10 filmes para ampliar seu olhar psicológico

10 filmes para ampliar seu olhar psicológico

Por Octavio Caruso

Amigos leitores, queridas leitoras, esses são apenas alguns dos meus filmes favoritos sobre assuntos relacionados à psicologia, em variadas vertentes.

Tentei evitar o lugar comum de listas similares, fiz questão de rever todos, no intuito de selecionar com mais clareza. Estão listados sem ordem de preferência.

Através de Um Espelho (Såsom I En Spegel – 1961)

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O primeiro projeto da hoje conhecida como “Trilogia do Silêncio”, que prefiro chamar de “Trilogia da Fé”, mostra Ingmar Bergman em seu estado mais objetivo, mas, ainda assim, flertando com metáforas. Analisando os três filmes, podemos claramente perceber os questionamentos do cineasta com relação a uma divindade aparentemente muda, invisível em meio aos destroços da guerra, a natureza da fé trabalhada por um ateu. A trama simples utiliza o microcosmo de uma família que passa férias em uma paradisíaca ilha. Karin (Harriet Andersson) acaba de voltar de uma estadia forçada em um hospital psiquiátrico, ainda apresentando sinais de profundo desequilíbrio emocional. Seu marido, vivido por Max von Sydow, seu carente irmão mais novo (Lars Passgård) e seu pai, um homem tão imerso em sua ambição profissional literária, universo onde extravasa suas angústias, sem nunca ter coragem suficiente para resolvê-las, que foi incapaz de estabelecer uma relação de carinho com seus filhos. Um toque de gênio é Bergman torná-lo “Deus” para seu próprio filho, que, admirado, percebe ao final que finalmente conseguiu vê-lo/senti-lo. Após seu contato com a “aranha”, que a manipula e a frustra terrivelmente, a jovem esvazia seu copo de esperança. Bergman força essa reflexão em seu público, levando-o a ver que o conceito divino não se limita a um rígido padrão de ideias e condutas, facilmente manipulado pelas religiões mundanas com seus rituais vazios. Práticas que isolam/segregam o homem, ao invés de fazê-lo perceber-se como parte de um todo. Aquele que busca encontrar Deus, não deve fazê-lo em templos, mas, sim, no ato simples de sorrir para estranhos.

 

Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of The Spotless Mind – 2004)

contioutra.com - 10 filmes para ampliar seu olhar psicológicoNa Grécia antiga, berço da filosofia, Heráclito afirmava metaforicamente que nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. O existir é um perpétuo mudar, um constante fluir. Já Parmênides de Eleia, povo pioneiro no uso da dialética, contestava-o afirmando que o ser é único, eterno, imutável, imóvel e infinito. Ele dividia o mundo em sensível, aquele que conhecemos pelos sentidos, e inteligível, mundo que não vemos e não tocamos, mas compreendemos. John Locke argumentava que a identidade do ser, não era definida por características físicas, mas sim por repetida auto-identificação. Logo, a memória torna-se essencial na construção do ser. O que aconteceria caso o homem pudesse manipulá-la, de forma a aniquilar elementos que o fizeram tornar-se quem ele é? Apagar da mente aqueles eventos que ajudaram a construir sua personalidade, afetaria a forma como o ser lidaria com o seu habitat? O filme, dirigido por Michael Gondry, abre esta importante discussão, contando a história do casal Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet). Após anos sentindo-se insatisfeita com os rumos do relacionamento, ela age impulsivamente e aceita participar de um tratamento que irá fazê-la “cirurgicamente” esquecer completamente de seu namorado. Indignado, Joel decide fazer o mesmo, porém acaba percebendo o valor da preservação daqueles momentos. Ele lutará até o fim para manter suas recordações, mesmo aquelas que lhe causam sofrimento, pois também ajudaram a construir o homem que ele se tornou. O roteiro brilhante de Charlie Kaufman nos induz a questionar a nossa frágil psique, com a angústia de alguém em lidar com a indiferença do outro. Apaga-se a memória, porém ele ainda existe.

Minha Vida em Cor-de-Rosa (Ma Vie en Rose – 1997)

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A primeira sequência do filme já expõe o leitmotiv que conduz a sensível trama. Enquanto os pais de Jerome escondem ritualisticamente em seus uniformes diários a ausência do calor que outrora havia em seu relacionamento, os pais de Ludovic se entregam à vida naturalmente e com real paixão, com o diretor de arte expondo claramente o contraste na paleta de cores que emolduram as cenas. O primeiro momento em que realmente vemos o menino, somos levados a sentir o mesmo choque que seus pais, pois ele está usando o vestido de princesa de sua irmã. Seu pai, temeroso pelo julgamento cruel da sociedade, limita sua corajosa atitude a uma brincadeira inconsequente. Sua mãe corre para fazê-lo retirar com água fria a maquiagem de seu rosto. No rosto da criança, a apatia dos que sofrem diariamente com a ignorância daqueles que deveriam ser mais inteligentes, por terem mais experiência de vida. Ludovic não sabe ainda que o ser humano é uma espécie muito pouco evoluída, escrava de crenças em seres imortais, anjos, demônios e feitos miraculosos, porém incapazes de simplesmente aceitar uma condição natural que compartilhamos com várias espécies (mais de 1.500, para ser mais exato) do reino animal: a homossexualidade. A religiosidade, sempre caracterizada pelo domínio do homem sobre a mulher, desde a lenda de Adão e Eva, vista como a causadora de todos os males, estabeleceu fortemente sua presença na sociedade, como uma triste mancha na História, formando gerações de machistas ignorantes e mulheres sexualmente reprimidas. A absurda noção do pecado, camuflando hipocritamente qualquer desejo sob um véu de pureza, que se rompe assim que o autoproclamado santo se tranca na solidão de seus pensamentos. A ilusão de que se alcança o divino pelo ato da castidade, ignorando que, caso exista, ele perceberia os instintos naturais que não se podem domar.

A Caça (Jagten – 2012)

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A bela fotografia de Charlotte Bruus Christensen auxilia ao emoldurar o cair das folhas de outono, inclusive como metáfora, simbolizando o crepúsculo de um homem oprimido, sendo complementada pela excelente interpretação de Mads Mikkelsen, que foge de sua zona de conforto, oferecendo um retrato humano e passional nesse excelente filme dirigido por Thomas Vinterberg. Nenhuma chance é dada a ele, pois todas as famílias da região agarram-se ao inconsciente coletivo do pavor, temendo que ele se aproxime de suas crianças. Lucas (Mads) é um homem bom, adorado por seu filho e seus alunos, incapaz de cometer atos tão cruéis. Somos levados então a um calvário pessoal, onde progressivamente todos os membros da comunidade passam a duvidar de sua inocência. A jovem Annika Wedderkopp (Klara) surpreende com uma excepcional atuação infantil, diferente da celebrada menina de “Indomável Sonhadora”, que apenas seguia instruções do diretor. Vinterberg nunca apela para o óbvio, enaltecendo mártires e pintando com tintas fortes os vilões, pois prefere mostrar todos como seres humanos falíveis e propensos a escolhas erradas. O leitmotiv da confiança é explorado até o brilhante desfecho, onde o roteiro ainda inclui uma poderosa crítica social e religiosa. O simples benefício da dúvida já seria o suficiente para auxiliar no processo angustiante em que o protagonista se vê vitimado, mas a mensagem que o filme aborda é cruel em sua veracidade: a sociedade, desde o início dos tempos, sempre esteve propensa ao apedrejamento coletivo, algo que requer menos argumentação que a árdua tarefa de tentar enxergar a flor no lodo.

A Experiência (Das Experiment – 2001)

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O diretor Oliver Hirschbiegel adapta o romance de Mario Giordano e o transforma em uma experiência cinematográfica angustiante. Saber que se trata de uma história real, ajuda a fazer com que nossos olhos evitem piscar, enquanto somos sugados para dentro da trama. Uma equipe de cientistas convoca vinte homens de diferentes origens para uma experiência psicológica em troca de um prêmio em dinheiro. Os participantes são colocados em uma prisão e divididos aleatoriamente em dois grupos: oito deles fazem o papel de guardas e os outros doze, de internos. Os presos devem obedecer às regras impostas pelos colegas que representam figuras de autoridade. No início, a camaradagem reina no ambiente. Mas em pouco tempo, os falsos guardas mudam de comportamento e a violência, mesmo que proibida, preenche as lacunas. Os internos vão se tornando cada vez mais submissos e os guardas cada vez mais agressivos. Um estudo psicológico sobre o comportamento humano sem precedentes e uma obra que dificilmente irá sair de sua mente. Ao final da sessão fica muito claro que só conhecemos realmente uma pessoa após darmos poder a ela.

O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen Alle – 1974)

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O título original do filme: “Cada um por si e Deus contra todos” exprime com exatidão a mensagem desta obra sensacional do alemão Werner Herzog. Ele utiliza a história real do jovem Kaspar Hauser, que durante grande parte de sua vida foi mantido em um cativeiro, sem nenhum contato com a civilização. Ele não sabia andar ou se comunicar, tampouco entendia que havia outros seres como ele. Como trocavam sua comida durante seu sono, ele acreditava que sua alimentação aparecia como que por mágica, sempre após ele fechar os olhos. Seu único companheiro era um pequeno cavalo de madeira. Sua vida muda quando um homem adentra sua prisão e o entrega de volta à sociedade, deixando-o de pé no meio de uma praça na cidade de Hamburgo. Munido apenas de uma carta e um livro de orações, o jovem vislumbra pela primeira vez o mundo. O diretor escolheu Bruno S. para viver o jovem. Ele havia passado sua vida inteira em instituições para doentes mentais e nunca havia atuado. Seus olhos sempre distantes e assustados, como se vissem o mundo pela primeira vez. O filme nos questiona sobre o que consideramos ser normal, dentro da estrutura de uma sociedade contraditória, que não sabe como reagir ao entrar em contato com um homem puro, sem cultura e regras a seguir. Os religiosos se revoltam, já que ele resiste à aceitação do mistério da fé. Ele desconhece a ideia de um Deus como força superior e debate questões de lógica com um professor. Somos brindados com várias cenas brilhantes e com uma história inesquecível. Meu filme favorito de Herzog e uma das melhores obras do cinema alemão.

