Na última semana o Rio fez 450 anos e o que temos para comemorar?

Na última semana o Rio fez 450 anos e o que temos para comemorar?

Por Adriana Vitória

Com um sentimento antigo que mistura uma profunda sensação de impotência e ressentimento, é quase difícil pra mim admitir o quanto amo esta cidade, e por este mesmo motivo, é impossível não reconhecer que, este pedaço de terra naturalmente maravilhosa, esta afundando.

Nem vamos falar do estado, que se encontra quase em calamidade !
Nestes 450 anos nunca houve um planejamento urbanístico sequer, os poucos que ousaram, nunca foram respeitados, como todo o resto neste pais. A exuberante flora e a fauna da cidade que inspirou minha vida e meu trabalho como artista plástica, embora não pareça, esta desaparecendo a olhos nus. Construções históricas foram demolidas e suas matas vem sendo derrubadas.

A pobre baia de Guanabara recebeu em 1991, do banco inter americano e do governo japonês, 800 milhões de dólares para ser despoluída. O dinheiro sumiu e a poluição esta pior do que nunca. Apenas 20% do esgoto da cidade e tratado e os outros 80 deságuam direto na pobre senhora.
Os botos, que um dia foram símbolo da cidade hoje somam 40 indivíduos.
Em 4 séculos e meio, seja nos anúncios das agencias de turismo, seja nos postais ou em qualquer outra mídia, lá estão o Corcovado, o pão de açúcar e suas praias, mas quem foi que determinou que isto é o Rio ?

O estado tem cerca de 16 milhões e meio de habitantes sendo que 13 vivem na cidade de cerca de 1200km2. Destes 13 apenas cerca de dois milhões habita o pequeno feudo de 100km2, a zona sul das praias e da lagoa poluídas. Quatro séculos e meio de governos indiferentes não são, a meu ver, algo para se comemorar.
Boa parte desta pequena elite sequer conhece sua cidade, pois não se atreve a ultrapassar o túnel a não ser quando vai viajar.

Chega a ser chocante a insistência de uma minoria decadente mas ainda poderosa em ignorar a existência da ressentida zona menos privilegiada, e isto inclui os moradores das favelas que os cercam e sobrevivem servindo a esta pequena corte.

A grande parte dos 10 milhões que não estão no mapa estão na zona excluída e esquecida, a zona norte, que com exceção da Tijuca e Grajaú vivem em completo abandono com ruas esburacadas, sem policiamento adequado, sem saneamento, sem coleta de lixo, sem nada.

A classe media esta a beira do colapso, sufocada pelos valores surreais dos alugueis, escolas privadas, impostos abusivos e desprovida de seguranças e carros blindados, ainda tem que aguentar a crescente violência, mas ainda vale o sofrimento pra se estar numa das cidades mais queridas do planeta.

Por muito menos Luis XVI perdeu a cabeça na revolução que transformou o mundo, criando uma radical mudança social democrática com princípios iluministas de cidadania e direitos inalienáveis.

Como é que os “cariocas” podem continuar comemorando pra mim só pode ser um surto de esquizofrenia.

Ainda espero ver um Rio de liberdade, igualdade e fraternidade. Enquanto isso, exerço minha cidadania da forma que posso, e me dou o saudável direito de me refugiar na serra para ter um mínimo de qualidade de vida e paz pra criar minha filha.

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Logotipo dos 450 anos do Rio de Janeiro

Quando eu morrer, quero virar árvore!

Quando eu morrer, quero virar árvore!

A Awebic publicou uma matéria sobre um projeto italiano inovador chamado The Capsula Mundi.

A ideia do “ciclo da vida” agrada muitas pessoas independentemente da fé. Em poucas palavras, é vida se transformando em vida — a morte fica em segundo plano. Pensando nisso, os  designers Anna Citelli e Raoul Bretzel desenvolveram o projeto que consiste em uma cápsula orgânica e biodegradável que é capaz de transformar um corpo em decomposição em nutrientes para uma árvore.

Primeiro, o corpo do falecido é colocado dentro da cápsula e então enterrado. Depois é plantado uma árvore ou uma semente por cima para aproveitar a matéria orgânica.

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É a transformação do cemitério…

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… em uma floresta de memórias!

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E você, gostou?

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Vida a dois. A relação entre trabalho e amor num poema de Adélia Prado.

Vida a dois. A relação entre trabalho e amor num poema de Adélia Prado.

Por Alan Lima

Boas relações são construídas em momentos de lazer. A diversão romântica é elemento das histórias de conquista. Quantos filmes chamam de encontro apenas os jantares a luz de velas, o trocar beijos e mãos no escurinho do cinema?

Nada disso é ruim, claro, quisera nós desfrutarmos de incontáveis noites regadas a entretenimento e carinho. E dizem, aqueles com a experiência de casamentos e namoros duradouros, que eventos assim são inversamente proporcionais ao tempo de convivência. Com o tempo, a rotina tudo esmaga.

Adélia Prado traz um outro panorama no poema Casamento, a relação entre o amor do casal e o trabalho. Inverta as posições. Seja ora a mulher, ora o homem. Coloque-se no lugar de cada um dos personagens e questione.

Como a forma de lidar com os deveres do cotidiano faz “Coisas prateadas espocarem”?

 

“Há mulheres que dizem:

Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram,

ele fala coisas como “este foi difícil”

“prateou no ar dando rabanadas”

e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.”

Poema Casamento, Adélia Prado.

O envelhecimento dos pais: Quem cuida de quem?

O envelhecimento dos pais: Quem cuida de quem?

