10 entendimentos de Jiddu Krishnamurti sobre grandes temas da humanidade

10 entendimentos de Jiddu Krishnamurti sobre grandes temas da humanidade

Jiddu Krishnamurti foi um filósofo, escritor, e educador indiano. Proferiu discursos que envolveram temas como revolução psicológica, meditação, conhecimento, liberdade, relações humanas, a natureza da mente, a origem do pensamento e a realização de mudanças positivas na sociedade global. Constantemente ressaltou a necessidade de uma revolução na psique de cada ser humano e enfatizou que tal revolução não poderia ser levada a cabo por nenhuma entidade externa seja religiosa, política ou social. Uma revolução que só poderia ocorrer através do autoconhecimento; bem como da prática correta da meditação ao homem liberto de toda e qualquer forma de autoridade psicológica.

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Caos planetário

Se você está infeliz, confuso, caótico por dentro, isso, por projeção se torna o mundo, se torna a sociedade, pois a relação entre você e eu, entre eu e outra pessoa é a sociedade– a sociedade é o produto das nossas relações – e se a nossa relação for confusa, egocêntrica, restrita, limitada, nacional, projetamos isso e trazemos o caos ao mundo.”

Morte

Não queremos saber o que a morte é; não queremos conhecer o extraordinário milagre, a beleza, a profundeza, a vastidão da morte. Não queremos investigar esta coisa que não conhecemos. Tudo que queremos é continuar.

Segurança

Através de todas estas tentativas de acumulação esperam ter a garantia da certeza; certeza essa que leve embora todas as dúvidas e ansiedade; certeza essa que lhes dá – pelo menos esperam que lhes dê – certeza de escolha.

Com o pensamento da certeza, escolhem, na esperança de ganhar mais compreensão. Assim, na busca da certeza nasce o medo da obtenção e o medo da perda.”

Energia

Energia é ação e movimento. Toda ação é movimento e toda ação é energia. Todo desejo é energia. Todo sentimento é energia, todo pensamento é energia. Todo viver é energia. Toda vida é energia.

Status

Todos, neste mundo, desejam prestígio, prestígio na sociedade, na família, ou à direita de Deus-Padre, mas esse prestígio tem de ser reconhecido por outros, pois, do contrário, não será prestígio. Queremos estar sempre sentados no palanque. Interiormente, somos remoinhos de aflição e de malevolência, e, por conseguinte, ser olhado exteriormente como uma grande figura proporciona imensa satisfação.

Amor

O amor é sempre o presente ativo. Não é “amarei” ou “amei”. Se conheceis o amor, não seguireis ninguém. O amor não obedece. Quando se ama, não há respeito nem desrespeito.

Não sabeis o que significa amar realmente alguém – amar sem ódio, sem ciúme, sem raiva, sem procurar interferir no que o outro faz ou pensa, sem condenar, sem comparar – não sabeis o que isto significa? Quando há amor, há comparação? Quando amais alguém de todo o coração, com toda a vossa mente, todo o vosso corpo, todo o vosso ser, existe comparação? Quando vos abandonais completamente a esse amor, não existe “o outro”.

Exploração do homem pelo homem

Todos nós sentimos realmente, nos nossos corações, a crueldade aterradora da exploração, se já tivermos pensado nisso um só instante. E contudo cada um de nós é apanhado nesta roda, neste sistema de exploração, e esperamos e temos esperança que por algum milagre nasça um novo sistema.

Vida

Eu afirmo que a vida não é um processo de aprendizagem, de acumulação. A vida não é uma escola na qual aprovam os exames sobre o que aprenderam, o que aprenderam das experiências, das ações, do sofrimento.

Evolução

Para a maioria de nós a ideia de evolução implica uma série de realizações, isto é, realizações nascidas da escolha contínua entre aquilo a que chamamos não essencial e o essencial. Implica deixar o não essencial e movimentar-se em direção ao essencial. A esta série de contínuas realizações resultantes da escolha, chamamos evolução.

Mente e coração

E a mente e o coração – que para mim são a mesma coisa, divido-as por conveniência de discurso – são debilitadas e nubladas pela memória, e a memória é o resultado nascido da procura de segurança, é o resultado do ajustamento ao meio, e essa memória está continuamente a nublar a mente que é em si inteligência, e portanto dividindo-a da inteligência; essa memória cria a falta de compreensão, essa memória cria o conflito entre a mente e o meio

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Verdade

Não se pode descobrir o que é o valor verdadeiro enquanto a mente estiver à procura de consolo; e uma vez que a maioria das mentes anda à procura de consolo, conforto, segurança, não podem descobrir o que é a verdade.

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Edgar Morin e a poesia da vida

Edgar Morin e a poesia da vida

“Não se pode sonhar com uma felicidade contínua para a humanidade”

Edgar Morin, sociólogo e filósofo francês, reflete sobre a fragilidade e a complexidade da felicidade. Para ele, o grande segredo da vida é favorecer elementos que permitam uma vida poética, repleta de momentos de êxtase e de alegria. Conferencista do Fronteiras do Pensamento nos anos de 2008 e 2011.

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Um senhor muito velho com umas asas muito grandes, conto de Gabriel García Márquez

Um senhor muito velho com umas asas muito grandes, conto de Gabriel García Márquez

No terceiro dia de chuva tinham matado tantos caranguejos dentro de casa que Pelayo teve de atravessar o seu pátio inundado para atirá‑los ao mar, pois o bebé recém‑nascido tinha passado a noite com febre e pensava‑se que era por causa da pestilência. O mundo estava triste desde terça‑feira. O céu e o mar eram uma única e mesma coisa de cinza e as areias da praia, que em Março resplandeciam como poeira de luz, tinham‑se transformado numa papa de lodo e mariscos podres. A luz era tão fraca ao meio‑dia que, quando Pelayo regressava a casa depois de ter deitado fora os caranguejos, teve dificuldade em ver o que era que se movia e gemia no fundo do pátio. Teve de aproximar‑se muito, para descobrir que era um homem velho, que estava caído de borco no lodaçal e que, apesar dos seus grandes esforços, não podia levantar‑se, porque lho impediam as suas enormes asas.

Assustado por aquela visão aflitiva, Pelayo correu em busca de Elisenda, sua mulher, que estava a pôr compressas ao bebé doente, e levou‑a até ao fundo do pátio. Ambos observaram o corpo caído com um silencioso pasmo. Estava vestido como um trapeiro. Não lhe restavam mais do que uns fiapos descoloridos no crânio pelado e pouquíssimos dentes na boca, e essa lastimosa condição de bisavô ensopado tinha‑o desprovido de qualquer grandeza. As suas asas de abutre velho, sujas e meio depenadas, estavam encalhadas para sempre no lodaçal. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que Pelayo e Elisenda muito rapidamente se recompuseram do assombro e acabaram por achá‑lo familiar. Então atreveram‑se a falar‑lhe, e ele respondeu‑lhes num dialecto incompreensível, mas com uma boa voz de navegante. Foi por isso que deixaram de preocupar‑se com o inconveniente das asas e chegaram à sensata conclusão de que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro, desfeito pelo temporal. Contudo, chamaram, para que o visse, uma vizinha que sabia todas as coisas da vida e da morte, e a ela chegou‑lhe um olhar para tirá‑los do engano.

‑ É um anjo ‑ disse‑lhes. ‑ Com certeza vinha por causa da criança, mas o desgraçado está tão velho que a chuva o fez cair.

No dia seguinte toda a gente sabia que em casa de Pelayo tinham cativo um anjo de carne e osso. Contra o critério da vizinha sábia, para quem os anjos destes tempos eram sobreviventes fugitivos de uma conspiração celestial, não tinham tido coragem para matá‑lo à paulada. Pelayo esteve toda a tarde a vigiá‑lo, da cozinha, armado com o seu garrote de aguazil, e, antes de deitar‑se, tirou‑o de rastros do lodaçal e fechou‑o com as galinhas no galinheiro alambrado. À meia‑noite, quando terminou a chuva, Pelayo e Elisenda continuavam a matar caranguejos. Pouco depois o menino acordou, sem febre e com desejos de comer. Então sentiram‑se magnânimos e decidiram pôr o anjo numa balsa com água doce e provisões para três dias e abandoná‑lo à sua sorte no mar alto. Mas, quando foram ao pátio com as primeiras claridades, encontraram toda a vizinhança em frente do galinheiro, divertindo‑se com o anjo, sem a menor devoção e a atirar‑lhe coisas para comer pelos buracos dos alambres, como se não se tratasse de uma criatura sobrenatural, mas sim de um animal de circo.

O padre Gonzaga chegou antes das sete, alarmado pela desproporção da notícia. A essa hora já tinham acorrido curiosos menos frívolos que os do amanhecer e tinham feito toda a espécie de suposições sobre o futuro do cativo. Os mais simples pensavam que seria nomeado alcaide do mundo. Outros, de espírito mais austero, supunham que seria promovido a general de cinco estrelas, para que ganhasse todas as guerras. Alguns visionários esperavam que fosse conservado como reprodutor, para implantar na Terra uma estirpe de homens alados e sábios que se encarregassem do universo. Mas o padre Gonzaga, antes de ser cura, tinha sido lenhador vigoroso. Chegado aos alambres, fez uma rápida revisão do seu catecismo, e, entretanto, pediu que lhe abrissem a porta, para examinar de perto aquele varão de lástima que mais parecia uma enorme galinha decrépita entre as galinhas absortas. Estava deitado num canto, secando ao sol as asas estendidas, entre as cascas de frutas e as sobras de pequenos‑almoços que lhe tinham atirado os madrugadores. Alheio às impertinências do mundo, mal levantou os seus olhos de antiquário e murmurou alguma coisa no seu dialecto quando o padre Gonzaga entrou no galinheiro e lhe deu os bons‑dias em latim. O pároco teve a primeira suspeita da sua impostura ao verificar que não compreendia a língua de Deus nem sabia cumprimentar os seus ministros. A seguir, observou que, visto de perto, tinha a aparência demasiado humana: tinha um insuportável odor de intempérie, o avesso das asas semeado de algas parasitárias e as penas maiores maltratadas por ventos terrestres, e nada da sua natureza miserável estava de acordo com a egrégia dignidade dos anjos. Então abandonou o galinheiro e, com um breve sermão, preveniu os curiosos contra os riscos da ingenuidade. Recordou‑lhes que o Demónio tinha o mau hábito de servir‑se de artifícios de Carnaval para confundir os incautos. Argumentou que, se as asas não eram o elemento essencial para determinar as diferenças entre um gavião e um aeroplano, muito menos o podiam ser para reconhecer os anjos. No entanto, prometeu escrever uma carta ao seu bispo, para que este escrevesse outra ao seu primaz e para que este escrevesse outra ao Sumo Pontífice, de maneira que o veredicto final viesse dos tribunais mais altos.

