

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Cristina Cançado

contioutra.com - 5 dicas para lidar com a TV na educação do seu filhoPedagoga e autora do livro Como Educar os Filhos e Colocar Limites, Cristina Cançado orienta mães de todo Brasil a melhorar o relacionamento com seus pequenos.

www.maesqueeducam.com.br

As águas do Tempo

As águas do Tempo

Por Hirondina Joshua

Chegamos cedo ao Parque Nacional de Gorongosa. Queríamos anteceder o Sol que naquele dia se fazia primeiro.
─ …Eu definiria a água deste lugar, como a água que já tivesse percorrido o Universo, mas sem que ela própria o tivesse feito. O olhar me leva à posição de uma tal capacidade metafísica de ver e compreender a maravilhosa paisagem do conhecimento absoluto: entender a linguagem da água, o corpo e o verbo da sua molécula.
Sentei no horizonte como se Ser do horizonte fosse, estendendo distâncias à Vida.
A água me significou tudo. Era o planeta todo em estado de transcendência, mundos em estado de (di) fusão.
Aconteci. Todo o instante que ali me fiz, inventou-se em mim a Terra : e crescia dentro e fundo e imaculado na razão mística da existência. Olhava o azul em todos os seus tons alguns até que se confundiam com o verde, os sons eram música sem pauta. Rítmicas e de uma tal perfeição que movia os ouvidos da emoção.
Enquanto pensava alto, ouvia o som da água, relaxando a carne interior.

─ Vamos para outra direcção…há mais coisas fascinantes do outro lado. O meu colega já vinha a incomodar com aquele ar grave e irritado.

Eu não podia crer no que via, nem muito menos deixar de o fazer. As águas azuis transcendiam o verde que prezo, os montes, e todo o resto…Era a água a falar, eram os sons a dialogar, eu não via mais nada diante de mim senão o Ser azulado em que transformava.

─ Vou mesmo embora. Estás a ouvir-me?

Aquela voz irritante voava no azul das águas, fazia-se paz em toda a extensão da palavra.

De olhos fitos no azul, retornei-me mar, rio, lago…esculpindo a beleza interior por via exterior.

─ A água é certamente a coisa mais bela que Deus criou. Pensei com medo e receio mas eu gosto de sentir esta verdade que traço. Ainda que de forma escorregadia.
─Phiu phiu phiu phiu…ouvi um animal ao alto, parecia uma garça eu não sei diferenciar o canto das aves… distraída vi-me sozinha naquele espaço.

Já o meu colega tinha ido embora, certamente à procura de uma outra maravilha naquele gigantesco Parque. Sacudi as calças; percorri o tempo com a mesma velocidade com que se percorre a luz.
E pela primeira vez na vida; corri…

contioutra.com - As águas do Tempo
Gorongosa, Moçambique

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Hirondina Joshua

contioutra.com - As águas do TempoNasceu em Maputo, Moçambique, a 31 de Maio de 1987.
Está integrada em várias antologias, revistas, jornais, sites, blogues nacionais e internacionais. Teve Menção Extraordinária no Premio Mundiale di Poesia Nósside 2014.

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Para saborear Manoel de Barros: um passeio estético que vocês merecem fazer

Para saborear Manoel de Barros: um passeio estético que vocês merecem fazer

Por Josie Conti

Se Manoel de Barros descreve a essência, a pureza e as próprias insignificâncias da vida, nas obras abaixo, o artista plástico lituano Laimonas Smergelis as pinta.

A CONTI outra os convida para um passeio pela estética sublime das temáticas mais singelas.

Façam um bom passeio.

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Laimonas Smergelis

“E vi as borboletas. E meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as próprias asas. E vi que o homem não tem soberania nem pra ser um bem-te-vi.”

Manoel de Barros

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Laimonas Smergelis

“Não tenho pensa.
Tenho só árvores ventos
passarinhos – issos.”

Manoel de Barros

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Laimonas Smergelis

“A ciência pode classificar e nomear todos os órgãos de um sabiá
mas não pode medir seus encantos.”

Manoel de Barros

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Laimonas Smergelis

“Por viver muitos anos
dentro do mato
Moda ave
O menino pegou
um olhar de pássaro –
contraiu visão fontana.”

Manoel de Barros

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Laimonas Smergelis

“Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.”

Manoel de Barros

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Laimonas Smergelis

“Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.”

Manoel de Barros

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Laimonas Smergelis

“Uma espécie de gosto por tais miudezas me paralisa.”

Manoel de Barros

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Laimonas Smergelis

“Pra mim, poderoso é aquele que descobre as insignificâncias [do mundo e as nossas].”

Manoel de Barros

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Laimonas Smergelis

“A sensatez me absurda.
Os delírios verbais me terapeutam.
Posso dar alegria ao esgoto ( palavra aceita tudo).”

Manoel de Barros

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Laimonas Smergelis

“Só as coisas rasteiras me celestam.
Eu tenho cacoete pra vadio.
As violetas me imensam.”

Manoel de Barros

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Laimonas Smergelis

“Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se
inclui a sedução.
É quando a pássara está namorada que ela gorjeia.”

Manoel de Barros

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Laimonas Smergelis

“Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância
de ser feliz por isso.”

Manoel de Barros

Dica da Conti outra: Saiba mais sobre a obra do poeta e conheça os projetos sociais da Fundação Manoel de Barros.

As guerreiras africanas do Daomé estão nas ruas do Senegal

As guerreiras africanas do Daomé estão nas ruas do Senegal

Por Sandra Quiroz

Do original contioutra.com - As guerreiras africanas do Daomé estão nas ruas do Senegal

[dropcap type=”1″]A[/dropcap] África não é só famosa por sua rainhas, mas também para suas guerreiras. Desde o Egito antigo, passando pela Núbia, Nigéria, Congo, Gana, Guiné Bissau, África do Sul e Benin. O continente tem uma história de luta das mulheres que eram combatentes assim como os homens.

As guerreiras do Daomé, também conhecidas como as guerreiras Mino, são um exemplo disso.  Foram soldados valentes e disciplinadas. A crueldade em sua forma de lutar as colocava a frente no campo de batalha contra os colonos brancos europeus. Este exército de mulheres foi criado no início do século XVII, e por quase 200 anos dominou e prevaleceu invicto. As Amazonas do Daomé são um dos poucos exércitos de mulheres documentado da história moderna.