Por Viviane Lajter Segal

Nascimento, crescimento e envelhecimento fazem parte do processo natural de qualquer família. A cada ciclo da vida, os componentes se modificam para conviverem melhor entre si. Na velhice não é diferente! É uma fase que proporciona novas emoções e desafios para o indivíduo e seus familiares.

Envelhecer é um processo contínuo e constante em nossas vidas e ocorre desde que nascemos. Com a maior expectativa de vida da população a convivência entre gerações tem
ocorrido por mais tempo, o que promove mudanças nas relações.

Dúvidas, inseguranças e medos podem surgir entre os familiares, principalmente nos filhos. Como lidar com algumas características tão peculiares dos pais idosos?

O envelhecimento de uma pessoa perpassa por diversas transformações físicas e psíquicas. O idoso costuma apresentar uma menor velocidade no processamento das informações, assim como a memória começa a falhar. As características da personalidade tendem a ser exacerbadas.

Os filhos podem se sentir confusos com esse processo. Aquele pai, antes visto como herói, forte, que sempre cuidou da família, começa a se fragilizar. Precisa ser cuidado e, geralmente, torna-se mais carente de afeto e atenção. Como lidar com isso?

Tornar-se pai do seu pai

Nesse dilema, alguns filhos tendem a inverter os papéis com seus pais. “Tornam-se pais dos seus pais”. Mas, será que essa atitude, por mais que saibamos ser uma forma de cuidado, é saudável e a melhor para os mais velhos? Qual será o impacto psicológico disso para eles?

Os idosos são pessoas que, apesar de estarem passando por transformações, têm mais anos de experiência na vida adulta que seus filhos. Eles desejam ou precisam ser cuidados, apoiados, mas não infantilizados ou colocados em um papel de menor valia dentro da dinâmica familiar e social.

Ocorre, um empobrecimento relacional comum nessa fase da vida decorrente da diminuição do contato social. Isso pode culminar em um isolamento excessivo gerando diversas questões emocionais, como desamparo, insegurança, solidão, aumento da ansiedade e até depressão. Alguns fatores como a aposentadoria e a perda do companheiro tendem a intensificar tais comportamentos. Nesse contexto, a inversão de papéis entre pais e filhos pode agravar a situação. Quando isso ocorre, os idosos sentem-se dependentes e desvalorizados gerando uma baixa na autoestima e na autoimagem. A autonomia sobre suas próprias vidas torna-se restrita e a busca pela realização de conquistas pessoais é diminuída.

A importância dos filhos

Uma idade mais avançada não pode ser sinônimo de incapacidade, mas sim de possibilidades! Essa fase se configura em uma etapa de desenvolvimento, elaboração e realização de projetos pessoais. Há uma sabedoria e experiência adquiridas ao longo da vida que podem ser convertidas em aprendizado e transformações.

A família como um todo, principalmente os filhos, tem um papel fundamental nesse processo.  É importante que o idoso sinta-se pertencente e participante desse grupo e não isolado.

Apoiar, acompanhar, dar atenção, suporte e carinho são formas de demostrar afeto mais
eficazes.  Respeitar suas vontades e necessidades enquanto pessoas. Deixá-los realizar suas atividades e viver suas vidas como desejam são aspectos fundamentais para o melhor relacionamento entre pais e filhos na terceira idade!

TENTAÇÃO, por Clarice Lispector

TENTAÇÃO, por Clarice Lispector

Por Clarice Lispector

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.

Na rua vazia as pedras vibravam de calor – a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.

Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.

A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.

Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.

Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.

No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú.

Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.

Mas ambos eram comprometidos.

Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.

Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás

Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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A boçalidade do mal, uma crítica de Eliane Brum que não deve ser ignorada

A boçalidade do mal, uma crítica de Eliane Brum que não deve ser ignorada

Por Eliane Brum

Guido Mantega e a autorização para deletar a diferença

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Em 19 de fevereiro, Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda dos governos de Lula e de Dilma Rousseff, estava na lanchonete do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, quando foi hostilizado por uma mulher, com o apoio de outras pessoas ao redor. Os gritos: “Vá pro SUS!”. Entre eles, “safado” e “fdp”. Mantega era acompanhado por sua esposa, Eliane Berger, psicanalista. Ela faz um longo tratamento contra o câncer no hospital, mas o casal estava ali para visitar um amigo. O episódio se tornou público na semana passada, quando um vídeo mostrando a cena foi divulgado no YouTube.

Entre as várias questões importantes sobre o momento atual do Brasil – mas não só do Brasil – que o episódio suscita, esta me parece particularmente interessante:

“Que passo é esse que se dá entre a discordância com relação à política econômica e a impossibilidade de sustentar o lugar do outro no espaço público?”.

A pergunta consta de uma carta escrita pelo Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP), que encontrou na cena vivida por Guido e Eliane ecos do período que antecedeu a Segunda Guerra, na Alemanha nazista, quando se iniciou a construção de um clima de intolerância contra judeus, assim como contra ciganos, homossexuais e pessoas com deficiências mentais e/ou físicas. O desfecho todos conhecem. Em apoio a Guido e Eliane, mas também pela valorização do Sistema Único de Saúde (SUS), que atende milhões de brasileiros, o MPASP lançou a hashtag #VamosTodosProSUS.

Pode-se aqui fazer a ressalva de que a discordância vai muito além da política econômica e que o ex-ministro petista encarnaria na lanchonete de um dos hospitais privados mais caros do país algo bem mais complexo. Mas a pergunta olha para um ponto preciso do cotidiano atual do Brasil: em que momento a opinião ou a ação ou as escolhas do outro, da qual divergimos, se transforma numa impossibilidade de suportar que o outro exista? E, assim, é preciso eliminá-lo, seja expulsando-o do lugar, como no caso de Guido e Eliane, seja eliminando sua própria existência – simbólica, como em alguns projetos de lei que tramitam no Congresso, visando suprimir direitos fundamentais dos povos indígenas ou de outras minorias; física, como nos crimes de assassinato por homofobia ou preconceito racial.

