Procura-se um amor que adore pessoas mais por suas histórias que por suas conquistas. Procura-se um amor que seja feliz cercado de abraços por todos os lados, mas que também saiba navegar pelo espaço dos próprios pensamentos, sem culpa.
Procura-se um amor que goste de cozinhar para si. Desse jeito, em nossos jantares serei sempre companhia de um prazer que você já tem. Procura-se um amor que conheça bem os caminhos da doçura, os mistérios provocantes, os sabores da vida.
Procura-se um amor que entenda que líquidos são as melhores bases para diluir longas conversas. Chá, café, vinho, cerveja ou mesmo nossos beijos, que tudo seja pretexto para saber mais de você.
Procura-se um amor que seja paciente quando eu não conseguir sê-lo. Que perca a paciência quando precisar, que me mande ao inferno quando eu merecê-lo, mas que sempre me queira de volta, envoltos de um leve cinismo bobo das crianças, vazantes da culpa do outro.
Procura-se um amor que se debruce sobre mim quando precisar, como quem sobe nas pedras para ver o céu tocando delicadamente os cabelos ondulados dos mares, sem nada a dizer.
Procura-se um amor que convide com os olhos enquanto diz e que nade nos meus enquanto escuta. Procura-se um amor que tenha suas próprias manias, para que às vezes também se distraia e me deixe viver as que já são tão minhas.
Procura-se um amor que tenha dedos apaixonados por cabelos e que esses dedos abobalhados se percam em meio a eles, nas trilhas ancestrais do topo dos meus pensamentos.
Procura-se um amor que me faça rir como se eu fosse adepto de uma nova droga, ou dotado de um tipo raro de doença mental – Veja aquele pobre coitado, lá vai rindo-se. Dizem que ele sofre de um caso raro de Amorismo Cerebral – comentarão as vizinhas que brotam nas calçadas.
Não, não busco mais perfeição. Busco quem também suavize meus pesos e releve meus erros que se multiplicam sempre em tantos e tantos e tantos. Não, não mais me distraio tanto com os errados enquanto não me chega o certo. Quero estar com os olhos bem abertos e o pátio do meu coração bem limpo para convidá-lo ao centro, quando o encontrar por perto.
Mãe é o personagem de nossas vidas que mais marca. Primeiro, por questões biológicas. O útero nos abriga e nos forma. Lá, somos apenas crescimento. Segundo, por questão de roteiro. A nossa história progride na medida em que somos envolvidos em seus cuidados.
Mas nem toda mãe ama. É um mito forte aquela história de que “mãe é mãe.” Basta observar o abandono. Não nos cabe, também, aquela arma de julgamento, porque nada é mais difícil do que ser mãe. Há quem não suporte a dificuldade e fuja.
Atire a primeira condenação quem nunca fugiu diante de um obstáculo!
Eu mesmo nasci homem porque não suportaria ter um útero.
A mulher tem um órgão, no corpo, que gera uma infinidade de outros órgãos. Assustador. Talvez disso nasçam os machismos. O homem tenta diminuir o papel delas na sociedade, pois sabe que é mais frágil. Mal gera os próprios desejos…
Se existe algum sexo fraco e perdido, só pode ser o nosso, meus amigos, e não adianta a gente ficar por aí querendo humilhá-las. Impondo a cor do batom, o tamanho da saia, com quem elas devem sair ou quais pensamentos necessitam ter. Essas agressões só revelam o quanto somos caídos.
Se quisermos levantar, valorizemos as mainhas, inclusive as que decidiram não ter filhos. As que decidiram ser nada do que nossos receios quiseram que fossem.
E, se você anda reclamando do preço da gasolina, fica o aviso: mainhas são os combustíveis do mundo. Tão caras que o dinheiro se envergonha de tentar comprá-las.
Um médico chorando pela dor de perder um paciente! Essa foi uma das imagens que um dia inundou as redes sociais. Mas como abarcamos essa condição atualmente?
Não se restringindo apenas ao profissional da medicina, mas estendendo para toda a equipe de saúde, qual o espaço que os mais puros sentimentos e emoções humanas encontram nos hospitais, enfermarias, ambulatórios, prontos-socorros e UTIs?
Que conjunto de comportamentos são esperados pela sociedade e pelos próprios profissionais, diante da enorme gama de situações de extrema emoção despertadas pela vivência diária com seus pacientes?
Frustrações, desamparo, medo, incerteza, ansiedade, esperança, amor, cuidado, envolvimento…esses são apenas alguns dos sentimentos que nós profissionais que lidamos com seres humanos nos deparamos no dia a dia.
O lugar do cuidado é também o lugar da crise! Espaço de polaridades, onde são experienciadas a doença, a dor, a dúvida, o sofrimento, a perda, o estresse, a morte, o luto. Mas também o recinto da saúde, da esperança, da informação, da comunicação, do conforto, do alívio, do cuidado e da cura. Cenário de nascimentos, morte e renascimentos. Onde ocorrem mudanças, divisões de fases e a emergência de inúmeros processos individuais, familiares e coletivos.
Para Jung, “o encontro de duas personalidades é como uma mistura de duas substâncias químicas diferentes: no caso de se dar uma reação, ambas se transformam.”
Dentro de tamanha complexidade, por mais que o profissional quisesse, ele não conseguiria ficar imune as emoções e aos sentimentos despertados pelas inúmeras situações com a qual se envolve.
Todavia, ainda existe em algumas instituições a ideia de que o profissional precisa ser técnico e para isso tem que separar suas emoções no local do trabalho.
O que temos nesses casos, são relatos de profissionais endurecidos ou que sofrem isolados, choram nos banheiros, abusam de substâncias psicoativas e adoecem! Diga-se pelo número de pessoas acometidas pela Síndrome de Burnout e muitas sem o devido tratamento.
A força do vínculo entre quem cuida e quem é cuidado é o fator que mais me toca nessa imagem! Um vínculo que pode ser o maior motor que impulsiona a cura e a vontade de curar. Afinal quem de nós não se sente especial e acolhido quando encontramos um profissional da saúde que nos olha nos olhos, se importa com a gente e está realmente interessado no nosso bem-estar?