Zelig (1983)

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Em sua genialidade, Woody Allen estrutura esse filme como um documentário sobre Leonard Zelig, um (literalmente) camaleão social da década de vinte. Sem nenhum esforço, ele é capaz de adotar características físicas e mentais de qualquer pessoa com quem se relacionar. Ao lado de franceses, ele conversa fluentemente em francês, com direito até ao clássico bigodinho fino. Mas o que realmente fascina no roteiro é a forma como o personagem se adapta socialmente, como quando discute jargões de medicina ao lado de doutores, com total conhecimento sobre a área. A crítica é certeira, mostrando como as pessoas se moldam, até o caráter, no intuito de agradar e serem aceitas. E, claro, dignitários com os mais diversos interesses passam a utilizar suas palavras como alegoria para suas atividades. Zelig acaba se tornando na sociedade uma espécie de “Chance”, o jardineiro interpretado por Peter Sellers em “Muito Além do Jardim”. Mia Farrow vive uma doce doutora que acredita que o fenômeno seja psicológico, uma manifestação de alguém que não consegue se expressar, levando o roteiro a abordar também o machismo da época, mostrando a reação agressiva dos médicos a essa nova hipótese. O processo de tratamento é tão eficiente, que ele passa a conseguir até discordar de outras opiniões, algo impensável em sua realidade de outrora. Quantas pessoas assim você conhece em sua vida?

O Milagre de Anne Sullivan (The Miracle Worker – 1962)

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Esse belíssimo filme conta a história real da professora, vivida por Anne Bancroft, que busca incessantemente mostrar as belezas do mundo a uma menina cega e surda, a jovem Helen Keller, uma atuação impressionante de Patty Duke, que já estava vivendo a personagem nos palcos, contracenando com Bancroft. Com muita persistência, ela consegue retirar a garota de uma realidade solitária e depressiva, levando-a a adaptar-se ao mundo, fazendo-a conseguir se expressar. Foi preciso pulso firme por parte de Anne, pois a família da jovem havia contribuído para que ela se colocasse em um pedestal, como revoltada vítima das circunstâncias, da qual foi retirada por intermédio de uma rígida disciplina amorosa. Ela sabia que seria difícil alcançar a alma daquela jovem, que estava perdida nas profundezas daquele enigma aparentemente impenetrável que os anos de escuridão e solidão haviam cruelmente forjado. A cena que motivou o texto dura por volta de oito minutos, sem diálogos ou trilha sonora, ocorrendo no primeiro momento em que as duas ficam sozinhas numa sala de jantar que se torna um intenso campo de batalha. Helen inicialmente busca atrair atenção se debatendo no chão, enquanto Anne calmamente continua almoçando. Minutos antes, ela havia percebido que a garota não conhecia limites, devorando os alimentos de todos os pratos como se fosse um animal enjaulado, sendo mimada pela piedade de sua família. A professora estava obstinada a não deixar a menina sair daquele ambiente sem aprender que devia comer apenas sentada à mesa e com talheres. A brutalidade da cena choca, fazendo com que a angústia progressivamente se torne mais insuportável, com agressões físicas de ambas as partes. Ao final, uma pequena grande vitória que é relatada pela professora à extasiada mãe: Helen come na mesa e com talheres, até dobrando seu guardanapo. Ainda havia um longo caminho pela frente, pois ela precisaria educar os verdadeiros deficientes da trama, os familiares da menina.

O Segundo Rosto (Seconds – 1966)

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Em sua essência, um pesadelo Faustiano dos mais assustadores. Uma resposta corajosa para a eterna questão: o que você faria se lhe fosse ofertada uma segunda oportunidade na vida? É o que descobre o personagem vivido por John Randolph, quando é convidado a participar de um enigmático projeto. Já tendo passado dos cinquenta anos e dedicado toda sua vida ao trabalho exaustivo, possui uma oportunidade única de renascer com uma nova identidade. Com o auxílio de cirurgias plásticas, recebe sua jovialidade de volta e a liberdade para evitar cometer os mesmos erros. Rock Hudson interpreta o personagem após o renascimento, com uma entrega raras vezes experimentada pelo ator, acostumado na época ao conforto dos papéis de galã. Sua interpretação é auxiliada pela câmera instável de John Frankenheimer, fundamental para que nos envolvamos na atmosfera onírica da obra. O filme, como todos à frente de sua época, não fez sucesso em sua estreia. Chegou a ser vaiado em Cannes. Visto hoje, com sua fantástica abertura idealizada pelo genial Saul Bass, uma trilha perfeita de Jerry Goldsmith e uma fotografia impecável de James Wong Howe, se apresenta incrivelmente atual, tocando fundo no questionamento de como a sociedade é estruturada.

Esse Mundo é dos Loucos (Le Roi de Coeur – 1966)

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A trama dessa charmosa fábula antimilitarista parte de um conceito simples, instigando uma profunda reflexão que, a despeito da estética compreensivelmente datada, ainda ressoa implacavelmente atual. Durante a Primeira Guerra, o soldado Charles Plumpick, vivido por Alan Bates, um especialista em ornitologia, é enviado por engano a um vilarejo na França para desativar uma bomba deixada pelos alemães. Ao chegar, ele percebe que os moradores do local foram embora e que a cidade foi tomada pelos pacientes de um hospício. O dedo do diretor Philippe de Broca, que aparece em uma breve e hilária ponta como o soldado Adolf Hitler, estava obviamente apontado para os horrores da Guerra do Vietnã, mas o discurso proposto era mais abrangente. A ideia, trabalhada por Maurice Bessy e Daniel Boulanger, nasceu de uma notícia sobre o assassinato de cinquenta doentes mentais franceses por soldados alemães, em uma invasão a um hospital durante a Primeira Guerra. Eles tinham se vestido com o uniforme de soldados americanos mortos e foram andando pelo campo, quando os alemães os fuzilaram por engano. Os loucos de Broca, essencialmente sonhadores que se recusam a sentir medo, possuem uma compreensão mais profunda da vida, preferindo nobremente apreciar o momento em sua redoma de criatividade, enquanto aqueles considerados sãos, presos aos seus estúpidos rituais militares, estão dispostos a desperdiçarem futilmente suas vidas, acatando ordens que sequer entendem. É linda a cena que mostra os pacientes recuando ao alcançarem o portão principal, com a trilha sonora festiva de Georges Delerue dando lugar ao sepulcral silêncio, enquanto acenam melancolicamente para seu rei de copas, que parecia decidido a retornar ao mundo real. O personagem escuta ao longe o som das máquinas da guerra, sentindo internamente o conflito entre a genuína alegria e o companheirismo que havia sentido no reino dos loucos e os ilusórios conceitos de virtude e grandeza que o aguardavam do lado de fora.

Dica de livro: Cinema e Loucura – Conhecendo os Transtornos Mentais Através dos Filmes

OCTAVIO CARUSO

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Carioca, apaixonado pela Sétima Arte. Ator, autor do livro “Devo Tudo ao Cinema”, roteirista, já dirigiu uma peça, curtas e está na pré-produção de seu primeiro longa. Crítico de cinema, tendo escrito para alguns veículos, como o extinto “cinema.com”, “Omelete” e, atualmente, “criticos.com.br” e no portal do jornalista Sidney Rezende. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, sendo, consequentemente, parte da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica.

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Carl Jung em uma rara entrevista legendada em Português

Carl Jung em uma rara entrevista legendada em Português

Nesta entrevista concedia à BBC de Londres em 1959, Carl Jung, psiquiatra e psicoterapeuta suíço nascido em 1875 e considerado o pai da psicologia analítica, fala-nos de sua família, de seus netos e bisnetos.

Ele regressa à infância e fala-nos da primeira vez em que teve consciência do seu Self individual.

Sexo frágil, uma expressão de quem não conhece o “ser mãe”

Sexo frágil, uma expressão de quem não conhece o “ser mãe”

Por Patrícia Pinheiro

Não é a toa que a expressão “sexo frágil”, destinada às mulheres, tem o poder de me tirar do sério: há 22 anos fui gerada e convivo com a pessoa mais forte que já conheci. Meu pai era um doce e me amou incondicionalmente durante os 19 anos que a vida permitiu que passássemos juntos, mas, sempre que tudo desandava, é em minha mãe que encontrávamos a calmaria em meio ao medo; a orientação e sabedoria em meio à confusão; o exemplo de força para seguir caminhando em meio à pernas fraquejantes.