O que significa, afinal, esse passo a mais, o limite ultrapassado, que tem sido chamado de “espiral de ódio” ou “espiral de intolerância”, num país supostamente dividido (e o supostamente aqui não é um penduricalho)? De que matéria é feita essa fronteira rompida?

[pull_quote_left]A descoberta de que aquele vizinho simpático com quem trocávamos amenidades no elevador defende o linchamento de homossexuais tem um impacto profundo[/pull_quote_left]

A resposta admite muitos ângulos. Na minha hipótese, entre tantas possíveis, peço uma espécie de licença poética à filósofa Hannah Arendt, para brincar com o conceito complexo que ela tão brilhantemente criou e chamar esse passo a mais de “a boçalidade do mal”. Não banalidade, mas boçalidade mesmo. Arendt, para quem não lembra, alcançou “a banalidade do mal” ao testemunhar o julgamento do nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, e perceber que ele não era um monstro com um cérebro deformado, nem demonstrava um ódio pessoal e profundo pelos judeus, nem tampouco se dilacerava em questões de bem e de mal. Eichmann era um homem decepcionantemente comezinho que acreditava apenas ter seguido as regras do Estado e obedecido à lei vigente ao desempenhar seu papel no assassinato de milhões de seres humanos. Eichmann seria só mais um burocrata cumprindo ordens que não lhe ocorreu questionar. A banalidade do mal se instala na ausência do pensamento.

A boçalidade do mal, uma das explicações possíveis para o atual momento, é um fenômeno gerado pela experiência da internet. Ou pelo menos ligado a ela. Desde que as redes sociais abriram a possibilidade de que cada um expressasse livremente, digamos, o seu “eu mais profundo”, a sua “verdade mais intrínseca”, descobrimos a extensão da cloaca humana. Quebrou-se ali um pilar fundamental da convivência, um que Nelson Rodrigues alertava em uma de suas frases mais agudas: “Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava”. O que se passou foi que descobrimos não apenas o que cada um faz entre quatro paredes, mas também o que acontece entre as duas orelhas de cada um. Descobrimos o que cada um de fato pensa sem nenhuma mediação ou freio. E descobrimos que a barbárie íntima e cotidiana sempre esteve lá, aqui, para além do que poderíamos supor, em dimensões da realidade que só a ficção tinha dado conta até então.

Descobrimos, por exemplo, que aquele vizinho simpático com quem trocávamos amenidades bem educadas no elevador defende o linchamento de homossexuais. E que mesmo os mais comedidos são capazes de exercer sua crueldade e travesti-la de liberdade de expressão. Nas postagens e comentários das redes sociais, seus autores deixam claro o orgulho do seu ódio e muitas vezes também da sua ignorância. Com frequência reivindicam uma condição de “cidadãos de bem” como justificativa para cometer todo o tipo de maldade, assim como para exercer com desenvoltura seu racismo, sua coleção de preconceitos e sua abissal intolerância com qualquer diferença.

Foi como um encanto às avessas – ou um desencanto. A imagem devolvida por esse espelho é obscena para além da imaginação. Ao libertar o indivíduo de suas amarras sociais, o que apareceu era muito pior do que a mais pessimista investigação da alma humana. Como qualquer um que acompanha comentários em sites e postagens nas redes sociais sabe bem, é aterrador o que as pessoas são capazes de dizer para um outro, e, ao fazê-lo, é ainda mais aterrador o que dizem de si. Como o Eichmann de Hannah Arendt, nenhum desses tantos é um tipo de monstro, o que facilitaria tudo, mas apenas ordinariamente humano.

[quote_box_left]Ao permitir que cada indivíduo se mostrasse sem máscaras, a internet arrancou da humanidade a ilusão sobre si mesma[/quote_box_left]

Ainda temos muito a investigar sobre como a internet, uma das poucas coisas que de fato merecem ser chamadas de revolucionárias, transformaram a nossa vida e o nosso modo de pensar e a forma como nos enxergamos. Mas acho que é subestimado o efeito daquilo que a internet arrancou da humanidade ao permitir que cada indivíduo se mostrasse sem máscaras: a ilusão sobre si mesma. Essa ilusão era cara, e cumpria uma função – ou muitas – tanto na expressão individual quanto na coletiva. Acho que aí se escavou um buraco bem fundo, ainda por ser melhor desvendado.

Como aprendi na experiência de escrever na internet que não custa repetir o óbvio, de forma nenhuma estou dizendo que a internet, um sonho tão estupendo que jamais fomos capazes de sonhá-lo, é algo nocivo em si. A mesma possibilidade de se mostrar, que nos revelou o ódio, gerou também experiências maravilhosas, inclusive de negação do ódio. Assim como permitiu que pessoas pudessem descobrir na rede que suas fantasias sexuais não eram perversas nem condenadas ao exílio, mas passíveis de serem compartilhadas com outros adultos que também as têm. Do mesmo modo, a internet ampliou a denúncia de atrocidades e a transformação de realidades injustas, tanto quanto tornou o embate no campo da política muito mais democrático.