Mas é preciso também cuidar de quem cuida! Estender esse olhar humano e acolhedor para a pessoa que está por baixo do jaleco branco e oferecer a ela todo o amparo que precisa para exercer bem sua profissão.
Para Miguel de Unamuno, “do seu trabalho, você conseguirá um dia colher a si mesmo“.
O grande ganho de trabalhar com pessoas é que através das experiências colhemos também em nós o ferido que somos, e isso é essencial para o processo de cura e transformação aos qual estamos destinados.
Marcela Alice Bianco, colunista e parceira Conti outra
Médico da Califórnia, nos Estados Unidos, chorando na calçada da rua depois da morte de um paciente de 19 anos.
Nos últimos dias, milhares de pessoas compartilharam a imagem de uma criança com as mãos para cima, a entregar-se, confundindo a câmera fotográfica com o cano de uma arma.
A imagem começou a viralizar no Twitter na terça-feira da semana passada, quando foi tuitada por Nadia Abu Shaban, uma fotógrafa baseada em Gaza.
Viralizada no Twitter, diversos questionamentos surgiram quanto ao crédito da imagem e quanto à veracidade da história.
Após desvendar a autoria da foto, o fotógrafo turco Osman Sağırlı, a BBC o entrevistou. Ele agora trabalha na Tanzânia, e, sengundo afirma, a criança da foto é uma menina, chama-se Hudea, de apenas 4 anos de idade. A foto foi tirada no campo de refugiados de Atmeh na Síria, em dezembro do ano passado. O campo fica a cerca de 10 km da fronteira turca – e a criança teria ali se refugiado com a mãe e dois irmãos, a 150 km da cidade deles, Hama.
“Eu usei uma lente de telefoto e ela pensou que fosse uma arma”, disse Sağırlı.
“Depois que eu tirei eu olhei (para a foto) e percebi que ela (a criança) estava assustada, porque ela mordeu os lábios e levantou as mãos. Normalmente, crianças correm, escondem os rostos ou sorriem quando veem uma câmera”, disse.
Inicialmente publicada no jornal Türkiye em janeiro, a foto foi amplamente compartilhada pelas redes sociais em turco, mas só na semana passada tornou-se viral em mídias na língua inglesa.
Para finalizar, afirma o fotógrafo:
“Você sabe que há pessoas que foram desalojadas nos campos. Faz mais sentido ver o que elas sofreram através das crianças e não dos adultos. São as crianças que refletem os sentimentos com a inocência que têm”.
A Conti outra lamenta que narrativas como essa não sejam, de fato, ficção. Bom seria se casos de guerra, de medo, de insegurança e de dor permeassem tão somente o imaginário de escritores a descreverem mundos fantásticos e improváveis. Mas, a realidade é mesmo essa: a inocência de mãos levantadas diante da insegurança e do medo do homem: este ser por vezes tão esquecido das virtudes humanas.
Nasceu! É menino ou menina? É enorme alegria dos pais, avós, tios, tias, enfim, de toda a família. Uma criança, um novo ser neste mundo, um novo projeto de vida. E desde cedo se começa a traçar o futuro dessa pequena pessoa, um futuro ainda não escrito, mas que não fica uma página em branco por muito tempo. Planos e expectativas dos pais vão moldando esse futuro com as tantas e tantas coisas que desejam para sua criança. Mariazinha vai ser médica, pensa a mãe, já que ela mesma quis ser médica, mas sua trajetória não permitiu. Sim, ela vai estudar e ser doutora, gente importante e respeitada. Joãozinho, ah, o Joãozinho! Tão bonitinha sua “cara de lua”, a cabeça redonda, os olhos grandes e curiosos, cara de gênio, com certeza a criança mais inteligente do mundo! “O que será dele?“, perguntam-se os pais, “Esse menino vai longe!“, engenheiro, advogado, piloto, astronauta ou mesmo presidente da república? No mínimo!
E assim os pais começam a fazer de tudo que está ao seu alcance para que nada falte. Qual é a melhor escola? Escola não, jardim de infância, pois o pai leu que quanto mais cedo a formação começar, melhor. “Então”, diz a mãe, “se é assim, vamos começar já na creche”. E dito e feito: começa o projeto “filho” ou “filha” e aquela criança, que por direito de nascimento é um projeto de vida de si mesma, é transformada em projeto de vida dos pais. E já cedo é formado o molde, o caminho é traçado, pedagogias especiais, inglês e informática ainda na pré-escola, aulas de música, ballet, escolas particulares, conceitos e preconceitos e tudo que o pequeno herdeiro ou a pequena herdeira tem direito para chegar onde os pais desejam. A criança é então formatada, colocada no molde com o formato escolhido pelos pais.
Ou mesmo o contrário: pai ou mãe ou ambos não dão muita importância a esse negócio de estudar, menino tem que ser é macho, menina tem que se preparar para um dia casar. Profissão? A mesma dos pais serve. Nada de experimentos, nada de frescuras…
De um jeito ou de outro, a criança não tem chance de escapar de um esboço feito e selado, um molde, uma forma, na qual será prensada até caber. Ou não caber e quebrar-se. Ou rebelar-se antes.
Sim, eu sei: levo o tema aos extremos. Não são todos os pais que já planejam toda a carreira e a vida dos filhos. Mas os extremos nos ajudam a reconhecer melhor o que fazemos com nossos filhos quando esquecemos que eles são seres livres, com uma vida própria, com um próprio plano, com um futuro que eles podem construir, em princípio, como bem quiserem e entenderem. “Como assim? Como é que uma criança vai saber o que quer? Ela não sabe nada da vida?”, pensou você talvez, e com razão, pois é isso mesmo: sozinha ela terá dificuldade de descobrir o que ela quer da vida. É aí que está o papel principal dos pais: nossos filhos são seres que nos são “emprestados”, nós pais temos a honra de recebê-los e acompanhá-los em seu desenvolvimento, orientando, ajudando, sofrendo… Mas eles não nos pertencem. Assim, é nossa tarefa ajudá-los a descobrirem o que querem e não forçá-los a ser o que NÓS queremos. Exemplos extremos ajudam a reconhecer isso melhor.