A sua prudência caiu em corações estéreis. A notícia do anjo cativo divulgou‑se com tanta rapidez que ao cabo de poucas horas havia no pátio um alvoroço de mercado, e tiveram de levar a tropa, com baionetas, para espantar o tumulto, que já estava quase a deitar a casa abaixo. Elisenda, com o espinhaço torcido de tanto varrer lixo de feira, teve então a boa ideia de taipar o pátio e receber cinco centavos pela entrada para ver o anjo.

Vieram curiosos até da Martinica. Veio uma feira ambulante com um acrobata voador, que passou a zumbir várias vezes por cima da multidão, mas ninguém lhe ligou importância, porque as suas asas não eram de anjo, mas de morcego sideral. Vieram em busca de saúde os doentes mais infelizes do Caribe: uma pobre mulher que desde criança estava a contar os latejos do seu coração e já não tinha números que lhe chegassem, um jamaicano que não podia dormir porque o atormentava o ruído das estrelas, um sonâmbulo que se levantava de noite para desfazer as coisas que tinha feito acordado, e muitos outros de menor gravidade. No meio daquela desordem de naufrágio que fazia tremer a terra, Pelayo e Elisenda estavam felizes de cansaço, porque em menos de uma semana atulhavam de dinheiro os quartos de dormir, e, todavia, a fila de peregrinos que esperavam vez para entrar chegava até ao outro lado do horizonte.

O anjo era o único que não participava do seu próprio acontecimento. O tempo ia‑se‑lhe em procurar acomodação no seu ninho emprestado, aturdido pelo calor de inferno das lamparinas de azeite e das velas de sacrifício que lhe encostavam aos alambres. Ao princípio insistiram para que comesse cristais de cânfora, que, de acordo com a sabedoria da vizinha sábia, era o alimento específico dos anjos. Mas ele desprezava‑os, como desprezou, sem os provar, os almoços papais que lhe levavam os penitentes, e nunca se soube se foi por ser anjo ou por ser velho que acabou por comer nada mais que papas de beringela. A sua única virtude sobrenatural parecia ser a paciência. Sobretudo nos primeiros tempos, quando o espiolhavam as galinhas em busca dos parasitas estelares que proliferavam nas suas asas e os aleijados lhe arrancavam penas, para tocar com elas nos seus defeitos, e até os mais piedosos lhe atiravam pedras, tentando conseguir que se levantasse, para vê‑lo de corpo inteiro. A única vez que conseguiram perturbá‑lo foi quando lhe queimaram as costas com um ferro de marcar novilhos, porque havia tantas horas que estava imóvel que pensaram que estava morto. Acordou sobressaltado, disparatando em língua hermética e com os olhos em lágrimas, e bateu as asas duas vezes, o que provocou um remoinho de estrume de galinheiro e pó lunar e um vendaval de pânico que não parecia deste mundo. Apesar de muitos terem ficado convencidos de que a sua reacção não tinha sido de raiva, mas sim de dor, desde esse dia trataram de não o incomodar, porque a maioria compreendeu que a sua passividade não era a de um herói em gozo de boa reforma, mas a de um cataclismo em repouso.

O padre Gonzaga enfrentou a frivolidade da multidão com fórmulas de inspiração doméstica, enquanto lhe chegava um parecer decisivo sobre a natureza do cativo. Mas o correio de Roma tinha perdido a noção da urgência. O tempo ia‑se‑lhes a averiguar se o prisioneiro tinha umbigo, se o seu dialecto tinha alguma coisa a ver com o aramaico, se podia caber muitas vezes na ponta dum alfinete, ou se não seria simplesmente um norueguês com asas. Aquelas cartas de parcimónia teriam ido e vindo até ao fim dos séculos se um acontecimento providencial não tivesse posto um fim às tribulações do pároco.

Sucedeu que, por esses dias, entre muitas outras atracções das feiras ambulantes do Caribe, levaram ao povoado o espectáculo triste da mulher que se tinha convertido em aranha por ter desobedecido a seus pais. A entrada para a ver não só custava menos que a entrada para ver o anjo, mas ainda permitiam fazer‑lhe toda a espécie de perguntas sobre a sua absurda condição e examiná‑la pelo direito e pelo avesso, de maneira que ninguém pusesse em dúvida a veracidade do horror. Era uma tarântula espantosa do tamanho de um carneiro e com a cabeça de uma donzela triste. Porém, o mais aflitivo não era a sua aparência de disparate, mas a sincera aflição com que contava os pormenores da sua desgraça; sendo quase uma criança, tinha‑se escapado de casa dos seus pais para ir a um baile, e, quando regressava pelo bosque, depois de ter dançado toda a noite sem autorização, um trovão pavoroso abriu o céu em duas metades e por aquela greta saiu o relâmpago de enxofre que a converteu em aranha. O seu único alimento eram as bolinhas de carne moída que as almas caritativas quisessem deitar‑lhe na boca. Semelhante espectáculo, carregado de tanta verdade humana e de tão temível castigo, tinha de derrotar, sem premeditação, o de um anjo despeitoso que mal se dignava olhar para os mortais. Além disso, os raros milagres que se atribuíam ao anjo revelavam uma certa desordem mental, como o do cego que não recuperou a vista mas a quem apareceram três dentes novos, o do paralítico que não pôde andar mas esteve quase a ganhar a lotaria e o do leproso a quem nasceram girassóis nas feridas. Aqueles milagres de consolação, que mais pareciam divertimentos de troça, já tinham enfraquecido a reputação do anjo quando a mulher convertida em aranha acabou de a aniquilar.

Foi desta maneira que o padre Gonzaga se curou para sempre das insónias e o pátio de Pelayo voltou a ficar tão solitário como nos tempos em que choveu três dias e os caranguejos andavam pelos quartos.

Os donos da casa não tiveram nada que lamentar. Com o dinheiro arrecadado construíram uma mansão de dois andares, com balcões e jardins e com muros muito altos, para que não entrassem os caranguejos do Inverno, e com barras de ferro nas janelas, para que não entrassem os anjos. Pelayo instalou, além disso, uma criação de coelhos muito perto da povoação, renunciando para sempre ao seu mau emprego de aguazil, e Elisenda comprou uns sapatos acetinados com saltos altos e muitos vestidos de seda furta‑cor, como os que usavam as senhoras mais categorizadas nos domingos daqueles tempos. O galinheiro foi a única coisa que não mereceu atenção. Se alguma vez o lavaram com creolina e nele queimaram as lágrimas de mirra, não foi para prestar honras ao anjo, mas para conjurar a pestilência de esterqueira, que andava como um fantasma por toda a parte e estava a tornar velha a casa nova. Ao princípio, quando o menino começou a andar, tiveram cuidado para que não estivesse muito perto do galinheiro. Mas depois foram‑se esquecendo do temor e acostumando‑se à pestilência, e antes que o menino mudasse os dentes tinha‑se habituado a brincar dentro do galinheiro, cujos alambres apodrecidos caíam aos bocados. O anjo não foi menos desabrido para com ele do que para com o resto dos mortais, mas suportava as infâmias mais engenhosas com uma mansuetude de cão sem ilusões. Ambos contraíram a varicela ao mesmo tempo. O médico que tratou o menino não resistiu à tentação de auscultar o anjo e encontrou‑lhe tantos sopros no coração e tantos ruídos nos rins que não lhe pareceu possível que estivesse vivo. O que mais o assombrou, contudo, foi a lógica das suas asas. Pareciam tão naturais naquele organismo completamente humano que não podia compreender‑se porque não as tinham também os outros homens.

Quando o menino foi à escola, havia muito tempo que o sol e a chuva tinham desmantelado o galinheiro. O anjo andava a arrastar‑se por aqui e por ali, como um moribundo sem dono. Expulsavam‑no a vassouradas de um quarto e um momento depois encontravam‑no na cozinha. Parecia estar em tantos lugares ao mesmo tempo que chegaram a pensar que se desdobrava, que se repetia a si mesmo por toda a casa, e a exasperada Elisenda gritava, fora de si, que era uma desgraça viver naquele inferno cheio de anjos. Mal podia comer, os seus olhos de antiquário tinham‑se‑lhe tornado tão turvos que andava a tropeçar nas vigas que sustentavam o telhado e já não lhe restavam senão os ráquis pelados das últimas penas. Pelayo atirou‑lhe para cima uma manta e fez‑lhe a caridade de o deixar dormir no alpendre, e só então repararam que passava a noite com febres, delirando, em tartamudeios de norueguês velho. Foi essa uma das poucas vezes em que se alarmaram, porque pensavam que ia morrer e nem sequer a vizinha sábia tinha podido dizer‑lhes o que se fazia com os anjos mortos.

No entanto, não só sobreviveu ao seu pior Inverno como até pareceu melhor com os primeiros sóis. Permaneceu imóvel durante muitos dias no canto mais afastado do pátio, onde ninguém o visse, e em princípios de Dezembro começaram a nascer‑lhe nas asas umas penas grandes e duras, penas de passarão velho, que mais pareciam um novo percalço da decrepitude. Mas ele devia conhecer a razão dessas mudanças, porque tinha todo o cuidado para que ninguém as notasse e para que ninguém ouvisse as canções de navegantes que às vezes cantava sob as estrelas.

Uma manhã, Elisenda estava a cortar rodelas de cebola para o almoço, quando um vento que parecia do alto mar se meteu na cozinha. Então assomou‑se à janela e surpreendeu o anjo nas primeiras tentativas do voo. Eram tão desajeitadas que abriu com as unhas um sulco de arado nas hortaliças e esteve quase a deitar abaixo o alpendre, com aqueles adejos indignos que escorregavam na luz e não encontravam apoio no ar. Mas conseguiu ganhar altura. Elisenda exalou um suspiro de alívio, por ela e por ele, quando o viu passar por cima das últimas casas, sustentando‑se de qualquer maneira com um agourento esvoaçar de abutre senil. Continuou a vê‑lo até ter acabado de cortar a cebola, e continuou a vê‑lo até quando já não era possível que o pudesse ver, porque nesse momento já não era um estorvo na sua vida, mas um ponto imaginário no horizonte do mar.

Gabriel García Márquez, 1968.

Do blog mais do que indicado:  Pessoa

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Sugestão para o carnaval: que tal um retiro de meditação Vipassana em casa?

Sugestão para o carnaval: que tal um retiro de meditação Vipassana em casa?