Meu objetivo aqui é chamar a atenção para um aspecto que me parece muito profundo e definidor de nossas relações atuais. A sociedade brasileira, assim como outras, mas da sua forma particular, sempre foi atravessada pela violência. Fundada na eliminação do outro, primeiro dos povos indígenas, depois dos negros escravizados, sua base foi o esvaziamento do diferente como pessoa, e seus ecos continuam fortes. A internet trouxe um novo elemento a esse contexto. Quero entender como indivíduos se apropriaram de suas possibilidades para exercer seu ódio – e como essa experiência alterou nosso cotidiano para muito além da rede.

[quote_box_right]Finalmente era possível “dizer tudo”, e isso passou a ser confundido com autenticidade e liberdade[/quote_box_right]

É difícil saber qual foi a primeira baixa. Mas talvez tenha sido a do pudor. Primeiro, porque cada um que passou a expressar em público ideias que até então eram confinadas dentro de casa ou mesmo dentro de si, descobriu, para seu júbilo, que havia vários outros que pensavam do mesmo jeito. Mesmo que esse pensamento fosse incitação ao crime, discriminação racial, homofobia, defesa do linchamento. Que chamar uma mulher de “vagabunda” ou um negro de “macaco”, defender o “assassinato em massa de gays”, “exterminar esse bando de índios que só atrapalham” ou “acabar com a raça desses nordestinos safados” não só era possível, como rendia público e aplausos. Pensamentos que antes rastejavam pelas sombras passaram a ganhar o palco e a amealhar seguidores. E aqueles que antes não ousavam proclamar seu ódio cara a cara, sentiram-se fortalecidos ao descobrirem-se legião. Finalmente era possível “dizer tudo”. E dizer tudo passou a ser confundido com autenticidade e com liberdade.

Para muitos, havia e há a expectativa de que o conhecimento transmitido pela oralidade, caso de vários povos tradicionais e de várias camadas da população brasileira com riquíssima produção oral, tenha o mesmo reconhecimento na construção da memória que os documentos escritos. Na experiência da internet, aconteceu um fenômeno inverso: a escrita, que até então era uma expressão na qual se pesava mais cada palavra, por acreditar-se mais permanente, ganhou uma ligeireza que historicamente esteve ligada à palavra falada nas camadas letradas da população. As implicações são muitas, algumas bem interessantes, como a apropriação da escrita por segmentos que antes não se sentiam à vontade com ela. Outras mostram as distorções apontadas aqui, assim como a inconsciência de que cada um está construindo a sua memória: na internet, a possibilidade de apagar os posts é uma ilusão, já que quase sempre eles já foram copiados e replicados por outros, levando à impossibilidade do esquecimento.

O fenômeno ajuda a explicar, entre tantos episódios, a resposta de Washington Quaquá, prefeito de Maricá e presidente do PT fluminense, uma figura com responsabilidade pública, além de pessoal, às agressões contra Guido Mantega. Em seu perfil no Facebook, ele sentiu-se livre para expressar sua indignação contra o que aconteceu na lanchonete do Einstein nos seguintes termos: “Contra o fascismo a porrada. Não podemos engolir esses fascistas burguesinhos de merda! (…) Vamos pagar com a mesma moeda: agrediu, devolvemos dando porrada!”.

[quote_box_left]O outro, se não for um clone, só existe como inimigo[/quote_box_left]

O ódio, e também a ignorância, ao serem compartilhados no espaço público das redes, deixaram de ser algo a ser reprimido e trabalhado, no primeiro caso, e ocultado e superado, no segundo, para ser ostentado. E quando me refiro à ignorância, me refiro também a declarações de não saber e de não querer saber e de achar que não precisa saber. Me arrisco a dizer que havia mais chances quando as pessoas tinham pudor, em vez de orgulho, de declarar que acham museus uma chatice ou que não leram o texto que acabaram de desancar, porque pelo menos poderia haver uma possibilidade de se arriscar a uma obra de arte que as tocasse ou a descobrir num texto algo que provocasse nelas um pensamento novo.

Sempre se culpa o anonimato permitido pela rede pelas brutalidades ali cometidas. É verdade que o anonimato é uma realidade, que há os “fakes” (perfis falsos) e há toda uma manipulação para falsificar reações negativas a determinados textos e opiniões, seja por grupos organizados, seja como tarefa de equipes de gerenciamento de crise de clientes públicos e privados. Tanto quanto há campanhas de desqualificação fabricadas como “espontâneas”, nas quais mentiras ou boatos são disseminados como verdades comprovadas, causando enormes estragos em vidas e causas.

Mas suspeito que, no que se refere ao indivíduo, a notícia – boa ou má – é que o anonimato foi em grande medida um primeiro estágio superado. Uma espécie de ensaio para ver o que acontece, antes de se arriscar com o próprio RG. Não tenho pesquisa, só observação cotidiana. Testemunho dia a dia o quanto gente com nome e sobrenome reais é capaz de difundir ódio, ofensas, boatos, preconceitos, discriminação e incitação ao crime sem nenhum pudor ou cuidado com o efeito de suas palavras na destruição da reputação e da vida de pessoas também reais. A preocupação de magoar ou entristecer alguém, então, essa nem é levada em conta. Ao contrário, o cuidado que aparece é o de garantir que a pessoa atacada leia o que se escreveu sobre ela, o cuidado que se toma é o da certeza de ferir o outro. O outro, se não for um clone, só existe como inimigo.