Ser mãe ou pai não é coisa fácil. Para quase tudo nesta vida precisamos de aprendizado e até de autorização, como para dirigir um carro, por exemplo: é preciso aprender a dirigir primeiro e depois fazer a carteira de motorista. Ou para exercer uma profissão: aqui também é necessário aprender antes e ter um diploma ou certificado. Mas para ter filhos não há preparação, não há escola e os pais não recebem nenhum diploma que os capacite a educar uma criança. As únicas referências são a própria infância e a educação de outras crianças na família e na vizinhança, e todos nós sabemos que essas referências podem ser excelentes, mas também uma verdadeira catástrofe! Muitos pais (talvez ainda bem jovens) são praticamente jogados na água fria. Eles educam então seus filhos com base naquilo que viveram na própria infância, na educação que eles mesmos receberam e repetem o mesmo esquema praticado por seus pais. Assim, a educação recebida é passada aos filhos, com seu lado bom, mas também com suas falhas, fazendo com que terminemos repetindo os mesmos “erros” de nossos pais. Pais que foram prensados em um molde quando eram crianças tentam fazer a mesma coisa com os próprios filhos.
Sei que é difícil para um pai ou uma mãe que quer o melhor para seus filhos aceitar que eles talvez tenham outros planos, outros desejos, querendo uma trajetória diferente daquelas projetada pelos genitores. A decepção é então grande e o conflito certo quando aquela menina que deveria ser médica prefere ser artista ou qualquer outra coisa diferente. E o menino “com cara de inteligente”, que deveria atingir um status altíssimo na sociedade, o que acontece então se ele preferir vender cachorro quente na praça?
Conheço pessoas adultas que sofrem por terem “escolhido” a profissão errada por pressão dos pais (na verdade, foram os pais que escolheram!) ou por terem tido peito para fazer algo diferente do que os pais esperavam e agora sofrem com acusações do tipo “você desperdiçou seus talentos”, “você poderia ter ido mais longe” ou até mesmo “você fracassou”. A “formatação” das crianças não se limita somente ao âmbito profissional. Muitos pais vão bem mais longe: filho ou filha homossexual? Nem pensar! Nada disso, pois eles (os pais) planejaram ser avós um dia. Tatuagem? Que nada, pois isso não corresponde a nossos planos… E assim por diante.
E que ninguém pense que os pais param com essa doidice quando os filhos deixam de ser crianças, pois muitos prosseguem, tentando formatar, buscando determinar como eles devem viver, não aceitando as decisões tomadas pelo filho adulto. Conheço uma mulher que está sofrendo muito após a separação do marido. Ela sofre pela separação em si, mas também pela pressão da mãe, que não aceita essa sua decisão de forma alguma, pois para ela a mulher tem que ficar casada, custe o que custar, sofrendo ou não. Aqui vemos um exemplo claro de alguém mais preocupado com convenções e com a formatação planejada do que com a felicidade da filha.
Estou convicto de que a maioria dos pais quer realmente o bem dos filhos, agindo dessa ou daquela forma por acreditar que está fazendo bem à criança. E é claro que faz parte de nossa tarefa como pai ou mãe exercer um pouco de pressão para que a criança frequente a escola e conclua os estudos, para que tenha uma boa conduta, etc., mas não devemos exagerar. E devemos ter sempre em mente que nossos filhos são seres livres, que precisam aprender a andar com as próprias pernas para que possam seguir o caminho que acharem melhor. Forçar a barra e tentar enfiar uma criança às forças em um molde qualquer é pré-programar problemas sérios em sua vida mais tarde. Não é nossa obrigação criar engenheiros, médicos, advogados, astronautas ou presidentes. Nossa obrigação é apoiar nossos filhos a desenvolverem suas aptidões, é fortalecê-los em suas próprias decisões (de acordo com a idade, claro) e criar seres humanos livres e felizes. Nossos filhos não são responsáveis por nossa satisfação pessoal, por nossos desejos e planos, mas sim por suas próprias vidas. Penso que se nós adultos respeitássemos mais essa liberdade das crianças de serem o que elas são ou desejam ser, teríamos no futuro adultos mais saudáveis e felizes e os psicoterapeutas teriam bastante menos trabalho.
Flores de azul turquesa, inundação no vale abaixo Abundância de seda, uma joia de valor A lua crescente, e o filho querido São comparações
Ninguém antes cantou palavras tão soltas
Ninguém pode compreender seu significado
Sem escutar toda a canção
A pintura dourada se desbota ao ser completada
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência.
A inundação varre o vale abaixo
Logo torna-se fraca e dócil na planície abaixo
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência
Arroz cresce no vale abaixo
Logo pela foice é colhido
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência
A roupa suave de seda logo é cortada pela faca
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência
A joia preciosa que você admira
Logo pertencerá a outros
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência
Os pálidos raios da lua logo se desvanecem
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência
Um filho querido nasce e logo se vai para sempre
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência
Estas são comparações que canto
Espero que você se recorde e as pratique
Preocupação e trabalho sempre existirão
Então, deixe-os de lado e pratique agora a grande consciência
Se você pensa que amanhã é o momento de praticar,
Logo descobrirá que a vida passou.
Quem pode dizer quando virá a morte?
Pense sempre nisso e dedique-se à prática.
Amém.
Jetsum Milarepa (1052 — 1135, aprox.) foi um dos mais famosos iogues e poetas tibetanos.
No vídeo acima, apresentação de poema de Milarepa durante Sarau Cultural pelo Tibete, por Mit Mujalli & Francine Canto.
Teatro Álvarez de Carvalho. Florianópolis. Abril de 2012.
Realização: Centro de Cultura Tibetana
Texto compartilhado por Paulo Sérgio Sarra, indicação Luis Gonzaga Fragoso
Quando ainda menina, lia muito Drummond. Achava um exagero ele dizer que chegaria um tempo de absoluta depuração, em que “(…) os olhos não choram./E as mãos tecem apenas o rude trabalho./E o coração está seco.” Mas hoje eu vi no noticiário uma cena muito peculiar, e a verdade do poema me veio à alma, imediatamente. Um fotógrafo, ao tentar retratar a vida das crianças sírias, conseguiu captar não a frieza deste mundo, mas já a sua consequência. Ele enquadra a criança em sua lente e essa levanta os braços, rendida, pensando ser uma arma.