Por Grace Bender

Época de carnaval é sempre associada a farras e extravasos, o legítimo “adeus à carne” – já que na origem do termo, a data precedia os dias de jejum da quaresma. Independente do significado, eis aí um feriado auspicioso para fazer o movimento inverso: ao invés de ir para fora, já experimentou voltar-se para dentro e ver o que acontece?

A sugestão é aproveitar os dias de feriado para ampliar a consciência acerca de si mesmo, um encontro que você jamais esquecerá! Um retiro em casa é uma opção agradável para quem não tem a oportunidade de participar de um retiro oficial. E do que você precisará dispor? De muito pouco: Um espaço silencioso em que não poderá ser perturbado (se mora sozinho, sua própria casa será um lugar perfeito, ou em algum chalé de preferência perto da natureza); no máximo três refeições por dia (opte por uma alimentação mais leve e vegetariana) algumas boas almofadas para sentar-se confortavelmente, e agora o último e mais importante elemento: muita determinação e disciplina para cumprir até o fim a jornada!

Já a lista do que você não vai precisar é bem maior: dê um descanso para o computador, o celular, a televisão, inclusive para os livros ou qualquer outro artefato que possa causar distração. A ideia é realmente se desconectar da rotina, das preocupações e afazeres mundanos. Importante também lembrar que o retiro Vipassana é baseado no absoluto e completo silêncio. Vipassana significa “ver as coisas como elas realmente são” e isto significa abster-se dos diálogos externos e internos. Nesta meditação, observamos cada sensação do corpo no corpo.

Aqui o corpo é seu grande aliado, uma verdadeira âncora que o conecta ao momento presente. O corpo nunca pode estar em outro lugar que não no agora.

Para quem nunca teve intimidade com a prática de meditação Vipassana, ou nunca realizou nenhum dos retiros de 10 dias de silêncio, sugiro que utilize seu método de meditação pessoal ou a meditação de sua preferência. Não importa qual for, desde que você esteja totalmente consciente e ela possa lhe abrir para um espaço meditativo e silencioso. Se for uma meditação ativa, não esqueça de dedicar o tempo proporcional de atividade ao tempo de não-atividade (sentado em posição confortável, com a coluna bem ereta, olhos cerrados ou semi-cerrados). Isto é muito importante de ser ressaltado, uma vez que nossa sociedade cultua freneticamente o fazer e a hiperatividade, dedicando-se pouco à simples contemplação do Ser. Por isso insisto na importância de, nesse dia, abster-se de qualquer afazer que possa distanciá-lo do agora. Esse é o maior presente que você pode se dar. Um luxo inigualável!

Os preparativos devem acontecer desde a noite anterior ao dia de retiro. Procure deixar suas refeições encaminhadas, para que não precise se preocupar com isso na hora em que for se alimentar. Dê preferência a alimentos leves, vegetarianos, orgânicos. Exclua ingredientes artificiais ou industrializados e que contenham estimulantes como a cafeína. Após os preparativos dos alimentos e do local de meditação, recolha-se cedo para dormir, entre 22:00-22:30h. Não esqueça de avisar com antecedência parentes e amigos para que não seja atrapalhado. Coloque o despertador para tocar e lembre-se: assim que acordar, o retiro estará valendo!

Confira um breve roteiro para você se guiar durante seu dia de meditação:

5:00 às 6:00 Hora de despertar, faça a higiene pessoal, escove os dentes, tome banho (um banho frio para ativar a circulação e ajudar a afastar o sono), coloque roupas limpas e confortáveis;

6:30 às 7:00 Primeira prática do dia, deve ser feita ainda em jejum para aproveitar o máximo da serenidade do horário do dia. Sessão de 1h ou duas de 30 minutos com um breve intervalo para descanso;

8:00 às 10:00  Desjejum e descanso. Aproveite para degustar lentamente sua primeira refeição. Comer já é uma prática completa de meditação em si! No período de descanso, saiba contemplar, cada passo, cada mínimo detalhe do local onde estiver, cada pensamento que sondar sua mente, cada respiração e cada som que escutar. Evite quaisquer distrações;

10:30 às 11:00 Segunda sessão da manhã. Pode ser de tempo mais reduzido. Recomendo mínimo de 30 minutos;

11:30 – 14:30  Pausa para o almoço. Lembre-se de comer devagar e com plena atenção ao sabor, às cores e textura do alimento. Mastigue lentamente. Após o almoço você poderá fazer um descanso prolongado. Importante voltar à meditação somente depois de duas à três horas após o término da refeição;

15:00 às 16:30  Prática meditativa. Entre 1h e 1h30 de duração;

17:00 às 18:00  Pausa, seguida de jantar;

19:00 Última rodada da noite. Meditação mais longa. Dê o seu melhor!

22:00 Deite-se respeitando os votos de silêncio e durma tranquilamente.

Nota da Conti outra: o texto acima foi publicado com a autorização da autora.

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Ao acordar, procure permanecer ainda mais alguns instantes em silêncio e faça uma última meditação de encerramento.

Em um retiro Vipassana a duração diária de meditação pode chega à 10 horas. A quantidade de horas aqui pode ser ajustada conforme o nível de experiência e prática pessoal de cada um. O mais importante não é exatamente a quantidade, mas a qualidade de sua entrega. O roteiro acima foi criado baseado no retiro de meditação Vipassana de 10 dias. É altamente recomendado para pessoas que já possuem alguma experiência com Vipassana ou para aqueles que possuem um estilo de vida extremamente ativo, com poucos períodos de silêncio e quietude.

Ainda assim, você mesmo pode criar seu próprio dia de retiro usando sua criatividade, disposição e vontade para fazer suas próprias regras. Afinal, você é o único que deve contas a si mesmo. Há até quem prefira realizar jejuns paralelamente ao período de meditação.

Cultive uma postura contemplativa, ancorada no presente. Tenha persistência e não dê ouvidos às vozes mentais que tentarão sabotar seu mergulho dentro de si mesmo. Muitos conflitos e pensamentos turvos poderão vir à tona e este é um bom sinal: significa que o processo de limpeza dos samskaras (impressões remanescentes que levam a padrões e condicionamentos) estão agora atuando na camada mais superficial da sua mente.

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Escritora, mestre em comunicação, pesquisadora, artista, entusiasta espiritualista e terapeuta / professora de yoga. Nas horas vagas contenta-se em contemplar, compor músicas e investigar seu próprio universo interior.

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Todo para sempre é provisório

Todo para sempre é provisório

Por Nara Rúbia Ribeiro

Quando crianças, somos tomados pela alegria das incessantes descobertas. Nesse tempo, o deslumbramento nos instiga a sondar e a conhecer, a tocar o não sabido, a explorar o incerto. Na medida em que vamos crescendo, tomamos um caminho contrário. Cercamo-nos de certezas diversas na ilusão de que essa redoma nos deixará seguros. Então passamos a desejar que o conhecido e amado se perpetue no tempo e no espaço, e nos fechamos para o novo.

Passamos, assim, a escolher caminhos com a intenção de perenidade, firmamos compromissos com prazos a perder de vista, desenhamos o nosso destino, celebramos contratos, juramos amores selados de eternidade. Contudo, todo para sempre é provisório. Os planos, as metas, as juras eternas, eles são o cenário perfeito para que a vida se mostre maior do que toda e qualquer previsão.

É que o verdadeiro viver só acontece no improviso. Ele acontece quando um “quase”  nos resvala a alma. Quando um “se” nos exaspera. Quando você olha um desconhecido e percebe que ele o observa e que os olhos dele brilham. Quando você finalmente constata que a profissão dos seus sonhos não era tão a profissão dos seus sonhos assim e que você pode criar alternativas. Ele acontece quando tudo transborda ou quando tudo falta, e você sente que algo dentro de si se agiganta e que você pode ser maior do que é.

A vida não tem relógio de ponto. Não se apresenta de hora marcada. Ela não vem com manuais. Não tem garantias. Mas é  uma aventura a ser levada a sério, pois tudo só é  enquanto não se esvair. E tudo se esvai de nós, embora em nós ainda possa eternizar-se.

O bonito é regressar às infâncias e ver, com a maturidade dos nossos olhos já vividos, que existe beleza nesse caos. Perceber que existem flores e perfumes nesse tumulto. Saber que não fomos feitos para o tédio, que não nascemos para ser mornos. Certamente se a beleza de ontem fosse eterna já não encontraria o mesmo eco em nossas almas. Afinal, aquele que em nós viveu já não é vivo. Somos, a cada dia, a nossa mais nova reinvenção.

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Nara Rúbia Ribeiro: colunista CONTI outra

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Escritora, advogada e professora universitária.
Administradora da página oficial do escritor moçambicano Mia Couto.
No Facebook: Escritos de Nara Rúbia Ribeiro
Mia Couto oficial

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10 cartões de visita extremamente criativos e inusitados

10 cartões de visita extremamente criativos e inusitados

Existe uma matéria que foi publicada pelo site Tudo Interessante chamada  23 Cartões de visita extremamente criativos que deixarão os demais obsoletos.

Como o conteúdo realmente era “muito interessante”, fizemos uma triagem dos 10 cartões que consideramos os mais criativos e trouxemos para vocês se inspirarem.

Divirtam-se!

1. Cartão do advogado especialista em divórcios

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2. Cartão do professor de yoga

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3. Cartão do médico especialista em circuncisões

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4- Cartão do personal trainer

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5- Esse nem cartão é! Palmas pra esse centro de yoga, muito criativo

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6. Cartão do sommelier. Um dos melhores, na minha opinião: simples, criativo e eficaz.

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7. Cartão do cirurgião plástico

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8. Cartão-cárie do dentista (bem bolado)

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9. Cartão ralador de queijo da loja de queijos (Brasil inovando novamente. Parabéns)

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10. Cartão comestível. Pena que não dura pra sempre.

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Indicação da seleção Beatriz Arte Confeitaria.

Cartão de professora de Yoga

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Por que as mentes mais brilhantes precisam de solidão?

Por que as mentes mais brilhantes precisam de solidão?

