Consulta ao Analista

Consulta ao Analista

Por Elika Takimoto

Já fui neta e namorada. Hoje às vezes sou sobrinha e tia, quando posso. Filha sou todo dia, mãe até quando estou dormindo e esposa desde que me casei. Cunhada, raramente e prima, só quando viajo. Irmã eu gostaria de ser por mais tempo e nora por bem menos. Madrinha sou de dois e afilhada, de ninguém. Sogra vai ser um problema e não quero ser viúva. Pensando bem, não quero ser sogra também.

Temente à Deus fui somente na infância, ao Diabo, nunca. Professora sou somente pelas manhãs e a tarde sinto falta. Escritora serei um dia, doutora daqui a quatro anos e flamengo até morrer. Até parece. Dançarina nunca quis ser e caixa de supermercado só quando era criança. Boa aluna quando era bem menor e rebelde fui sem causa. Médica não serei nunca e gorda quando perder o controle. Míope eu sou desde os doze e mocinha também. Por fora, um pouco japonesa; por dentro, completamente negra. Sou cega de vez em quando e quando velha serei surda. Sou esperta. Mentira. Ingênua. Em tempo algum. Mentira. Não sei.

Confundo-me com o que falam a meu respeito.

Todos os cômodos da minha casa tem relógios, inclusive nos banheiros. Ser eu mesma tem me consumido muito tempo. Sempre quis fumar, beber eu não consigo, mas às vezes me inebrio. Não consigo dormir, comer e nem ir ao centro da cidade sem companhia. Minha força não está na solidão. Preciso sempre ser orientada e jamais busquei a independência.Quando durmo sonho muito. Acordada, muito mais. A dor do parto não me incomodou e queria senti-la novamente. Tenho muitas dores de cabeça e essas sim me importunam. Quero chorar vendo uma ópera, mas enquanto não consigo assisti-la, rio de toda aquela presepada. Quando tomo banho me distraio com o vapor que ofusca o teto e se estou limpa, leio. Nunca vi A Escolha de Sofia e não vejo televisão. Escrevo sempre com a mesma lapiseira, mas mudo sempre de caligrafia. Não sei usar vírgulas e muito menos pincel. Sou incapaz de guardar nomes de diretores de cinema e de emprestar meus livros. Não entendo as diversidades do homossexualismo.

Não sou como me veem e muito menos o que digo.Capta essa outra coisa que não falo porque eu a tenho ignorado. Eu não me entendo e preciso agir como se me entendesse. Fingir. Do mesmo modo que muitos fazem.

Sou, agora, aquilo que eu escrevo.

O valor da vida. Uma entrevista rara de Freud.

O valor da vida. Uma entrevista rara de Freud.

Quem fala é o professor Sigmund Freud, o grande explorador da alma. O cenário da nossa conversa foi uma casa de verão no Semmering, uma montanha nos Alpes austríacos.

Eu havia visto o pai da psicanálise pela última vez em sua casa modesta na capital austríaca. Os poucos anos entre minha última visita e a atual multiplicaram as rugas na sua fronte. Intensificaram a sua palidez de sábio. Sua face estava tensa, como se sentisse dor. Sua mente estava alerta, seu espírito firme, sua cortesia impecável como sempre, mas um ligeiro impedimento da fala me perturbou.

Parece que um tumor maligno no maxilar superior necessitou ser operado. Desde então Freud usa uma prótese, para ele uma causa de constante irritação.

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S. Freud: Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelho me consome tanta energia preciosa. Mas prefiro ele a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção.

Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos.

Freud se recusa a admitir que o destino lhe reserva algo especial.

– Por quê – disse calmamente – deveria eu esperar um tratamento especial? A velhice, com sua agruras chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas – a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr do sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?

George Sylvester Viereck: O senhor teve a fama, disse que Sua obra influi na literatura de cada país. O homem olha a vida e a si mesmo com outros olhos, por causa do senhor. E recentemente, no seu septuagésimo aniversário, o mundo se uniu para homenageá-lo – com exceção da sua própria Universidade.

S. Freud: Se a Universidade de Viena me demonstrasse reconhecimento, eu ficaria embaraçado. Não há razão em aceitar a mim e a minha obra porque tenho setenta anos. Eu não atribuo importância insensata aos decimais.

A fama chega apenas quando morremos, e francamente, o que vem depois não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. Minha modéstia não e virtude.

George Sylvester Viereck: Não significa nada o fato de que o seu nome vai viver?

S. Freud: Absolutamente nada, mesmo que ele viva, o que não e certo. Estou bem mais preocupado com o destino de meus filhos. Espero que suas vidas não venham a ser difíceis. Não posso ajudá-los muito. A guerra praticamente liquidou com minhas posses, o que havia poupado durante a vida. Mas posso me dar por satisfeito. O trabalho é minha fortuna.

Estávamos subindo e descendo uma pequena trilha no jardim da casa. Freud acariciou ternamente um arbusto que florescia.

S. Freud: Estou muito mais interessado neste botão do que no que possa me acontecer depois que estiver morto.

George Sylvester Viereck: Então o senhor é, afinal, um profundo pessimista?

S. Freud: Não, não sou. Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida.

George Sylvester Viereck: O senhor acredita na persistência da personalidade após a morte, de alguma forma que seja?

S. Freud: Não penso nisso. Tudo o que vive perece. Por que deveria o homem construir uma exceção?

George Sylvester Viereck: Gostaria de retornar em alguma forma, de ser resgatado do pó? O senhor não tem, em outras palavras, desejo de imortalidade?

S. Freud: Sinceramente não. Se a gente reconhece os motivos egoístas por trás de conduta humana, não tem o mínimo desejo de voltar a vida, movendo-se num círculo, seria ainda a mesma.

Além disso, mesmo se o eterno retorno das coisas, para usar a expressão de Nietzsche, nos dotasse novamente do nosso invólucro carnal, para que serviria, sem memória? Não haveria elo entre passado e futuro.

Pelo que me toca estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo.

George Sylvester Viereck: Bernard Shaw sustenta que vivemos muito pouco, disse eu. Ele acha que o homem pode prolongar a vida se assim desejar, levando sua vontade a atuar sobre as forças da evolução. Ele crê que a humanidade pode reaver a longevidade dos patriarcas.

– É possível, respondeu Freud, que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer.

Assim como amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da própria destruição.

Do mesmo modo com um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica. O impulso de vida e o impulso de morte habitam lado a lado dentro de nós.

A Morte é a companheira do Amor. Juntos eles regem o mundo. Isto é o que diz o meu livro: Além do Princípio do Prazer.

No começo, a psicanálise supôs que o Amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a Morte é igualmente importante.

Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da “febre chamada viver”, anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a sua própria extinção.

Isto, exclamei, é a filosofia da autodestruição. Ela justifica o auto-extermínio. Levaria logicamente ao suicídio universal imaginado por Eduard von Hartamann.

S.Freud: A humanidade não escolhe o suicídio porque a lei do seu ser desaprova a via direta para o seu fim. A vida tem que completar o seu ciclo de existência. Em todo ser normal, a pulsão de vida é forte o bastante para contrabalançar a pulsão de morte, embora no final resulte mais forte.

Podemos entreter a fantasia de que a Morte nos vem por nossa própria vontade. Seria mais possível que pudéssemos vencer a Morte, não fosse por seu aliado dentro de nós.

Neste sentido acrescentou Freud com um sorriso, pode ser justificado dizer que toda a morte é suicídio disfarçado.

Estava ficando frio no jardim.

Prosseguimos a conversa no gabinete.

Vi uma pilha de manuscritos sobre a mesa, com a caligrafia clara de Freud.

George Sylvester Viereck: Em que o senhor está trabalhando?

S. Freud: Estou escrevendo uma defesa da análise leiga, da psicanálise praticada por leigos. Os doutores querem tornar a análise ilegal para os não médicos. A História, essa velha plagiadora, repete-se após cada descoberta. Os doutores combatem cada nova verdade no começo. Depois procuram monopoliza-la.

George Sylvester Viereck: O senhor teve muito apoio dos leigos?

S. Freud: Alguns dos meus melhores discípulos são leigos.

George Sylvester Viereck: O senhor está praticando muito psicanálise?

S. Freud: Certamente. Neste momento estou trabalhando num caso muito difícil, tentando desatar os conflitos psíquicos de um interessante novo paciente.

Minha filha também é psicanalista, como você vê…

Nesse ponto apareceu Miss Anna Freud acompanhada por seu paciente, um garoto de onze anos, de feições inconfundivelmente anglo-saxonicas.

George Sylvester Viereck: O senhor já analisou a si mesmo?