Deus! Que mundo é este, onde a inocência caminha de mãos levantadas e a alma do mundo não sangra, e os olhos dos homens não choram, e a dor já não nos pode chocar? Que mundo é este cujos avanços tecnológicos não encontram eco na evolução moral dos indivíduos e onde só o que conta são os cifrões?
Um mundo cujo colorido já não é convidativo aos olhos. Onde a beleza é preterida. Onde a pureza dos pequeninos ainda é roubada e banhada do sangue de seus pares, de seus pais e, não raro, do seu próprio sangue. Um mundo cujas crianças já têm a esperança prematuramente envelhecida pela dor que transborda dos noticiários e que não raro floresce ao seu lado. Um mundo em que, a cada dia, o homem teme mais e mais o próprio homem.
Frequentei um curso, há um tempo, e algo me deixou sobremodo perplexa. O instrutor mostrava-nos diversos vídeos com acidentes causados por veículos. Em dada situação, um homem fora atropelado por não olhar para a sua direita quando um carro vinha na contra mão. Alguns dos colegas, a maioria jovens entre 18 e 25 anos, riram da cena. Noutro atropelamento, a maioria riu. Esboçaram alguma comoção, leve, quando uma criança foi atropelada. Mas, pasmem: um cachorro foi atropelado e, nesse momento, houve uma comoção geral: “Ah, pobrezinho! Tadinho dele!”.
A banalização da dor do outro é hoje tamanha que os jovens se identificam mais e se comovem mais com a dor de um animal que com a dor de um homem ou de uma criança.
A dor do outro é estatística. “Quanta mortes, mesmo, na Síria? Quantos desabrigados no Acre? Quantas mulheres são agredidas por ano? Quantas crianças são estupradas por parentes próximos?” Não! Essa postura desmerece o infinito que somos, desautoriza a angelitude a que estamos destinados, desmente a centelha do Eterno que permeia a alma de cada um de nós!
Necessitamos ver o outro como parte desprendida, mas ainda ligada a nós por lanços infindáveis de natureza espiritual. Ninguém pode ser plenamente feliz enquanto um só de nós estiver de braços levantados, rendida criança assustada pelos estrondos da guerra, cativa da dor e da morte. Esfomeada de uma Justiça que ela não pode compreender ou dizer, mas, humana que é, já a pode desejar e de sua falta se ressentir.
Que esta criança que hoje vi de mãos levantadas por confundir a câmera com uma arma possa ainda, é o que utopicamente desejo, levantar novamente as suas mãos, mas não por medo. Que ela ainda possa, na pontinha dos pés, elevar os seus braços para brincar com as estrelas.
Há alguns dias um fotógrafo capturou, na Síria, a imagem de uma criança que se rendeu em frente sua câmera. Segundo informações do site Huffington Post, a pequena levantou os braços ao confundir a câmera com um rifle.
Muitas vezes explicamos nosso sofrimento pela “obrigação”. Acreditamos que se cumprirmos nossa obrigação estaremos justificados perante o mundo, perante nós mesmos, e os outros. A consciência de dever cumprido causa em nós todo tipo de reconhecimento e estima: como mãe, como pai, como carteiro, como funcionário público, como militar ou seja lá a profissão que você tenha escolhido e os papéis que também escolheu viver nessa vida.
Quando cumprimos nossa obrigação fazemos o que deve ser feito. Mas a obrigação vem na maioria das vezes dentro de um saco escuro, o saco da privação, e acompanha o saco da privação a sensação de auto sacrifício que compreende uma boa formação para nossos filhos, se possível, e para tanto também a aceitação de um segundo emprego, cuidar de um familiar doente, e renunciar as nossas férias, mesmo estando machucado fazer um bom jogo e ganhar para evitar o rebaixamento do nosso time.
Todos nós conhecemos o sentimento de dever cumprido e também suspiramos debaixo do seu enorme peso em nossos ombros. Mesmo querendo outra coisa, nos sentimos no dever de… E assim ficamos mal com a vida porque o “dever” vem de fora, e obrigação, nesse caso, muitas vezes é uma desculpa, que nos poupa de definirmos os nossos verdadeiros objetivos e tomarmos decisões que sabemos que serão desagraveis de início. Então o grande pulo na água fria deixa de acontecer para que possamos cumprir nossa obrigação e dizermos: “meus compromissos não me permitem…”.
Acreditamos que assim vamos extrair direitos e deveres e, com esse recurso, então iremos extorquir de moral elevado, as outras pessoas. Mas quando conseguimos pensar objetivamente, não há obrigações, porque toda a imposição vinda de fora é objeto de nossa opção. Caso você esteja “na obrigação” é porque assim você escolheu.
Mas você não está vendo que é possível decidir diferente a qualquer momento, ninguém pode nos tirar a liberdade, mesmo que o preço seja a prisão. Toda a obrigação é auto imposta por nós.
Por isso nunca faça nada por obrigação, porque o ódio encontra-se profundamente arraigado na obrigação. Ódio daquele que exige sua mobilização, e, com isso, provavelmente dificulte que você viva a sua vida. Muitos de nós temos o sentimento de estarmos “devendo” para alguém, talvez para nossos pais, porque afinal eles fizeram tudo por nós. Mas mesmo nesse caso não há obrigação que seus pais não tenham decidido por eles mesmos.
Se você se sente responsável pelo bem estar da sua família, essa foi uma opção sua de ser responsável pelo bem estar de sua família, mas da mesma forma que você fez essa opção, você poderá a qualquer momento mudar de ideia e fazer outra opção. Se isso seria ou não correto, ou moralmente acertado ou não, não estamos debatendo aqui. Estamos debatendo aqui as opções que você tem em sua vida.
A maioria de nossas opções são valores morais que nos foram concedidos pela sociedade onde vivemos, e exercem uma enorme pressão para que nos coloquemos sob seus comandos.