Por SILVIA DÍEZ

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Segundo o professor Robert Lang, da Universidade de Nevada (Las Vegas), especialista em dinâmicas sociais, muitos de nós acabarão vivendo sozinhos em algum momento, porque a cada dia nos casamos mais tarde, a taxa de divórcio aumenta, e as pessoas vivem mais. A prosperidade também incentiva esse estilo de vida, escolhido na maioria dos casos voluntariamente, pelo luxo que representa. A jornalista Maruja Torres, em sua autobiografia, Mujer en Guerra (da editora Planeta España, não publicada em português), já se vangloriava do prazer que lhe dava cair na cama e dormir sozinha, com pernas e braços em X. A isso se soma a comodidade de dispor do sofá, poder trocar de canal sem ter que negociar, improvisar planos sem avisar nem dar explicações, andar pela casa de qualquer jeito, comer a qualquer hora…

Como se fosse pouco, o sociólogo Eric Klinenberg, da Universidade de Nova York, autor do estudo GOING SOLO: The Extraordinary Rise and Surprising Appeal of Living Alone (ficando só: o extraordinário aumento e surpreendente apelo de viver sozinho, em tradução livre), está convencido de que viver só significa, também, desfrutar de relações com mais qualidade, já que a maioria dos solteiros vê claramente que a solidão é muito melhor que se sentir mal-acompanhado. Há até estudos que asseguram que a solidão facilita o desenvolvimento da empatia. Outra socióloga, Erin Cornwell, da Universidade Cornell, em Ítaca (Nova York), concluiu, depois de diversas análises, que pessoas com mais de 35 anos que moram sozinhas têm maior probabilidade de sair com amigos que as que vivem como casais. O mesmo acontece com as pessoas adultas que, embora vivendo sozinhas, têm uma rede social de amizades tão grande ou maior que a das pessoas da mesma idade que vivem acompanhadas. É a conclusão do estudo feito pelo sociólogo Benjamin Cornwell publicado na American Sociological Review.

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Fotografia Tom Chambers.

A base da criatividade e da inovação

As pessoas são seres sociais, mas depois de passar o dia rodeadas de gente, de reunião em reunião, atentas às redes sociais e ao celular, hiperativas e hiperconectadas, a solidão oferece um espaço de repouso capaz de curar. Uma das conclusões mais surpreendentes é que a solidão é fundamental para a criatividade, a inovação e a boa liderança. Estudo realizado em 1994 por Mihaly Csikszentmihalyi (o grande psicólogo da felicidade) comprovou que os adolescentes que não aguentam a solidão são incapazes de desenvolver seu talento criativo.

Susan Cain, autora do livro Quiet: The Power of Introverts in a World That Can’t Stop Talking (silêncio: o poder dos introvertidos num mundo que não consegue parar de falar), cuja conferência na plataforma de ideias TED Talks é uma das favoritas de Bill Gates, defende ao extremo a riqueza criativa que surge da solidão e pede, pelo bem de todos, que se pratique a introversão. “Sempre me disseram que eu deveria ser mais aberta, embora eu sentisse que ser introvertida não era algo ruim. Durante anos fui a bares lotados, muitos introvertidos fazem isso, o que representa uma perda de criatividade e de liderança que nossa sociedade não pode se permitir. Temos a crença de que toda criatividade e produtividade vem de um lugar particularmente sociável. Só que a solidão é o ingrediente essencial da criatividade. Darwin fazia longas caminhadas pelo bosque e recusava enfaticamente convites para festas. Steve Wozniak inventou o primeiro computador Apple sentado sozinho em um cubículo na Hewlett Packard, onde então trabalhava. Solidão é importante. Para algumas pessoas, inclusive, é o ar que respiram.”

Cain lembra que quando estão rodeadas de gente, as pessoas se limitam a seguir as crenças dos outros, para não romper a dinâmica do grupo. A solidão, por sua vez, significa se abrir ao pensamento próprio e original. Reclama que as sociedades ocidentais privilegiam a pessoa ativa à contemplativa. E pede: “Parem a loucura do trabalho constante em equipe. Vão ao deserto para ter suas próprias revelações”.

A conquista da liberdade

“Só quando estou sozinha me sinto totalmente livre. Reencontro-me comigo mesma e isso é agradável e reparador. É certo que, por inércia, quanto menos só se está, mais difícil é ficá-lo. Mesmo assim, em uma sociedade que obriga a ser enormemente dependente do que é externo, os espaços de solidão representam a única possibilidade se fazer contato novamente consigo. É um movimento de contração necessário para recuperar o equilíbrio”, diz Mireia Darder, autora do livro Nascidas para o Prazer (Ed. Rigden, não publicado em português).

Também o grande filósofo do momento, Byung-Chul Han, autor de A Sociedade do Cansaço (Ed. Relogio D’Agua, de Portugal), defende a necessidade de recuperar nossa capacidade contemplativa para compensar nossa hiperatividade destrutiva. Segundo esse autor, somente tolerando o tédio e o vácuo seremos capazes de desenvolver algo novo e de nos desintoxicarmos de um mundo cheio de estímulos e de sobrecarga informativa. Byung-Chul Han preza as palavras de Catão: “Esquecemos que ninguém está mais ativo do que quando não faz nada, nunca está menos sozinho do que quando está consigo mesmo”.

Autoconsciência e análise interior

As 5 chaves para desfrutar da solidão

1. Você é sua melhor companhia. A premissa básica é mudar a crença de que quem está acompanhado está melhor.

2. Uma oportunidade para nos conhecermos melhor e descobrir nosso rico mundo interior.

3. Em vez de se torturar, é preciso aproveitar a solidão para ler, pintar ou praticar esporte.

4. Escrever um diário. Ajuda a expressar sentimentos e a contemplar-se com mais conhecimento e carinho.

5. Como indica o psicólogo Javier Urra, com a solidão recuperamos “o gosto pelo silêncio e pelo domínio do tempo”.

“Para mim a solidão representa a oportunidade de revisar nosso gerenciamento, de projetar o futuro e avaliar a qualidade dos vínculos que construímos. É um espaço para executar uma auditoria existencial e perguntar o que é essencial para nós, além das exigências do ambiente social”, diz o filósofo Francesc Torralba, autor de A Arte de Ficar Só (Ed. Milenio) e diretor da cátedra Ethos da Universidade Ramon Llull. Na solidão deixamos esse espaço em branco para ouvir sem interferências o que sentimos e precisamos. “A solidão nos dá medo porque com ela caem todas as máscaras. Vivemos sempre mantendo as aparências, em busca de reconhecimento, mas raramente tiramos tempo para olhar para dentro”, diz Torralba.

Na verdade, a solidão desperta o medo porque costuma ser associada ao vazio e à tristeza, especialmente quando é postergada longamente por uma atividade frenética e anestesiante. Para Mireia Darder, é bom enfrentar esse momento tendo em mente que a tristeza resulta simplesmente do fato de se soltar depois de tanta tensão e de ter feito um esforço enorme para aparentar força e suportar a pressão frente aos que nos cercam. “Não se pode esquecer que para ser realmente independente é preciso aprender a passar pela solidão. O amor não é o contrário da solidão, e sim a solidão compartilhada”, diz Darder.

Em nossa sociedade, a inatividade —que surge com frequência da solidão— é temida e desperta a culpa. Fomos preparados para a ação e para fazer muitas coisas ao mesmo tempo, mas é quando estamos sozinhos que podemos refletir sobre o que fazemos e como o fazemos. O escritor Irvin Yalom, titular de Psiquiatria na Universidade de Stanford, confessava que desde que tinha consciência se sentia “assustado pelos espaços vazios” de seu eu interior. “E minha solidão não tem nada a ver com a presença ou ausência de outras pessoas. De fato detesto os que me privam da solidão e além disso não me fazem companhia.” Algo que, segundo Francesc Torralba, é muito frequente: “Embora estejamos cercados de gente e de formas de comunicação, há um alto grau de isolamento. Não existe sensação pior de solidão que aquela que se experimenta ao estar em casal ou com gente”.

Estudo: Pais manipuladores criam filhos inaptos para relações futuras

Estudo: Pais manipuladores criam filhos inaptos para relações futuras

Por Marta F. Reis

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Um estudo da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, avisa os pais que a forma como interagem com as crianças pode hipotecar as suas relações futuras com amigos e namorados.

Os pais que sempre tentam mudar o que os filhos sentem, tentam educá-los fazendo-os  se sentirem culpados ou ameaçando-os de que, se não fizerem as coisas à sua maneira, vão gostar menos deles, não arriscam apenas contribuir para um ambiente hostil em casa enquanto os filhos são adolescentes. Um estudo da Universidade da Virgínia concluiu que este tipo de táticas psicológicas afeta as relações que mais tarde os jovens terão com amigos e namorados. As crianças que crescem sujeitas a este tipo de manipulação psicológica tendem a ser menos independentes e abertas nas suas relações, concluem os investigadores num artigo publicado esta semana na revista científica “Child Development”.

Barbara Oudekerk, co-autora do estudo, explicou ao i que não se trata de os pais não poderem orientar os filhos para o que entendem ser as opções mais saudáveis. A forma como o fazem é que pode ser problemática. A equipe dedicou-se a investigar uma questão relativamente consensual da psicologia do desenvolvimento: os adolescentes menos independentes tendem a ter mais dificuldades de relacionamento quando crescem. O objetivo era perceber o que estaria na origem dessa lacuna e, para isso, os pesquisadores testaram a hipótese de que eles tinham pais que se utilizavam de táticas psicológicas consideradas intrusivas.

O trabalho começou em 1998, com o recrutamento de jovens que que estavam no 8.o ano. Pediram-lhes que escolhessem amigos próximos, que também fariam parte da experiência. A partir daí a investigação durou quase nove anos, o que implicou recolher informação quando os jovens tinham 13, 18 e 21 anos. Envolveu ao todo 184 jovens.

Por um lado, submeteram-nos a inquéritos sobre o tipo de atitudes que os pais tinham com eles. Eles  procuraram avaliar o grau de controle psicológico. Por outro, filmaram-nos a discutir com os amigos que tinham selecionado desafiando-os a chegar a consensos em jogos mentais adaptados às suas idades, para avaliarem a forma como expressavam as suas opiniões e interagiam com os amigos. Aos 13 anos, por exemplo, os jovens eram confrontados com a ideia de que tinham 12 pessoas conhecidas em Marte mas só sete poderiam voltar à Terra. Depois de a “cobaia” e o amigo escolherem separadamente os seus eleitos, tinham de chegar a acordo.

Mais velhos, as questões eram mais abstratas, como o que preferiam manter quando chegassem aos 90 anos: o corpo ou a cabeça de uma pessoa de 35.

Os investigadores concluíram que os jovens cujos pais usavam mais vezes técnicas de chantagem psicológica e procuravam manipular os filhos acabavam por sair-se pior nestes confrontos com amigos, exteriorizando menos o que pensavam ou adoptando posturas mais hostis para defender as suas ideias. Os jovens que tinham revelado possuir pais mais controladores aos 13 anos acabavam por continuar a ser menos funcionais nove anos mais tarde, quando tinham 21 anos. Além disso, os que tinham mais dificuldades nestes jogos com os amigos tinham vidas amorosas também menos estáveis nas idades mais adiantadas. “Já tínhamos verificado noutras investigações que quanto mais tempo se está numa relação mais se precisa de autonomia e intimidade”, diz Barbara Oudekerk.