S. Freud: Certamente. O psicanalista deve constantemente analisar a si mesmo. Analisando a nós mesmos, ficamos mais capacitados a analisar os outros.

O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os outros descarregam seus pecados sobre ele. Ele deve praticar sua arte à perfeição para desvencilhar-se do fardo jogado sobre ele.

George Sylvester Viereck: Minha impressão, observei, é de que a psicanálise desperta em todos que a praticam o espírito da caridade cristão. Nada existe na vida humana que a psicanálise não possa nos fazer compreender. “Tout comprec’est tout pardonner”.

Pelo contrário! – bravejou Freud, suas feições assumindo a severidade de um profeta hebreu. Compreender tudo não é perdoar tudo. A análise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que podemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância com o mal não e de maneira alguma um corolário do conhecimento.

Compreendi subitamente porque Freud havia litigado com os seguidores que o haviam abandonado, por que ele não perdoa a sua dissensão do caminho reto da ortodoxia psicanalítica. Seu senso do que é direito é herança dos seus ancestrais. Uma herança de que ele se orgulha como se orgulha de sua raça.

Minha língua, ele me explicou, é o alemão. Minha cultura, mina realização é alemã. Eu me considero um intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria. Desde então prefiro me considerar judeu.

Fiquei algo desapontado com esta observação.

Parecia-me que o espírito de Freud deveria habitar nas alturas, além de qualquer preconceito de raças que ele deveria ser imune a qualquer rancor pessoal. No entanto, precisamente a sua indignação, a sua honesta ira, tornava o mais atraente como ser humano.

Aquiles seria intolerável, não fosse por seu calcanhar!,

Fico contente, Herr Professor, de que também o senhor tenha seus complexos, de que também o senhor demonstre que é um mortal!

Nossos complexos, replicou Freud, são a fonte de nossa fraqueza; mas com frequência são também a fonte de nossa força.

Tradução de Paulo Cesar Souza – 20 de abril de 2010

Via Freudiana 

Os 150 anos de Alice no País das Maravilhas

Os 150 anos de Alice no País das Maravilhas

Por Julia Teitelroit Martins
Em Carta Fundamental
Publicado na edição 66, de março de 2015

Em julho de 2015, Alice no País das Maravilhas completa 150 anos de publicação. Professor de matemática, gago e tímido, o autor Lewis Carroll deixou uma obra de difícil definição, que conquistou um lugar privilegiado no imaginário de várias gerações, com a fantasia e o nonsense como suas principais marcas. Alice, em particular, apesar de um século e meio de idade, continua uma menina. É um símbolo importante de nossos tempos, objeto de inúmeros estudos, adaptações literárias e, mais recentemente, versões para o cinema.

Pseudônimo do reverendo Charles Lutwidge Dodgson, Lewis Carroll nasceu em 1832. Por quase meio século, trabalhou e residiu em Christ Church, uma das faculdades da universidade inglesa de Oxford, e por muitos anos foi professor de Matemática. No entanto, não fazia muito sucesso entre os alunos (suas aulas eram consideradas maçantes) e não deixou nenhuma contribuição significativa para a área da matemática. Por toda a obra de Carroll, porém, percebe-se o seu lado lógico, tanto no enorme interesse cultivado pelos jogos, enigmas e paradoxos, como no prazer com que desmonta raciocínios e linguagens estabelecidas.

Carroll tinha talento para contar histórias, mas, introvertido, sentia-se mais à vontade com as crianças. Declarou, certa vez, numa fórmula bem carrolliana: “Gosto de crianças, exceto meninos”. Escreveu Alice durante uma viagem de barco pelo Tâmisa, entre Oxford e a aldeia de Godstow, em 1862. Faziam parte da comitiva o reverendo Robinson Duckworth e as três filhas do seu amigo (e diretor da faculdade Christ Church) Harry Liddell: Edith (8 anos), Alice (10 anos) e Lorina (13 anos). Para entreter as meninas durante a viagem, Carroll inventou um mundo de fantasia cheio de personagens excepcionais e nomeou sua protagonista de Alice. A menina Alice teria gostado tanto da história que pediu a Carroll que a colocasse no papel e, assim, surgiu o manuscrito de As Aventuras Subterrâneas de Alice (Alice’s Adventures Under Ground).

O manuscrito de Alice chegou às mãos do autor escocês George MacDonald, pioneiro na literatura de fantasia e ídolo de Carroll, que o leu para seus próprios filhos. Todos, sem exceção, vibraram com a história. Estimulado, Caroll revisou o manuscrito, incluindo a cena do Chapeleiro Louco e o personagem do Gato de Cheshire. Apresentou-o em seguida para publicação com um tamanho duas vezes maior que o originalmente enviado a Alice Liddell. Assim, em 1865, foi lançado Alice no País das Maravilhas.

Em 1871, Carroll publicou a continuação das histórias de Alice em Através do Espelho e o Que Alice Encontrou Por Lá. Além dos livros mais conhecidos, escreveu também poemas, contos e o extenso romance em duas partes Sílvia e Bruno (1889-1893), misturando real e fantasia.

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Alice no País das Maravilhas não é propriamente um conto de fadas, os quais têm origem na tradição oral e, geralmente, carregam um conteúdo moral. Tampouco é uma obra surrealista, pois o absurdo lida com valores humanos. O livro de Carroll se situa no campo da lógica. Mas o problema lógico do raciocínio em Carroll muitas vezes se subordina ao problema semântico. Carroll questionava poeticamente, por meio do nonsense, os jogos de palavra e sentido, assim como os paradoxos.

Então, vamos às aventuras – “porque explicações sempre levam um tempo medonho”. No início do livro, a menina Alice está sentada numa ribanceira, ao lado de sua irmã mais velha, a qual lê um livro para adultos. Alice, inclusive, pensa: “E de que serve um livro sem figuras nem diálogos?” Nesse momento, ela vê passar um Coelho Branco de colete e relógio de bolso, que olha as horas e exclama: “Por minhas orelhas e meus bigodes, como está ficando tarde!” Curiosa, mas não espantada, Alice segue o Coelho Branco e cai pelo buraco de sua toca. A partir daí, embarcamos junto com ela num mundo subterrâneo de fantasia – o País das Maravilhas (Wonderland, no original em inglês). No entanto, essa não é uma história qualquer. No mundo de Alice, “quase nada é realmente impossível”.

Para entrar no País das Maravilhas, Alice precisa mudar de tamanho. O problema do tamanho é uma constante em Alice: ela cresce e diminui diversas vezes ao longo do livro, seja porque tomou de uma garrafinha, comeu um pedaço de bolo ou de cogumelo. E parece nunca ter o tamanho apropriado: quando precisa passar pela porta está grande demais, quando necessita alcançar a chave em cima da mesa, está muito pequena. No meio da história, Alice tem acesso ao cogumelo da Lagarta, que de um lado faz crescer e do outro, diminuir. E, assim, passa a controlar seu tamanho como lhe convém.

Ao mesmo tempo, são justamente as mudanças de tamanho que permitem os encontros da protagonista com tantos seres que, de outra forma, não estariam ao seu alcance. A conversa com uma Lagarta, por exemplo, só é possível porque Alice estava, então, com o tamanho do inseto fumador de narguilé, que lhe pergunta sorumbaticamente:

“Quem é você?”

“Eu… eu… nem eu mesma sei, senhora, nesse momento… eu… enfim, sei quem eu era, quando me levantei hoje de manhã, mas acho que já me transformei várias vezes desde então.”

(Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, 1980, pág. 69)

Esta é outra questão que se repete ao longo do livro: a identidade de Alice. Tantas coisas estranhas acontecem a sua volta que a menina passa a duvidar de si mesma e se pergunta: será que o mundo mudou, ou fui eu? E, para ter certeza de que continua a mesma, Alice tenta se lembrar do que costumava saber: a tabuada, as capitais… mas não acerta em nada. Ao recitar um poema conhecido de cor, para seu espanto, as palavras saídas de sua boca recitam outra poesia. Em outro momento, a Pomba confunde uma Alice muito comprida com uma serpente, porque, além disso, Alice gosta de comer ovos, e todas as serpentes comem ovos. Segundo Gilles Deleuze, filósofo francês, a perda do nome próprio é a aventura que se repete em todas as aventuras de Alice. A incerteza sobre si mesmo está ligada aos acontecimentos exteriores e o que se passa.