Não podemos esquecer, no entanto, que em nome da moral e dos bons costumes muito sangue tem sido derramado e os mais duvidosos meios santificados, não só antigamente mas hoje nossa sociedade, parece que abriu a tampa da panela de pressão e está deixando sair tudo o que ficou inconsciente por séculos. A moral que sempre ditou os limites, a moral que sempre tentou elevar o outro. É a moral que nos diz: “Tenho mais direito que participar do que você”
Colocamo-nos como vitimas sem nunca ter sofrido, como se as próprias vitimas nos tivessem conferido esse poder.
Mas tudo o que fazemos para nós mesmos, porque é importante para nós, porque parece certo para nós, e porque corresponde a valores e normas que sempre aprendemos a seguir. Agimos assim por uma necessidade de nos sentirmos úteis.
E muitas vezes isso nos leva a nos empenharmos pelo bem alheio pelos motivos mais falsos e torpes possíveis.
A realidade é que não fazemos nada por ninguém apenas por nós mesmos!
As histórias mais antigas da literatura mundial, eram transmitidas acompanhadas de algum arranjo. Dessa forma seus autores conseguiam propagar um enredo bastando alguns versos e batidas.
Separamos cinco músicas modernas que são espécies de contos musicados.
Vale gastar ouvido com mais uma playlist do Conti Outra.
Geni e o Zepelim, Chico Buarque
De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Co’os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo – Mudei de idéia
– Quando vi nesta cidade
– Tanto horror e iniqüidade
– Resolvi tudo explodir
– Mas posso evitar o drama
– Se aquela formosa dama
– Esta noite me servir
Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
– e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Dezesseis, Legião Urbana.
João Roberto era o maioral
O nosso Johnny era um cara legal
Ele tinha um Opala metálico azul
Era o rei dos pegas na Asa Sul
E em todo lugar
Quando ele pegava no violão
Conquistava as meninas
E quem mais quisesse ver
Sabia tudo da Janis
Do Led Zeppelin, dos Beatles e dos Rolling Stones
Mas de uns tempos prá cá
Meio sem querer
Alguma coisa aconteceu
Johnny andava meio quieto demais
Só que quase ninguém percebeu
Johnny estava com um sorriso estranho
Quando marcou um super pega no fim de semana
Não vai ser no CASEB
Nem no Lago Norte, nem na UnB
As máquinas prontas
Um ronco de motor
A cidade inteira se movimentou
E Johnny disse:
“- Eu vou prá curva do Diabo em Sobradinho e vocês ?”
E os motores sairam ligados a mil
Prá estrada da morte o maior pega que existiu
Só deu para ouvir, foi aquela explosão
E os pedaços do Opala azul de Johnny pelo chão
No dia seguinte, falou o diretor:
“- O aluno João Roberto não está mais entre nós
Ele só tinha dezesseis.
Que isso sirva de aviso prá vocês”.
E na saída da aula, foi estranho e bonito
Todo o mundo cantando baixinho:
E até hoje, quem se lembra
Diz que: “Não foi o caminhão”
Nem a curva fatal
E nem a explosão
Johnny era fera demais
Prá vacilar assim
E o que dizem é que foi tudo
Por causa de um coração partido
Um coração
Bye, bye Johnny
Johnny, bye, bye
Bye, bye Johnny.
A chegada de Raul e Lampião no FMI, Tom Zé.
É Raul, Raul, Raul,
É Raul Seixas, é Lampião
Chegaram no FMI
Que nem tentou resistir
É Raú, Raú, Raú,
Lampião não anda só
Trouxe Deus e o diabo
Raul, a terra do sol
Lampião com o clavinote
Raul trouxe o Ylê Ai Ê
Tiraram os colhões do rock
Enrabaram o iê-iê-iê.
Chegaram na Casa Branca
Os dois de carro-de-boi
Tio Sam fugiu de tamanca
Ninguém viu para onde foi
Wall Street fechou
E a ONU não deixou pista
O presidente jurou
Que sempre foi comunista
Mano Brown disse a Raul
O dinheiro a gente investe
No Banco Carandiru
Xingu, favela e Nordeste
Todo-poderoso e rico
O grande senhor dali
Cagou-se, pediu pinico
Aflito, fora de si
Pois o FMI
Viu que não tinha mais jeito
E entregou todo o dinheiro
Para o pobre dividir
E o mundo se viu diante
De grande felicidade:
Trabalho pra todo o dia
Comida pra toda a tarde
Mas entre os países pobres
Não houve fazer acordo
Para dividir os cobres
E a guerra pegou fogo
Marvin, Titãs
Meu pai não tinha educação
Ainda me lembro, era um grande coração
Ganhava a vida com muito suor
Mas mesmo assim não podia ser pior
Pouco dinheiro pra poder pagar
Todas as contas e despesas do lar
Mas Deus quis vê-lo no chão
Com as mãos levantadas pro céu
Implorando perdão
Chorei, meu pai disse: “Boa sorte”,
Com a mão no meu ombro
Em seu leito de morte
E disse
“Marvin, agora é só você e
não vai adiantar
Chorar vai me fazer sofrer”
Três dias depois de morrer
Meu pai, eu queria saber
Mas não botava nem um pé na escola
Mamãe lembrava disso a toda hora
Todo dia antes do sol sair
Eu trabalhava sem me distrair
As vezes acho que não vai dar pé
Eu queria fugir, mas onde eu estiver
Eu sei muito bem o que ele quis dizer
Meu pai, eu me lembro, não me deixa esquecer
Ele disse
“Marvin, a vida é pra valer
Eu fiz o meu melhor
E o seu destino eu sei de cor”
E então um dia uma forte chuva veio
E acabou com o trabalho de um ano inteiro
E aos treze anos de idade eu sentia
todo o peso do mundo em
minhas costas
Eu queria jogar mas perdi a aposta, e
Trabalhava feito um burro nos campos
Só via carne se roubasse um frango
Meu pai cuidava de toda a família
Sem perceber segui a mesma trilha
Toda noite minha mãe orava
“Deus, era em nome da fome
que eu roubava”
Dez anos passaram, cresceram
meus irmãos
E os anjos levaram minha mãe
pelas mãos
Chorei, meu pai disse: “Boa sorte”
Com a mão no meu ombro
Em seu leito de morte
Ele disse
“Marvin, agora é só você
E não vai adiantar
Chorar vai me fazer sofrer”.