[quote_box_right]Na eleição de 2014, descobriu-se que os bárbaros eram até ontem os aliados na empreitada da civilização[/quote_box_right]

O problema, quando se aponta os “bárbaros”, e aqui me incluo, é justamente que os bárbaros são sempre os outros. Neste sentido, a eleição de 2014, da qual derivou a tese, para mim bastante questionável, do “Brasil partido”, bagunçou um bocado essa crença. Não foi à toa que amizades antigas se desfizeram, parentes brigaram e até amores foram abalados, que até hoje há gente que se gostava que não voltou a se falar. As redes sociais, a internet, viraram um campo de guerra, num nível maior do que em qualquer outra eleição ou momento histórico. Só que, desta vez, os bárbaros eram até ontem os aliados na empreitada da civilização.

Descobriu-se então que pessoas com quem se compartilhou sonhos ou pessoas que se considerava éticas – pessoas do “lado certo” – eram capazes de lançar argumentos desonestos – e que sabiam ser desonestos – e até mentiras descaradas, assim como de torturar números e manipular conceitos. Eram capazes de fazer tudo o que sempre condenaram, em nome do objetivo supostamente maior de ganhar a eleição. Os bárbaros não eram mais os outros, os de longe. Desta vez, eram os de perto, bem de perto, que queriam não apenas vencer, mas destruir o diferente ou o divergente, eu ou você. O bárbaro era um igual, o que torna tudo mais complicado.

Não se sai imune desse confronto com a realidade do outro, a parte mais fácil. Não se sai impune desse confronto com a realidade de si, este um enfrentamento só levado adiante pelos que têm coragem. Como sabemos, enquanto for possível e talvez mesmo quando não seja mais, cada um fará de tudo para não se enxergar como bárbaro, mesmo que para isso precise mentir para si mesmo. É duro reconhecer os próprios crimes, assim como as traições, mesmo as bem pequenas, e as vilanias. Mas, no fundo, cada um sabe o que fez e os limites que ultrapassou. O que aconteceu na eleição de 2014 é que os bons e os limpinhos descobriram algumas nuances a mais de sua condição humana, e descobriram o pior: também eles (nós?) não são capazes de respeitar a opinião e a escolha diferente da sua. Também eles (nós?) não quiseram debater, mas destruir. De repente, só havia “haters” (odiadores). De novo: desse confronto não se sai impune. A boçalidade do mal ganhou dimensões imprevistas.

[quote_box_right]A experiência poderosa de se mostrar sem recalques transcendeu e influenciou a vida para além das redes[/quote_box_right]

Seria improvável que a experiência vivida na internet, na qual o que aconteceu nas eleições foi apenas o momento de maior desvendamento, não mudasse o comportamento quando se está cara a cara com o outro, quando se está em carne e osso e ódio diante do outro, nos espaços concretos do cotidiano. Seria no mínimo estranho que a experiência poderosa de se manifestar sem freios, de se mostrar “por inteiro”, de eliminar qualquer recalque individual ou trava social e de “dizer tudo” – e assim ser “autêntico”, “livre” e “verdadeiro” – não influenciasse a vida para além da rede. Seria impossível que, sob determinadas condições e circunstâncias, os comportamentos não se misturassem. Seria inevitável que essa “autorização” para “dizer tudo” não alterasse os que dela se apropriaram e se expandisse para outras realidades da vida. E a legitimidade ganhada lá não se transferisse para outros campos. Seria pouco lógico acreditar que a facilidade do “deletar” e do “bloquear” da internet, um dedo leve e só aparentemente indolor sobre uma tecla, não transcendesse de alguma forma. Não se trata, afinal, de dois mundos, mas do mesmo mundo – e do mesmo indivíduo.

A mulher que se sentiu “no direito” de xingar Guido Mantega e por extensão Eliane Berger, e tornar sua presença na lanchonete do hospital insuportável, assim como as pessoas que se sentiram “no direito” de aumentar o coro de xingamentos, possivelmente acreditem que estavam apenas exercendo a liberdade de expressão como “cidadãos de bem indignados com o PT”, uma frase corriqueira nos dias de hoje, quase uma bandeira. Ao mandar Guido e Eliane para outro lugar – e não para qualquer lugar, mas “pro SUS” – devem acreditar que o Sistema Único de Saúde é a versão contemporânea do inferno, para a qual só devem ir os proscritos do mundo. Possivelmente acreditem também que o espaço do Hospital Israelita Albert Einstein deve continuar reservado para uma gente “diferenciada”. Em nenhum momento parecem ter enxergado Guido e Eliane como pessoas, nem se lembrado de que quem está num hospital, seja por si mesmo, seja por alguém que ama, está numa situação de fragilidade semelhante a deles. O direito ao ódio e à eliminação do outro mostrou-se soberano: aquele que é diferente de mim, eu mato. Ou deleto. Simbolicamente, no geral; fisicamente, com frequência assustadora.

[quote_box_left]O direito ao ódio e à eliminação do outro mostrou-se soberano: aquele que é diferente de mim, eu mato. Ou deleto. Simbolicamente, no geral; fisicamente, com frequência assustadora.[/quote_box_left]

Mas, claro, nada disso é importante. Nem é importante a greve dos caminhoneiros ou a falta de água na casa dos mais pobres. Tampouco a destruição de estátuas milenares pelo Estado Islâmico. Essencial mesmo é o grande debate da semana que passou: descobrir se o vestido era branco e dourado – ou preto e azul. Até mesmo sobre tal irrelevância, a selvageria do bate-boca nas redes mostrou que não é possível ter opinião diferente.

Já demos um passo além da banalidade. Nosso tempo é o da boçalidade.

Fonte indicada: El Pais

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: [email protected] Twitter:@brumelianebrum.

“É mais fácil fazer da tolice um regalo, do que da sensatez”, por Clara Dawn

“É mais fácil fazer da tolice um regalo, do que da sensatez”, por Clara Dawn

Por Clara Dawn

A incompletude, escreveu Manoel de Barros, é a maior riqueza do homem. Sendo assim, eu sou a pessoa mais rica que conheço. Concebo-me incompleta como ninguém.