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Foto de Edmond Fortier

O único propósito destas guerreiras era a guerra. Elas eram educadas e treinadas para a luta. Não podiam ter filhos ou se casar e suas habilidades físicas vieram para superar os guerreiros homens . Rifles Winchesterque obtidos da venda de escravos, facas, lanças, arcos e flechas eram as suas armas. Após as batalhas, bebiam o sangue de seus inimigos e , em seguida, expunham suas cabeças como um troféu de guerra .

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Foto de © YZ

Algumas fontes indicam que o número de guerreiras Mino chegou a quatro mil e outros dizem que elas chegaram a casa de seis mil mulheres guerreiras . Durante dois séculos, essas tropas foram poderosas na África Ocidental até que desapareceu em 15 de janeiro de 1894. O reino do Daomé perdeu a batalha contra a França e tornou-se uma colônia, agora Benin.

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Foto de © YZ

E  foi justamente a história dessas mulheres fortes e respeitadas do reino do Daomé, que inspirou a artista francesa YZ Yseult . “Amazon” é o nome do seu trabalho que consiste em uma série de imagens em preto e branco do passado anti colonial e revolucionário.

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Foto de © YZ

Do outro lado da arte de rua, que sempre foi uma ferramenta de expressão poderosa , YZ apresenta o mundo das mulheres que marcaram a história africana e desafiaram todos os tipos de estereótipos. Histórias dessas grandes Amazonas, em ruas senegalesas . Histórias de mulheres anônimas que hoje devem ser lembradas.

contioutra.com - As guerreiras africanas do Daomé estão nas ruas do Senegal
Foto de © YZ
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Foto de © YZ
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Foto de © YZ
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Foto de © YZ
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Foto de © YZ

11 possibilidades de melhorar a convivência

11 possibilidades de melhorar a convivência

Por Lourival Antonio Cristofoletti

Tendemos a entender e a crer que sabemos fazer escolhas. Nem sempre nossas vontades são o que há de melhor para nós mesmos. Embora possa ser interessante a opção de quem resolve ficar em seu próprio mundo, talvez valha a pena ser reservar um espaço para reflexão sobre como nos comportamos no círculo de amizades e o que poderíamos fazer de diferente para entendermos melhor o outro e sermos mais bem compreendidos.

Assim, para quem desejar dedicar algum tempo para esse propósito, talvez seja o caso de dar uma pausa para analisar a viabilidade de promover alguns ajustes em seu jeito de ser e de se comunicar, podendo, quem sabe, ser possível:

  • Compartilhar mais vezes seus conhecimentos, experiências, dons e habilidades, abrindo espaço para reflexões, incentivando o despertar de vocações, talentos, lideranças, tendo humildade para analisar os questionamentos e críticas, além de certa flexibilidade para se reposicionar.
  • Sair da zona da neutralidade e fazer o que tiver ao seu alcance para esclarecer os mal-entendidos e trazer clareza à situação, quando se mostra desejável um posicionamento seu, pela sensibilidade que tem e pelo conhecimento do assunto e pelos seus vínculos com os envolvidos.
  • Dosar o limite de insistência, em termos de tentativa de persuadir alguém, respeitando o estágio de evolução e as conveniências dele: “Você pode levar um cavalo às margens do rio, mas não consegue obrigá-lo a beber água”. Isto, porém, não o livra de procurar, com tato, esgotar as alternativas ao alcance.
  • Assimilar que não lhe cabe tripudiar, nem tirar proveito de quem está em desvantagem. Deixar uma saída honrosa para o vencido, permitindo que cada um se manifeste como sabe e quer: ajuda muito aceitar que o choro é livre e a reação alheia, dependendo da situação, merece ser vista apenas um problema alheio.
  • Se entender que deve exercer controles, que o sejam de suas suscetibilidades e imposições: é uma bela maneira de ser melhor para si mesmo e de exercitar a humildade. Nem tudo o que dirigem à sua pessoa está revestido de ofensa, má intenção, inveja, entendendo que a comunicação é complexa demais para ser vista ao pé da letra.
  • Não fazer agressões fortuitas, com rancor, ódio para, minutos depois, se arrepender do que disse ou fez. Controlar-se nos desentendimentos e manifestações radicais: de preferência, nas relações, nunca corte o que puder desatar.
  • Ter mais vezes a inocência de crer com mais frequência nas boas intenções dos outros, principalmente os que estão mais próximos, que desfrutam da sua intimidade e gozam da sua confiança.
  • Elogiar sempre que surgir uma boa oportunidade: quem sabe fazer isso e reconhecer o mérito do outro desenvolve controle de vaidades,reconhecendo o mérito do outro. Será enxergado com mais afeto e sua conduta poderá servir de inspiração. Terá suas críticas aceitas com mais naturalidade: quem sabe elogiar tem mais direito de criticar.
  • Estender seu olhar para breves frases que parecem irrelevantes bordões e que podem encerrar oportunidades de interessantes repensares: “ser humilde, sem ser servil”; “ser simples, sem ser simplório”; “ser reflexivo, sem ser lacônico” ; “ser conciso, sem ser incompleto”.
  • Cuidar para desenvolver mecanismos para aceitar com a possível naturalidade as discordâncias às suas opiniões e posturas. Cabe-lhe ponderar que até as suas sólidas convicções podem gerar questionamentos: ao permitir livremente essas manifestações terá oportunidades interessantes de reflexão e de aprimoramento.

E, finalmente, mas não menos importante:

  • Voltar suas atenções para a gentileza e a generosidade quando fizer críticas, escolhendo as palavras adequadas e o melhor momento para fazê-las: é uma oportunidade para evitar comentários furtivos, maledicências, prejulgamentos que são preconceituosos. Nas coisas em que tem agido de maneira diferente e não tem gostado do resultado, há uma oportunidade de mudanças: poderá, quem sabe, sentir-se mais leve e um pouco mais bem resolvido: todos agradecerão.