Quando ouço que “as lutas femininas não passam de vitimização”, olho para a mulher que, sem conhecer nada do mundo, saiu do interior, com seus 15 anos de idade, para, anos depois, tornar-se a enfermeira mais respeitada de um hospital. Lembro da mulher que passou nove meses doente para que eu pudesse vir ao mundo. Lembro da mulher que enfrentou crises horríveis de enxaqueca, um câncer e uma endometriose e, ainda assim, guardava suas dores em bolsos que nem existiam mais para poder cuidar, não só das minhas, mas das daqueles que precisavam de seus olhos atentos e voz tranquilizante.

Quando ouço que as mulheres são mais fracas e sensíveis e que necessitam de um homem que as proteja, lembro da mulher que, ainda que lidando com suas próprias doenças físicas, medos e frustrações, foi a mão firme a segurar a minha nas noites intermináveis de choradeira; foi a perspicácia na tomada de decisões e a presença e (a)braços incansáveis na doença de meu pai.

Quando penso na palavra “força”, penso na minha mãe, penso nas mulheres. Nas mulheres que – ainda que com diferentes graus de privilégio – se fazem fortes simplesmente por sobreviverem a um mundo que constantemente as julga, cobra e diminui e, com toda a falsa simetria que existe, ainda as chama de frágeis.

Impossível é não Viver

Impossível é não Viver

Ser-se livre não é fazermos aquilo que queremos, mas querer-se aquilo que se pode.

Jean-Paul Sartre

Impossível é não Viver

José Luís Peixoto

Se te quiserem convencer de que é impossível, diz-lhes que impossível é ficares calado, impossível é não teres voz. Temos direito a viver. Acreditamos nessa certeza com todas as forças do nosso corpo e, mais ainda, com todas as forças da nossa vontade. Viver é um verbo enorme, longo. Acreditamos em todo o seu tamanho, não prescindimos de um único passo do seu/nosso caminho.

Sabemos bem que é inútil resmungar contra o ecrã do telejornal. O vidro não responde. Por isso, temos outros planos. Temos voz, tantas vozes; temos rosto, tantos rostos. As ruas hão-de receber-nos, serão pequenas para nós. Sabemos formar marés, correntes. Sabemos também que nunca nos foi oferecido nada. Cada conquista foi ganha milímetro a milímetro. Antes de estar à vista de toda a gente, prática e concreta, era sempre impossível, mas viver é acreditar. Temos direito à esperança. Esta vida pertence-nos.

Além disso, é magnífico estragar a festa aos poderosos. É divertido, saudável, faz bem à pele. Quando eles pensam que já nos distribuíram um lugar, que já está tudo decidido, que nos compraram com falinhas mansas e autocolantes, mostramos-lhes que sabemos gritar. Envergonhamo-los como as crianças de cinco anos envergonham os pais na fila do supermercado. Com a diferença grande de não sermos crianças de cinco anos e com a diferença imensa de eles não serem nossos pais porque os nossos pais, há quase quatro décadas atrás, tiveram de livrar-se dos pais deles. Ou, pelo menos, tentaram.

O único impossível é o que julgarmos que não somos capazes de construir. Temos mãos e um número sem fim de habilidades que podemos fazer com elas. Nenhum desses truques é deixá-las cair ao longo do corpo, guardá-las nos bolsos, estendê-las à caridade. Por isso, não vamos pedir, vamos exigir. Havemos de repetir as vezes que forem necessárias: temos direito a viver. Nunca duvidámos de que somos muito maiores do que o nosso currículo, o nosso tempo não é um contrato a prazo, não há recibos verdes capazes de contabilizar aquilo que valemos.

Vida, se nos estás a ouvir, sabe que caminhamos na tua direcção. A nossa liberdade cresce ao acreditarmos e nós crescemos com ela e tu, vida, cresces também. Se te quiserem convencer, vida, de que é impossível, diz-lhe que vamos todos em teu resgate, faremos o que for preciso e diz-lhes que impossível é negarem-te, camuflarem-te com números, diz-lhes que impossível é não teres voz.

José Luís Peixoto, in ‘Abraço’

Encontrado em Citador

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“Lamento da Mãe orfã”, de Cecília Meireles às mães cujo filho já se mudou para outras paragens

“Lamento da Mãe orfã”, de Cecília Meireles às mães cujo filho já se mudou para outras paragens

Lamento da Mãe orfã

Foge por dentro da noite
reaprende a ter pés e a caminhar,
descruza os dedos, dilata a narina à brisa dos ciprestes,
corre entre a luz e os mármores,
vem ver-me,
entra invisível nesta casa, e a tua boca
de novo à arquitetura das palavras
habitua,
e teus olhos à dimensão e aos costumes dos vivos!

Vem para perto, nem que já estejas desmanchando
em fermentos do chão, desfigurado e decomposto!
Não te envergonhes do teu cheiro subterrâneo,
dos vermes que não podes sacudir de tuas pálpebras,
da umidade que penteia teus finos, frios cabelos
cariciosos.

Vem como estás, metade gente, metade universo,
com dedos e raízes, ossos e vento, e as tuas veias
a caminho do oceano, inchadas, sentindo a inquietação das marés.

Não venhas para ficar, mas para levar-me, como outrora também te trouxe,
porque hoje és dono do caminho,
és meu guia, meu guarda, meu pai, meu filho, meu amor!

Conduze-me aonde quiseres, ao que conheces, – em teu braço
recebe-me, e caminhemos, forasteiros de mãos dadas,
arrastando pedaços de nossa vida em nossa morte,
aprendendo a linguagem desses lugares, procurando os senhores
e as suas leis,
mirando a paisagem que começa do outro lado de nossos cadáveres,
estudando outra vez nosso princípio, em nosso fim.

Cecília Meireles
In: Mar absoluto -1945-

Infantolatria: as consequências de deixar a criança ser o centro da família

Infantolatria: as consequências de deixar a criança ser o centro da família

Por Raquel Paulino – especial para o iG São Paulo

Além das complicações na vida dos filhos, como dificuldade de socialização e insegurança, deixar a criança comandar a dinâmica familiar pode prejudicar – e muito – o casal.

As atividades da família são definidas em função dos filhos, assim como o cardápio de qualquer refeição. As músicas ouvidas no carro e os programas assistidos na televisão precisam acompanhar o gosto dos pequenos, nunca dos adultos. Em resumo, são as crianças que comandam o que acontece e o que deixa de acontecer em casa. Quando isso acontece e elas já têm mais de dois anos de idade, é hora de acender uma luz de alerta. Eis aí um caso de infantolatria.

“O processo de mudança nos conceitos de família iniciado no século 18 por Jean-Jacques Rousseau [filósofo suíço, um dos principais nomes do Iluminismo] chegou ao século 20 com a ‘religião da maternidade’, em que o bebê é um deus e a mãe, uma santa. Instituiu-se o que é uma boa mãe sob a crença de que ela é responsável e culpada por tudo que acontece na vida do filho, tudo que ele faz e fará. Muitos afirmam que a mulher venceu, pois emancipou-se e foi para o mercado de trabalho, mas não: é a criança que entra no século 21 como a vitoriosa. Esta é a semente da infantolatria”, explica a psicanalista Marcia Neder, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação da Universidade de São Paulo (Nuppe-USP) e autora do livro “Déspotas Mirins – O Poder nas Novas Famílias”, da editora Zagodoni.

Em poucas palavras, Marcia define infantolatria como “a instituição da mãe como súdita do filho e o adulto se colocando absolutamente disponível para a criança”. E exime os pequenos de qualquer responsabilidade sobre o quadro: “Um bebê não tem poder para determinar como será a dinâmica familiar. Se isso acontece, é porque os pais promovem”.

Reinado curto

A verdade é que existe um período em que os filhos podem reinar na família, mas ele é curto. “Quando o bebê nasce e chega em casa, precisa ser colocado no centro das ações, pois precisa ser decifrado, entendido. Ele deve perder o trono no final do primeiro, no máximo ao longo do segundo ano de vida, para entender que existe o outro, com necessidades e vontades diferentes das dele”, esclarece Vera Blondina Zimmermann, psicóloga do Centro de Referência da Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

A infantolatria ganha espaço quando os pais não sabem ou não conseguem fazer essa adequação da criança à realidade que a cerca e a mantêm no centro das atenções por tempo indefinido. “Em uma família com relacionamento saudável, o filho entra e tem que ser adaptado à dinâmica da casa, à rotina dos adultos”, afirma a psicóloga.

Segurança ou insegurança?

Na casa da analista contábil Paula Torres, é ao redor de Luigi, de cinco anos, que tudo acontece. Entre os privilégios do garoto estão definir o canal em que a TV fica ligada e o dia do fim de semana em que será servida pizza no jantar. “Acho importante a criança se sentir amada e saber que suas vontades são relevantes para a família”, opina.

Ela conta que seu marido, o também analista contábil Luiz André Torres, não gosta muito disso e constantemente reclama que o filho é mimado demais. “Mas bato o pé e defendo essa proteção. Quando o Luigi crescer, será mais seguro para lidar com os adultos, já que suas opiniões são levadas em consideração pelos adultos com quem ele convive desde já”, acredita.

Não é o que as especialistas dizem. “Se o filho fica no nível dos pais, acaba criando para si uma falsa sensação de poder e autonomia que, em um momento mais adiante, se traduzirá em uma profunda insegurança. Ele sentirá a falta de uma referência forte de segurança de um adulto em sua formação”, explica Vera.

Marcia diz ainda que, ao chegar à idade adulta, esse filho cobrará os pais. “Ele olhará ao redor e verá outras pessoas se realizando independentemente dele. A criança que acha que o mundo tem que parar para ela passar não consegue imaginar isso acontecendo e não está preparada para lidar com a mínima das frustrações. Em algum ponto, acusará os pais de terem sido omissos”.