DISCUTIR É EDUCAR “Só porque os pais têm atitudes deste gênero uma ou duas vezes não quer dizer que vão prejudicar as relações dos filhos”, sublinha a investigadora: “O que concluímos é que, quanto mais os pais são assim e tentam controlar o comportamento dos jovens usando técnicas intrusivas, menos eles são capazes de expressar a sua independência e desenvolver intimidade em futuras relações com amigos e namorados.”

Embora não tenham uma explicação clara do resultado, que no fundo mostra que os jovens não se tornam controladores como os pais mas pelo menos nestas idades acabam por ficar mais vulneráveis, Barbara Ouderkek arrisca que uma das hipóteses é que este tipo de abordagem dos pais ensina os jovens a priorizar os desejos e necessidades dos outros acima das suas. “Se os pais são excessivamente controladores em termos psicológicos, os jovens podem ter menos oportunidades para defender as suas opiniões sem temer chateá-los ou ficar menos próximos deles”, diz. “Podem também interiorizar que precisam tomar decisões para agradar aos pais em vez de pensar no seu bem-estar, nos seus objetivos.” Por outro lado, podem não ter margem para aprender a defender as suas ideias sem atacar e diminuir as dos outros. “Se formos bons defendendo as nossas opiniões mas de uma forma que magoe a outra pessoa, a amizade não dura.”

A investigadora defende que uma das lições a tirar deste estudo é que, quando os pais se queixam que não conseguem controlar as relações dos filhos, talvez não tenham a percepção de que a forma como lidam com eles é estruturante dessas relações fora de casa.

Antes deste estudo, a equipe já tinha demonstrado que o mesmo tipo de controle psicológico durante a adolescência levava os jovens a seguirem mais vezes os colegas e começar, por exemplo, a vida sexual mais cedo.

Tomar uma decisão e explicá-la é uma melhor opção que recorrer à culpa ou ao remorso, defende Ouderkek. “Quando têm uma discussão com os filhos, devem ter em conta que estão a ensinar aos filhos as formas adequadas de expressarem as suas opiniões em relações de intimidade.” O grupo de investigação tem verbas para continuar a seguir o grupo até terem 32 anos, o que acontecerá em 2017. Nessa altura já deverá ser possível avaliar se replicam a atitude dos seus pais com os próprios filhos.

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Como amam os Homens

Como amam os Homens

Por Cristiano Pimenta*

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Não me parece possível abordar esse tema sem antes enfrentar uma difícil questão: o que é ser homem hoje? É ser machão? É ser heterossexual? Sabemos que há o metrossexual e também — seguindo tendências mais recentes — o lumbersexual. Dizem, aliás, que Brad Pitt, Ben Affleck, dentre outros, já aderiram ao estilo do “lenhador sexy”. Por outro lado, por que um homossexual não seria um homem? E o que dizer de certas mulheres que em tudo parecem ser “mais macho que muito homem”? Ora, essa confusão evidencia que, nessas questões, a vida contemporânea é atravessada por uma ruptura com os antigos padrões.

O homem com “H” maiúsculo

Tentemos fazer o contraste entre o passado e o presente. Antes, as referências pareciam mais claras e firmes. A teoria psicanalítica lacaniana mostrou como eram feitos os homens. Na década de cinquenta, Lacan elaborou uma fórmula chamada Metáfora Paterna para traduzir em termos formais a teoria do Complexo de Édipo de Freud. Para psicanálise, também quanto ao sexo masculino, é certo dizer que não se nasce, mas torna-se homem. Dito em termos simples, a Metáfora Paterna nos mostra como um menino torna-se um homem, a saber, pela interdição que a função paterna introduz nas relações mãe-criança. Trata-se da famosa interdição do incesto, mas que atinge não só a criança como também a mãe. Pelo lado da criança, a função paterna lhe impõe um “Não te deitarás com tua mãe”. E pelo lado da mãe um “Não reintegrarás teu produto”. O pai, portanto, salva a criança de ser devorada pela mãe e é isso que lhe permite tornar-se um homem. Restará apenas o passo seguinte dado pelo projeto de homem: “Eu quero ser igual ao papai”. Eis que nasce um homem! Sim, pois, na medida em que sou igual ao papai me sinto no direito de ter uma mulher, ou seja, me é permitido que um objeto venha substituir a mãe. A coisa culmina na família, no interior da qual terei minha autoridade de pai, do homem da casa, etc.

Antes de apontarmos o declínio dessa maquininha de fabricar homens à imagem do pai, quero chamar a atenção para as características gerais desse antigo homem-pai. Ele era absolutamente seguro de si na relação amorosa com a mulher. Ele se sentia, ele se via, como sendo o possuidor daquilo que uma (a sua) mulher mais poderia desejar, a saber, sua própria masculinidade, à qual Lacan consagrou o termo falo. Ser homem aqui é ser o portador daquilo que satisfaz o desejo de uma mulher, daquilo que estabiliza, orienta e apazigua a aflição feminina. Nesse sentido, ser homem é anterior ao ser o provedor. Ser homem é, antes, a condição necessária para prover. Ser homem é estar no poder. De um modo geral, na história humana, o poder sempre foi coisa de macho, e o falo é a essência do macho.

E como ama esse homem simbolizado pelo pai severo, cuja vontade era expressa e atendida com um simples olhar enfurecido? Digamos que ele não foi talhado para amar, mas sim para ser amado. É que amar fragiliza, enfraquece, gera dependência para com o objeto amado. Amar é confessar sua falta (Miller). No contexto desse homem-pai-possuidor-do-falo, o amor concerne mais à mulher. Amar é coisa de mulher. Daí que, se esse Homem com maiúscula se enfraquece por amor ele pode ser depreciativamente chamado de “mulherzinha”. Compreende-se, por outro lado, que, dessa perspectiva, ser mulher é ter inveja do pênis (Penisneid), como formulou Freud. A inveja do pênis é o nome freudiano da falta feminina, falta que se apazigua na relação com aquele que é o detentor do objeto do desejo.

A liberação do desejo feminino

Mas um Homem assim terá existido realmente algum dia? Deixo de lado essa questão para dizer que, de todo modo, enquanto Ideal, referência simbólica e identificatória, ele existiu sim. Sua produção dependia da eficácia do pai, enquanto o interditor da relação mãe-criança. Todavia, o pai enfraqueceu. Por quê? Para responder tal questão é preciso observar que essa engrenagem da Metáfora Paterna só funciona se o desejo feminino estiver enganchado nesse Homem, ela foi montada para responder ao desejo feminino, ao qual se supõe poder dizer:“Afinal, o que mais uma mulher poderia desejar além de ter marido e filhos?” Impossível não nos lembrarmos de que a psicanálise foi inventada por Freud justamente na tentativa de tratar das mulheres que não se encaixavam nesse padrão: as histéricas. As histéricas do final do século XIX já testemunhavam, ou melhor, já produziam, o fracasso desse Homem. O desejo histérico se caracteriza justamente por se remeter sempre a uma Outra coisa; ele é por definição insatisfeito, não se apazigua com o falo e nem com os objetos substitutos como o filho. As histéricas foram as primeiras a deixar esse Homem a ver navios. Seus pais, numa última tentativa desesperada de colocá-las na via correta, diga-se arranjar-lhes um marido, as levavam a Freud, como se dissessem: “Quem sabe essa tal psicanálise possa dar um jeito”. Digo de passagem que Freud jamais se propôs simplesmente atender às demandas de adaptação dos pais. O projeto de Freud foi, antes, o de tentar explicar os mistérios que governam a vida amorosa das pessoas.

Eis, portanto, o motivo fundamental do declínio desse Homem-pai: a liberação do desejo feminino. Liberação em relação ao padrão “papai-mamãe”. Já de início, poderíamos dizer que, nesse terreno, o homem está sem bússola, pois o que antes era o Norte para ambos os sexos, o falo, já não cativa tanto, ou já não se encontra lá onde se espera encontrá-lo, tal como podemos ver no filme Jovem e bela. Depois de perder a virgindade para um rapaz que acabara de conhecer, num encontro frio e sem amor, a linda e jovem moça dá início ao exercício da prostituição. Ela se vende a homens mais velhos, sendo que por um deles ela desenvolve um apego maior. Com o falecimento deste em pleno ato sexual ela é descoberta e faz um tratamento psi para voltar a ser uma garota “normal”. Tudo parece caminhar para sua reabilitação, pois ela começa um namoro romântico com um rapaz da sua idade. A surpresa do filme é que ela simplesmente se desencanta disso que seria uma promessa de felicidade e retorna à prostituição. Quando ela reativa o antigo número de celular as mensagens dos clientes pululam uma atrás da outra para regozijo seu. A simplicidade dessa história parece testemunhar o que dizemos aqui: que o desejo feminino segue agora caminhos misteriosos e fora dos padrões estabelecidos.

A psicanálise lacaniana, seguindo as pegadas do desejo histérico, já havia descoberto que um dos traços fundamentais do desejo feminino é o de estar essencialmente ligado ao vazio. Isso permite que a mulher mude com mais facilidade que o homem o objeto de seu desejo, pois lhe interessa mais o vazio que o objeto venha ocultar ou o vazio que possa haver no objeto. É isso que, igualmente, explica o talento das mulheres para representação. É justamente pelo fato de seu próprio Ser estar atravessado pelo vazio, por se reconhecer no vazio, que a tarefa de encarnar qualquer personagem se torna tão acessível a uma mulher. Essa mudança no feminino, ou melhor, essa liberação, por sua vez, fez com os homens também se transformassem.

Um homem que ama

Mas quando nos interrogamos sobre o que seria essa transformação não nos vem à mente, justamente, a imagem do lenhador sexy, ou seja, um ideal encarnado por um Brad Pitt, um homem sedutor que arrebata toda e qualquer mulher, um “pegador”, um Don Juan? E para quem se destinaria o visual cuidadosamente desleixado se não para o desejo feminino? Além disso, essa concepção de homem parece ir ao encontro da queixa de muitas mulheres, a de que os homens hoje não se apegam, não se apaixonam, querem apenas desfrutar do sexo, evitar o amor, o compromisso, etc. Nesse mesmo sentido, poderíamos ainda convocar o ponto de vista de um sociólogo de peso, Zygmunt Bauman, que denunciou, em “Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos”, a superficialidade dos amores na vida contemporânea, a liquidez com que os amores se desfazem antes mesmo de começar.