LOURIVAL  ANTONIO CRISTOFOLETTI

contioutra.com - 11 possibilidades de melhorar a convivênciaPaulista de Rio Claro e residente em Vitória/ES. É mestre em Administração pela UnB – Universidade de Brasília, Analista Organizacional e Consultor em Recursos Humanos. Atualmente atua como professor na Graduação e MBA na FAESA – Faculdades Integradas Espírito-Santenses; Instrutor na UFES – Universidade Federal do ES e na ESESP– Escola de Governo do ES.

Livro publicado: COMPORTAMENTO: INQUIETAÇÕES & PONDERAÇÕES
Livraria Logos (vendas pelo site)

E-mail de contato: : [email protected]
No Facebook: Lourival Antonio Cristofoletti No Instagram: lourivalcristofoletti

O Olhar, por Rubem Alves

O Olhar, por Rubem Alves

“Georgia O’Keeffe foi uma pintora norte-americana. Seus quadros são assombrosos! Porque seus olhos são assombrosos! “Ninguém vê uma flor realmente”, ela observou certa vez. “A flor é tão pequena… Não temos tempo e o ato de ver exige tempo, da mesma forma como ter um amigo exige tempo. “O ver, como fenômeno físico, acontece instantaneamente. Basta abrir os olhos … A luz toca a retina e a imagem se forma nalgum lugar do cérebro. Igual ao que acontece com a máquina fotográfica. Mas há um outro ver que não é coisa dos olhos. Como quando se contempla uma criança adormecida. A visão de uma criança adormecida nos acalma. Faz-nos meditar. O olhar se detém. Acaricia vagarosamente. O olhar se torna, então, uma experiência poética de felicidade. Sentimos que a criança que vemos dormindo no berço dorme também na nossa alma. E a alma fica tranquila, como a criança. É por isso que, mesmo depois de apagada a luz, ida a imagem física, vai conosco a imagem poética como uma experiência de ternura.” Rubem Alves

Dica da Conti outra: Conheça o Instituto Rubem Alves e acompanhe seus projetos.

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Imagem do filme “Vida e Arte de Georgia O’Keeffe”, (2010)

 

 Dica de livro: Sete Vezes Rubem (Fruto do trabalho de uma década, esta obra reúne sete livros de Rubem Alves publicados pela Papirus entre 1996 e 2005.)

A história de Kafka e a menininha da boneca perdida em Berlim: para onde vai o amor que se perde?

A história de Kafka e a menininha da boneca perdida em Berlim: para onde vai o amor que se perde?

Por Nando Pereira

Do original: A LENDÁRIA HISTÓRIA DE KAFKA E A MENININHA DA BONECA PERDIDA EM BERLIM: PARA ONDE VAI O AMOR QUE SE PERDE?

Há uma história do escritor Franz Kafka (1883-1924), famoso por “A Metamorfose”, “O Processo” e “Carta ao Pai”, que mostra um singelo e doce lado do autor que já foi descrito como esquizóide, depressivo e anoréxico nervoso: uma história de amor em que ele ajuda uma menina desolada pela perda de uma boneca em uma praça de Berlim. A história tem algumas versões e abaixo seguem duas delas (traduzidas para o português): a primeira da terapeuta americana May Benatar, que ouviu da psicóloga e instrutora de meditação budista Tara Brach, publicada no site The Huffington Post, e a segunda do renomado tradutor de Kafka, Mark Harman, como foi publicado no site The Kafka Project. “Para mim essa história traz duas sábias lições: a primeira que tristeza e a perda são presentes mesmo para uma pequena criança, e a outra que o caminho para a cura é ver como o amor volta em outra forma”, diz May Benatar, cuja narrativa segue abaixo.

A história de Kafka e a menina que perdeu sua boneca em Berlim, segundo May Benatar:

contioutra.com - A história de Kafka e a menininha da boneca perdida em Berlim: para onde vai o amor que se perde?“Franz Kafka, conta a história, certa vez encontrou uma menininha no parque onde ele caminhava diariamente. Ela estava chorando. Tinha perdido sua boneca e estava desolada. Kafka ofereceu ajuda para procurar pela boneca e combinou um encontro com a menina no dia seguinte no mesmo lugar. Incapaz de encontrar a boneca, ele escreveu uma carta como se fosse a boneca e leu para a garotinha quando se encontraram. “Por favor, não se lamente por mim, parti numa viagem para ver o mundo. Escreveu para você das minhas aventuras”. Esse foi o início de muitas cartas. Quando ele e a garotinha se encontravam ele lia essas cartas compostas cuidadosamente com as aventuras imaginadas da amada boneca. A garotinha se confortava. Quando os encontros chegaram ao fim, Kafka presenteou a menina com uma boneca. Ela era obviamente diferente da boneca original. Uma carta anexa explicava: “minhas viagens me transformaram…”. Muitos anos depois, a garota agora crescida encontrou uma carta enfiada numa abertura escondida da querida boneca substituta. Em resumo, dizia: “Tudo que você ama, você eventualmente perderá, mas, no fim, o amor retornará em uma forma diferente”.

~ May Benatar, no artigo “Kafka and the Doll: The Pervasiveness of Loss” (publicado no Huffington Post)

E a versão da história de Kafka e a menina que perdeu sua boneca em Berlim, segundo Mark Harman, que acrescenta detalhes como o tempo que durou a troca de cartas e os detalhes do desfecho:

contioutra.com - A história de Kafka e a menininha da boneca perdida em Berlim: para onde vai o amor que se perde?A estada de Kafka na cidade (Berlin) não foi totalmente sombria; daí o primeiro dos meus dois pequenos enigmas – uma história sobre Kafka e uma menina em Steglitz. Dora Diamant conta-a ao crítico francês e tradutor Marthe Robert, e, em uma versão um pouco diferente, a Max Brod. Enquanto caminhava certo dia em Steglitz, Kafka e Dora conheceram uma menina em um parque que chorava porque havia perdido sua boneca. Kafka disse a ela para não se preocupar porque a boneca tinha partido em uma viagem e lhe enviara uma carta. Quando a menina perguntou desconfiada pela carta, ele disse que não estava com ele, mas que se ela voltasse no dia seguinte ele iria trazê-la. Fiel à sua palavra, todos os dias durante as próximas três semanas, ele foi ao parque com uma nova carta da boneca. Dora Diamant enfatiza o cuidado que ele dedicou a esta tarefa auto-imposta, que era do mesmo grau que o que ele dedicava à sua outra obra literária. Ela também comenta a dificuldade de Kafka em chegar a um final que iria deixá-lo livre e ao mesmo tempo com uma conclusão razoavelmente satisfatória, para a menina. Na versão que Dora contou a Marthe Robert, Kafka conseguiu isso fazendo a boneca ficar noiva: “Ele (Kafka) pesquisou por um longo tempo e, finalmente, decidiu que a boneca ia se casar. Primeiro ele descreveu o jovem, o noivado.. .., os preparativos para o casamento, em seguida, em grande detalhe, a casa dos recém-casados”. Por causa desses “preparativos do casamento” em andamento, uma palavra que lembra o título de uma de suas primeiras histórias e sugere o grau de autobiografia fictícia que se engendrou neste envolvente conto – a boneca não poderia mais, compreensivelmente, visitar sua ex-dona. Max Brod não menciona esse final, mas escreve que antes de sair de Berlim para Praga, Kafka se certificou que a menina recebera o presente de uma nova boneca. Esta é, naturalmente, apenas uma discrepância menor e não diminui a credibilidade desta história, que revela um Kifka gentil, atencioso e compreensivo, que não é tão amplamente conhecido como o introvertido e auto-atormentando de “A Metamorfose” e “Um Artista da Fome”.

~ Mark Harman, em “Missing Persons: Two Little Riddles About Kafka and Berlin” (publicado no The Kafka Project)

PS: Essa história da boneca certamente deve ter servido de inspiração para a sequência do filme “Le Fabuleux Destin D’Amélie Poulain” (Jean-Pierre Jeunet, 2001), em que a protagonista Amélie Poulain (Audrey Tatou) pega uma estátua de anão de seu pai e faz ela viajar o mundo e enviar cartões postais para o pai, que não sai de casa e se sente atraído pelas aventuras da estátua.

Nota da Conti outra: a publicação do texto acima por esta página foi autorizada pelo autor.

Fonte mais do que indicada:

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Quando as emoções constroem novos caminhos: o desabafo e o papel do ouvinte

Quando as emoções constroem novos caminhos: o desabafo e o papel do ouvinte

Por Nara Rúbia Ribeiro

Sempre existe em cada um de nós uma palavra não dita, um sentimento inconfesso e reprimido, um desejo implícito que quer ter vida. O nosso eu interno precisa de ar. Precisa respirar um pouco aqui fora, no mundo onde talvez ele possa ser compreendido e amado. Mas no cotidiano das urgências e dos prazos, onde o Ter impera e o Ser vai perdendo mais e mais status, já não há muito espaço para a expressão do sentir. E, se poucos são aqueles que param para ponderar acerca das próprias emoções e desejos, quem teria, nos dias de hoje, tempo e interesse de ouvir o desabafo do outro?

Na tentativa de sublimar os seus conflitos internos, os poetas versejam o que punge, os pintores delineiam as emoções em traços e tons, os escultores se esmeram em dar expressão concreta aos abstratos da alma, os músicos dão som aos ais e às alegrias mais profundas. Mas, e aqueles que não se inclinam às artes? A estas, que correspondem à esmagadora maioria de nós, resta a velha terapêutica da amizade: o desabafo.

Desabafar é fazer fluir a palavra para dar vazão a uma emoção afogada em nossa represa interior. A dor pode deslizar nas ondas das frases, a alegria pode transbordar dos verbos e dos substantivos mais delicados… O desejo, a frustração, tudo muda quando dito, quando confessado. A emoção recebe rajadas de luz. Mas poucos, infelizmente, são aqueles que, hoje, ao apregoarem ou até jurarem uma sincera amizade, emprestam seus ouvidos ao outro.

Penso que talvez a maioria de nós não perceba que quem desabafa não quer conselho. Não quer norte. Não quer reprimenda ou aplauso. Só quer saber que outro humano se importa. Que outro humano é capaz ouvir e talvez dimensionar a sua dor. Quer sentir que no mundo há outros que também sentem e que compreendem os seus vazios, ou as suas falsas plenitudes.

Talvez o que temamos seja ver no outro a nossa dor espelhada a que há muito não notamos, e que está abafada, aturdida, asfixiada pela pressa cotidiana, mas que, em silêncio, sangra. Talvez o que tenhamos, de fato, seja o medo de constatar a imensa humanidade que ainda resta em nós, embora nos cerquemos de máquinas e números e metas concretas.

Não ouvir, não querer ler no outro as linhas mais significativas do seu íntimo é prova incontestável de que a amizade inexiste. A amizade consiste na delicadeza do “estar disponível” para sentir o outro. Ela é o exercício da empatia.

Aquele que é incapaz de ouvir, por mais bem-sucedido que seja no mundo dos fatos, é ainda indigente nos terrenos da alma. É estrangeiro no solo da afeição. E nem percebe que, de tanto omitir-se de ouvir, a sua alma emudece e se esquece, um tanto mais e a cada dia, do existir.

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Nara Rúbia Ribeiro: colunista CONTI outra

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Escritora, advogada e professora universitária.
Administradora da página oficial do escritor moçambicano Mia Couto.
No Facebook: Escritos de Nara Rúbia Ribeiro
Mia Couto oficial

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Além do termo: “Animação”

Além do termo: “Animação”

Por Diogo Della Volpe

Este texto não cumpre a função de resenhar um filme em específico. Na verdade, este texto irá cumprir uma tarefa que, na maioria das vezes, é extremamente difícil e fatigante: defender as chamadas “animações”.

Dentro da universidade, já me peguei discutindo muitas vezes acerca do local que a Psicologia abrigaria dentro da genealogia dos cursos. As engenharias estão de um lado, as humanas de outra, também existem as biológicas, as artísticas… Mas onde está a Psicologia? Depois de muito discutir, cheguei à conclusão de que o curso mais próximo à Psicologia é o Cinema. Cinema podendo ser inclusive utilizado aqui com o significado original da palavra: local de entretenimento, onde as pessoas se reúnem para experimentar as mais diversas emoções assistindo a filmes de ação, comédia, drama e… Animação.