Sucedem-se os personagens, um mais surpreendente do que o outro: o Coelho Branco sempre apressado, a Lagarta que fuma narguilé, o Gato cujo sorriso paira sozinho no espaço, o Chapeleiro e a Lebre de Março, ambos loucos assumidos, uma corte de cartas de baralho cuja Rainha encolerizada manda cortar as cabeças ao menor deslize, a Duquesa que adora achar moral em tudo e constrói frases complicadíssimas…

A história segue repleta de desentendimentos e mal-entendidos entre Alice e os outros personagens. Aliás, Alice acredita que eles se ofendem facilmente, apesar de também se sentir insultada em algumas ocasiões. Ela é repreendida diversas vezes: não devia se sentar sem ser convidada, devia cortar o cabelo, devia ter vergonha de fazer uma pergunta tão boba… Os personagens parecem não se preocupar muito com os sentimentos uns dos outros: as relações entre eles são sempre contraditórias e se estabelecem pela dialética.

Numa cena emblemática, o Chapeleiro, a Lebre de Março e o Caxinguelê tomam chá amontoados no canto de uma mesa bastante espaçosa, com várias cadeiras vazias, mas juram que não há lugar para mais ninguém. Alice senta-se à mesa assim mesmo, e eles acham por bem serem mal-educados com ela também. É que Alice não está respeitando a lógica que vigora ali – pois não deixa de haver uma lógica por detrás até da maluquice. O Chapeleiro teve uma briga com o tempo e o seu relógio parou às 6 da tarde, hora do chá. E como não deixa nunca de ser seis da tarde, a toda hora é sempre hora do chá, e eles estão fadados a rodar em volta da mesa, em eterno recomeço, até conseguirem consertar o relógio. A discussão entre Alice e o Chapeleiro sobre o tempo é muito instigante para se tratar em sala de aula. Aqui segue um trecho:

“Atrevo-me a dizer que você nunca chegou a falar com o Tempo!”, disse o Chapeleiro. “Por exemplo, suponha que fossem nove horas da manhã, hora de estudar as lições; bastaria um cochicho com o Tempo, e o relógio giraria num piscar de olhos! Uma e meia, hora do almoço!”

“Seria formidável, sem dúvida”, disse Alice, pensativa. “Mas nesse caso eu não estaria com fome, não é?”

“Não a princípio, talvez”, disse o Chapeleiro; “mas você poderia mantê-lo em uma e meia até quando quisesse.”
(Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, 2013, pág. 57)

O Gato de Cheshire afirma que todos ali são loucos, inclusive Alice. O que significa ser louco? Somos todos loucos? Só no País das Maravilhas, ou no nosso mundo também? O Grifo diz a Alice, com todas as letras, que tudo ali não passa de fantasia, inclusive os sentimentos, como a tristeza que abate a Falsa Tartaruga.

Mais adiante na história, Alice é chamada a prestar depoimento diante da corte, no julgamento do roubo das tortas. Diante de tantas arbitrariedades e desmandos do Rei e da Rainha, porém, já não pode conter sua indignação e tudo se encaminha para o limite. Ao mesmo tempo, durante o julgamento, Alice aumenta de tamanho até o ponto em que o baralho de cartas adquire sua proporção normal e a menina consegue se distanciar de tudo aquilo, vendo ali apenas um baralho de cartas. Nesse momento, acorda novamente no campo, ao lado da irmã, e lhe conta todas as aventuras que sonhou. Em seguida volta para casa, pois é hora do chá. Enquanto isso, a irmã permanece na ribanceira, fecha os olhos e sonha com o sonho de Alice. Quando o vento sopra, ela pode ouvir o Coelho Branco correr apressado, ouve o tilintar das xícaras de chá do Chapeleiro no tinido dos sinos dos carneiros pastando, os gritos estridentes da Rainha na voz do pastor e os soluços da Falsa Tartaruga no mugir do gado. Esses e tantos outros sons e ruídos do sonho estavam presentes nos confusos rumores do campo.

Julia Teitelroit Martins é doutoranda em Literatura e Cultura pela PUC-Rio, Mestre em Letras (PUC-Rio) e Cineasta

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Saiba Mais

A obra de Lewis Carroll foi objeto de inúmeras releituras e adaptações. É importante escolher uma que seja compatível com a faixa etária dos alunos.

Livros

Alice – Aventuras de Alice no país das maravilhas & Através do espelho, de Lewis Carroll. Edição comentada e ilustrada: Martin Gardner; ilustrações originais: John Tenniel; tradução: Maria Luiza X. de A. Borges, Zahar, 2013.

Alice – Aventuras de Alice no país das maravilhas & Através do espelho, de Lewis Carroll. Edição integral ilustrada, de Nicolau Sevcenko; ilustrações: Luiz Zerbini. Cosac Naify, 2009.

Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Edição integral de Sebastião Uchoa Leite, Summus, 1980.

Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Edição adaptada de Ana Maria Machado, Ática, 1997.

The Magic of Lewis Carroll, de John Fisher,1973.

The Field of Nonsense, de Elizabeth Swell, 1952.

Filmes

As versões do livro para filme tem, no geral, o enredo bastante reduzido, ou combinam episódios dos dois livros de Alice.

Alice no país das maravilhas, Estúdios Disney, 1951.

Alice no páis das maravilhas, Estúdios Disney, Tim Burton, 2010.

Neco z Alenky, por Jan Svankmajer, da Tchecoslováquia, 1988.

O SONHO DOS RATOS, por Rubem Alves

O SONHO DOS RATOS, por Rubem Alves

Era uma vez um bando de ratos que vivia no buraco do assoalho de uma casa velha. Havia ratos de todos os tipos: grandes e pequenos, pretos e brancos, velhos e jovens, fortes e fracos, da roça e da cidade.

Mas ninguém ligava para as diferenças, porque todos estavam irmanados em torno de um sonho comum: um queijo enorme, amarelo, cheiroso, bem pertinho dos seus narizes. Comer o queijo seria a suprema felicidade…Bem pertinho é modo de dizer.

Na verdade, o queijo estava imensamente longe porque entre ele e os ratos estava um gato… O gato era malvado, tinha dentes afiados e não dormia nunca. Por vezes fingia dormir. Mas bastava que um ratinho mais corajoso se aventurasse para fora do buraco para que o gato desse um pulo e, era uma vez um ratinho…Os ratos odiavam o gato.

Quanto mais o odiavam mais irmãos se sentiam. O ódio a um inimigo comum os tornava cúmplices de um mesmo desejo: queriam que o gato morresse ou sonhavam com um cachorro…

Como nada pudessem fazer, reuniram-se para conversar. Faziam discursos, denunciavam o comportamento do gato (não se sabe bem para quem), e chegaram mesmo a escrever livros com a crítica filosófica dos gatos. Diziam que um dia chegaria em que os gatos seriam abolidos e todos seriam iguais. “Quando se estabelecer a ditadura dos ratos”, diziam os camundongos, “então todos serão felizes”…

– O queijo é grande o bastante para todos, dizia um.

– Socializaremos o queijo, dizia outro.

Todos batiam palmas e cantavam as mesmas canções.

Era comovente ver tanta fraternidade. Como seria bonito quando o gato morresse! Sonhavam. Nos seus sonhos comiam o queijo. E quanto mais o comiam, mais ele crescia. Porque esta é uma das propriedades dos queijos sonhados: não diminuem: crescem sempre. E marchavam juntos, rabos entrelaçados, gritando: “o queijo, já!”…

Sem que ninguém pudesse explicar como, o fato é que, ao acordarem, numa bela manhã, o gato tinha sumido. O queijo continuava lá, mais belo do que nunca. Bastaria dar uns poucos passos para fora do buraco. Olharam cuidadosamente ao redor. Aquilo poderia ser um truque do gato. Mas não era.

O gato havia desaparecido mesmo. Chegara o dia glorioso, e dos ratos surgiu um brado retumbante de alegria. Todos se lançaram ao queijo, irmanados numa fome comum. E foi então que a transformação aconteceu.

Bastou a primeira mordida. Compreenderam, repentinamente, que os queijos de verdade são diferentes dos queijos sonhados. Quando comidos, em vez de crescer, diminuem.

Assim, quanto maior o número dos ratos a comer o queijo, menor o naco para cada um. Os ratos começaram a olhar uns para os outros como se fossem inimigos. Olharam, cada um para a boca dos outros, para ver quanto queijo haviam comido. E os olhares se enfureceram.

Arreganharam os dentes. Esqueceram-se do gato. Eram seus próprios inimigos. A briga começou. Os mais fortes expulsaram os mais fracos a dentadas. E, ato contínuo, começaram a brigar entre si.

Alguns ameaçaram a chamar o gato, alegando que só assim se restabeleceria a ordem. O projeto de socialização do queijo foi aprovado nos seguintes termos:

“Qualquer pedaço de queijo poderá ser tomado dos seus proprietários para ser dado aos ratos magros, desde que este pedaço tenha sido abandonado pelo dono”.