“Marvin, a vida é pra valer
Eu fiz o meu melhor
E o seu destino eu sei de cor”
Desaparecido, O Terno.
Minha vida sempre foi tranquila
Não tem do que reclamar
Tenho uma família, bons amigos
Algo pra chamar de lar
E eu aqui fazendo vinte anos nunca ia imaginar
Que uma ligação misteriosa a minha vida ia mudar
Nos anunciados de desaparecidos
Viram o meu rosto no jornal
Alguém ligou
Pra procurar
Ver se era eu
Fiquei sem entender
Depois desse acontecimento
Eu comecei a investigar
Sobre a minha origem
E a origem dos que dizem ser meus pais
Resolvi chamar os dois na sala pra pedir explicação
Explicar o significado do retrato em questão
Sei da verdade e dessa novidade
Juro que não sei o que pensar
Pensar de mim
Quem são vocês?
Da onde eu vim?
O que eu faço aqui?
“Filho, como sabe sou cientista
Não quero te apavorar
Numa experiência que eu fazia
Exatos vinte anos atrás
Sequestrei um garoto perdido que eu encontrei por aí
Pra reconstruir o filho que eu com a sua mãe perdi”
Escandalizado
O garoto foi criado
Como um tipo de um frankenstein
Como um boneco
De um casal
Reagiu mal
Partiu pra não voltar
Os pais procuraram sem sucesso
Ele nunca mais voltou
“A verdade foi demais pra ele
Bem, por que você contou? ”
Dizem que até hoje o cientista sai vagando por aí
Atrás de um novo garotinho pra quem sabe conseguir
Ciar um filho
Igual àquele filho
Que criou igual a um filho seu
No desespero doentio
De quem não sabe
Enfrentar o vazio
Eu, ……………………….., residente na cidade de ………………………………………, venho por meio desta solicitar o estreitamento de nosso vínculo afetivo. A presente solicitação se deve ao(s) motivo(s) abaixo assinalado(s):
( ) fomos amigos na infância, e sofro de nostalgia
( ) falta de alternativa sob o verniz da diplomacia: somos colegas na firma
( ) fomos casados/namorados; convém estar a par de sua vida afetiva – nunca se sabe
( ) você sempre foi um ótimo ouvinte, e terapia custa os olhos da cara
( ) estabelecer um canal de comunicação profissional – uma garantia de que você leu a mensagem que lhe enviei
( ) a utilidade de saber onde encontrar o inquilino de meu imóvel, em caso de atrasos
( ) sou seu fã incondicional, uma tietagem à beira da histeria
( ) você é o(a) guru que sempre busquei
( ) o upgrade que o seu nome dará à minha lista de amigos do Facebook
( ) participar ativamente – e elevar o nível – das discussões na caixa de comentários aos seus posts sobre política nacional
( ) não perder mais os vídeos de gatos, cachorros e pandas que você tem postado
( ) outro (especificar):
Renovando meus protestos de estima e consideração, peço deferimento.
A cidade barulhenta expulsou aquelas duas famílias amigas. O vozerio exagerado dos homens e as buzinas de automóveis atormentavam – lhes. Resolveram criar os filhos onde se escuta a algazarra dos pássaros e o assovio do vento. Mudaram-se durante o inverno para uma cidade de dez mil habitantes.
Os filhos dos casais somavam três: Beatriz , seis anos, e Antônio eram irmãos. Ele, apenas dois anos mais velho. Glória tinha um ano a mais que a amiga e era filha única. Encontrava nos companheiros, e agora vizinhos, cumplicidade. Irmãos em casas conjugadas.
A casa de Glória tinha vários cômodos. Todos bem iluminados pelo sol que penetrava pelas grandes janelas de madeira. Os móveis eram poucos e necessários. Causavam imensidão ao interior da casa. O vento era convidado a percorrer os espaços. Era uma ordem natural.
Naquele dia, tudo acordou lavado: as plantas molhadas, a terra ensopada, o quintal era um lago raso. Os pássaros cantavam na copa, a empregada cantarolava na copa, as crianças barulhavam.
Os meninos brincavam, esticando-se no sol ainda morno das primeiras horas do dia, daquela manhã de sábado. Uma grande laranjeira cobria todos, mas os deixavam expostas às frestas de luz que se moviam lentamente, obedecendo ao passear do sol no céu, que mandava embora as últimas nuvens cansadas do trabalho na noite anterior. Chover é trabalhoso às operárias brancas. Chover é trabalho aos operários da terra. A chuva banha seres e coisas. Há sujeira sem a chuva; há sujeira com a chuva.
Glória e os amigos tinham pés e mãos enlameados. Arrumavam uma casinha de brinquedo. Faziam das pedras, banquinhos; das folhas, camas; das mãos, arquitetos. Beatriz e Antônio aproximavam-se naquela causa comum: a casinha primitiva. Glória afastou-se dos amigos e apanhou uma laranja caída durante a chuva na noite anterior. A fruta, madura demais, não resistiu ao vento que a balançou violentamente para todos os lados.
_ Glória, vem pra cá, grita Beatriz, vem ajudar a gente,
Glória, com a laranja nas mãos, dirige-se aos colegas.
_ O que é isso, Glória? Pergunta Antônio, curioso pelo segredo na mão de Glória.
_ Tô brincando de mundo, Antônio. Acabei de achar um mundo maduro caído no chão. Tá aqui, amarelinho, na palma da minha mão.
_ Traz pra cá, Glória! Beatriz fica animada com o novo brinquedo. Quer tê-lo dentro ou fora da casinha. Quer tê-lo.
Glória fez um pequeno buraco no chão e colocou a fruta para descansar. Mundo em um buraco úmido. A menina observa o brinquedo, acarinha-o o polo norte, tenta fazê-lo dormir, em vão. Recolhe-o e o coloca sobre o peito. Deita-se no chão molhado com o mundo sobre o corpo.
Sentindo a falta do brinquedo, Beatriz reclama:
_ Antônio, cadê o mundo que estava aqui?
_ O Mundo, responde Antônio, está na mão de Glória.