Os filmes, apesar de ficcionais, são criados por pessoas reais e que viveram em contextos reais. Se o grande objetivo da Psicologia é entender a mente humana, então ela vem aqui ser uma ciência auxiliar na busca da compreensão do que há verdadeiramente por trás dos chamados “filmes de animação”. Ou seja: o que os criadores do filme querem realmente dizer ao colocarem esse filme nos cinemas e quais os valores que eles querem passar ao público.

É aqui que começa a tão falada “defesa da animação”. Em primeiro lugar, “animação” é um termo genérico que define TODAS as animações. Porém, existem animações de todos os tipos: comédia, drama, ação, aventura… O próprio termo contribui para certo preconceito para com as animações de maneira geral. Realmente, a maioria das animações envolve três gêneros principais: a comédia, a aventura e o drama. E é por abrigarem esses três gêneros que a grande maioria das animações faz as pessoas experimentarem um misto de emoções diferente do que elas sentem em outros filmes. Em um mesmo filme a pessoa ri, chora, fica tensa com o destino que um dos personagens terá, torce pelo herói. Torcemos por personagens que nem ao menos existem.

Mas então, onde fica a “defesa da animação”? Ora, o preconceito com a animação vem desde cedo, visto que junto da definição de “animação” vem também “isso é coisa de criança”, “já passei da idade”, “isso é muito infantil”. Então vamos a alguns fatos:

“O Rei Leão” arrecadou quase um bilhão de dólares nos cinemas mundiais, contando a história de um pequeno príncipe leão que teve o pai assassinado pelo próprio tio e teve de fugir do reino para não ser culpado pelo assassinato do próprio pai.

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“Procurando Nemo” é um filme sobre um pai que tem a esposa e todos os filhos mortos por um serial killer, menos um: o próprio Nemo, que nasce deficiente e é sequestrado. Seu pai então decide viajar pelo oceano em busca do próprio filho.

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“Detona Ralph” é um filme no qual podemos ver a segregação contra aqueles que são considerados “vilões”. Temos a história de Ralph que, ao sentir-se desprezado por todos sai em busca do seu sonho, que na verdade sempre foi o sonho de ser reconhecido como alguém especial.

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“Wall-E” traz reflexões incríveis sobre como estamos agindo com relação à nossa verdadeira casa – o Planeta Terra – pela perspectiva de um pequeno robô, que parece ser o mais humano dos personagens presentes no filme.

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E estes são só alguns exemplos de filmes – todos da Walt Disney – que mostram que os motes desses tão “infantis” filmes de animação, não são tão infantis assim. Isso porque as crianças não vão sozinhas ao cinema: os produtores dos filmes precisam fazer com que eles sejam atrativos para adultos também. E é aqui que as animações deixam de ser apenas “infantis” para tornarem-se filmes que podem ser apreciados igualmente por todas as idades. Elas trazem valores carismáticos enraizados na história de personagens irreais, mas que parecem tão humanos quanto ou mais do que os próprios humanos. Os valores podem ser absorvidos facilmente pelas crianças, enquanto uma análise mais profunda fica no papel dos próprios adultos.

Para falar de um exemplo meu: até os meus 17 anos eu também tinha um enorme preconceito para com qualquer filme de animação. Isso é decorrente da adolescência: a fase da vida em que as pessoas não gostam de ser chamadas de “crianças”, valorizam a “ordem social” imposta nos grupos da escola ou do condomínio e relevam, muitas vezes, as ordens dos pais ou de superiores. Isso é próprio da adolescência. Mas o que seria um adolescente senão uma criança tentando adormecer-se?

Foi apenas quando eu entrei para a faculdade e comecei a estudar e a entender as animações a fundo que eu descobri o quão belas elas podem ser. Quando se entende o verdadeiro mote, os verdadeiros valores por trás da animação, é que se compreende seu verdadeiro valor. E aí não há preconceito que barre o sonho.

É claro que isso pode ser transportado para a televisão de maneira não tão nítida: há alguns desenhos que simplesmente foram feitos pelo puro entretenimento, outros foram feitos para “educar”. De uma forma ou de outra, na televisão também podemos encontrar bons exemplos de animações que nos prendem, nos fazem gargalhar, porém nos fazem chorar também.

Muitas vezes confundimos “ser adulto” com ser alguém que não tem tempo para apreciar a vida, que deve se portar de maneira a agradar os mais limítrofes moldes da sociedade. Porém, é diante desse dia-a-dia corrido dentro da sociedade atual que surgem as mais sábias e puras reflexões acerca de nossas vidas. E por que essas reflexões não poderiam nascer de uma, aparentemente, infantil animação? Não só poderiam como muitas reflexões incríveis estão inscritas dentro de filmes de animação, os quais metaforizam, muito bem, a nossa trajetória de vida traçada pelos carismáticos personagens que aprendemos a amar.

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contioutra.com - Além do termo: “Animação”Diogo Della Volpe

Estudante do segundo ano de Psicologia na PUC-Campinas, 19 anos, amante de mangás e animações. Espera sempre que a vida ganhe um pouco mais de cor e aprecia a arte da criação

Insulina inalável começa a ser vendida: uma ótima notícia para os diabéticos

Insulina inalável começa a ser vendida: uma ótima notícia para os diabéticos

Embora a Sanofi do Brasil, laboratório responsável pela fabricação, tenha informado que ainda não há data prevista de lançamento da Afrezza no país, as notícias são muito animadoras:

No último dia 03/02/2015 chegou aos mercados norte-americanos a insulina inalável. Aprovada para comercialização em julho do ano passado. A insulina Afrezza finalmente poderá ser comprada nas farmácias e será a única versão inalável do hormônio à venda.

Desenvolvida pelas farmacêuticas Sanofi e MannKind Corp., a Afrezza é uma insulina de ação rápida indicada para controle da glicemia tanto no diabetes tipo 1 quanto no diabetes tipo 2.

Ela deverá ser usada pouco antes das refeições. A insulina é produzida em forma de pó, administrado através de um pequeno dispositivo, do tamanho de um apito (veja nas imagens).

Nos EUA, uma “dose” diária de 12 unidades da nova insulina está sendo comercializada por cerca de 7,5 dólares – ou aproximadamente 20 reais.