Mas como rato algum jamais abandonou um queijo, os ratos magros foram condenados a ficar esperando. Os ratinhos magros, de dentro do buraco escuro, não podiam compreender o que havia acontecido.

O mais inexplicável era a transformação que se operara no focinho dos ratos fortes, agora donos do queijo. Tinham todo o jeito do gato o olhar malvado, os dentes à mostra.

Os ratos magros nem mais conseguiam perceber a diferença entre o gato de antes e os ratos de agora. E compreenderam, então, que não havia diferença alguma. Pois todo rato que fica dono do queijo vira gato. Não é por acidente que os nomes são tão parecidos.

“Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência!”

Rubem Alves – escrito em dezembro de 2004

Dica da Conti outra: Conheça o Instituto Rubem Alves e acompanhe seus projetos.

Um vazio preenchido de amor

Um vazio preenchido de amor

Por Marcela Alice Bianco

Muitos são os sofrimentos que passamos durante a vida. Muitos são os obstáculos que temos que enfrentar em nossa jornada. E a perda de um ente querido está entre as maiores dores que vivemos e com a qual todos nós iremos nos deparar um dia.

Ao mesmo tempo que é a morte é a única certeza que temos nessa vida, passamos a maior parte do tempo nos enganando de que sempre teremos toda vida pela frente. Alguns de nós realmente consegue seguir o caminho proposto de realização. Ouvi recentemente de uma pessoa idosa: – Se eu me for amanhã irei tranquila, pois tudo que eu queria fazer eu fiz!”. Acho que essa é uma serenidade e plenitude que poucos de nós conseguimos alcançar.

Isso faz pensar que, seja para nossa própria morte ou seja em relação a morte de uma pessoa querida, o que mais nos faz sofrer é “o não vivido”. Todos aqueles momentos que poderíamos ter compartilhado, mas não serão mais possíveis, as palavras não ditas, os afetos não trocados, e todas as memórias que não poderão mais ser construídas.

Por isso que as perdas repentinas, seja por acidentes, doenças de rápida evolução, ataques fulminantes, violência ou suicídio são tão difíceis de suportar. De repente, às vezes em segundos, todas as possibilidades futuras se esvaem como grãos de areia entre os dedos.

Para os que ficam, resta um vazio, um sentimento dilacerante e com a qual é preciso aprender a conviver a cada dia. Uma dor que nunca finda, mas ameniza e se transforma. Pelo nosso próprio instinto de sobrevivência ela passa a ser tolerável porque precisamos continuar vivendo.

Como diz sabiamente Colin M. Parkes, “o luto é o preço que pagamos por amar.”

Um preço alto, mas que vale a pena. Porque, se para não sofrer com a dor da perda é preciso não construir laços de afeto, esse sim seria um valor muito mais alto a se arcar. É preferível ter vivido momentos de amor e afeto dos quais podemos lembrar e aos quais podemos nos agarrar em momentos de saudade, do que não ter vivido o amor, do que não ter amado.

Para finalizar, deixo um pensamento de Rubem Alves:

“Cada momento de alegria, cada instante efêmero de beleza, cada minuto de amor, são razões suficientes para uma vida inteira. A beleza de um único momento eterno vale a pena todos os sofrimentos.”

Que possamos desfrutar desses momentos de beleza com nossos afetos e que isso tudo faça a vida valer a pena!

Nota da Página: A reprodução do texto acima foi autorizada pela autora.

Psique em Equilírio é uma parceria Conti outra.

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Arte http://www.moonassi.com

Carta de um idoso com Alzheimer ao seu cuidador

Carta de um idoso com Alzheimer ao seu cuidador

“Prezado Cuidador,

Lembre-se de que sou uma pessoa consciente, portadora de uma doença que compromete minha memória, minha linguagem e meu raciocínio. Por isso, ajude-me a aceitar a demência sem revolta e infelicidade. Não perca a paciência se eu pedir a mesma coisa por mais de uma vez. É a única maneira que tenho de dizer que eu não lembro o que falei antes.

Eu não sou deliberadamente teimoso, mau, ingrato ou desconfiado. A deterioração do meu cerébro faz com que eu me comporte diferente do que eu gostaria. Se eu tivesse um braço quebrado, você com certeza não ficaria irritado comigo por estar impossibilitado de fazer certas coisas, não é mesmo? Mas eu tenho um cérebro que está a cada dia se deteriorando. Então, não me culpe pelos efeitos que a doença de Alzheimer tem em minha habilidade de executar certas tarefas.

Eu não esqueço a finalidade de magoar, irritar, embaraçar ou confundir. A doença me faz confuso e desorientado. Nove de dez vezes você está certo em me lembrar de algo, vá em frente; por mais que eu demonstre constrangimento ou me aborreça. Eu sei que preciso que me lembrem de tudo.

Não tire todas as responsabilidades de mim. Eu estou vivo e quero estar incluído na sua vida e nas decisões que têm de ser tomadas. Não desista de mim. Me estimule sempre. Não solucione todos os meus obstáculos. Isto somente me faz perder os respeito por mim mesmo e por você. Não me repreenda ou discuta comigo. Isso pode fazer você se sentir melhor, mas só piora as coisas para mim; eu me reprimo mais e me afasto mais das pessoas com receio de errar sempre.
Não tenha vergonha de mim, não me esconda em casa. Leve-me para passear, ver o sol nascer, o jardim florido, as crianças na praça… eu posso até não entender o que estou fazendo nos lugares, mas com certeza SINTO. Com certeza, eu vejo a beleza do mundo que me cerca. Olhe-me nos olhos quando for falar comigo. Transmita-me paz e serenidade. Não fale de mim como seu eu não estivesse ali. Mantenha minha dignidade.

Não zombe de mim quando eu fizer minhas confissões; quando eu confundir os nomes dos filhos, do cônjuge, dos netos, o local onde estou, quando eu me perder dentro de minha própria casa. Lembre-se que eu preciso de ajuda e compreensão. Por isso, conheça a doença para poder entender o que eu passo e sinto.

Você poderá se sentir sozinho quando a doença avançar, mas saiba que não foi minha escolha ter demência. Por isso, não me abandone. A natureza da minha doença me faz mudar de personalidade. Quando estivermos reunidos e sem querer faça minhas necessidades fisiológicas, não fique com vergonha e compreenda que não tive culpa, pois já não posso controlá-las.

Não me reprima quando não quero tomar banho; não me chame a atenção por isto. Quando minhas pernas falharem para andar, dê-me sua mão terna para me apoiar. Não tenha vergonha, nem preconceito de mim. Afinal, eu não escolhi ter Alzheimer. Não fuja da realidade: eu tenho uma doença maligna. Não chore por mim, nem se deprima por ter que conviver com um demente. Não se sinta triste, enjoado ou impotente por me ver assim. Dê-me em seu coração, compreenda-me e me apóie.

Por último, quando algum dia me ouvir dizer que já não quero viver e só quero morrer, estiver em fase terminal e vegetal, não se enfades. Algum dia entenderás que isto não tem a ver com seu carinho ou o quanto te amei. Trate de compreender que já não vivo, senão sobrevivo, e isto não é viver.”

Autor desconhecido

Fonte indicada: Cuidador de Idosos

O CEGO ESTRELINHO, um conto de Mia Couto

O CEGO ESTRELINHO, um conto de Mia Couto

O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua história poderia ser contada e descontada não fosse seu guia, Gigito Efraim. A mão de Gigito conduziu o desvistado por tempos e idades. Aquela mão era repartidamente comum, extensão de um no outro, siamensal.

E assim era quase de nascença. Memória de Estrelinho tinha cinco dedos e eram os de Gigito postos, em aperto, na sua própria mão.

O cego, curioso, queria saber de tudo. Ele não fazia cerimónia no viver. O sempre lhe era pouco e o tudo insuficiente. Dizia, deste modo:

– Tenho que viver já, senão esqueço-me.

Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua que papaeira. O cego enchia a boca de águas:

– Que maravilhação esse mundo. Me conte tudo, Gigito!

A mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira. Gigito Efraim estava como nunca esteve S. Tomé: via para não crer. O condutor falava pela ponta dos dedos. Desfolhava o universo, aberto em folhas. A ideação dele era tal que mesmo o cego, por vezes, acreditava ver. O outro lhe encorajava esses breves enganos:

– Desbengale-se, você está escolhendo a boa procedência!

Mentira: Estrelinho continuava sem ver uma palmeira à frente do nariz. Contudo, o cego não se conformava em suas escurezas. Ele cumpria o ditado: não tinha perna e queria dar o pontapé. Só à noite, ele desalentava, sofrendo medos mais antigos que a humanidade. Entendia aquilo que, na raça humana, é menos primitivo: o animal.