Para Vera, supervalorizar os pequenos e nivelá-los aos adultos “é o resultado de uma projeção narcísica dos pais nos filhos, que se veem nas qualidades que enxergam em suas crianças”. Marcia concorda: “Isso tudo tem a ver com a vaidade da mãe, que considera aquele filho uma parte melhorada dela própria e, por isso, a criatura mais importante do mundo”.

Os alertas do dia a dia

Muitas vezes, os pais não se dão conta de que estão tratando os filhos como reis ou rainhas, então precisam levar uns chacoalhões da realidade fora de suas casas. “Eles geralmente caem em si quando começa a sociabilização. A escola reclama porque o aluno não respeita as regras, a criança tem dificuldade para fazer amiguinhos porque as outras, com autoestima positiva, não querem ficar perto de alguém que ache que manda em todos”, aponta Vera.

“Em um futuro bem imediato, as reações dos colegas podem fazer a criança perceber que precisa mudar. Ela se comportará com eles como faz com a família e receberá a não-aceitação como resposta. Terá de lidar com isso para ter amigos”, afirma Marcia.

Mesmo assim, ela ainda correrá o risco de não conseguir rever seus comportamentos devido a uma superproteção parental, adverte Vera: “Em alguns casos dá para ela se salvar, mas muitos pais preferem culpar o ‘mundo injusto com seu filho perfeito’, o que impede que ela entenda as necessidades dos outros e reforça seus problemas de inadequação para a adaptação social”.

E como fica o casal?

Além de todas as complicações causadas pela infantolatria na vida dos filhos, ela prejudica – e muito – o casal que a promove. “Na relação saudável, o casal continua sendo o mais importante na família mesmo com a chegada da criança. Se os pais mantêm o filho no centro por mais tempo do que o necessário, acabarão se afastando”, alerta Vera.

“Some o casal. O ‘marido’ e a ‘mulher’ passam a ser o ‘pai’ e a ‘mãe’. E se em uma casa a mãe é a santa e o filho é o deus, onde fica o espaço do pai?”, questiona Marcia. “Muitos tentam entrar, reconquistar seu espaço, mas outros simplesmente caem fora”, constata.

O futuro da infantolatria

Sabendo disso tudo, os pais têm condições de se preparar para evitar os estragos na criação dos filhos. Marcia conta que percebe que as pessoas têm encontrado em sua análise uma saída para a tirania infantil.

“Não sou adivinha, mas creio que o novo arranjo familiar, em que os pais também assumem funções na criação dos filhos e as mães seguem carreiras por prazer, vá ajudar a mudar o panorama, assim como os arranjos homoparentais que começam a ser mais comuns”, diz, para complementar: “Creio que todos os comportamentos continuarão existindo, mas temos a obrigação de trabalhar para reverter esse quadro. O filho não é o centro porque quer, mas porque o adulto permite”.

Vera enxerga o futuro da situação de forma um pouco diferente. “Nossa sociedade é muito apressada e, no geral, não dá espaço para a preocupação com o outro. Isso tende a potencializar esse tipo de problema, a naturalizar para a criança o fato de que ela é o que mais importa, como aprendeu em casa com o comportamento dos pais em relação a ela”, finaliza.

Como definir serenidade – Flávio Gikovate

Como definir serenidade – Flávio Gikovate

Serenidade é um termo que pode ser definido de várias maneiras; uma delas é a capacidade de não se desesperar diante de situações adversas.

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– Conta outra vez? Quem nunca ouviu essa frase de uma criança que acabou de ouvir um conto!

– Conta outra vez? Quem nunca ouviu essa frase de uma criança que acabou de ouvir um conto!

Por Marcela Alice Bianco

– Conta outra vez! – Quero assistir de novo! – De novo! Essas frases são típicas de crianças pequenas que pedem para repetir incessantemente uma estória com as quais estão envolvidas.

Não importa se são contos de fadas antigos ou um longa-metragem de animação moderno. A questão é que, a criança se envolve intensamente com eles, os encena, aprende a cantar a música, repete, fica verdadeiramente vidrada na tela. Se sente a verdadeira Branca de Neve, a Elza de Frozen, o Max Stell e tantos outros personagens que tem encantado a criançada.

Mas, você sabe porque essas estórias precisam ser vistas e revistas pelas crianças?

Contar histórias é um costume antigo, fazendo parte do folclore e da cultura dos povos de todas as regiões do mundo. O ser humano sempre mostrou a necessidade de construir e fabular mitos e contos de fadas, dando vida ao imaginário coletivo e a questões condizentes a aspectos comuns da vida cotidiana e do psiquismo das pessoas.

Para Jakob e Wilhelm Grimm (1812),

“Os contos infantis, com suas luzes puras e suaves, fazem nascer e crescer os primeiros pensamentos, os primeiros impulsos do coração. São também contos do lar, porque neles a gente pode apreciar a poesia simples e enriquecer-se com sua verdade. E também porque eles duram no lar como herança que se transmite.”

As estórias falam de amor, amizade, inveja, ciúmes, força, medo, coragem, abandono, fraternidade, família e tantos outros temas humanos. E por isso, elas ajudam os pequenos a estruturarem suas vidas emocionais.

Suas narrativas falam dos desafios da vida! Por meio delas e de seus simbolismos, as crianças são capazes de compreender e elaborar o universo ao seu redor. Enquanto lutam com seus medos e monstros internos, elas se inspiram em personagens que se salvam de lobos, bruxas, feitiços e situações aterrorizantes.

Nas resoluções mágicas e cheias de fantasias, que dão aos contos um desfecho positivo, a criança pode perceber que os problemas e conflitos existem, mas podem ser enfrentados e solucionados, com criatividade.

Além disso, o uso das estórias pode ser uma atividade divertida em si mesma, servindo de recurso lúdico e meio de obtenção de prazer, tão necessários na infância. Elas funcionam como instrumentos de educação e promoção de saúde mental.

Por isso, você pode perceber que a cada fase da vida, a criança se atem a um conto, animação ou desenho específico e depois de superado o desafio dessa etapa ela passa a se interessar por um outro… e outro… e assim por diante!

contioutra.com - – Conta outra vez? Quem nunca ouviu essa frase de uma criança que acabou de ouvir um conto!

Desculpe, mãe

Desculpe, mãe

Por Raul Minh´alma

Quantas vezes guardei um obrigado para mim por achar que a minha mãe não fez mais do que a sua obrigação. Quantas vezes escondi um desculpe por não ter coragem de admitir que errei com ela. Quantas vezes falhei, quantas vezes fui um mau filho, quantas vezes fui injusto, quantas e quantas vezes não lhe dei o valor que ela merecia. Por ingenuidade, ignorância, por falta de noção. Eu e todos nós temos um enorme pedido de desculpas a fazer às nossas mães, e quando digo mães refiro-me a quem realmente merece este título, assim como eu e todos nós temos um gigante obrigado a dizer-lhes. O melhor pedido de desculpas e obrigado que lhes podemos dizer é mesmo ajudá-las, amá-las e acarinhá-las porque se há ser no mundo que merecia viver para sempre, é uma mãe.

Desculpe mãe quando me pediu ajuda e eu não a ajudei quando não tinha nada de importante para fazer. Desculpe ter-lhe falado alto quando a única coisa que devia ter feito era simplesmente ouvir. Desculpe ter reclamado por não me ter dado o que queria, quando eu só devia ter compreendido. Desculpe não lhe ter respondido às chamadas por me estar a divertir e esquecer-me que do outro lado estava uma mãe preocupada, por não saber nada do seu filho. Desculpe pelas vezes em que reclamei da comida que me fazia e eu não gostava, quando eu só me devia ter lembrado que a tinha feito com tanto carinho e para o meu bem. Arrependo-me de tudo isto, arrependo-me de tudo o resto, palavras não chegam, mas sem palavras não presto. Sei que me ama, não por ser um bom filho, mas simplesmente pelo facto de ser seu filho. Podia ser a pior pessoa do mundo que tenho a certeza que não me amaria menos e, por isso, maior prova da pureza do seu amor não posso eu pedir. Peço-lhe apenas que me perdoe, não por simplesmente ser seu filho, mas por compreender que não sou o melhor, que sei disso, e que tento melhorar.

Hoje dou mais valor à roupa lavada que aparecia dobrada sobre a minha cama. Hoje dou mais valor aos jantares e almoços que apareciam prontos sobre a mesa. Hoje dou mais valor às preocupações que não tinha com as contas a pagar. Pois alguém, nos bastidores da minha casa e da minha infância, fazia tudo isto, tratava de tudo isto sem pedir nada em troca: a minha mãe. Uma mulher, uma guerreira que, por detrás daquele corpo frágil e daquele sorriso que se esforça tanto para não perder, suporta uma família, uma casa, muitas vidas, sem muitas vezes se aperceber. Não encontro muitas palavras que consigam expressar o que é a minha mãe, o que é uma mãe, o que é ser mãe.

Uma mãe que deixou muitas vezes de comer para me dar. Eu era muito novo, mas lembro-me. Uma mãe que sofria em silêncio quando me via mal, mas escondia essa dor para não mostrar fraqueza. Eu estava triste, mas reparei. Uma mãe que me deu asas para que voasse, quando o que mais queria era guardar-me debaixo das suas. Uma mãe que me deu uma vida, que me educou e ensinou o melhor que sabia. Não, não é a minha mãe biológica, mas é a minha mãe verdadeira. Não foi abençoada com um ventre fértil, mas foi abençoada com um grande coração, e eu, abandonado no meio de um leque de berços, fui o escolhido para ser o seu filho. Se há pessoas com sorte, eu sou uma delas.