QUEM PODE – E QUEM NÃO PODE – USAR A INSULINA INALÁVEL

contioutra.com - Insulina inalável começa a ser vendida: uma ótima notícia para os diabéticosEm adultos acima de 18 anos, o uso da Afrezza é praticamente irrestrito.

Porém, de acordo com a farmacêutica, a nova insulina é contra-indicada a pessoas com doenças pulmonares crônicas, como a asma. Além disso, fumantes e ex-fumantes devem evitar o medicamento, uma vez que a capacidade pulmonar debilitada pode diminuir a eficiência do hormônio.

A Sanofi alerta, ainda, que de maneira alguma deve-se utilizar a Afrezza como substituto de insulinas de longa duração. A maneira correta de utilizá-la é como coadjuvante em uma plano abrangente de controle do diabetes, e que inclui mudanças na dieta e a prática de atividades físicas.

“Há uma necessidade palpável de insulinas que não necessitam injeções, e nossa empresa está determinada a criar esta nova opção de tratamento aos pacientes”, informou o vice-presidente da divisão de diabetes da Sanofi, Pierre Chancel.

A ECONOMIA DO DIABETES: AFREZZA É APOSTA PARA O LUCRO

A Afrezza é a maior esperança da Sanofi para lucrar no mercado do diabetes.

A farmacêutica fatura cerca de 18 bilhões de reais por ano com medicamentos para diabéticos, mas em 2014 a performance foi ruim a ponto de demitirem o principal executivo da divisão. Além disso, em 2015 vence a patente da insulina Lantus – a campeã de vendas da Sanofi e principal motivo dos lucros extraordinários da empresa.

Estima-se internamente que a insulina inalável chegue à marca de 182 milhões de dólares anuais em vendas em 2019. É um número modesto, em parte devido ao medo de rejeição do público por causa da má fama da insulina Exubera (ver a história no quadro abaixo).

Além da Afrezza, uma nova versão da Lantus, chamada Toujeo, também deve ser lançada em breve.

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Fonte indicada: Diabete Cool

Ator e diretor argentino Ricardo Darín fala sobre utopia e merece a sua atenção

Ator e diretor argentino Ricardo Darín fala sobre utopia e merece a sua atenção

Eric Nepomuceno conversa com o ator e diretor argentino Ricardo Darín em entrevista para o programa Sangue Latino.

Ricardo Darín é um ator e diretor argentino. Tendo atuado por diversos anos em séries de televisão e migrado posteriormente para o teatro e o cinema, é considerado atualmente como um dos melhores e mais populares atores de seu país.

Nesse vídeo, ele discorre sobre suas perdas e as utopias no mundo contemporâneo.

Uma coisa é uma coisa e não o que você diz dela

Uma coisa é uma coisa e não o que você diz dela

Por Tatiana Nicz

Esses dias assisti o filme Birdman (ou a Inesperada Virtude da Ignorância), entre algumas boas pinceladas (e outras nem tanto) essa frase do título ganha destaque. Ela aparece algumas vezes no filme, no espelho do camarim do protagonista. A outra coisa que da para guardar do filme é a intensa guerra de egos dos personagens. O filme é uma crítica à maneira como damos importância à coisas que (ao meu ver) não são essenciais, a fama de muitas pessoas que fazem sucesso por fatores alheios como personalidade, caráter, talento, criatividade. Isso tudo não é novidade, mas não porque um assunto tornou-se “batido” é que não precisamos mais refletor sobre ele.

Uma amiga me jogou como tema de reflexão e perguntou se eu não queria escrever sobre a arrogância, depois que ela falou um pouco sobre o que pensava entendi que a arrogância que ela se referia mistura-se ao ego, mistura-se também ao orgulho. Nós crescemos acreditando em tudo que nos contam, porque a criança acredita em tudo mesmo. Ela não conhece muito bem a mentira, nem arrogância, nem o que é ego. Enquanto crescemos somos preenchidos de verdades que nossos pais, professores e a sociedade nos ensina, construímos crenças em cima de crenças até que à elas nos apegamos como verdades absolutas. Porque se é algo em que todos acreditam então só pode ser verdade. Ninguém é incentivado a pensar diferente ou a mudar de ideia e nada é feito para mudar, não é digno mudar de opinião.

O problema é que nesse castelo de crenças e verdades absolutas existe muita manipulação, orgulho e jogo de ego. Em um curso que fiz uma das mediadoras disse que todo ser humano precisa e quer reconhecimento, quando ela disse me pareceu tão superficial, eu argumentei dizendo que não devemos buscar reconhecimento de ninguém, devemos acreditar em nós mesmos, ela disse: “é certo que não, mas na prática todo mundo precisa e quer reconhecimento e não tem nada de errado com isso”.

Como hoje em dia tenho tentado refletir sobre tudo que vem de encontro ao que eu acredito, me permiti refletir também sobre aquilo. Realmente queremos reconhecimento, realmente não tem nada de errado que as pessoas reconheçam a importância que temos em suas vidas e de nossos feitos. O problema é que como quase tudo na história da humanidade, exageramos. Aprendemos a dar muita importância ao que vem de fora e nos esquecemos de fortalecer o que vem de dentro, acreditar no que faz sentido para nós, independente do que o outro diz. E como somos muitos, todos buscando reconhecimento; e talvez por achar que somos o centro de nosso universo e devemos ser tão importantes ao olhar do outro, quando isso não acontece, geramos desconexões, ficamos ressentidos, cobramos, brigamos e nos decepcionamos.

O problema de nos apegarmos à verdades absolutas é que nada no mundo é definitivo. Toda crença é relativa, um reflexo daquilo que existe em cada ser, que é único. Então toda verdade é relativa, como no título desse texto, o que eu digo e penso de algo não significa exatamente o que esse algo realmente é. Vivenciando o ciclo da doença grave de duas pessoas tão importantes na minha vida (meus pais), vivi um processo onde todas as minhas verdades foram desconstruídas, nada mais do que eu acreditava me servia ou fazia sentido. Foram mudanças tão rápidas e intensas que, como um furacão quando passa e não deixa nada em pé, sobrou muito pouco de tudo aquilo que levei anos para construir. Esse processo desconstrutivo levou dez anos de profissão, amigos de data, parentes, estilo de vida, livros, roupas e muitas, mas muitas crenças. E as coisas foram mudando tão rapidamente que eu acreditava em algo em um dia, no dia seguinte absorvia outra reflexão que me fazia mudar de opinião.