– Na noite aflige não haver luz?

– Aflição é ter um pássaro branco esvoando dentro do sono.

Pássaro branco? No sono? Lugar de ave é nas alturas. Dizem até que Deus fez o céu para justificar os pássaros. Estrelinho disfarçava o medo dos vaticínios, subterfugindo:

– E agora, Gigitinho? Agora, olhando assim para cima, estou face ao céu?

Que podia o outro responder? O céu do cego fica em toda a parte. Estrelinho perdia o pé era quando a noite chegava e seu mestre adormecia. Era como se um novo escuro nele se estreasse em nó cego. Devagaroso e sorrateiro ele aninhava sua mão na mão do guia. Só assim adormecia. A razão da concha é a timidez da amêijoa? Na manhã seguinte, o cego lhe confessava: se você morrer, tenho que morrer logo no imediato. Senão-me: como acerto o caminho para o céu?

Foi no mês de Dezembro que levaram Gigitinho. Lhe tiraram do mundo para pôr na guerra: obrigavam os serviços militares. O cego reclamou: que o moço inatingia a idade: E que o serviço que ele a si prestava era vital e vitalício. O guia chamou Estrelinho à parte e lhe tranquilizou:

– Não vai ficar sozinhando por aí. Minha mana já mandei para ficar no meu lugar.

O cego estendeu o braço a querer tocar uma despedida. Mas o outro já não estava lá. Ou estava e se desviara, propositado? E sem água ida nem vinda, Estrelinho escutou o amigo se afastar, engolido, espongínquo, inevisível. Pela primeira vez, Estrelinho se sentiu invalidado.

– Agora, só agora, sou cego que não vê.

No tempo que seguiu, o cego falou alto, sozinho como se inventasse a presença de seu amigo: escuta, meu irmão, escuta este silêncio. O erro da pessoa é pensar que os silêncios são todos iguais. Enquanto não: há distintas qualidades de silêncio. É assim o escuro, este nada apagado que estes meus olhos tocam: cada um é um, desbotado à sua maneira. Entende mano Gigito?

Mas a resposta de Gigito não veio, num silêncio que foi seguindo, esse sim, repetido e igual. Desamimado, Estrelinho ficou presenciando inimagens, seus olhos no centro de manchas e ínvias lácteas. Aquela era uma desluada noite, tinturosa de enorme. Pitosgando, o cego captava o escuro em vagas, despedaços. O mundo lhe magoava a desemparelhada mão. A solidão lhe doía como torcicolo em pescoço de girafa. E lembrou palavras do seu guia:

– Sozinha e triste é a remela em olho de cego.

Com medo da noite foi andando, aos tropeços. Os dedos teatrais interpretavam ser olhos. Teimoso como um pêndulo foi escolhendo caminho. Tropeçando, empecilhando, acabou caído numa berma. Ali adormeceu, seus sonhos ziguezagueram à procura da mão de Gigitinho.

Então ele, pela primeira vez, viu a garça. Tal igual como descrevera Gigitinho: a ave tresvoada, branca de amanhecer. Latejando as asas, como se o corpo não ocupasse lugar nenhum.

De aflição, ele desviou o vazado olhar. Aquilo era visão de chamar desgraças. Quando a si regressou lhe parecia conhecer o lugar onde tombara. Como diria Gigito: era ali que as cobras vinham recarregar os venenos. Mas nem força ele colectou para se afastar.

Ficou naquela berma, como um lenço de enrodilhada tristeza, desses que tombam nas despedidas. Até que o toque tímido de uma mão lhe despertou os ombros.

– Sou irmã de Gigito. Me chamo Infelizmina.

Desde então, a menina passou a conduzir o cego. Fazia-o com discrição e silêncios. E era como se Estrelinho, por segunda vez, perdesse a visão. Porque a miúda não tinha nenhuma sabedoria de inventar. Ela descrevia os tintins da paisagem, com senso e realidade. Aquele mundo a que o cego se habituara agora se desiluminava. Estrelinho perdia os brilhos da fantasia. Deixou de comer, deixou de pedir, deixou de queixar. Fraco, ele careceu que ela o amparasse já não apenas de mão mas de corpo inteiro. De cada vez, ela puxava o cego de encontro a si. Ele foi sentindo a redondura dos seios dela, a mão dele já não procurava só outra mão. Até que Estrelinho aceitou, enfim, o convite do desejo.

Nessa noite, por primeira vez, ele fez amor, embevencido. Num instante, regressaram as lições de Gigito. O pouco se fazia tudo e o instante transbordava eternidades. Sua cabeça andorinhava e ele guiava o coração como voo de morcego: por eco da paixão. Pela primeira vez, o cego sentiu sem aflição o sono chegar. E adormeceu enroscado nela, seu corpo imitando dedos solvidos em outra mão.

A meio da noite, porém, Infelizmina acordou, sobreassaltada. Tinha visto a garça branca, em seu sonho. O cego sentiu o baque, tivessem asas embatido no seu peito. Mas, fingiu sossego e serenou a moça. Infelizmina voltou ao leito, sonoitada.

De manhã chega a notícia: Gigito morrera. O mensageiro foi breve como deve um militar. A mensagem ficou, em infinita ressonância, como devem as feridas da guerra. Estranhou-se o seguinte: o cego reagiu sem choque, parecia ele já sabendo daquela perca. A moça, essa, deixou de falar, órfã de seu irmão. A partir dessa morte ela só tristonhava, definhada. E assim ficou, sem competência para reviver. Até que a ela se chegou o cego e lhe conduziu para a varanda da casa. Então iniciou de descrever o mundo, indo além dos vários firmamentos. Aos poucos foi despontando um sorriso: a menina se sarava da alma. Estrelinho miraginava terras e territórios. Sim, a moça, se concordava. Tinha sido em tais paisagens que ela dormira antes de ter nascido. Olhava aquele homem e pensava: ele esteve em meus braços antes da minha actual vida.

E quando já havia desenvencilhado da tristeza ela lhe arriscou de perguntar:

– Isso tudo, Estrelinho? Isso tudo existe aonde?

E o cego, em decisão de passo e estrada, lhe respondeu:

– Venha, eu vou-lhe mostrar o caminho!

Do livro: “Estórias Abensonhadas”

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Para viver é preciso ter coragem de morrer

Para viver é preciso ter coragem de morrer

Por Adriana Vitória

Aprendi intuitivamente a lidar com a morte muito cedo em minha vida. Aos cinco anos,  perdi minha irmã mais velha. Aos nove, uma das melhores amigas da escola. Aos quinze, a senhora que trabalhava há cerca de quarenta anos na casa do meu tio avô morreu nos meus braços. Era a vida me mostrando o quanto era imprevisível.

Minha vida foi marcada por separações, centenas de mudanças de casa, de país…

Mas meu “diploma” veio em 89, quando fui fazer um curso intensivo de três meses sobre Livro “Tibetano dos Mortos”, no instituto Nyingma.

Nos anos seguintes, perdi duas das pessoas mais importantes da minha vida: minha mãe e meu avô.

Nós do ocidente ainda temos muita dificuldade em lidar com a morte. Mal mencionamos a palavra, com medo que ela nos apanhe.

Obviamente toda perda gera dor, mas se compreendemos e aceitamos que o fim é inevitável, natural e fundamental ao nosso processo evolutivo, a vida se torna de fato significativa.

O número de pessoas que se recusa a aceitar ou lidar com a perda (de um ente querido, seja causada pela morte física ou uma separação) não é nada pequeno.

Para fugirmos do luto, tão necessário de ser vivido,  recusamos-nos a abrir mão de quem, ou do quê, já teve seu papel cumprido. Insistimos em carregar pessoas, lembranças ou situações finitas, em levá-las adiante, sem ao menos nos darmos conta de que, com isso, só retardamos nosso crescimento. Poluindo o nosso presente com descartes impossibilitamos o futuro.

Entulhamos a casa só pra não termos que lidar com o vazio deixado e nem nos damos conta de que lidamos com a morte o tempo todo. Sem ela, a vida seria pura estagnação e a existência totalmente sem sentido.

Para nascermos temos que abandonar a segurança uterina. Para comermos abdicamos do leite materno. Para entrarmos na escola, temos que deixar o aconchego de casa. Para aprendermos a ler, largamos as fraldas. Para entrarmos na puberdade, deixamos  a infância. Para nos tornarmos adolescentes temos que abrir mão da puberdade e para nos tornando adultos deixar que ela se vá.

Vivemos milhares de perdas, grandes e pequenas, o tempo todo, a cada minuto. Ações são interrompidas para darem lugar a novas, afinal, não haverá vida se não pactuarmos com infinitas mortes. Simples assim.