Contudo, nos tempos atuais, há um fato desconcertante que subsiste ao lado desse o homem fluido, livre e desapegado, a saber, com o declínio do modelo paterno, o homem passou a amar. Eis uma novidade! Sem a proteção das antigas identificações paternas, sem uma bússola para se orientar frente ao desejo feminino, ele se valeu do recurso ao amor. Ao fazer isso, no entanto, o homem adentra um terreno que ele não domina, ou melhor, um terreno dominado pelas mulheres. Inexperiente, se assim podemos dizer, o homem corre o risco de ficar em desvantagem nesse jogo há muito jogado por elas.

Uma posição desfavorável no amor já podia ser observada numa época muito antiga na qual o homem-pai ainda detinha o poder. Foi por volta do século XII, na Europa, onde alguns homens poderosos se lançaram a uma prática paradoxal para o seu tempo que ficou conhecida comoamor cortês. Uma série de condutas foi relatada nos versos dos chamados trovadores. ADama devia ser exaltada, com a correlativa desvalorização do homem devotado. Nos versos do amor cortês, a mulher torna-se um objeto supervalorizado, transcendente, inacessível, intocável. Ela não se caracteriza por ser virtuosa e amável com o homem que lhe “faz a corte”. Ao contrário, ela é extremamente arbitrária e impõe cruéis provas de amor àquele que se torna seu “servidor”. Encontramos, assim, o homem em uma posição de desvalorização e humilhação na relação amorosa. Posição paradoxal para uma época em que as mulheres não detinham nenhum poder econômico e social e o modelo patriarcal reinava. Essa Dama cruel e arbitrária, esvaziada de toda qualidade, encarnação do vazio, vazio que será contornando por uma série de procedimentos realizados pelo homem através de uma conduta de rodeio, serviu de referência para Lacan pensar sua noção de real sob a forma de a Coisa (das Ding). Segundo Lacan, essa mulher, que encarna o real, é para o homem “um objeto enlouquecedor, um parceiro desumano”.

O fato de que a mulher enlouquece um homem na relação amorosa pode ser considerado uma herança do amor cortês presente nas relações atuais. Levado à loucura, um homem pode perder as estribeiras e bater na mulher. Mas o fato mesmo de enlouquecer, transgredir a lei a ponto de ser levado preso, deve ser avaliado em relação ao despreparo desse homem atual frente ao desejo feminino. No filme de Lars Von Trier, “Anticristo”, encontramos um exemplo cheio de ironia de um homem que enlouquece na relação amorosa. Nesse longa, o marido terapeuta se dedica pleno de confiança e certeza ao tratamento de sua própria esposa. Ele a leva para uma fazenda isolada onde a natureza reina e ali aplica uma série de técnicas comportamentais de tratamento. Tudo fracassa. O especialista nos assuntos psi é o que menos sabia a respeito da psique de sua esposa. Ela surta, tenta matá-lo e ele tem que lutar pela própria vida para escapar. Enlouquecido pela loucura dessa mulher, ele a mata e queima seu corpo como o de uma bruxa. A ironia, portanto, é que o marido-terapeuta-salvador, se tornou o assassino de sua paciente-esposa. Por que motivo ele se dedicou de corpo e alma a esse tratamento? É simples: porque amava sua esposa. “Anticristo” coloca em evidência o fato de que a agressão masculina testemunha que o homem não controla mais a mulher. Esse descontrole evidencia também que amar, para o homem, é um modo de gozo, um gozo que pode ser mortífero.

À mulher nada falta

Nesse mesmo sentido, encontramos na teoria psicanalítica lacaniana uma formulação que inverte a clássica posição de superioridade do homem em relação à mulher, a posição de independência e poder do possuidor do falo e a correlativa dependência daquela a quem só restava a inveja do pênis. Hoje é comum o homem se apresentar como faltoso e a mulher, por seu lado, se apresentar como aquele ser a quem nada falta, ou que “não precisa de homem para nada”. Lacan percebeu que isso já estava inscrito em um nível básico da relação homem-mulher, o nível da relação sexual. Aí o homem está em evidente desvantagem pelo simples fato de precisar produzir e manter a ereção de seu órgão, o pênis. Assim, na hora “H” (que é a hora do Homem se colocar à prova) as coisas são tensas para ele: seu órgão pode não funcionar como esperado, a relação pode terminar antes do previsto ou simplesmente não acontecer. Por outro lado, mesmo que funcione bem, com ou sem ajuda de um “Viagra”, no final assiste-se inexoravelmente a uma detumescência, que simboliza a perda da sua virilidade. A mulher não. Neste nível ela sai do ato tal como entrou: intacta. Por não ter nada a sustentar, também não tem nada a perder. No nível do gozo não se pode falar em inveja do pênis na mulher, pois “não lhe falta nada” (Lacan). Ao contrário, “a mulher se revela superior no campo do gozo” (Lacan).

Não é novidade que a vida sexual do homem seja atravessada pelo drama da impotência. Na adolescência a experiência sexual ainda inédita é temida, o que explica o tempo enorme dedicado aos jogos de internet. Na maturidade há o temor de uma impotência inesperada e na velhice pode haver uma impotência há muito esperada. Nem precisaríamos falar da perturbadora questão do tamanho do seu pênis. Enfim, ao vincular sua virilidade à ereção de seu órgão, o homem se torna refém desta última. Não é o caso, por exemplo, das mulheres homossexuais que na relação sexual ocupam o lugar masculino, ativo, que faz a parceira gozar satisfatoriamente. O fato de não terem um pênis não lhes traz nenhum problema. Algumas, aliás, sentem-se muito mais viris justamente por não possuírem esse órgão tão frágil e problemático.

Pois bem, essa inferioridade masculina no campo do gozo é transposta ao campo do amor. Justamente por ter algo a perder, o homem se encontra em uma posição de desvantagem no amor. Poderíamos dizer que, quando um homem perde a sua mulher (ou até nos casos em que ele mesmo se separa dela), é como se uma parte de si mesmo lhe fosse cortada fora. Imagem que nos remete ao mito da costela de Adão com a qual Deus fez o objeto do desejo, Eva. Já a mulher, por já estar castrada de saída, por habitar o vazio, está muito mais preparada para a perda. Nenhum objeto é capaz de obturar sua relação íntima com o vazio. O sofrimento feminino está ligado mais às suas relações com o vazio. Via de regra, a solidão, por exemplo, é insuportável para a mulher. O homem, com seus apetrechos, seus canais por assinatura, lida melhor com a solidão. Seu mundo desaba apenas quando ele perde seu objeto privilegiado. Vale mencionar aqui a lembrança de um jovem que eu acabara de conhecer na mesa de um bar e que do nada soltou: “Não tem comparação, uma separação é muito mais difícil para nós, homens, do que para elas”.

Nesse sentido, a clínica psicanalítica nos mostra homens surpreendidos e traumatizados com isso que para eles se apresenta como absolutamente inesperado: o fato de que em dado momento de crise, mesmo em relacionamentos já duradouros, a mulher amada se revele perfeitamente capaz de viver sem ele. É aí que encontramos no homem, só para dar um exemplo, o medo da separação. Medo que conduz às mais variadas formas de covardia como, por exemplo, a de investir sua vida e seus bens em uma mulher que, ao menor deslize seu, teria todas as condições de lhe deixar.

Portanto, a superação do amor perdido passou a ser problema de homem. Talvez possamos afirmar, em resposta às mulheres que dizem que os homens não se envolvem, não querem compromisso, etc., que o motivo, pelo menos em alguns casos, é que eles não superaram um relacionamento traumático anterior, um amor que deu errado. Em seu inconsciente, portanto, eles amam, eles estão sob o efeito do que Freud chamou de fixação da libido, por isso, não estão livres para viver um novo amor, só lhes restando as diversões descompromissadas do sexo.

O luto e a alegria

O que se revela de nosso percurso é que o desafio do homem hoje é o de poder amar e, ao mesmo tempo, preservar sua virilidade. Se, como diz Jaques-Alain Miller, “só se ama verdadeiramente de uma posição feminina; amar feminiza”, como ser viril e feminino ao mesmo tempo? Ora, isso só é possível se o homem conseguir evitar fazer de uma mulher a solução para sua falta. Erroneamente, a experiência amorosa se tornou a via pela qual o homem acredita resolver o problema da sua falta. É preciso que ele se dê conta de que essa Mulher, assim concebida, não é nada além da parte de si mesmo (a costela) que está definitivamente perdida. O objeto está perdido. É preciso, pois, fazer o luto dessa perda. Como diz Lacan, “o homem tem que fazer o luto de encontrar em sua parceira sua própria falta”. O luto é um processo dolorido, triste, mas que leva a um paulatino desapego. É isso que lhe permitirá que o objeto amado não se torne insubstituível e que ele se aposse da certeza de que a alegria de um novo encontro amoroso estará sempre em seu horizonte.

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Cristiano Pimenta é graduado em Filosofia pela USP, mestre em Psicologia Clínica pela UNB e membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e da Delegação Geral GO/DF da EBP.

Arte, poesia e docinhos!

Arte, poesia e docinhos!

Se o ditado que diz que “A primeira impressão a que fica” for verdadeiro, imagine o resultado de receber de presente docinhos como camafeus, alfajores, trufas ou mesmo um clássico da culinária italiana como o Brutti ma Buoni (biscoito feito com nozes, amêndoas e avelãs, não amanteigado, de suave paladar)

Beatriz Matoso, apaixonada por bolos “tipo da vovó”, aproveitou-se de sua criatividade e sensibilidade e utilizou os doces em opções de presentes e lembrancinhas.

Amante da arte e da literatura , especialmente de poesias,  descobriu uma maneira de unir a doçura da poesia com a dos doces e hoje é a proprietária da Beatriz Arte Confeitaria.

As caixinhas, que são enviadas pelo correio, são decoradas com laços, e levam consigo poemas de Mário Quintana, Drummond, Rubem Alves…É muita doçura!

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Brownie de Nozes para presentear que m você ama em qualquer ocasião!
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Você conhece florentines? É um acompanhamento para ser servido após as refeições com café/licor… A base é de amêndoas e laranja cristalizada e é muito apreciada pelo público masculino por não ser muito doce!
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Brutti Ma Buoni de Nozes – Um clássico da confeitaria italiana. Ideal para uma mesa de fechamento, acompanhado de um café/licor de sua preferência!
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Panforte – Uma delicada mistura de especiarias e frutas secas é uma doce sugestão para compartilhar com a família e amigos queridos.
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Mini-Bolo Brownie de Nozes Especial da Beatriz Arte Confeitaria é simplesmente delicioso e uma ótima sugestão de lembrancinha para encantar seus convidados!
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Truffas são consideradas um símbolo refinado de cortesia e são perfeitas para presentear amigos queridos e compartilhar com a família!
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Broinhas Alemãs – Massa leve, com recheio de goiabada…

 

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Exemplo de um dos tipos de caixinhas temáticas. Adornadas com laços e poemas, levam a doçura também da poesia.