Eu sei que ela seria incapaz de me exigir algo de volta. Sei que não faz nada para poder receber mais tarde. E tudo o que eu posso prometer é lutar e trabalhar para que o esforço dela em mim não seja em vão. Para que um dia, quando já não aparecer roupa lavada em cima da cama, ou o almoço pronto em cima da mesa, ou quando for a minha vez de lhe dar o comer à boca ou de lhe mudar as fraldas, nada lhe falte. É o mínimo que eu posso fazer por quem me deu tudo em troca de nada. Amá-la-ei para sempre, pois a única mulher que eu posso prometer amar para sempre é a minha mãe.

Raul Minh’alma

contioutra.com - Desculpe, mãe
Na imagem- meramente ilustrativa- ator Reynaldo Gianecchini com a mãe Heloísa Helena, fotografia Erica Monteiro.

Nota da Conti outra: Agradecemos ao autor português Raul Minh´alma por nos enviar esse texto e autorizar a publicação nesse espaço.

Abrindo o “baú da vovó”: a coragem de olhar dentro de si mesmo

Abrindo o “baú da vovó”: a coragem de olhar dentro de si mesmo

Por Gustl Rosenkranz
Há poucos dias, não me sentia muito bem. Tinha um conflito com alguém de quem gosto muito e muita dificuldade de compreendê-lo. Sentia-me triste, até mesmo angustiado e também muito cansado. O conflito com essa pessoa me doía muito, doía até demais, tanto que percebi que não poderia ser algo ligado unicamente à pessoa em questão. A dor era tão forte que ficou claro que deveria ter mais alguma coisa por trás dela.

Resolvi parar, refletir, tentar entender o que estava acontecendo. Pensei, meditei e fiz, mais uma vez, uma experiência muito rica, algo muito importante, que gostaria de partilhar aqui com você: tive a coragem de olhar com carinho e lucidez para dentro de mim, fui a fundo, com os olhos e o coração abertos, até que encontrei o que chamo de “baú da vovó” – é claro que o baú é meu e não de minha avó, mas acho esse nome mais simpático que “meu baú” Tive o peito de abri-lo e vi como ele estava cheio, cheio de coisas, de experiências boas e menos boas, de dores, de medos, mas também de alegrias e esperanças. Vi lá dentro muitas recordações, de momentos lindos que vivi, de fases difíceis pelas quais passei, vi sonhos e desejos, dúvidas e certezas, inseguranças, arrependimentos do passado e muita confiança no futuro.

Comecei a mexer nas coisas, arrumando um pouco, colocando-as para o lado, procurando por aquilo que me era mais urgente naquele momento, que me permitisse entender minha dor, meu sofrimento naquele conflito, que estava me ocupando, me bloqueando, sem que eu entendesse bem o porquê. E encontrei! Encontrei coisas passadas, feridas abertas, ainda não bem cicatrizadas, decepções vividas no passado, meu próprio “fracasso” ao lidar com essas decepções, meu rancor, que não era mais atual, mas que ainda estava lá guardado, e meu medo, o medo enorme que tinha que certas coisas se repetissem. Tive receio de tocar nessas coisas, mas sabia que precisava tocá-las, segurá-las na mão, desmanchando nós, libertando o que estava preso. Confesso que o medo foi grande, mas enfrentá-lo me ajudou a crescer. Segurei tudo aquilo na mão, senti a dor de tudo que segurava, sofri calado por um momento, aceitando com serenidade aquele instante de profunda reflexão. Mas depois, já mais tranquilo, continuei mexendo no baú, olhando o que ainda estava lá, e encontrei muito mais coisas. Bem ali, ao lado daquela dor que eu até agora tinha trancafiado, isolando-a aparentemente de mim, estavam também coisas boas. Continuei fuçando e olhando os “cacarecos” de minha vida, até que segurei algo que me fez muito bem: segurei minha própria força. Sim, percebi que estava triste, que algo me fazia sofrer, mas tinha em mãos também a força que precisava para superar tudo aquilo. Ao segurar essa força, ao senti-la entre meus dedos, perdi o medo de tudo que tinha visto anteriormente, entendi que era necessário ver com clareza o que estava ali dentro e compreendi também que tudo estava bem, pois eu cresci e amadureci, tendo hoje força suficiente para enfrentar e resolver aquelas coisas que guardei no passado, quando estava fraco e ainda sem a maturidade necessária para solucioná-las.

Vejo muita gente buscando sua paz interior e procurando sabedoria em livros e textos de autoajuda. Vejo uma enorme ansiedade nas pessoas, que desejam simplesmente encontrar essa paz e ser felizes. Nesse momento de reflexão, ficou claro para mim mais uma vez que carregamos conosco as respostas que precisamos. Penso que faz pouco sentido buscar essas respostas fora de nós. Livros, artigos ou mesmo outras pessoas podem ajudar alguém, claro, mas a decisão final de permitir o autoconhecimento é sempre da própria pessoa. Sim, textos de autoajuda têm sua validade (se não pensasse assim, não os escreveria!), mas esses textos e a ajuda de alguém de fora só podem servir de impulso, como incentivo ou mesmo “um pontapé no traseiro”.

Assim, lhe peço: pare de vez em quando, principalmente nos momentos difíceis, e tenha a coragem de olhar bem lá dentro de você. Encontre seu baú, abra-o, olhe o que está dentro e veja o tamanho da riqueza que ele abriga: recordações, emoções, sabedorias, experiências de vida… Mesmo que isso lhe amedronte, não desista. Mexa nas coisas, segure-as na mão, sinta-as e busque as respostas necessárias para o momento. Não pense que isso será fácil, pois é preciso coragem. Mesmo que você não tenha consciência disso, seu medo é grande, já que, no fundo, você sabe que escondeu certas coisas ali dentro por não ter tido coragem ou condições de enfrentá-las. Mas encare esse medo de frente e abra seu baú. Talvez você também descubra, como eu, que seu sofrimento atual pode ser um reflexo de algo do passado, que você guardou por não dar conta de resolver na época. E é possível que você também perceba que tem hoje força e maturidade suficientes para tirar algo do baú para finalmente resolver, desatando certos nós, diminuindo a angústia e a tristeza, ganhando espaço para guardar outras coisas, talvez para guardar mais coisas boas.

De minha parte, espero ter a sabedoria de olhar mais vezes para o que está no meu “baú da vovó”, pois sei que ainda há muita coisa interessante lá dentro 🙂

5 coisas para nunca dizer a uma pessoa com a doença de Alzheimer

5 coisas para nunca dizer a uma pessoa com a doença de Alzheimer

Por Marie Marley

Ontem à tarde, eu entrei no quarto espaçoso pertencente à Maria, uma mulher com demência que recebe poucas visitas e a quem me ofereci para passar um pouco de tempo a cada semana. Eu a cumprimentei, elogiei seu lindo suéter azul-turquesa e apertei sua mão.

Em seguida, sentei-me em uma pequena mesa que estava transbordando de livros, fotografias, jornais e outros itens que ela gosta de manter sempre à mão e peguei uma pequena foto emoldurada de Maria com o marido e seus três filhos – dois filhos e uma filha.

“Conte-me sobre a sua filha,” eu disse, usando uma questão em aberto, porque eles não têm respostas certas ou erradas. Essa é uma dica que aprendi com a abordagem The Best Friends Approach to Alzheimer’s Care, de Virginia Bell e David Troxell.

“Oh, seu nome é Connie”, ela me disse. “Ela tem quatro filhos – dois meninos e duas meninas.”
Ela continuou, me dando vários detalhes sobre Connie e sua família. Eu, então, peguei uma fotografia de Maria e de sua irmã gêmea, Bernice, e ela me contou sobre como elas tiveram aulas de piano juntas quando eram crianças. Depois de alguns minutos, eu lhe perguntei se sua filha já tocara algum instrumento musical.

“Eu não tenho uma filha”, disse ela com naturalidade.

“Oh,” eu respondi, pegando a foto de família novamente e a segurando para ela ver. “Você acabou de me dizer que você tem uma filha. Aqui está ela.”

O rosto de Mary se abateu e ela comentou constrangida: “Eu acho que eu tenho uma filha.”

Eu imediatamente me senti mal pelo constrangimento que lhe causei e fiquei chateada comigo mesma por ter apontado o seu erro. Eu percebi que tinha quebrado uma das regras fundamentais para interagir com uma pessoa que sofre de demência.

Quando nos relacionamos com a uma pessoa que sofre com a doença de Alzheimer, existem muitas orientações a seguir e que podem melhorar consideravelmente a comunicação. Vou discutir cinco das mais básicas aqui: 1) Não lhes dizer que eles estão errados sobre algo; 2) Não discutir com eles; 3) Não perguntar se eles se lembram de alguma coisa; 4) não lhes lembrar que o seu cônjuge, pai ou outro ente querido está morto; e 5) Não abordar tópicos que possam perturbá-los.

Não lhes diga que eles estão errados sobre algo: Para que eles mantenham seu humor mais estável e se sintam bem, é melhor não contradizê-los ou corrigi-los. Não existe nenhuma razão suficientemente boa para fazer isso. Se eles estiverem em um momento mais lúcido, vamos causar um constrangimento desnecessário e, se não estiverem, eles também poderão se sentir mal, pois, perceberão a confusão e o desentendimento, e também ficarão constrangidos e/ou nervosos.