E eu que sempre fui diferente senti que quanto mais eu me desfazia de tudo que construí e de tantas crenças engessadas mais eu me distanciava da maioria. Mas se é certo que nossas convicções nos tornam ignorantes, hoje fico feliz por não ter mais certeza de nada, mesmo que isso me custe algo ou amigos. Mas como nem tudo é bônus, um dia disse para minha terapeuta que estava me sentindo solitária. Ela respondeu dizendo que solitária eu sempre estive, apenas não havia me dado conta e talvez hoje mesmo com poucos ao meu redor eu nunca tenha estado tão plena.

E no fundo nós precisamos acreditar que temos as respostas para nossos maiores questionamentos dentro da gente, basta parar para escutá-las e ter coragem de confiar. A minha profissão se foi porque não fazia sentido que eu quisesse ajudar comunidades locais da tela do meu computador. Primeiro porque ninguém pediu minha ajuda e eu nem sabia se é isso que eles queriam. Segundo porque eu chegava em tais comunidades “carentes” e via crianças correndo soltas e felizes pela natureza e muita cooperação entre os moradores e família que viviam há séculos no mesmo lugar.

Certa vez fiz uma viagem de 14 dias levando doações para algumas dessas comunidades pelo litoral norte do Paraná, elas careciam sim de roupas, higiene básica e alimentos, mas elas tinham riquezas que eu não podia mensurar. Todas as noites nós cozinhávamos na fogueira ou no fogão a lenha e a noite sentávamos em volta da fogueira para contar histórias. Dependíamos da maré e da lua para seguir jornada, dependíamos da luz do sol para nos guiar e não usávamos dinheiro, nossa moeda era a troca. Com tanta vivência ficou difícil entender como eu havia ido parar ali no papel de “heroína”.

A alegria que vi por lá eu via em poucos na minha própria comunidade. Mas eu cresci acreditando que precisava ajudar aos mais “necessitados” e eu me sentia bem com isso. A caridade é algo a se pensar, ela deve ser feita sim, mas temos que ter muito cuidado em seguir seus princípios básicos. Esses dias li uma frase dizendo algo parecido com: “quando fizer caridade não conte para ninguém para não humilhar quem recebeu”. A verdade é que quem mais se beneficiava desse posto de “empresária do bem” era meu ego, me sentia importante, fazendo algo para quem “precisava” e ganhando dinheiro com isso, porque o jargão “ecoturismo” é moda da contra-cultura e vende.

Eu tinha status e muito prestígio, enchia a boca para dizer coisas como “sou diretora” ou “minha empresa”, fui convidada para participar de palestras, sai no jornal, frequentei congressos, reuniões e rodas de discussões com pessoas comunicando-se através de seus notebooks e que provavelmente nunca passaram um dia sequer sem alimento na mesa discutindo como trazer desenvolvimento econômico para as comunidades locais. Hoje tenho até vergonha de pensar no quanto realmente acreditei em tudo isso. Toda essa crença foi perdendo força quando fiz meu mestrado na Holanda. Eu não consigo nem elaborar sobre o que penso da academia, porque é profundo e coloca muita coisa em xeque. Mas posso falar um pouco da área que estudei por ser algo que eu vivi. O turismo é novo setor para a academia, nele prevalecem homens caucasianos, com mais de 50 anos provenientes de países “desenvolvidos”. Eles dissertam sobre protocolos e “blueprints” para trazer desenvolvimento para comunidades locais de países de terceiro mundo onde quem mais sofre são as minorias, só que dentre muitos outros “poréms”, eles não fazem parte dessa minoria.

E muitos compram suas ideias e são publicados artigos e livros, replicados em teses e teses (que quase nunca são lidas por ninguém), é tanto apego a tantas verdades absolutas que recebem aval de tanta gente, e se todo mundo está acreditando junto, então é certo. Nesse contexto os doutores da razão são aclamados. Também vivemos em um mundo onde juiz é Deus porque estudou muito e do alto de sua toga julga “certos” e “errados ” baseado em legislações repletas de brechas que beneficiam poucos. E se engana quem pensa que estou me referindo apenas ao nosso país.

Pensei nisso agora pouco, quando cheguei ao hospital para ficar com meu pai que está em recuperação de uma cirurgia difícil, ele foi mudado de quarto e ninguém me avisou, quando cheguei no seu quarto vazio, me bateu um desespero tão grande que fui correndo perguntar na enfermagem e escutei da jovem bem apessoada do outro lado do balcão: “não sei porque sou médica!”.  Então pensei no doutor do doutorado e no juíz das leis, porque acho que médico deve ser uma espécie de ambos, é chamado de doutor e luta para vencer as barreiras e leis que permeiam a vida e a morte a todo e qualquer custo. Pensei também no que me amiga disse sobre o reconhecimento, sim nesse momento queria reconhecimento e respeito pela minha dor, mas a palavra “médica” saiu como se fora soberana: “não me incomode porque sou soberana” foi assim que eu ouvi. Sim, a medicina é um caso a parte e confesso que não sou muito fervorosa em sua defesa (pelo menos não como é manipulada hoje), pois minha experiência com médicos nesses últimos anos não tem sido das mais agradáveis.

Sim existem médicos bons e juízes bons. Meu primo médico diz que talvez eu esteja mesmo cansada do ser humano em geral. Pode ser que ele esteja certo, mas como acredito que somos todos iguais, para médicos e juízes como para todos os seres, desejo um mundo onde todos se permitam desapegar de verdades e mudar de ideia, como disse certa vez um sábio Raul, um mundo em que sejamos metamorfoses ambulantes, pois assim como a borboleta, só aprende a voar aquele que se permite passar por grandes metamorfoses. E para isso precisamos ter coragem de mudar de ideia, admitir erros, trocar a direção. Desejo então desconstruções profundas e esvaziamentos, pois nada de novo pode entrar ou mudar corações já preenchidos com tanta arrogância, orgulho e verdades absolutas. E espero que esse texto chegue logo no coração de quem mereça, porque amanhã já pode ser que eu tenha mudado de opinião.