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“Trocando baterias”…e preenchendo lacunas afetivas

“Trocando baterias”…e preenchendo lacunas afetivas

Quando os homens suspeitarem que as máquinas substituiram o afeto, constatarão, surpresos, que o Amor novamente venceu: As máquinas aprenderam a amar.

A animação ‘Changing Batteries’ (Trocando baterias) é uma produção de 2013 realizada pela Sunny Side Up Production, Malaysia.

Direção: Casandra Ng

Conheça a Página Oficial da animação.

A questão da tolerância – Flávio Gikovate

A questão da tolerância – Flávio Gikovate

O tema é extremamente relevante tanto para as questões interpessoais quanto para as relações sociais mais amplas.

É muito difícil desenvolver a capacidade genuína de respeitar pontos de vista ou modos de vida diferentes.

Para mais informações sobre Flávio Gikovate
Site: www.flaviogikovate.com.br
Facebook: www.facebook.com/FGikovate
Twitter: www.twitter.com/flavio_gikovate
Livros: www.gikovatelojavirtual.com.br


Esse blog possui a autorização de Flávio Gikovate para reprodução deste material.

Dia ou noite, bom ou mal, certo ou errado? De que lado você está?

Dia ou noite, bom ou mal, certo ou errado? De que lado você está?

Quantas vezes achamos que uma coisa é melhor que outra? Uma decisão é a mais acertada? Um caminho é o mais correto ou uma determinada consequência é a mais justa?

Quantas vezes “tomamos partido”? Ou escolhemos apenas “um lado da moeda”?

Atitudes polarizadas fazem parte da natureza humana! Afinal é difícil conseguirmos ver todas as faces de uma mesma realidade!

Se numa sala onde a minha frente vejo somente uma porta, as vezes é difícil enxergar que atrás de mim também existem janelas. É preciso ampliar o olhar, enxergar mais além e se permitir ver pelo avesso, com outros olhos, de outro jeito, de outra forma.

Quando falamos de objetos reais, tal tarefa até que pode ser simples. Basta se virar e olhar para a sala toda!

Mas quando falamos de ideias, sentimentos e tudo mais que permeia a mente humana, a questão ganha uma complexidade não dimensionável.

A subjetividade não nos permite ver tudo com objetividade plena! Ao nascermos recebemos: herança genética, sexo, cultura, família, e todos estes contextos constituem uma determinada ideia do mundo que nos cerca. Funcionam como verdadeiras lentes entre nós e o ambiente que fazemos parte.

Porém, a ação consciente é somente um dos aspectos que regem a nossa vida. Muitas questões pairam no inconsciente, “às nossas costas”. E, por mais estranho que pareça, é dele que vêm às forças necessárias para a nossa evolução no plano da consciência.

O dilema humano da unilateralidade é comumente retratado nas mais diversas artes de maneira sensível, empolgante e criativa.

É o caso do curta metragem de animação “Dia & Noite” (Day & Night) da Pixar, que retrata o interessante encontro do Dia com a Noite, cada um com seus elementos, magias e terrores característicos.

O ‘DIA’ acorda e se delicia com suas conquistas! Faz florescer, produzir, alegra as pessoas e parece estar consciente de tudo a sua volta.

De repente o DIA encontra a “NOITE” em seu mais profundo sono e estranha esse novo elemento, seu contrapólo.

A dualidade da vida encontra aqui sua representação!

Dia e noite, luz e sombra, bem e mal, feminino e masculino, inferioridade e superioridade, consciente e inconsciente. Inúmeros aspectos da vida funcionam em oposição ao seu par. A sabedoria se fará presente em quem aprender a conviver bem com a alternância dos opostos, podendo, deste modo, oferecer desenvolvimento à sua consciência.

Dia e Noite, se comparam e se confrontam! Cada oposto do par carrega uma característica essencial, uma dinâmica específica que o diferencia do outro par. Cada um quer mostrar somente o seu melhor lado e o pior do outro. Acabam brigando por isso. A rigidez em somente um dos polos causa tensão e conflito! E quanto maior a tensão, maior o desequilíbrio.

Quando falamos do ser humano, isso pode afetar mente e corpo gerando diversos sintomas e doenças.

Nos relacionamentos tais comportamentos resultam em discórdias rompimentos, mágoas e mal-entendidos.

Mas a estória dramatizada nos oferece uma solução!

Algo que somente o DIA têm chama a atenção da NOITE! E então cada um pode mostrar o seu melhor, seus encantos e suas diferenças.

Aos poucos vão percebendo, uma complementariedade. O mesmo cenário varia no DIA e na NOITE, mas em essência é o mesmo cenário. Assim, eles passam a se divertir com as diferenças e percebem o que também pode ser bom do outro lado da moeda.

Há então uma alternância entre os personagens, tal qual uma dança. Ritmada, intensa, com energia vital!

Mas ainda assim, os dois aspectos se veem como sendo separados. É preciso encontrar um ponto em comum. E isso acontece quando se deparam com a antena de transmissão.

O fato inicialmente os deixa entristecidos, pois afinal é como se toda tensão e toda magia ao mesmo tempo tivesse acabado.

Mas, então um terceiro fenômeno ocorre! Não é nem DIA e nem NOITE é o ENTARDECER!

“da colisão entre duas forças oposta, a psique inconsciente tende a criar uma terceira possibilidade” (Andrew, 1988).

Há uma reconciliação num nível ainda mais satisfatório, com o despertar de uma nova consciência.

“Onde havia uma oposição, agora surge uma configuração recém-nascida, simbólica de um todo nascente, uma figura possuidora de potenciais além daqueles que a mente consciente foi capaz de conceber” (Andrew, 1988).

Por meio da capacidade de ir além do conflito, aceitar a parcialidade, transcendendo as tendências destrutivas de empurrar (ou de ser empurrado) para um lado ou para o outro, é possível alcançar uma perspectiva diferente de uma puramente pessoal. É possível ver com outros olhos e vislumbrar um novo mistério, uma nova paisagem e um novo caminho!

Faz parte do desenvolvimento da consciência a aceitação e integração dos elementos opostos inconscientes. E a partir desta integração surge uma nova possibilidade de encarar o mundo.

Assim, a vida fica mais interessante e cheia de novos significados e aventuras!

E você, consegue se arriscar nessa travessia?

 

Referências Bibliográficas

ANDREW, S.; Sholter, B. Plaut, F. Dicionário crítico de análise Junguiana. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

JUNG, C. J. Obras Completas. São Paulo: Editora Vozes.

Esse material foi reproduzido com a autorização das autoras. 

Psique em Equilíbrio é uma parceria CONTI outra 🙂

Autoras:

contioutra.com - Dia ou noite, bom ou mal, certo ou errado? De que lado você está?Juliana Pereira dos Santos – Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica Junguiana. Aprimoranda em Psicopatologia e Psicologia Simbólica pelo Instituto Sedes Sapientiae e Coach formada pela Sociedade Brasileira de Coaching. CRP: 06/ 108582

 

 

contioutra.com - Dia ou noite, bom ou mal, certo ou errado? De que lado você está?Lilian Marin Zuchelli – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana pela PUC-SP. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Institiuto Sedes Sapientiae. CRP: 06/23768

 

 

contioutra.com - Dia ou noite, bom ou mal, certo ou errado? De que lado você está?Marcela Alice Bianco – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana formada pela UFSCar. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Sedes Sapientiae. CRP: 06/77338

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Tudo em seu devido lugar

Tudo em seu devido lugar

Por Elika Takimoto

Quando somos bem ou mal educados por uma família achamos natural o que vemos ou ouvimos em casa. Ao cair no mundo, começamos a estranhar as diferenças e questionar o certo e o errado em vários referenciais diferentes da nossa morada. Quando fui pela primeira vez para a escola com seis anos, deparei-me com o fato de estar aprendendo algo errado com meus pais como a pronúncia das palavras. A partir de então, comecei a fingir que acreditava em tudo o que eles me diziam sem mais nem sequer prestar muita atenção na forma em que as palavras eram articuladas.

(Papai é japonês e possuía dificuldades naturais à sua etnia com erres e eles. Marília, colírio, por exemplo, eram um plobremaço. Mamãe, por causa de um fenômeno fonético já explicado por historiadores e que nada compromete a sua inteligência, falava Cráudia, chicrete, pranta, ingrês, frauta,…o que atrapalhava menos a papai do que a nós que aprendemos a nos expressar com os dois.)