Ouça a coluna da jornalista Vanessa Brollo no CBN Curitiba, contando um pouco mais desta história.

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A fábula do que era suficiente

A fábula do que era suficiente

NESTA NOITE NÃO TEMOS NADA – começou o velho. – Mas em outras partes do mundo há sem dúvida pessoas que podem ter muito mais do que precisam. O que é suficiente? Vamos examinar essa pergunta.

Era uma vez, há muito tempo, na época em que nossos abençoados avós ainda viviam, uma moça pobre, porém linda, que era casada com um rapaz igualmente pobre e bonito. Estava chegando a época natalina, quando é costume a troca de presentes. Os jovens enfrentavam grande falta de dinheiro, pois uma guerra que grassava há muitos anos acabava de esmorecer.

Todos os carneiros haviam sido abatidos pelos soldados para que a carne lhes fosse tirada. Portanto, não havia lã nenhuma com a qual fazer fio. Sem fio, não havia como tecer; sem tear, não havia tecido; e, portanto, nenhum traje de inverno para substituir as roupas andrajosas. Quando podiam, as pessoas retalhavam dois pares de sapatos para fazer um único par de dar pena. Todo mundo usava todos os suéteres e coletes esfarrapados que tinha, de tal modo que as pessoas davam a impressão enganosa de estarem barrigudas, apesar de macilentas tanto acima quanto abaixo da cintura.

E então, como costuma acontecer quando a pior parte da guerra passou, as pessoas começaram a se esgueirar de volta ao que restava das suas casas. Como o cachorro que conhece seu próprio território, as pessoas voltavam para ficar, apesar das condições de penúria. Algumas das lavradoras começaram a consertar arados, substituindo a lâmina por cápsulas de obuses que aqueciam e moldavam à mão. Outras cortavam e sacudiam as plantas mortas à procura de sementes. O alfaiate implorava por alguns retalhos de pano para começar a costurar de novo e vendia nas ruas seus coletes e casacos feitos de retalhos. O padeiro moía à mão qualquer grão que pudesse cultivar em vasos quebrados na janela e, depois, moldava habilmente pãezinhos minúsculos, que vendia na porta da frente da sua casa. E, aos poucos, pessoas com a mente voltada para o comércio começaram a conseguir um pequeno sustento com a venda de pequenas ninharias, enquanto agradeciam pelo fato de que, por maiores que fossem os males da guerra, ela não havia conseguido apagar o sol. E assim seguia a vida na aldeia. Embora sem abundância, por toda parte ressurgiam os sinais mais simples da vida nova. E as pessoas tomavam enorme cuidado para proteger tudo que fosse frágil ou jovem.

Era assim que viviam a linda moça e o belo rapaz. Embora tivessem perdido muito com a guerra, eles ainda possuíam dois bens de valor. O rapaz havia conseguido não se desfazer do relógio de bolso do seu avô e sentia orgulho em informar as horas a quem lhe perguntasse. E a moça, apesar de mal nutrida há meses, ainda tinha uma longa e bela cabeleira que, quando ela soltava, tocava o chão em toda sua volta, cobrindo-a como um manto da pele mais valiosa. E assim, ricos dessa forma simples, o jovem casal levava a vida, tentando ganhar alguns centavos com a venda eventual de um pequeno nabo ou de uma maçã de inverno.

Velas de trapos e óleo estavam acesas nas vitrines da cidade inteira para o Natal. A noite chegava mais cedo, ficava mais tempo e a neve caía veloz. A moça queria tanto dar ao marido um presente de Natal, um presente grande, brilhante, lindo. Quando procurou nos bolsos, porém, ela só encontrou alguns poucos centavos. E, enquanto encarava a difícil situação em que estava sem o menor sinal de autocomiseração, ela não conseguiu deixar de chorar em silêncio.

Percebeu que as lágrimas não a ajudariam se ainda quisesse encontrar um presente para o marido, por isso secou o rosto e arquitetou um plano. Vestiu seu casaco surrado e calçou dois pares de luvas, cada um com dedos diferentes faltando. Saiu correndo pela porta e pela rua lamacenta, passou por todas as lojinhas com pouquíssima mercadoria  nas vitrines. Nada mais importava, porque ela agora tinha em mente um presente, um presente especial para o marido que trabalhava tanto tempo afinco para tão pouco conseguir trazer para casa.

Passou por pilhas de entulho, por escadas sem casas e desceu por um beco estreito até entrar num prédio sombrio. Subiu três lances da escada, correndo, a essa altura já sem fôlego e praticamente sem força suficiente para bater à porta.

Madame Sophie atendeu, usando um vison desprezível, comido de traças, em volta do pescoço. Seu cabelo era laranja e arrepiado em toda a volta da cabeça. Suas sobrancelhas eram como escovar cheias de fuligem. Ela era sem dúvida a velha mais estranha que já pisou na superfície da Terra. Ela, que antes da guerra fazia finas perucas para mulheres e homens ricos, estava, agora, reduzida a viver num apartamento de um cômodo sem calefação.

Os olhos de Madame Sophie cintilaram.

– Ah, você veio vender seu cabelo? – disse ela, arrulhando.

Ela e a moça barganharam muito até que afinal chegaram a um acordo. A moça se sentou na cadeira de madeira. Madame Sophie ergueu uma de suas pesadas tranças para ilumina-la. Ela brilhou como fio de seda. Com tesouras que pareciam ser do tamanho de enormes mandíbulas negras de ferro, Madame Sophie cortou os esplêndidos cachos da moça em três grandes tesouradas. As lindas madeixas caíram no chão e as lágrimas cintilantes da moça as acompanharam. Madame Sophie, como se fosse um roedor voraz, juntou o cabelo cortado.

– Tome seu dinheiro – rosnou a velha. Ela pôs umas moedas na mão da moça, empurrou-a para o corredor e bateu a porta.

E ponto final.

Apesar de passar por uma tortura dessas, a moça era guiada por sua visão interior, e seus olhos voltaram a se iluminar de entusiasmo. Correu pela rua até um homem que vendia correntes prateadas para relógios feitas de chumbo estanhado, mas que, sem dúvida, tinham uma aparência mais elegante do que a de um simples barbante comum. Ela lhe deu os centavos que tinha antes e os que ganhou com a venda do seu lindo cabelo. E, com mãos imundas, ele lhe entregou uma corrente para relógio. Ah, como de repente ela se encheu de alegria por ter um presente para dar ao seu amado. Pois praticamente correu para casa, com os pés mal tocando o chão, como o anjo que ela, em outro lugar e em outra época, poderia decerto ter sido.

Enquanto isso, o marido estava ocupado com seu próprio esforço para encontrar um presente para sua querida mulher. Ah, o que poderia ser? Qual seria o presente certo? Um comerciante lhe empurrou uma batata murcha. Não, não, isso não serviria. Outro exibiu um echarpe que, embora estivesse surrada, tinha cor bonita. Mas não, ela esconderia seus cabelos maravilhosos, e ele adorava tanto ver sua cabeleira com seus reflexos de rubi e ouro.

Na esquina seguinte, onde ventava muito, mais um mascate exibia nas palmas das mãos dois pentes simples e sem graça. Um era perfeito, ao outro faltava um dente. O rapaz soube que havia encontrado o presente perfeito.

– doze centavos por esses pentes elegantes?-sugeriu o vendedor.

– Mas eu não tenho doze centavos – disse o rapaz.

– Bem, o que é que você tem? – guinchou o homem. E começaram a pechinchar.

Enquanto isso, de volta ao minúsculo quarto alugado, a jovem molhou o cabelo com um pouquinho d’água e o forçou a formar ondinhas em volta do rosto. Sentou-se, então, para esperar o marido.

– Que ele ainda me ache bonita assim mesmo – sussurrava ela, numa oração silenciosa.

Logo ela ouviu seus passos na escada. Ele entrou apressado, pobre criatura, magro como um poste, com o nariz vermelho, os dedos congelados, mas com toda a disposição e a esperança de recém-nascido. E ali na soleira, ele parou petrificado, olhando perplexo para a mulher.

– Ai, você não gostou do meu cabelo, meu querido? Você não gostou? Bem, por favor, diga alguma coisa. Para dizer a verdade, eu o cortei para com isso conseguir algo de bom para você. Por favor, diga alguma coisa, meu amor.

O rapaz estava dilacerado entre a dor e o riso, mas, afinal, o humor o dominou.

– Minha querida – disse ele, dando-lhe um abraço. – Aqui etá seu presente de Natal.

Do bolso ele tirou os pentes. Por um instante, o rosto dela se iluminou, depois todas as suas feições se entristeceram e ela irrompeu em lagrimas, praticamente uivando de dor.

– Meu amor – ele a consolava-, seu cabelo vai voltar a crescer um dia, e esses pentes ficarão maravilhosos. Não vamos nos entristecer.

– Está bem, então – controlou-se ela.

Sua felicidade voltou quando ela mostrou o presente que tinha para ele.

– E este aqui é o seu presente, meu marido.

E na palma da sua mão estava a corrente nua, seu presente obtido com sacrifício para ele.

– Há! – protestou ele, começando de um salto a andar de um lado para o outro. – Você sabe que vendi meu relógio para comprar seus pentes?

– Você vendeu? Vendeu? – exclamou ela.

– Vendi! Vendi! – gritou ele.

Eles se abraçaram, riram e choraram juntos, fazendo promessas mútuas de que o futuro seria melhor, sem dúvida, era só esperar para ver.

Pois, vejam só, embora haja quem possa dizer que esses dois jovens foram tolos e imprudentes, eles eram de fato como os reis magos que procuravam o messias. Mesmo que os reis magos, com as melhores intenções, trouxessem presentes de ouro, incenso e mirra, no fundo, aquilo que eles traziam no coração era o que tinha mais valor: seu desejo e sua devoção.

E o jovem casal neste caso, como os reis magos, também foram sábios, pois deram o mais precioso de todos os presentes possíveis. Deram seu amor, seu amor mais verdadeiro um ao outro.

E ele foi suficiente.

***

O dom da história – Clarissa Pinkola Estés, Editora Rocco

A arte que nasce do fogo

A arte que nasce do fogo

“A arte pura é a mais elevada contemplação espiritual por parte das criaturas. Ela significa a mais profunda exteriorização do ideal, a divina manifestação desse “mais além” que polariza a esperança da alma.
O artista verdadeiro é sempre o “médium” das belezas eternas e o seu trabalho, em todos os tempos, foi tanger as cordas mais vibráteis do sentimento humano, alçando-o da Terra para o Infinito e abrindo.” Emmanuel

Nos últimos 14 anos o artista plástico canadense Steven Spazuk  desenvolveu uma técnica de pintura original que permite a criação de obras de arte usando fuligem.