Não discuta: nunca é uma boa ideia discutir com uma pessoa que sofre de demência. Primeiro de tudo, você não pode ganhar. E segundo, as duas pessoas ficarão irritadas, você e o doente. Eu aprendi há muito tempo, quando cuidava do meu amado marido, Ed, que a melhor coisa a fazer é simplesmente mudar de assunto – de preferência para algo agradável que prenda imediatamente a sua atenção. Dessa forma, a pessoa provavelmente se esquecerá do desacordo, e o dia ficará mais leve para todos.

Não pergunte se a pessoa se lembra de algo específico: Ao falar com uma pessoa que tem a doença de Alzheimer, é tão tentador perguntar se elas se lembram de alguma pessoa ou evento. “O que você almoçou?” “O que você fez hoje de manhã?”, “Este é David. Lembra-se dele?”, ” Você se lembra de que comemos doces a última vez que estive aqui?”. É claro que eles não se lembram. Caso contrário, eles não teriam o diagnóstico de demência. Isso pode constrangê-los ou frustrá-los. É melhor dizer: “Eu me lembro que comemos doces a última vez que estive aqui.  Foi delicioso.” Ou seja, faça da sua pergunta um comentário.

Não lembre a pessoa que um ente querido dela está morto: Não é incomum para as pessoas com demência acreditem que seu cônjuge falecido, pai ou outro ente querido ainda está vivo. Eles podem ficam confusos ou se sentirem mal, porque essas pessoas não vêm visitá-los. Se você informá-los  que a pessoa está morta, eles podem não acreditar e ficarem muito nervosos e confusos. Além do mais, eles estão tão propensos a esquecer tão cedo o que você disse e voltar a acreditar que sua amada ainda está viva que todo o desgaste se torna um sofrimento desnecessário. Uma exceção a essa orientação é se eles perguntarem se a pessoa morreu. Nesse caso é aconselhável lhes dar uma resposta honesta, mesmo que eles se esqueçam depois.

Não aborde temas que possam perturbá-los: Não há nenhuma razão para trazer temas que você sabe que podem perturbar o seu ente querido.

Marie Marley é uma premiada autora de livros sobre Alzheimer como Come Back Early Today: A Memoir of Love, Alzheimer’s and Joy. Conheça seu website, ComeBackEarlyToday.com.

Traduzido e adaptado exclusivamente para o Conti outra por Josie Conti.

Uso de tecnologia por crianças: benefício ou perda da infância?

Uso de tecnologia por crianças: benefício ou perda da infância?

Por Jocelaine Santos 

Uma pesquisa realizada pela AVG Technologies com famílias de todo o mundo mostrou que 66% das crianças entre 3 e 5 anos de idade conseguia usar jogos de computador, mas apenas 14% era capaz de amarrar os sapatos sozinha.

Num mundo cada vez mais marcado pela tecnologia, é fácil encontrar crianças que ainda não sabem nem amarrar os sapatos navegando na internet e usando smartphones ou tablets. Mas será que essa inserção tão precoce no mundo da tecnologia é benéfica para os pequenos?

Uma pesquisa realizada pela AVG Technologies no ano passado com famílias de todo o mundo mostrou que 66% das crianças entre 3 e 5 anos de idade conseguia usar jogos de computador, 47% sabia como usar um smartphone, mas apenas 14% era capaz de amarrar os sapatos sozinha. No caso das crianças brasileiras, o levantamento apontou que 97% das crianças entre 6 e 9 usam a internet e 54% têm perfil no Facebook.

Embora ainda não haja consenso entre os especialistas, muitos apontam consequências sombrias do contato excessivo das crianças com as novas tecnologias. A terapeuta canadense Cris Rowan, por exemplo, defende que o uso de tecnologia por menores de 12 anos é prejudicial ao desenvolvimento e aprendizado infantis.

Segundo ela, a superexposição da criança a celulares, internet, iPad e televisão está relacionada ao déficit de atenção, atrasos cognitivos, dificuldades de aprendizagem, impulsividade e problemas em lidar com sentimentos como a raiva. Outros problemas comuns seriam a obesidade (porque a criança passa a fazer menos atividade física), privação de sono (quando as crianças usam as tecnologias dentro do quarto) e o risco de dependência por tecnologia.

Por causa desses riscos, no ano passado a Academia Americana de Pediatria e a Sociedade Canadense de Pediatria recomendaram limites para a exposição das crianças a todo tipo de mídia (televisão, games, internet, smartphones etc.). Para as entidades, o ideal é que apenas depois dos 2 anos de idade as crianças comecem a ter contato com esses aparelhos e por tempo limitado. Até os 5 anos, as crianças só deveriam ficar no máximo 1 hora diante das telas. O tempo aumenta para 2 horas para crianças de 6 a 12 anos e para 3 horas a partir dos 13 anos.

Mas, mesmo com tantas recomendações, muitos pais parecem não se preocupar com o assunto. Sob a justificativa de que hoje é importante saber trabalhar com as novas tecnologias desde cedo ou simplesmente para evitar aborrecimentos, os pais acabam deixando as crianças livres para usar os equipamentos da forma como quiserem, o que pode causar problemas não só aos pequenos, mas para toda a família.

“Nós precisamos encontrar uma maneira de educar os pais de hoje, e também os futuros pais, sobre prejuízos e benefícios das mídias eletrônicas e ajudá-los a fazer escolhas positivas para seus filhos”, alerta Susan Linn, escritora e cofundadora da organização americana Coalizão pelo Fim da Exploração Comercial Infantil.

Imposição de regras não funciona se os próprios pais exageram
Embora pareça difícil encontrar um ponto de equilíbrio entre o estilo de vida atual – cada vez mais marcado pelo uso de novas tecnologias – e a regulação do uso de mídias eletrônicas, os pais devem estabelecer regras e trabalhar para que os pequenos não acabem exagerando na hora de usar os dispositivos eletrônicos.

Para isso, a primeira coisa que os pais devem fazer é se perguntar se eles mesmos não estão usando smartphones, tablets e computadores demais. Não adianta nada impor regras aos filhos e dar mau exemplo. Outro ponto é não estimular antes do tempo as crianças a manipulares os equipamentos. O melhor é deixar que elas mesmas demonstrem interesse e só depois disso os pais podem mostrar a elas como usar os aparelhos de forma correta.

Manter o diálogo e investir em atividades familiares é outra forma de ajudar os pequenos a não se tornarem dependentes da tecnologia. Hoje as crianças ficam muito tempo diante das telas, e deixam de se dedicar a atividades importantes como esportes, atividades culturais ou simplesmente uma conversa em família para ficar horas e hora assistindo à televisão ou jogando no computador.

Os pais precisam também ficar atentos à questão da segurança dos pequenos ao usar dispositivos que permitem o acesso à internet. Infelizmente, são comuns os casos de crianças e adolescentes que acabam sendo vítimas de pedófilos através da rede.

Para diminuir os riscos de que isso aconteça, é importante orientar as crianças a usar de forma adequada a internet, evitando, por exemplo, conversas em chats com desconhecidos e divulgação de dados pessoais.

A instalação de ferramentas de monitoramento ou bloqueio de alguns conteúdos da internet é outra forma de proteger os pequenos. Manter o computador numa área comum da casa com a tela sempre visível e limitar o tempo de uso do equipamento também pode ajudar.

Mas o mais importante é manter diálogo com a criança, mostrando-se disposto a esclarecer dúvidas e explicar os motivos pelos quais é preciso usar com cautela as novas tecnologias.

Entidade norte-americana recomenda smartphone só depois dos 13
Se há alguns anos as crianças sonhavam em ganhar bicicletas ou vídeo games, hoje o objeto de desejo são os smartphones, que, além de servirem como celular, oferecem acesso a internet, jogos, troca de mensagens e muitas outras funcionalidades. Mas por mais que os pequenos insistam, nem sempre é recomendável ceder.

A Academia Americana de Pediatria e a Sociedade Canadense de Pediatria recomendam que apenas a partir dos 13 anos as crianças tenham acesso a dispositivos móveis, como tablets e smartphones. E, mesmo assim, devem ser orientadas a usar de forma adequada o aparelho. Desligá-lo durante as aulas ou refeições, por exemplo, é uma prática que deveria ser universal, mas raramente é cumprida pelos adolescentes.

Os pais precisam avaliar se há necessidade de a criança ter um smartphone. Para crianças que começam a sair de casa sozinhas, o smartphone se torna uma ferramenta de comunicação importante, inclusive para os pais. Por outro lado, não parece razoável que crianças com 5 anos de idade já tenham o aparelho.

Fonte: Sempre Família

Confissões de uma sociopata

Confissões de uma sociopata

Diagnosticada como sociopata, M.E Thomas é autora do livro Confessions of a Sociopath – A Life Spent Hiding in Plain Sight (Confissões de uma Sociopata – Uma Vida Vivida se Escondendo Bem à Vista, ainda sem edição no Brasil), lançado em maio nos EUA. No livro, ela, professora de direito e Catequista, conta como manipula e engana as pessoas ao seu redor, usando seu charme e a sua crueldade. Vale conferir:

“Talvez eu tenha um distúrbio, mas não sou louca. Num mundo povoado por seres melancólicos, negativos e medíocres, as pessoas são incrivelmente atraídas pelo meu excepcionalismo.