Ah, incompletude! A essência humana, no afã dessas linhas ambíguas, fazendo-me tecer veios na instabilidade semântica de Manoel de Barros, para escrever uma crônica, cujas visões oníricas revelam a realidade de viver: crescer dói.

Eu queria cinco chances. Para viver cinco vidas, ter cinco profissões distintas, morar em cinco países diferentes… Eu queria ser um palhaço, queria ser astronauta e também professora. Queria ser antropóloga e conhecer a cultura de todos os povos, e com eles e por eles, desbravar o mundo à procura de algo que faça com que a vida tenha um sentido real na Terra.

Mas o que eu queria mesmo era Ser Benevolente e viver aonde o vento descansa as pestanas e se veste de coisa alguma depois de banhar em águas plácidas… E descobrir se é verdade que “a quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.” Penso que para isso, Manoel,  eu precisaria mesmo de cinco chances. Ser Benevolente? Impossível, sou abastada em imperfeição…

Não dá para ser apenas um, quero ser muitas. Não vejo sentido em ser apenas vital. Nascer, reproduzir e morrer… Deve existir algo além. Algo que transcende as picuinhas passionais. Quero pagar pra ver. Não quero ser apenas aquela que acorda às cinco da manhã, que almoça ao meio-dia e se deita às vinte e uma horas depois de assistir ao jornal.

Dê-me uma receita, uma universal panacéia. Um substrato ético que cura a incompletude do ser. Algo que Nicolas Flamel não descobriu em sua pedra filosofal. Um elixir da longa vida que não está na alquimia, nem nas medicinas, tradicional ou contemporânea, tampouco, na indelével busca pela felicidade.

Dê-me, oh céus! O elixir da completude, e eu enfim morrerei para tantos. Mas, sobretudo morrerei para dentro. Porque metade de mim busca-me e a outra metade despede-se de mim. Porque parte do que sou é para ser feliz e outra parte, parte… Parte incompleta e é sempre incompleta que retorna…

Porque eu quero ser tantos e nunca ser esse eu que se adapta a tudo e a todos. Esse eu inautêntico e camaleão. Porque eu quero mais que efêmeras alegrias na realização das tarefas cotidianas, mais que pequenos brindes por cumprir deveres…

Ah, Manoel de Barros… estou rindo chorando… Você aí, fazendo versos, com Mario Quintana e Arthur Miranda. E eu aqui com esse fado de não entender quase tudo sobre o nada… Pois o meu mundo sem vocês  é  tão  profundo de vazios e eu moro em meus próprios abismos e ando em promiscuidade com os meus fantasmas incompletos. Porque fui marcado à exposição de minhas fraquezas, ao desalento, ao amor, à poesia.  Porque eu, assim como vocês, dou sentido à vida, com coisas sem sentido algum…

(Homenagem aos meus poetas brasileiros preferidos: Arthur Miranda, Mario Quintana e Manoel de Barros)

Nota da CONTI outra: O texto acima foi reproduzido com a autorização da autora.

contioutra.com - "É mais fácil fazer da tolice um regalo, do que da sensatez", por Clara Dawn

 

contioutra.com - "É mais fácil fazer da tolice um regalo, do que da sensatez", por Clara DawnCLARA DAWN

Nome que vem conquistando espaço e respeito no cenário das letras brasileiras, é uma escritora goiana de perspicácia ímpar na construção de personagens e na descrição das sutilezas da alma.

É autora de sete livros, dentre eles, “Sofia Búlgara e Tabuleiro da Morte” e “Alétheia”, publicado em 2008 pela Editora Kelps.

http://www.claradawn.com/

Quase, por Joana Nascimento

Quase, por Joana Nascimento

Por Joana Nascimento

Se me perguntassem o que seria um dos grandes malefícios do mundo, eu responderia que é a falácia do ‘quase’.

Em junho passado, tivemos no país uma quase revolução. As pessoas foram às ruas e bradaram ou, em outros casos, curtiram como se aquilo fosse mudar os rumos do Brasil, quando, na verdade, quase nada na prática aconteceu.

Milhares de almas sensíveis choram diariamente com os quase romances que viveram, pensando serem eternos, mas que no fim, eram apenas quase um relacionamento.

Outros se sentem decepcionados com os quase amigos que tiveram. Aqueles que estavam de prontidão para as euforias da vida, mas que quase se escondem quando outras necessidades aparecem.

Ou como quando você quase ganha milhões na mega sena, mas, de fato, gastou foi alguns reais em vão.

Os quase honestos, por exemplo, podem passar dessa condição para totalmente corruptos quase na velocidade da luz.

Torcedores lamentam os times quase campeões…

O quase é uma tentativa que não deu certo. É o fiasco. O fracasso.

Como aquele longa metragem de ação que é quase um filme, mas que na verdade não passa de um aglomerado de efeitos especiais com truques de montagem e edição.

Ou como aquela banda, quase sucesso nacional, mas que só é escutada pelos parentes dos integrantes.

Ou aquele ônibus que você pega todas as manhãs que é quase um transporte público, mas no fim é mais quase um traslado de animais.

Ou como a Pepsi que é quase uma Coca.

Ou, ainda, como a felicidade de muitos estampada no Facebook, que é quase uma vida real, mas que na verdade é só uma máscara virtual.

E isso aqui foi quase um bom texto, de uma quase jornalista, quase roteirista de cinema e quase produtora e crítica cultural, que, no fim das contas, é quase nada. Mas eu chego lá. Ou quase lá.