Conhecer o processo é quase tão belo quanto o trabalho final….

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9 melhores poemas de Fernando Pessoa: escolha uma imagem e saiba qual é o seu

9 melhores poemas de Fernando Pessoa: escolha uma imagem e saiba qual é o seu

Em cada paisagem da alma existe um poema a ser sentido e interpretado.

Abaixo, escolha a imagem que mais disser ao seu coração.

Fernando Pessoa tem um poema especial para este exato momento.

Boa leitura!

Ah, e depois aproveite e leia os outros! Afinal, é Fernando Pessoa!

contioutra.com - 9 melhores poemas de Fernando Pessoa: escolha uma imagem e saiba qual é o seu

1 – Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de HOTEL,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

2 – O guardador de rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

3 – Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é
( E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.

4 – Ode marítima

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

5 – Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho…)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!


6 – Presságio

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…


7 – Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.


8 – Todas as cartas de amor…

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

9 – Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

It´s the journey!

It´s the journey!

Por Tatiana Nicz

Há alguns anos, quando estava assistindo um de meus seriados favoritos a protagonista se questionou algo parecido com: Como nós conseguiremos planejar um futuro se passarmos todos os dias “carpediando o diem”?* A pergunta dela me deixou com aquele sentimento de “é isso aí!”, igual acontece quando alguém consegue traduzir em palavras algo que para você faz muito sentido.

Um Stephen Hawking ateu disse: não é Deus que te proporciona o que você quer, é você mesmo. O universo é um imenso de um “free lunch”. Isso foi uma das suas grandes conclusões após uma vida dedicada a unificar conceitos da física, caçando buracos negros e buscando as respostas no Universo para os maiores questionamentos da humanidade. Em resumo, quer dizer que tudo é energia e essa energia está disponível para todos basta saber acessá-la. O que disse Hawking não é muito diferente do que diz também a Física Quântica. Existe uma lei simples no Universo chamada de “lei da atração”, em resumo significa que o que você pensa e quer você atrai para si (e isso serve também para coisas negativas). Como nos ensinam desde sempre que ter seus desejos realizados é algo realmente grandioso e é a fonte da felicidade, que é no fundo o que todo mundo busca, documentários e livros como “O Segredo” se tornaram rapidamente sucesso de vendas, pois eles ensinam como fazer uso dessa lei para conseguir tudo que você deseja: relacionamentos, bens, posses, sucesso, enfim, tudo.

Eu sei disso não só porque li livros (que hoje já não me servem) como Paulo Coelho ou “A Profecia Celestina” ou “O Segredo”, mas porque desde pequena, muito antes de ler qualquer desses livros, sempre consegui o que queria. Escolhi meu primeiro amor, depois escolhi o segundo também, talvez o terceiro. Claro, hoje tenho um conceito diferente de quando jovem sobre amor. Escolhi também diversos destinos e todas as etapas que construiriam meu currículo profissional, mesmo quando decidi mudar de profissão.

Escolhi, por exemplo, onde iria fazer meu mestrado e levava na agenda o anúncio do programa puído, já quase rasgando de tanto desdobrar e dobrar e que guardava em minha agenda. Por vezes eu o desdobrava, olhava e me imaginava estudando lá, falando assim parece que foi mesmo como um passe de mágicas que em poucos anos embarquei naquele avião com destino à Amsterdam, pago por uma bolsa de estudos que me foi premiada pelo governo holandês. Claro que para isso tive que me inscrever, conviver com a derrota de não passar até ser chamada novamente; aliás, vivi os altos e baixos de todo o processo em todas as minhas conquistas, então não dá para tirar meu esforço de nenhuma delas, mas é certo que antes de tudo eu sempre pedi.

Quem está lendo isso deve achar que isso é mesmo algo maravilhoso, mas o que eu quero dizer é justamente o contrário. O que mais me lembro dos anos que fiz meu mestrado foi que me sentia infeliz. Na verdade nenhuma das minhas conquistas me fez mais feliz, a distância que existia entre o querer e o ter sempre me deixava ansiosa, com medo de não conseguir e como acontece com quase todas as pessoas, quando conseguia realizar um desejo, imediatamente começava a pensar que não era exatamente aquilo que eu queria ou tinha imaginado e logo queria algo diferente. Sim, porque tem isso também, a realidade é sempre diferente da expectativa. No caso dos relacionamentos era pior ainda, eu não me sentia merecedora de um amor pelo qual havia pedido, aquilo não fazia sentido nenhum para mim. Além do mais, enquanto desejamos que o outro seja da maneira que queremos, não existe espaço para ele ser apenas o que é. Então o que existia mesmo era a imagem construída na minha mente do que eu queria que o outro fosse, mas não era. E com isso obviamente todo mundo sofria.

Esses dias eu li um belo texto que temos que ensinar nossas crianças o poder da espera. Sim a espera ativa é uma dádiva e nossas crianças não sabem mais esperar. Mas, como tudo na vida, antes de ensinarmos algo, precisamos aprender tal coisa, e o fato é que eu não sabia esperar, porque ninguém faz nada consciente quando está concentrado apenas no resultado final. E era um apego tão excessivo aos resultados que eu me esquecia de viver a jornada. Um dia uma amiga disse: você não sabe esperar o destino acontecer. E é bem provável que ela estivesse certa, acontece que eu não apenas não sabia como também não queria. Eu queria controlar tudo e estava tão concentrada nisso que perdi uma parte importante de minhas grandes jornadas: a jornada per se.

No primeiro dia de aula do tal mestrado, a professora e coordenadora, certamente uma das melhores que já tive em minha vida, finalizou as primeiras apresentações com muito entusiasmo e um belo sorriso dizendo: “It´s the journey!”. Os olhos delas brilhavam e a paixão com que as palavras saíam de sua boca era algo realmente inspirador, eu não sabia como ela fazia aquilo, mas precisava descobrir porque era isso que queria para mim, a palavra é essa mesmo: entusiasmo. A palavra entusiasmo vem do grego e originalmente significava inspiração pela presença de Deus, ou ainda, viver com a presença de Deus em si.

Hoje, passados sete anos, acho que finalmente entendi o seu grande segredo: viver o presente com entusiasmo, ou seja, com Deus presente em si. Entendi algumas coisas quando visitamos o tal lugar mágico do qual ela falava com a mesma paixão que proferia sobre paradigmas do turismo, o único bem que possuía: um chalé simples situado numa ilhota em pleno Mar Adriático, na costa de seu país Croácia. Talvez esse entusiasmo seja algo inerente aos croatas, porque quando estava lá soube de um programa do governo que ensina as crianças nas escolas sobre gentileza e a importância de sorrir. Hoje, ao lembrar de todo seu entusiasmo, realmente não acredito que em algum momento de sua vida ela tenha pedido por todo aquele reconhecimento, até porque tinha muita coisa trabalhando contra ela: é mulher proveniente de um país “periférico” e por isso teve que construir seu espaço em um universo dominado por homens nascidos nas maiores potências mundiais. O que ela sabia era aproveitar a jornada. Hoje também sou uma professora entusiasmada com meu ofício e em homenagem à ela (ou talvez para eu nunca esquecer) repito o mesmo para meus alunos: “it´s the journey!”

Em inglês o verbo ser se mistura ao estar: se sou, estou (e não se quero, sou ou se tenho, sou). Pensando em tudo isso, finalmente me senti preparada para me aprofundar na prática do budismo. O budismo sempre me pareceu algo muito bonito assim como inacessível. Parecia um simples muito complexo e era o oposto de tudo que eu era. Palavras como estar e presente, desapegar, meditação, paciência pareciam simplesmente intangíveis para mim. Mas apesar de eu não desejar mais o ter, eu ainda tinha o desejo de mudar, de ser. Entendi então que só existe uma maneira de saborearmos esse tal “free lunch”, é estando inteiramente presente em qualquer ação e assim fazendo uso de todos os sentidos. Sim, uma coisa por vez. Pois é, em mundo moderno e altamente conectado, isso é quase uma missão impossível. Nós não fazemos nenhuma ação isoladamente. Não comemos apenas, nem dirigimos apenas, nem nos exercitamos apenas. Sempre são ações combinadas que sem perceber não nos permitem usar todos os sentidos para desenvolvermos prazer em tal ação.

Mas a verdade é que, ao contrário do que nos ensinam, não somos multi-tasks (multi-tarefas), nós fomos programados sim para fazer uma coisa de cada vez, e hoje também desconfio que mais ainda para ter um círculo bem menor de amizades do que atualmente nutrimos.  É desafiador, mas não é impossível, precisa de treino, muito treino. A recompensa é que quanto mais eu comecei a me concentrar para fazer uma coisa de cada vez, menos ansiosa fiquei, menos desejos tive e também desenvolvi uma dificuldade maior em absorver muita informação ou fazer muitas coisas ao mesmo tempo o que naturalmente ajuda no processo de fazer uma coisa por vez.

Além do mais, nós nascemos com tudo que precisamos para viver bem, dons, talentos e o poder de sentir, de ter emoções, que é inerente à todo e qualquer ser. Através do desenvolvimento e aprimoramento de nossos dons e talentos podemos exercer um ofício que nos dê conforto para viver. Acredite! Isso é suficiente, o que você é/está pode te bastar. O mundo não vai acabar se você desligar seu telefone enquanto come, por exemplo.  Também não precisamos nos informar de tudo, ler tanto, nem saber muito a mais do que sabemos, nem ter mais do que temos. Então aprenda a se desconectar, acalme seu coração e confie. Quando não sabemos confiar ou esperar, não nos beneficiamos totalmente da beleza que reside no acaso, que aliás também podemos chamar de presente, um grande presente do Universo para nós. É novamente no inglês que encontrei uma palavra que define isso: serendipity**. O feliz acaso. Sim, a espontaneidade também é um bom ingrediente para a felicidade, aquilo que acontece de repente, sem pedido, plano ou controle.

E foi assim que, muitos anos depois, descobri a resposta para pergunta do início desse texto: como vou planejar um futuro enquanto estiver vivendo no presente? A resposta é que você tem tudo e não precisa planejar nada, muito menos passar metade de seus dias pensando em tudo aquilo que quer ter. Sim: “it´s the journey!””.

*How are we supposed to plan a life? A career? A family? If we are always “carpe”-ing the “diem”? da série Grey´s Anatomy.

** Palavra que minha grande amiga Drika me ensinou.

INDICADOS