O Globo: Na sua opinião, como seria o modelo ideal de educação? Edgar Morin: A figura do professor é determinante para a consolidação de um modelo “ideal” de educação. Através da Internet, os alunos podem ter acesso a todo o tipo de conhecimento sem a presença de um professor. Então eu pergunto, o que faz necessária a presença de um professor? Ele deve ser o regente da orquestra, observar o fluxo desses conhecimentos e elucidar as dúvidas dos alunos. Por exemplo, quando um professor passa uma lição a um aluno, que vai buscar uma resposta na Internet, ele deve posteriormente corrigir os erros cometidos, criticar o conteúdo pesquisado.
É preciso desenvolver o senso crítico dos alunos. O papel do professor precisa passar por uma transformação, já que a criança não aprende apenas com os amigos, a família, a escola. Outro ponto importante: é necessário criar meios de transmissão do conhecimento a serviço da curiosidade dos alunos. O modelo de educação, sobretudo, não pode ignorar a curiosidade das crianças.
O Globo: Quais são os maiores problemas do modelo de ensino atual? Edgar Morin: O modelo de ensino que foi instituído nos países ocidentais é aquele que separa os conhecimentos artificialmente através das disciplinas. E não é o que vemos na natureza. No caso de animais e vegetais, vamos notar que todos os conhecimentos são interligados. E a escola não ensina o que é o conhecimento, ele é apenas transmitido pelos educadores, o que é um reducionismo. O conhecimento complexo evita o erro, que é cometido, por exemplo, quando um aluno escolhe mal a sua carreira. Por isso eu digo que a educação precisa fornecer subsídios ao ser humano, que precisa lutar contra o erro e a ilusão.
O Globo: O senhor pode explicar melhor esse conceito de conhecimento? Edgar Morin: Vamos pensar em um conhecimento mais simples, a nossa percepção visual. Eu vejo as pessoas que estão comigo, essa visão é uma percepção da realidade, que é uma tradução de todos os estímulos que chegam à nossa retina. Por que essa visão é uma fotografia? As pessoas que estão longe são pequenas, e vice-versa. E essa visão é reconstruída de forma a reconhecermos essa alteração da realidade, já que todas as pessoas apresentam um tamanho similar.
Todo conhecimento é uma tradução, que é seguido de uma reconstrução, e ambos os processos oferecem o risco do erro. Existe outro ponto vital que não é abordado pelo ensino: a compreensão humana. O grande problema da humanidade é que todos nós somos idênticos e diferentes, e precisamos lidar com essas duas ideias que não são compatíveis. A crise no ensino surge por conta da ausência dessas matérias que são importantes ao viver. Ensinamos apenas o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas ele também precisa se adaptar aos fatos e a si mesmo.
O Globo: O que é a transdisciplinaridade, que defende a unidade do conhecimento? Edgar Morin: As disciplinas fechadas impedem a compreensão dos problemas do mundo. A transdisciplinaridade, na minha opinião, é o que possibilita, através das disciplinas, a transmissão de uma visão de mundo mais complexa. O meu livro “O homem e a morte” é tipicamente transdisciplinar, pois busco entender as diferentes reações humanas diante da morte através dos conhecimentos da pré-história, da psicologia, da religião. Eu precisei fazer uma viagem por todas as doenças sociais e humanas, e recorri aos saberes de áreas do conhecimento, como psicanálise e biologia.
O Globo: Como a associação entre a razão e a afetividade pode ser aplicada no sistema educacional? Edgar Morin: É preciso estabelecer um jogo dialético entre razão e emoção. Descobriu-se que a razão pura não existe. Um matemático precisa ter paixão pela matemática. Não podemos abandonar a razão, o sentimento deve ser submetido a um controle racional. O economista, muitas vezes, só trabalha através do cálculo, que é um complemento cego ao sentimento humano. Ao não levar em consideração as emoções dos seres humanos, um economista opera apenas cálculos cegos. Essa postura explica em boa parte a crise econômica que a Europa está vivendo atualmente.
O Globo: A literatura e as artes deveriam ocupar mais espaço no currículo das escolas? Por quê? Edgar Morin: Para se conhecer o ser humano, é preciso estudar áreas do conhecimento como as ciências sociais, a biologia, a psicologia. Mas a literatura e as artes também são um meio de conhecimento. Os romances retratam o indivíduo na sociedade, seja por meio de Balzac ou Dostoiévski, e transmitem conhecimentos sobre sentimentos, paixões e contradições humanas. A poesia é também importante, nos ajuda a reconhecer e a viver a qualidade poética da vida. As grandes obras de arte, como a música de Beethoven, desenvolvem em nós um sentimento vital, que é a emoção estética, que nos possibilita reconhecer a beleza, a bondade e a harmonia. Literatura e artes não podem ser tratadas no currículo escolar como conhecimento secundário.
O Globo: Qual a sua opinião sobre o sistema brasileiro de ensino? Edgar Morin: O Brasil é um país extremamente aberto a minhas ideias pedagógicas. Mas, a revolução do seu sistema educacional vai passar pela reforma na formação dos seus educadores. É preciso educar os educadores. Os professores precisam sair de suas disciplinas para dialogar com outros campos de conhecimento. E essa evolução ainda não aconteceu. O professor possui uma missão social, e tanto a opinião pública como o cidadão precisam ter a consciência dessa missão. [Leia esta entrevista no site do O Globo]
Assista a Edgar Morin – Os limites do conhecimento na globalização | No vídeo exclusivo, Morin reflete sobre seus interesses enquanto filósofo e sociólogo: os limites do conhecimento e da razão, bem como a relação entre a poesia e a racionalidade. Ainda, questiona a possibilidade da mudança de pensamento em um mundo globalizado e acelerado. É possível sairmos de uma visão fechada em formas particulares para o pensamento complexo, capaz de ver os problemas em sua integralidade?
ENTREVISTA COM UM MÉDICO TIBETANO: LAMA TULKU LOBSANG RINPOCHE
“Sou uma pessoa normal, penso o tempo todo. Mas tenho a mente treinada. Isso quer dizer que não sigo meus pensamentos. Eles vêm, mas não afetam nem minha mente, nem meu coração.”
Quando um paciente chega para consulta, como o senhor sabe qual o problema?