Dentro apenas de mim mesma, decidi que não mais limitaria a duas pessoas a responsabilidade de ensinar-me o que era o direito e o desacertado a fazer nessa vida. E aos quatorze anos, já namorando com  aquele que seria o meu marido, comecei a frequentar uma residência muito distinta da minha, a começar pelo número reduzido de pessoas: a casa organizada da minha sogra. Um porta-retrato tirado do lugar e recolocado em um ângulo diferente era percebido e imediatamente reajustado de forma que em qualquer cômodo da casa em que entrávamos, tudo estava milimetricamente em ordem e organizado como nos cenários de novela. E em matéria de limpeza era tal e qual um bom consultório de dentista. Minha sogra havia me ensinado que a casa da gente reflete como anda a nossa cabeça. Se nos deparamos com um ambiente sem ordem, dizia ela, pode ter certeza de que a pessoa que lá vive está de alguma forma descompensada. Achei aquilo o máximo e mega correto.

Com o tempo, ao voltar para a minha vivenda o que jamais me incomodava começou a me importunar: a bagunça feita pelos meus irmãos e também pelos meus próprios pais. Fosse nos quartos, na sala, no banheiro ou na cozinha eu ficava boquiaberta com o desleixo de todos e fazia o que deveria ser feito: arrumar, pois assim os ajudaria a encontrar o equilíbrio interno que lhes faltava.

Aconteceu que um dia, já com mais idade, fui a uma confraternização de final de ano na casa do tio Nero e da tia Neide, pais da prima Silvana, parentes de minha sogra. Lembro-me como se fosse hoje o que senti ao observar aquela moradia em que visitei somente uma vez. Era tudo muito simples, os tios recém-conhecidos eram pessoas extremamente humildes, mas não havia dúvidas que cuidavam daquele simpático cafofo com muito amor e carinho a despeito de ter nitidamente objetos fora do lugar. Não hesito em dizer que ali foi um dos lugares mais bonitos em que já pisei.

Alguns meses se passaram. Recém-casada e completamente neurótica com a arrumação, por algum motivo ligado a comemoração e festa, fomos à casa da prima Silvana, lá no Recreio. Casa grande, bonita, em condomínio fechado e tudo! Tio Nero já era falecido, mas a tia Neide estava lá. Viria a deixar saudades de sua doçura pouco tempo depois. Como de costume, Silvana, uma mulher que aos meus olhos era bem resolvida e super determinada, convidou-me para conhecer a parte de dentro daquela imponente habitação e eu aceitei prontamente cheia de curiosidade.

A casa estava uma zona segundo meus novos parâmetros sograis! Silvana nem sequer se desculpou e mostrava cada cômodo bagunçado por seus filhos eu diria até com muito orgulho. Assim foi com a sala cheia de fitas e consoles de vídeo-game, com as camas removidas e as roupas jogadas no quarto das meninas. Mas, de uma forma estranha, senti exatamente o mesmo de quando pisei na casa de seus pais. Mais uma vez, eu estava dentro de um lar cheio de vida bem vivida.

Onde a minha sogra havia errado quando disse que anarquia de nossa casa reflete a balbúrdia de nossa mente? Em parte, ela tem razão, pois, nossa casa deve ser o centro de resolução de nossos problemas. E, para ser um local onde vivem companheiros que, mesmo na divergência, se apóiam e nas lutas se solidarizam, é bom que este seja realmente limpo e organizado. Mas, eu agora acrescentaria: de uma forma que nos reconheçamos e que nos identifiquemos quando estamos nele. Para que tenhamos pressa em chegar e para que retardemos ao máximo a nossa saída, a nossa morada deve ser arrumada de um jeito que nos sobre tempo de viver nela. 

Há de se gastar alguns minutos afofando as almofadas, esticando lençóis, limpando, esterilizando, quiçá ajeitando os porta-retratos!  Mas nada que impeça um ‘quando’ bem demorado para tirar os livros das estantes e um ‘onde’ bem espaçoso em que as crianças possam ser criativas. A forma em que vivemos em nosso lar não deve nos envergonhar mas sim nos encher de orgulho diante das visitas. E isso, a despeito de toda a admiração e carinho que tenho pela minha sogra, eu aprendi mesmo foi com os meus pais. Só percebi que eles estavam certos quando tive o prazer de conhecer tio Nero e  tia Neide e o  deleite de ser apresentada ao angu de caroço da prima Silvana pelos seus olhos repletos de vanglória.

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O quadro que ilustra esse texto é de CHILDE HASSAM e se chama A sala das flores.

A beleza da gratidão em “O Carteiro e o Poeta”

A beleza da gratidão em “O Carteiro e o Poeta”

Por Octavio Caruso

A emoção em “O Carteiro e o Poeta” (Il Postino – 1994), dirigido por Michael Radford, já nasce nos primeiros segundos, com a linda trilha sonora de Luis Bacalov, que consegue transmitir um profundo sentimento de nostalgia, como que a sociedade gritando por ajuda, a necessidade do retorno de valores já tidos como antiquados e dispensáveis. O homem humilde, vivido por Massimo Troisi, emocionalmente inseguro, que, por hábito, aprendeu a se minimizar, observando ternamente a foto amarelada, enquanto o dia lentamente desperta. Ele tenta estabelecer contato com o pai, um pescador embrutecido pela vida, porém, o velho não escuta suas desajeitadas palavras, preocupado mais com o mecânico saciar de sua fome. Ao conhecer o poeta Pablo Neruda, vivido por Philippe Noiret, em um cinejornal, o homem toca brevemente aquele mundo desconhecido, totalmente diferente de sua simples comunidade pesqueira. A escuridão da sala de cinema potencializa a mágica desse primeiro encontro, posicionando o homem, em sua pequenez, diante do gigante visitante estrangeiro na tela.

Ele tenta conseguir um emprego como carteiro, porém, num toque sutil, a câmera se foca na exigência de uma bicicleta. A sua insegurança é tanta, que, sem pensar duas vezes, ele adentra o local com a bicicleta, como que tentando garantir sua contratação, antes de precisar abrir a boca. Vale notar a postura dele ao avisar ao empregador sua fragilidade intelectual, afirmando que sabe, de forma lenta, ler e escrever, uma mentira que ele é incapaz de disfarçar, quando reage de forma defensiva ao escutar que irá trabalhar apenas para uma pessoa, já que todos na região são analfabetos. Em sua visão, Neruda é o poeta amado pelas mulheres, aquele ser superior idealizado na sala escura. A remuneração é pouca, o trabalho é cansativo, devido ao número expressivo de cartas que ele carregará, ele descobre até que o poeta é um comunista, conotação política que não entende, mas nada disso importa para o carteiro, que, com um emprego, passa a existir novamente para seu pai. Ele é aconselhado a trocar o mínimo de palavras possível com o estrangeiro, sendo submisso e prestativo, evitando incomodar.

contioutra.com - A beleza da gratidão em “O Carteiro e o Poeta”

No primeiro encontro, ele se encanta com o carinho do poeta com sua esposa, gesto que corrobora sua imagem idealizada. Ele sorri como uma criança que flagra o beijo dos pais. A gorjeta era desnecessária, ele já tinha tido satisfeito o necessário, a confirmação de sua crença. Em sua mente, como todos que idealizam, ele cria até a ilusão de uma conversação, já que afirma ao empregador que o poeta fala de forma diferente, quando, na realidade, ele havia apenas agradecido pela entrega das cartas. No segundo encontro, após efetivamente flagrar o beijo do casal, ele toma um pouco de coragem e tenta, de forma desajeitada, estreitar a relação, colocando-se à disposição dele para qualquer trabalho extra. O carteiro precisa aprender aquele truque de mágica, aquela facilidade de encantar tantas mulheres. Com mais uma frase trocada, ele já expande sua ilusão, afirmando que o poeta também é um exímio contador de piadas. Sem cartas, ele vai até o poeta para conseguir uma dedicatória em um livro, uma prova de que ele é seu amigo, um tesouro que ele pretende utilizar com as mulheres, porém, para sua tristeza, seu nome não consta na breve dedicatória.

O carteiro se esforça, tentando compreender o poder sedutor por trás daquelas linhas, letras pequeninas, exercitando timidamente metáforas com o poeta, ainda que não saiba o que significa a palavra, como que mostrando a ele que poderiam ser amigos. Ele não compreende a razão de algo tão simples possuir um nome tão complicado. E, numa cena bonita em simbolismo, pela primeira vez, o enquadramento mostra o poeta se colocando em posição de submissão, sentado, diante do simples carteiro, que, de pé, tenta impressioná-lo com o resultado de seu estudo dedicado. A poesia explicada torna-se banal, ele aprende que a mágica perde o fascínio quando o truque é revelado. Os dois homens, tão diferentes em teoria, acabam se descobrindo, na prática, iguais. Não há mestre e aprendiz, ambos aprendem. O efeito desse encontro, um evento transformador na vida dos dois, uma amizade nascida da improbabilidade, fortalecida com o amor pela palavra escrita. O carteiro deseja contar para o pai sua felicidade, mas, com sua sensibilidade que está sendo apurada, percebe que o velho bronco não irá compreender sua conquista, ou compartilhar seu orgulho, então, triste, ele silencia. A cultura, único elemento que verdadeiramente modifica o homem, já havia começado a libertá-lo daquela realidade simplória.