Esta é minha história: certa vez, em Washington DC, um funcionário do metrô tentou me repreender por eu ter usado uma escada rolante interditada. “Você não viu a placa amarela?”, disse. Respondi: “Placa amarela?”. “Eu acabei de colocá-la, e você deveria ter desviado”, retrucou. Seguiu-se silêncio, meu rosto estava sem expressão. O homem continuou: “Isso é invasão! É errado invadir! A escada rolante está fechada, você infringiu a lei!”. Continuei olhando para ele em silêncio. Visivelmente abalado por minha falta de reação, finalizou a conversa com um: “Da próxima vez, não use a escada rolante interditada, tudo bem?”.

Não, não estava tudo bem. Fiquei parada ali por um momento, deixando minha raiva chegar até a parte do cérebro que toma decisões e, de repente, me acalmei e me concentrei. Pisquei meus olhos, ajeitei a mandíbula e comecei a seguir o funcionário do metrô. A adrenalina corria pelo meu corpo, na minha boca, um gosto metálico. Minha esperança era que ele entrasse num corredor deserto onde eu o encontraria sozinho. Uma imagem invadiu minha mente: minhas mãos segurando o pescoço dele, meus polegares cravados em sua garganta, a vida dele escorregando pelas minhas mãos. Estava focada. Era a coisa certa a se fazer. Só sei que caí numa fantasia megalomaníaca. E, no final, o perdi de vista.

LONGE DA CULPA

Não fui abusada sexualmente na infância, não sou assassina nem criminosa. Nunca fui encarcerada nos muros de uma prisão, prefiro os cobertos de plantas. Sou uma advogada de sucesso, professora de direito e uma jovem acadêmica respeitada. Sempre escrevo artigos para revistas da área e apresento novas teorias legais. Doo 10% da minha renda para caridade e sou professora de catecismo aos domingos na igreja mórmon. Tenho um círculo de parentes e amigos íntimos que eu amo e me amam. Você se identifica com essa descrição? Estimativas recentes mostram que uma em cada 25 pessoas é sociopata. Mas você não é um assassino em série e nunca foi preso? Pois é, a maioria de nós tem esse perfil. Somente 20% da população carcerária é sociopata e, no entanto, somos responsáveis por cerca de metade dos crimes hediondos cometidos. A maioria de nós vive em liberdade e no anonimato, tem empregos, é casada e tem filhos.

Você ia gostar de mim se me conhecesse. Tenho um sorriso comum entre estrelas de TV e raro na vida real: brilhante, perfeito e cativante. Sou o tipo de companhia ideal para você levar ao casamento da sua ex — divertida e animada. Por ser bem-sucedida, seus pais me adorariam caso você me levasse à sua casa.

Talvez o aspecto mais evidente da minha autoconfiança seja a maneira com que mantenho contato visual, o que algumas pessoas chamam de “olhar de predador”. Sociopatas não se abalam ao serem observados ininterruptamente. Por não desviarmos o olhar educadamente, somos percebidos como agressivos ou sedutores. As pessoas ficam meio perturbadas, mas de uma maneira emocionante, que imita o despertar de uma paixão.

Minha infância foi de uma filha do meio, com um pai violento e uma mãe indiferente, e muitas vezes até histérica. Eu desprezava meu pai. Não podíamos confiar nele para sustentar a família — diversas vezes chegávamos em casa e encontrávamos a energia cortada porque a conta não havia sido paga. Ele gastava milhares de dólares em hobbies caros, enquanto colhíamos laranjas do quintal para comer de almoço na escola. O primeiro sonho recorrente do qual me recordo era eu matando meu pai. Havia algo de emocionante naquela violência; eu quebrando uma porta na cabeça dele sem parar, sorrindo, enquanto ele caía no chão, imóvel.

Eu fazia questão de não recuar em nossos confrontos. Certa vez, na adolescência, discutimos sobre a mensagem de um filme que havíamos assistido. Eu disse: “Você pode acreditar no que quiser” e saí. Entrei no banheiro, que ficava no alto da escada, e tranquei a porta. Sabia que ele odiava aquela frase (minha mãe já havia dito isso antes) e o fato de eu repeti-la representava uma nova geração de mulheres em sua casa que se recusava a respeitá-lo. Também sabia que ele detestava portas trancadas.

Sabia que tudo isso iria afetá-lo, e era o que eu queria. “Abra essa porta! Abra essa porta!” Ele fez um rombo na porta e eu pude ver que sua mão estava inchada e ensanguentada. Eu não estava preocupada com a mão dele, e também não estava feliz por ele estar machucado, pois sabia que o fato de ser arrebatado por tanta paixão lhe causava satisfação e que ele podia ignorar a dor e o sofrimento. Ele continuou abrindo aquele buraco na porta até que fosse grande o bastante para que ele pudesse enfiar seu rosto: ele sorria tão largamente que até seus dentes estavam à mostra.

Meus pais sempre ignoraram minhas tentativas explícitas e estranhas de manipular, enganar e induzir os outros. Não perceberam que eu me relacionava com coleguinhas de infância sem criar vínculos, tratando-os como se fossem objetos. Eu mentia o tempo todo e roubava coisas dos outros, mas, na maioria das vezes, enganava as crianças para que me dessem algumas coisas delas. Eu quebrava coisas, queimava coisas e machucava os outros.

Mas fiz o necessário para cair nas graças de todos e, assim, conseguir o que queria: comida quando a despensa da minha casa estava vazia, caronas quando meus pais estavam ausentes, ser convidada para festas, e o que eu mais ansiava: suscitar medo. Sabia que estava no comando.

 

FALTA DE AMOR À VIDA?

Agressão, tomada de risco e falta de preocupação com a própria saúde ou com a dos outros são traços da sociopatia. Quando eu tinha oito anos quase me afoguei no mar. Minha mãe me disse que quando o salva-vidas me tirou da água e me ressuscitou, minha primeira reação foi tentar dar uma gargalhada. Eu aprendi que a morte poderia vir a qualquer momento, mas nunca tive medo.

Antes do meu aniversário de 16 anos, fiquei muito doente. Geralmente não dizia nada para ninguém, porém, naquele dia, falei pra minha mãe que estava com pontadas abaixo do esterno. Após expressar sua exasperação costumeira, ela me deu um remédio natural e me mandou fazer repouso. Mesmo doente, fui para a escola.

Todos os dias meus pais me davam um remédio diferente; eu carregava uma sacolinha com antiácido, antitérmico e homeopatias.Mas ainda estava com dor. Toda a energia que usava para me integrar à sociedade e encantar os outros foi redirecionada para controlá-la. Parei de sorrir e cumprimentar as pessoas. Não filtrava meus pensamentos secretos. Dizia às minhas amigas como elas eram feias e o quanto mereciam tudo aquilo de mau que lhes acontecia. Sem energia para dosar, assumi minha maldade.

Minha dor no abdômen se transferiu para as costas. Meu pai examinou meu tronco e viu que algo estava errado. “Vamos ao médico amanhã”, disse. No consultório, o doutor falava num tom de indignação. Minha mãe ficou quieta, num estado semicatatônico, assim como ficava quando meu pai socava as coisas em casa. O médico perguntou: “Se você estava sentindo dor, o que fez nos últimos 10 dias?”. E, então, desmaiei. Quando recuperei os sentidos, escutei gritos e meu pai tentando convencer o médico a não chamar a ambulância. Vi o pânico estampado nos olhos dele. Fui para uma sala de cirurgia e, quando acordei, vi meu pai de pé ao meu lado. Meu apêndice tinha sido perfurado, toxinas vazaram em meu intestino, tive uma infecção grave e os músculos das costas gangrenaram. “Você poderia ter morrido.” Acho que minha sociopatia foi desencadeada porque nunca aprendi a confiar em ninguém.

MANIPULADORA PROFISSIONAL

Meus traços sociopatas fazem de mim uma ótima advogada de tribunal — a certa altura, trabalhei como procuradora no departamento de delitos leves do Ministério Público. Mantenho a calma sob pressão e não sinto culpa nem complacência, o que é muito útil num ramo sujo como este.

É comum procuradores de delitos leves entrarem num julgamento sem nunca ter visto o caso. A única coisa que se pode fazer é blefar e tentar enrolar até o final. Nós, sociopatas, não somos afetados pelo medo. Além disso, a natureza do crime não é uma preocupação moral, estou interessada apenas em ganhar aquele jogo.

Trabalhei também numa firma de advocacia onde era subordinada a uma sócia-sênior chamada Jane. Em escritórios de direito, você deve tratar os sócios-seniores como uma autoridade, e Jane levava essa hierarquia a sério. Estava claro que ela não gozava desse tipo de poder em nenhuma outra esfera social. Sua pele pálida e manchada por causa da idade, dieta inadequada e higiene questionável eram evidência de uma vida inteira levada fora da elite social. Jane era uma mistura de poder e inseguranças.

Um dia, entramos juntas no elevador, onde já estavam dois homens altos e bonitões. Dava para perceber que eles eram do tipo que ganhava milhões de dólares em bônus e provavelmente vinha trabalhar num dos muitos Maseratis parados no estacionamento. Os dois conversavam sobre uma sinfonia a que haviam assistido na noite anterior — eu também havia assistido, apesar de nunca fazer este tipo de programa.