R – Olhando como ele se move, sua postura, seu olhar. Não é necessário que fale nem explique o que se passa. Um doutor de medicina tibetana experiente sabe do que sofre o paciente a 10 m de distância.
Mas o senhor também verifica seus pulsos.
R – Assim obtenho a informação que necessito sobre a saúde do paciente. Com a leitura do ritmo dos pulsos é possível diagnosticar cerca de 95% das enfermidades, inclusive psicológicas. A informação dada por eles é precisa como um computador. Para lê-los, é necessária muita experiência.
E depois, como realiza a cura?
R – Com as mãos, o olhar e preparados de plantas e minerais.
Segundo a medicina tibetana, qual é a origem das doenças?
R – Nossa ignorância.
Então, perdoe a minha, mas o que entender por ignorância?
R – Não saber que não sabe. Não ver com clareza. Quando vemos com clareza, não temos que pensar. Quando não vemos claramente, colocamos o pensamento para funcionar. E, quanto mais pensamos, mais ignorantes somos, mais confusão criamos.
Como posso ser menos ignorante?
R – Vou ensinar um método muito simples: praticando a compaixão. É a maneira mais fácil de reduzir os pensamentos. E o amor. Se amamos alguém de verdade, se não o queremos só para nós, aumentamos a compaixão.
Que problemas percebe no Ocidente?
R – O medo. O medo é o assassino do coração humano.
Por quê?
R – Porque, com medo, é impossível ser feliz e fazer felizes os outros.
Como enfrentar o medo?
R – Com aceitação. O medo é resistência ao desconhecido.
Como médico, em que parte do corpo vê mais problemas?
R – Na coluna, na parte baixa da coluna: as pessoas permanecem sentadas tempo demais na mesma posição. Com isso, se tornam rígidas demais.
Temos muitos problemas.
R: Acreditamos ter muitos problemas, mas, na realidade, nosso problema é que não os temos.
O que isso quer dizer?
R – Que nos acostumamos a ter nossas necessidades básicas satisfeitas, de modo que qualquer pequena contrariedade nos parece um problema. Então, ativamos a mente e começamos a dar voltas e mais voltas sem conseguir solucioná-la.
Alguma recomendação?
R – Se o problema tem solução, já não é um problema. Se não tem, também não.
E para o estresse?
R – Para evitá-lo, é melhor estar louco.
???
R – É uma piada. Mas não tão piada assim. Eu me refiro a ser ou parecer normal por fora e, por dentro, estar louco: é a melhor maneira de viver.
Que relação o senhor tem com sua mente?
R – Sou uma pessoa normal, penso o tempo todo. Mas tenho a mente treinada. Isso quer dizer que não sigo meus pensamentos. Eles vêm, mas não afetam nem minha mente, nem meu coração.
O senhor ri muito?
R – Quando alguém ri nos abre seu coração. Se você não abre seu coração, é impossível entender o humor. Quando rimos, tudo fica claro. Essa é a linguagem mais poderosa que nos conecta uns aos outros diretamente.
O senhor acaba de lançar um CD de mantras com base eletrônica, para o público ocidental.
R – A música, os mantras e a energia do corpo são a mesma coisa. Como o riso, a música é um grande canal para nos conectar com o outro. Por meio dela, podemos nos abrir e nos transformar: assim, usamos a música em nossa tradição.
O que gostaria de ser quando ficar mais velho?
R: Gostaria de estar preparado para a morte.
E mais nada?
R – O resto não importa. A morte é o mais importante da vida. Creio que já estou preparado. Mas, antes da morte, devemos nos ocupar da vida. Cada momento é único. Se damos sentido à nossa vida, chegamos à morte com paz interior.
Aqui vivemos de costas para a morte.
R: Vocês mantêm a morte em segredo. Até que chegará um dia em sua vida em que já não será um segredo: não será possível escondê-la.
E qual o sentido da vida?
R – A vida tem sentido e não tem. Depende de quem você é. Se você realmente vive sua vida, então a vida tem sentido. Todos têm vida, mas nem todos a vivem. Todos temos direito a sermos felizes, mas temos que exercer esse direito. Do contrário, a vida não tem sentido.
Crianças que apanharam, passaram fome ou foram abandonadas têm uma tendência a sofrer traumas emocionais tão severos que podem afetar o crescimento de seus corpos e cérebros.
Esses traumas, se não tratados corretamente, causam problemas de saúde perenes. Um tratamento específico para essas aflições nem sempre é realizado, deixando essas crianças vulneráveis a diagnósticos errados de doença mental ou de hiperatividade quando, na realidade, estão demonstrando estresse pós-traumático.
Como resultado, essas crianças são mais propensas a desenvolver depressão a longo prazo e até doenças do coração ou câncer. Algumas recebem drogas de que nem sempre precisam. “O que emergiu dos últimos 15 anos de pesquisas científicas é que, quando se negligencia o abuso a uma criança, isso realmente muda sua organização cerebral”, afirma o coordenador do programa de apoio a crianças sob risco do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos
Estados Unidos, Bryan Samuels.
O mecanismo tem muito a ver com os níveis de hormônio, que podem subir perigosamente durante o abuso. Altos níveis de cortisol, por exemplo, afetam o controle dos impulsos e a memória. Um estresse elevado também pode prejudicar o córtex pré-frontal, região do cérebro que regula o foco, o autocontrole e a tomada de decisões. Esses níveis podem permanecer altos mesmo depois que as vítimas são removidas das situações que lhes fazem mal.
Isso significa que tratar essas crianças frequentemente requer mais do que colocá-las em um ambiente estável. Os médicos precisam avaliar seu desenvolvimento físico, enquanto conselheiros revisam os padrões e a severidade do abuso sofrido para desenvolver uma combinação a longo prazo de cuidados médicos e psicológicos. Em vez disso, muitas são tratadas como “crianças más”.
Quanto mais complexo o abuso, mais provável é que o impacto negativo siga a criança até a vida adulta, de acordo com um estudo do Kaiser Permanente e do Centro de Controle e Prevenção de Doenças.
A situação se complica ainda mais porque o ciclo do abuso é difícil de ser quebrado. As estatísticas mostram que quase um terço das vítimas abusará de seus próprios filhos.