4 características tristes de gente que faz rir

4 características tristes de gente que faz rir

Por Lara Vascouto

Primeiro o incrível Fausto Fanti decide deixar o mundo em 2014. Depois, o lendário Robin Williams. Infelizmente, deixar o mundo cedo demais parece ser mais comum do que qualquer um imaginaria entre os que ganham a vida fazendo os outros rir. Mas não chega a ser exatamente chocante, principalmente se você sabe que…

Ser engraçado e saber rir não são a mesma coisa

Em situações como o suicídio de comediantes excepcionais, é comum ouvir o eco das pessoas se perguntando: poxa! Mas ele era tão alegre e engraçado!? Infelizmente, este questionamento é o resultado de uma confusão que as pessoas fazem entre duas habilidades muito distintas uma da outra: saber rir e saber fazer os outros rir. É claro que uma não exclui a outra, mas é mais comum encontrar pessoas que possuem somente uma delas do que as duas. Por esse motivo, da mesma forma que a pessoa de riso frouxo pode ser incapaz de contar uma piada direito, um comediante excepcional pode ser incapaz de rir honestamente de alguma piada ou, principalmente, das turbulências da vida.

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Apesar da máscara de riso que a maioria deles usa.

Obviamente, isso não significa que só porque um cara é engraçado, ele é infeliz, mas apresenta outra implicação mais profunda: nem sempre os comediantes se beneficiam das piadas que contam da mesma forma que a sua platéia. Ele não morre de rir das próprias piadas e sim se satisfaz ao ver que você está rindo e essa diferença pode acabar significando uma vida menos saudável. Um estudo sobre humor desenvolvido ao longo de sete anos com 50.000 pessoas descobriu que ter um bom senso de humor e saber rir das adversidades que a vida apresenta faz bem para a saúde de modo geral. Outro estudo, realizado com pacientes em estágio final de doença renal, descobriu que os pacientes que apresentavam um bom senso de humor tinham mais chances de sobreviver por mais tempo.

Mas como é possível um cara tão engraçado não saber rir? Bom, isso talvez tenha a ver com fato de que…

Distúrbios psicológicos e comédia andam lado a lado

Um estudo realizado pelo British Journal of Psychology descobriu que o estereótipo do palhaço triste tem um grande fundo de verdade. O estudo descobriu que comediantes e pessoas muito engraçadas, em geral, tem níveis altos de características que, em casos extremos, podem ser associadas com doenças mentais como esquizofrenia e distúrbio bipolar. As características principais incluem introversão, tendências de comportamentos antissociais, impulsivos e desinteresse em se relacionar com outras pessoas mais intimamente. De acordo com o estudo, essas características podem ser as responsáveis pelas tiradas rápidas e associações incomuns que os comediantes geralmente apresentam – enquanto nós, reles mortais, só conseguimos pensar em uma boa resposta para aquele comentário passivo-agressivo que o ex fez no bar durante a volta pra casa.

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Droga, eu devia ter dito isso! Tudo bem, ele vai ver só! É pra isso que serve SMS.

De qualquer forma, não são exatamente características divertidas de se ter em níveis mais altos do que o resto da sociedade e certamente isso tem um efeito no bem-estar do indivíduo. Afinal, não são poucos os comediantes que sofrem com abuso de drogas e depressão. Só para citar alguns: Jerry Seinfeld admitiu ter algumas tendências depressivas e afirmou ao The New York Times que “se não fossem meus filhos, eu já estaria cansado de viver. Poderia me matar. Agora tenho algo pelo que viver”; Jim Carrey luta contra depressão severa há anos; e o próprio Robin Williams entrava e saía de clínicas de reabilitação por abuso de drogas e depressão profunda.

Mais triste do que saber que as pessoas que te fazem rir sofrem de depressão é imaginar que talvez isso aconteça porque…

Muitos comediantes sofreram algum tipo de abuso na infância

Seja abuso verbal, físico ou até social – como uma inadequação generalizada na escola – fato é que muitos comediantes não tiveram uma infância feliz e, de acordo com a teoria mais aceita, descobriram na comédia um mecanismo para aguentar os demônios interiores. Estudos apontam que entre 80% e 85% dos comediantes vêm de lares empobrecidos e se sentiam incompreendidos socialmente quando crianças, vivendo muitas vezes em um ambiente de isolamento e privação de afeto por parte dos pais. O humor, descoberto ainda na infância, seria usado nessas situações como um mecanismo de defesa – uma forma de ser socialmente aceito e de se tornar querido pelos outros.

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Normalmente, o palhaço da sala de aula está sempre rodeado de amigos, o que significa que a tática do humor funciona.

É claro que isso não é verdade para todos e muitos comediantes vieram de lares felizes, mas não é nada incomum descobrir que grande parte deles é atormentada pelo passado. E esse estereótipo do comediante atormentado é tão comum porque nós já vimos muitos deles tirarem a própria vida. É simplesmente fato que…

 

Suicídio chega a ser um desfecho comum para muitos comediantes

Robin William e Fausto Fanti são os exemplos mais recentes, mas muitos outros comediantes excepcionais já passaram dessa para melhor pelas próprias mãos. Greg Giraldo morreu de overdose de medicamentos. Lenny Bruce, de morfina. John Belushi, heroína e cocaína. Chris Farley, de morfina e cocaína. Mitch Hedberg, de cocaína e heroína. Freddie Prinze se deu um tiro. Richard Jeni também. O desfecho é tão comum que Jamie Masada, dono do famoso clube de comédia Laugh Factory, estabeleceu um programa de psicoterapia dentro do clube para atender as necessidades dos comediantes. De acordo com Masada: “De Richard Jeni colocando uma arma dentro da boca e se explodindo a Greg Giraldo usando drogas até a overdose, eu não aguento assistir a minha família toda, um a um, se autodestruindo”.

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Ei, comediante! Não nos deixe antes da hora! Nós te amamos!

Nota da CONTIoutra:  Nó de Oito é uma página parceira e o texto acima foi publicado com a autorização da autora.

Lara Vascouto

contioutra.com - 4 características tristes de gente que faz rirInternacionalista, ex-Googler e fanática por ler e escrever textos bem-humorados. Optou por ser pobre e feliz na praia ao invés de rica e triste em São Paulo.

Para mais artigos da autora acesse seu blog Nó de Oito

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