O emocionante terceiro ato, as circunstâncias de bastidores, com Troisi cada vez mais fragilizado, o adiamento de uma cirurgia cardíaca que poderia ter garantido mais alguns anos de vida, uma escolha apaixonada pela finalização da obra, decisão que evidencia a importância do filme na vida do querido ator italiano. Sua morte, por ataque cardíaco fulminante, no dia seguinte ao término, trouxe lágrimas aos rostos de cinéfilos do mundo todo. Seu legado é eterno, assim como a influência do poeta na vida do personagem. O filho, que ele não chega a conhecer, carrega o nome do estrangeiro, que, a despeito de todos os avisos do empregador, acabou se encantando pela amizade pura e sincera do tímido carteiro. Seu poema, criação que o ídolo nunca irá conhecer, perdido na revolta dos manifestantes, foi o atestado de independência e segurança emocional. A beleza da gratidão.

Abaixo, diálogo em que o carteiro diz a Neruda: ‘A poesia não é de quem faz, é de quem dela precisa’

OCTAVIO CARUSO

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Carioca, apaixonado pela Sétima Arte. Ator, autor do livro “Devo Tudo ao Cinema”, roteirista, já dirigiu uma peça, curtas e está na pré-produção de seu primeiro longa. Crítico de cinema, tendo escrito para alguns veículos, como o extinto “cinema.com”, “Omelete” e, atualmente, “criticos.com.br” e no portal do jornalista Sidney Rezende. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, sendo, consequentemente, parte da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica.

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O Outro desaparece debaixo de nosso olhar superficial e apressado

O Outro desaparece debaixo de nosso olhar superficial e apressado

Interesse

Por Ana Vieira Pereira

Heráclito de Éfeso acompanhou-me a semana toda. Alimento-me da sua proposição do mundo ser movimento e mudança constantes e fundamentar-se numa estrutura de contrários. Para ele, a origem de todas as coisas é a contradição, e o conflito é ajuste dessas forças contrapostas.

Há uma lei, entretanto, que rege esse movimento. Heráclito chama-a de Logos. Logos não só rege o devir do mundo, como “indica, dá signos”, ainda que o homem “não saiba escutar nem falar”. As aspas são palavras do próprio Heráclito. Ou seja: Logos dá-nos indícios do mundo tal qual se manifestará no futuro; Logos diz-nos, em forma de signos, o ser da mudança em nós e no mundo. Mas é preciso saber escutar e falar, o que significa saber usar a Palavra e usá-la.

contioutra.com - O Outro desaparece debaixo de nosso olhar superficial e apressado
Heráclito de Éfeso

Aprender a ler os signos de Logos é uma arte. Heráclito diz-nos, em outro fragmento, que é indispensável abrir e utilizar os sentidos: o mundo entra-nos pelos olhos, pelos ouvidos, pela pele, esse tecido extenso de composição tão sutil. É preciso aprender a ler os signos que nossos sentidos captam, porque só eles, em estado bruto, não bastam. É preciso lapidar.

Lapidar significa, aqui, fazê-los acompanhar do sentido da inteligência, e essa apóia-se numa atitude indagadora. É preciso pensar, e é preciso fazer(-se) perguntas. Se não, seremos seres encastelados na matéria imprecisa dos sentidos, onde o real é invisível. A pergunta, costumo eu dizer nos cursos de escrita, é o movimento propulsor do diálogo. Se a palavra afirmativa, enunciativa, dá nome ao mundo, e é objetiva e verdadeira, embora distante e fria, a pergunta é o primeiro movimento de Um em aproximação ao Outro. Pergunto, porque me interesso, e me interesso porque a vida parte do interesse.

Inter-esse é aquilo que “está entre”. Para haver “entre” é preciso que haja dois e há de haver aquilo que os conecte, uma importância que um reconheça no outro: é entre dois ou mais que Cristo se manifesta. É entre dois ou mais que o céu se constela.

Interesse cultiva-se, e seu cultivo parte da intenção de aprender a ler os signos de Logos. Porque, a rigor, podemos passar várias existências surdos e mudos. Logos continuará e as águas dos rios continuarão passando por baixo de todas as pontes. É preciso que algo em nós se mova na direção do outro, esse interesse verdadeiro na verdade que ele carrega em si como ser divino que é, e esse interesse manifesta-se na importância que lhe conferimos, na ocupação que lhe dedicamos, para que a conexão que se anuncia seja real e verdadeira.

[quote_box_right]Somos indiferentes ao sofrer alheio, às percepções dos sentidos do Outro, desinteressamo-nos daquilo que vê e diz, porque o nosso Eu tem pressa, e tem suas próprias obrigações, compromissos, responsabilidades, interditos, exigências, territórios…[/quote_box_right]

Mas o Outro desaparece debaixo de nosso olhar superficial e apressado. Somos indiferentes ao sofrer alheio, às percepções dos sentidos do Outro, desinteressamo-nos daquilo que vê e diz, porque o nosso Eu tem pressa, e tem suas próprias obrigações, compromissos, responsabilidades, interditos, exigências, territórios… e não descansa de si, e nem se detém, porque o mundo anda rápido e tudo é veloz e são tantas tarefas e não temos tempo não temos tempo não temos – e o que não temos afinal é a chance de perceber o Outro, partilhar do seu caminho e multiplicar o nosso. Somos só superfície, um mundo raso de pele sem tato pro Outro. Esse olhar de superfície, indiferente e desinteressado, é um rolo compressor em marcha lenta por cima da alma.

Eu me pergunto, e pergunto a Heráclito, qual será a força de contraposição. Qual será a força, de igual magnitude e poder, que se oporá a esse desmantelamento da humanidade em nós. E Heráclito responde com a sua frase mais famosa, aquela em que Platão se inspira para, na sua própria e particular leitura, dizer que “um homem não se banha duas vezes no mesmo rio”.

“Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos” são as palavras proferidas por Heráclito. Embora uma parte do rio flua e mude (a água), há uma outra (o caudal, o leito), que se mantém relativamente permanente.

É esse caudal, que guia o movimento da água, o Logos que tudo rege. Ao entrarmos num rio, entramos nele e não entramos, porque ele sempre muda nas águas que passam, apesar de ser sempre o mesmo. E nós mesmos, sob a regência de Logos, somos permanentes e mutáveis a cada instante. Quanto mais conseguirmos compreender os signos que Logos indica, mais conseguiremos compreender onde se manifesta a lei regente, e onde a constante mutação modifica. É nessa condição que precisamos parar, observar, pensar, indagar e mudar. Sem esse movimento, mudaremos porque forças externas nos impelem, e não por forças de nosso próprio caminhar evolutivo.

Sem menosprezar o olhar do Outro, e mantendo o pensar do Outro em mim, pavimento o meu caminho. Nos embates entre, no interesse que se cultiva, no conflito que se estabelece e do qual não se foge, nasce uma nova possibilidade. Talvez possa ser a força de contraposição à diluição do vir a ser humano, essa força que se manifesta às vezes tão próxima, em tantas almas que se angustiam tanto que procuram a morte como refúgio. Talvez o que nelas tão cruamente chore, e chore em nós quando a parede do desinteresse e da indiferença nos atinge, seja o choro da humanidade que sofre, e que vive em cada um de nós. Cada movimento que Eu faço na direção do Outro aglutina-se em torno dos movimentos que o Outro faz, e soma e multiplica, e é dessa aritmética que nasce a força necessária de contraposição. E sempre, sempre vigiar a si mesmo e amar o outro.

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Heráclito pintado por Rafael-afresco

Reprodução do texto autorizada pelo blog parceiro

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contioutra.com - O Outro desaparece debaixo de nosso olhar superficial e apressadoAna Vieira Pereira é mestre e doutora em Literatura Comparada pela USP. Atualmente dedica-se ao ensino e à pesquisa da escrita dentro do âmbito da criação artística. Coordena o espaço Quinta Palavra, em Botucatu, e é assessora pedagógica da Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo, e da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, em Botucatu. É autora de, entre outros, Do ventre ao berço: o parto em casa, Mistache Malabona e O dono do castelo.

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