Nota da Conti outra: o texto acima foi publicado com a autorização da autora.

contioutra.com - Quase, por Joana NascimentoJoana Nascimento

Sou jornalista e aspirante a produtora e crítica cultural, e, bem incipiente, roteirista de cinema.
Acredito piamente no conhecimento do maior número de textos teóricos, narrativos e imagens como forma de evolução mental e espiritual.
Embora tenha vontade, sei que uma pessoa não muda o mundo, mas creio que cada cabeça individual é um universo diferente, e este, nós podemos melhorar sempre. O impacto positivo no todo externo será sempre progressivo e crescente.
Gosto de escrever sobre existencialismo e condutas de vida, sempre fazendo analogias com filmes, livros, música e teatro.

Você conhece a origem da palavra “histeria”? E o filme “Histeria”?

Você conhece a origem da palavra “histeria”? E o filme “Histeria”?

O livro “A casa da mãe Joana“, de Reinaldo Pimenta, nos traz curiosidades nas origens das palavras, frases e marcas num tom crítico, irreverente e satírico. Foi publicado pela Editora Campus – Rio de Janeiro, em 2002.

Abaixo, transcrevo a definição da palavra histeria:

“HISTERIA

Só em meados do século XX é que o machismo começou a perder força e se mostrar ridículo, simplesmente porque homens e mulheres não se davam conta dele, tão estranhado na nossa cultura. Uma vez que as palavras não se dissociam da realidade  – muito pelo contrário – muitas delas refletem a pretensa superioridade do macho sobre a fêmea.  Galinha ou vaca para uma mulher é uma ofensa; galo ou touro para um homem é elogio (garanhão). Mas quando o homem se prostitui, pronto, é galinha.

Com a palavra histeria deu-se coisa parecida. Veio do greto hystéra, útero, porque os antigos achavam que a histeria era causada por um desarranjo do útero e, portanto, tratava-se de um padecimento exclusivo das mulheres.

Na verdade, credite o absurdo mais à ignorância que ao machismo. Os antigos tinham muitas noções falsas sobre o corpo humano: o coração como sede da inteligência, o fígado como pêndulo do humor ECT. O genial filósofo e matemático francês, René Descartes ( 1596 a  1650), em seu estudos anatômicos, garantiu que a glândula pineal, no cérebro, seria o lugar da mente que “impele os espíritos para os poros do cérebro, que, então, os descarregam para os nervos e músculos”.

Nessa compota de absurdos, achar que a histeria era filha do útero não espantava ninguém. Mais tarde, o médico francês Louis Landouzy (1845 a 1917) assim definiu a histeria: “É uma neurose do aparelho gerador da mulher, repetindo-se por acessos apiréticios (sem febre) e tendo como sinal uma penosa sensação de estrangulamento”.

Não, minha senhora, furor uterino é outra coisa.”

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Cena do filme Histeria (Hysteria), de 2012.

Ficou interessado no filme?

contioutra.com - Você conhece a origem da palavra "histeria"? E o filme "Histeria"?Histeria (Hysteria)

Ano: 2012

Diretor: Tanya Wexler.

Roteiro: Stephen Dyer.

Elenco Principal: Maggie Gyllenhaal, Hugh Dancy, Rupert Everett, Jonathan Pryce, Felicity Jones.

Gênero: Comédia.

Nacionalidade: Reino Unido/França/Alemanha/Luxemburgo.

No século XIX, muitas mulheres eram diagnosticadas com histeria. Segundo o Dr. Robert Dalrymple (Jonathan Pryce), famoso especialista em medicina da mulher, essa doença exclusivamente feminina “dominava” quase que população feminina de Londres. Por acreditar que a origem do problema encontrava-se no útero, ele tratava suas pacientes com longas massagens na vagina, provocando assim um outro efeito, mais conhecido como prazer sexual. Ao dar oportunidade para que o jovem Dr. Mortimer Granville (Hugh Dancy) começasse a dar consultas no seu consultório, o local passa a receber cada vez mais pacientes, provocando no rapaz um grave problema nas mãos. Disposto a combater a dor crônica que sentia, ela acaba descobrindo em um aparelho criado por seu amigo e inventor Edmund St John-Smythe (Rupert Everett) uma solução que iria atender a ele e também as mulheres: um massageador elétrico. Baseado em fatos reais sobre a criação do aparelho, também conhecido nos dias atuais como vibrador, consolo, entre outros nomes. (Adoro Cinema)

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Receita de Felicidade, Toquinho

Receita de Felicidade, Toquinho

Receita de Felicidade

Toquinho

Pegue uns pedacinhos de afeto e de ilusão;
Misture com um pouquinho de amizade;
Junte com carinho uma pontinha de paixão
E uma pitadinha de saudade.

Pegue o dom divino maternal de uma mulher
E um sorriso limpo de criança;
Junte a ingenuidade de um primeiro amor qualquer
Com o eterno brilho da esperança.

Peça emprestada a ternura de um casal
E a luz da estrada dos que amam pra valer;
Tenha sempre muito amor,
Que o amor nunca faz mal.
Pinte a vida com o arco-íris do prazer;
Sonhe, pois sonhar ainda é fundamental
E um sonho sempre pode acontecer.

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A criança em seu mundo, Mário Sergio Cortella

A criança em seu mundo, Mário Sergio Cortella

Nesse palestra da CPFL Cultura, Mário Sergio Cortella fala sobre a importância da imaginação infantil, um mundo onde muitas vezes, os adultos não conseguem entrar. Mas, segundo o educador, é preciso criar relações mais próximas com as crianças e saber quais são as suas necessidades e desejos para que possamos formar cidadãos conscientes e atuantes. No entanto, estamos sacando o futuro por antecipação, estamos gastando os meios que permitiriam a existência de próximas gerações. E ainda por cima anunciamos às crianças: モNão haverá futuro, não haverá meio ambiente, não haverá segurança, não haverá trabalho.

A criança em seu mundo | Mário Sergio Cortella from instituto cpfl | cultura on Vimeo.

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Palavras de avó: quando uma mulher estiver triste o melhor a fazer é trançar o seu cabelo

Palavras de avó: quando uma mulher estiver triste o melhor a fazer é trançar o seu cabelo

“A minha avó dizia-me que quando uma mulher se sentisse triste, o melhor que podia fazer era entrançar o seu cabelo; de modo que a dor ficasse presa no cabelo e não pudesse atingir o resto do corpo. Havia que ter cuidado para que a tristeza não entrasse nos olhos, porque iria fazer com que chorassem, também não era bom deixar entrar a tristeza nos nossos lábios porque iria forçá-los a dizer coisas que não eram verdadeiras, que também não se metesse nas mãos porque se pode deixar tostar demais o café ou queimar a massa. Porque a tristeza gosta do sabor amargo.

Quando te sintas triste menina- dizia a minha avó- entrança o cabelo, prende a dor na madeixa e deixa escapar o cabelo solto quando o vento do norte sopre com força. O nosso cabelo é uma rede capaz de apanhar tudo, é forte como as raízes do cipreste e suave como a espuma do atole.

Que não te apanhe desprevenida a melancolia minha neta, ainda que tenhas o coração despedaçado ou os ossos frios com alguma ausência. Não deixes que a tristeza entre em ti com o teu cabelo solto, porque ela irá fluir em cascata através dos canais que a lua traçou no teu corpo. Trança a tua tristeza, dizia. Trança sempre a tua tristeza.

E na manhã ao acordar com o canto do pássaro, ele encontrará a tristeza pálida e desvanecida entre o trançar dos teus cabelos…”

Registro da antropóloga Paola Klug

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Fotografia tirada na Nicarágua por Candelaria Rivera, do ensaio fotográfico: “Amor de Campo”

Tradução via Rui Sá

Nota: A Conti outra tem a autorização da autora para reprodução deste material.

Uma amizade sincera, um conto de Clarice Lispector

Uma amizade sincera, um conto de Clarice Lispector

Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de uma amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.

Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seu amores. Experimentávamos ficar calados – mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.

Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes.

Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.

Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto – eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.

Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.

Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.

Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco. Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou.

Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.

Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.

Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.

É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade – posso dizer em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.

Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.

Encerrada a questão com a Prefeitura – seja dito de passagem, com vitória nossa – continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.

Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.

A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.

Clarice Lispector in Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro, Rocco, 1998

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Sincronicidades e os pequenos milagres do dia a dia

Sincronicidades e os pequenos milagres do dia a dia

Meu filho é grande fã da cultura pop japonesa contemporânea, mangás e animês. Gêneros com os quais tenho quase nenhuma familiaridade.

De uns anos pra cá, meus interesses têm se voltado ao Oriente. Meditação, tao, autores como J. Krishnamurti e – especialmente – o inclassificável Osho (*).

Estive com meu filho em Sampa, a semana toda – o que acontece eventualmente, moramos em cidades diferentes. Num dos dias, vou à Livraria Cultura. Livrinho comprado, sigo na direção da saída. Súbito, paro e verifico as mensagens no celular; tinha um compromisso marcado, dali a instantes.

Quando ergo a cabeça, percebo que estou na seção de quadrinhos japoneses. Praticamente pula diante de mim um livro, título em letras garrafais: A história de Buda em mangá.

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“A história de Buda em mangá” apresenta-nos a vida do príncipe Sidarta Gautama, herdeiro do reino de Kapilavastu há 2600 anos e da sua incansável busca de respostas para o significado da vida, do cessar do sofrimento humano e de alcançar a suprema felicidades dos seres.

“Puxa, mas que coincidência, não?”, dirá alguém. Claro que não é só isso.

Para alguns, a “sincronicidade” – conceito desenvolvido por Jung, que também a chama de “coincidência significativa” – é uma bobagem. Se não podem explicar o evento por meio da relação causa-efeito, ele não tem valor, isso é “papo de esotérico”. No extremo oposto, há os que a consideram trivial, quase banal, tamanha é a frequência que ela ocorre em seu cotidiano.

Ora, eu estava num ambiente com dezenas de milhares de livros ao redor. E meus olhos foram direcionados para este título em particular.

Pra mim, esta é a prova cabal da presença do sagrado nos pequenos detalhes. Da estreita interligação entre tudo e todos. Os pequenos milagres ocorrem quando se afina a sintonia com o universo; quando se está antenado aos sinais por ele enviados de modo discreto, sutil. De diversas formas: na letra da canção que toca no rádio, no artigo da revista que você folheia na sala de espera do consultório, na pessoa que aparece na sua vida de modo meteórico e some logo em seguida etc.

A beleza é que quanto mais prestamos atenção nestas sincronicidades, mais elas aparecem.

Estas cenas do dia a dia me deixam entusiasmado como criança diante da descoberta do novo. Aliás, “entusiasmado” não está na frase à toa: en + theos = na raiz etimológica da palavra, está Deus.

(*) Insight que só tive agora: geograficamente, estamos próximos, ele e eu. Japão, China, Índia.

LUIS GONZAGA FRAGOSO

Tradutor e Revisor

[email protected]

Nota da CONTI outra: A publicação do texto acima foi autorizada pelo autor.

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