Casualmente, então, perguntei a eles sobre a sinfonia. Eles se animaram. “Que bom que encontramos você! Talvez possa resolver um conflito. Meu amigo acha que a performance de ontem à noite era o segundo concerto de Rachmaninoff, mas eu acho que era o terceiro”, disse. No que afirmei: “Era o segundo”. Mal importava qual era a resposta certa. Os dois homens me agradeceram e saíram do elevador, enquanto Jane e eu seguimos num silêncio que fez com que ela contemplasse as dimensões da minha superioridade social e intelectual.

Quando chegamos ao escritório, ela estava tensa e não conversamos sobre o projeto de trabalho. Em vez disso, falamos sobre suas escolhas pessoais, suas preocupações e inseguranças em relação ao emprego e a seu corpo, e sua atração por mulheres — apesar de estar noiva de um homem.

Depois daquele episódio, sabia que quando ela me visse seu coração iria disparar. Ela se preocuparia com os pontos vulneráveis que havia exposto. Sei que assombrei seus sonhos por um bom tempo. O poder é uma recompensa em si mesmo, mas graças a essa dinâmica particular que estabeleci com ela acabei conseguindo três meses de férias remuneradas devido a uma suposta ameaça de câncer e um procedimento ambulatorial.

DESTRUIDORA DE CORAÇÕES

Gosto de imaginar que “arruinei a vida de alguém” ou seduzi uma pessoa a ponto de ela ser irreparavelmente minha. Namorei Cass por um tempo, mas inevitavelmente perdi o interesse. Ele, não. Foi quando encontrei outras utilidades para Cass. Certa noite, fomos a uma festa onde conhecemos Lucy. Ela se destacava sobretudo por sua semelhança comigo, o que me fez querer destruí-la. Fiz meus cálculos — Lucy gosta do Cass e Cass gosta de mim; eu tinha um poder inesperado sobre Lucy. Sob meu comando, Cass começou a seguir Lucy. Descobri tudo sobre ela através de seus melhores amigos: Lucy e eu tínhamos nascido no mesmo dia, com apenas algumas horas de diferença, tínhamos os mesmos gostos, as mesmas implicâncias e o mesmo estilo de se comunicar.

Durante o tempo em que Lucy namorou Cass, fiz questão de mantê-lo ao meu lado como um brinquedo: eu o convencia a marcar encontros com ela e depois cancelar tudo para ficar comigo. Ele sabia que estava sendo usado por mim para atingi-la. Quando começou a sentir remorso, terminei tudo com ele. Esperei até que se dedicasse exclusivamente a Lucy, que ela ficasse esperançosa. E, então, liguei para ele novamente. Disse que éramos feitos um para o outro.

Lucy piorou as coisas para o lado dela — sua vida pessoal não era segredo para ninguém, principalmente para pessoas como eu, que usava isso contra ela. O que mais me interessava em tudo isso era o carinho que eu sentia por Lucy. Eu quase queria ser amiga dela de verdade. Só de pensar nesse assunto começo a salivar. Mas quando ela se tornou uma sobremesa muito enjoativa, comecei a evitá-la. Fiz com que Cass terminasse com ela de uma vez por todas.

Mas o que realmente fiz para Lucy? Nada. Ela agarrou um cara e o beijou. Ela gostava desse cara. Saía com ele duas vezes por semana, às vezes com amiga estranha dele junto — eu. Depois de um tempo, não deu mais certo. Fim. Eu não estraguei nada em sua vida. Agora ela é casada e tem um bom emprego, pronto.

A pior coisa que fiz foi incentivar um romance que ela acreditava ser sincero, mas que eu arranjei (da melhor forma possível) para ferir seus sentimentos. Sei que meu coração é mais preto e frio que o da maioria das pessoas. Talvez por isso seja tão tentador partir o delas.

O QUE É O MAL, AFINAL?

A igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias é o sonho de todo o sociopata. Os mórmons acreditam que todos podem ser iguais a Deus — inclusive eu acredito nisso. Todos os seres humanos podem ser salvos; o que importa são minhas ações e não meus pensamentos cruéis, nem minhas motivações nefastas.

Quando frequentei a escola Brigham Young, onde os alunos eram mais confiáveis do que os mórmons comuns, eu tinha inúmeras oportunidades de enganar as pessoas. Eu roubava coisas dos “achados e perdidos”. Fingia que tinha perdido um livro e depois o vendia, por exemplo. Ou pegava uma bicicleta que estava encostada no mesmo lugar há dias. Afinal, achado não é roubado.

Remorso é um sentimento que me é alheio, tenho uma queda por enganar pessoas. Geralmente não me prendo a sentimentos irracionais e confusos. Sou estratégica e esperta, inteligente e confiante. Mas eu sou uma pessoa de bem: comprei uma casa para uma amiga, dei US$ 10 mil para meu irmão e sou considerada uma professora muito útil. Eu amo meus amigos e minha família. Mesmo assim, não vivo de acordo com as regras que a maioria das pessoas de bem vive.

Não quero dar a impressão de que você não precisa se preocupar com os sociopatas. Só porque eu sou funcional e não-violenta não significa que não existam os estúpidos, desinibidos e perigosos soltos por aí. Eu mesma fujo de indivíduos assim. Afinal, não existe um pacto de não-agressão entre nós, sociopatas.

Apesar de ter imaginado fazê-lo diversas vezes, nunca passei uma faca no pescoço de ninguém. No entanto, me pergunto se caso eu tivesse crescido num lar mais abusivo se teria sangue em minhas mãos. Pessoas que cometem crimes hediondos não são mais estragadas que os outros, mas parecem ter menos a perder. É fácil imaginar uma versão de mim mesma com 16 anos algemada e vestindo uniforme prisional laranja. Se eu não tivesse alguém para amar ou nada para conquistar, talvez. É difícil dizer.”

COMO RECONHECER UM SOCIOPATA

No livro A Máscara da Sanidade, de 1941, o psiquiatra americano Hervey Cleckley destrinchou as principais características de um sociopata. veja algumas:

• Charme e inteligência
• Ausência de ilusões e outros tipos de pensamentos irracionais
• Falta de senso de realidade
• Não confiável
• Tende a mentir e ser pouco sincero
• Ausência de culpa e vergonha
• Julgamento fraco e inabilidade de aprender por experiência
• Egocentria patológica e incapacidade de amar
• Pobreza nas reações afetivas
• Vida sexual impessoal, trivial e sem integração
• Fracasso em seguir um plano de vida

Originalmente publicado em: para Psychology Today
Fonte:Revista Galileu

‘Os demônios do Demônio’, por Eduardo Galeano

‘Os demônios do Demônio’, por Eduardo Galeano

Muçulmanos, judeus, mulheres, homossexuais, índios, negros, estrangeiros e pobres: em ensaio de 2005, escritor discorre sobre as diferentes faces do Demônio, descritas pela antítese de cada um desses ‘anjos do mal’

Publicado originalmente no site da revista Le Monde Diplomatique, Opera Mundi e reproduzido aqui da versão Geledes.

Esta é uma modesta contribuição à guerra do Bem contra o Mal. Entre os diversos semblantes do Príncipe das Trevas, só estão os demônios que existem há muito, muito tempo, e que há séculos ou milênios continuam ativos no mundo.

O Demônio é mulçumano

A experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os inimigos
Dante já sabia que Maomé era terrorista. Por alguma razão o colocou em um dos círculos do inferno, condenado à pena de prisão perpétua. “O vi partido”, celebrou o poeta em A Divina Comédia , “desde a barba até a parte inferior do ventre…”. Mais de um Papa já tinham comprovado que as hordas muçulmanas, que atormentavam a Cristandade, não eram formadas por seres de carne e osso, eram um grande exército de demônios que aumentava quanto mais sofria com os golpes das lanças, das espadas e dos arcabuzes.
Hoje em dia, os mísseis fabricam muito mais inimigos que os inimigos das entranhas. Porém, que seria de Deus, afinal de contas, sem inimigos? O medo impera, as guerras existem para desbaratar o medo. A experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os inimigos. Na Idade Média, cada vez que o trono tremia, por bancarrota ou fúria popular, os reis cristãos denunciavam o perigo muçulmano, desatavam o pânico, lançavam uma nova Cruzada, o santo remédio. Agora, há pouco tempo, George W. Bush foi reeleito presidente do planeta graças o oportuno aparecimento de Bin Laden, o grande Satã do reino, que as vésperas das eleições anunciou, pela televisão, que ia comer todas as crianças.
Lá pelo ano de 1564, o especialista em demonologia Johann Wier teria contado os demônios que estavam trabalhando na terra, a tempo integral, a favor da perdição das almas cristãs. Eram sete milhões quatrocentos e nove mil cento e vinte sete, que agiam divididos em setenta e nove legiões.
Muita água fervente passou, depois daquele censo, debaixo das pontes do inferno. Quantos são, hoje em dia, os enviados do reino das trevas? As artes do teatro dificultam as contas. Estes falsos continuam usando turbantes, para ocultar seus cornos, e longas túnicas tampam os rabos do dragão, suas asas de morcego e a bomba que carregam debaixo do braço.

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O Demônio é judeu

A colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação
Hitler não inventou nada. Há mil anos, os judeus são os imperdoáveis assassinos de Jesus e os culpados de todas as culpas. Como? Jesus era judeu? E judeus eram também os doze apóstolos e os quatro evangelistas? O que você disse? Não pode ser. As verdades reveladas estão além das dúvidas e não exigem mais evidências do que a própria existência. As coisas são como se diz que são, e se diz porque se sabe: nas sinagogas o Demônio dá aulas, e os judeus desde há muito se dedicam a profanar hóstias e a envenenar águas bentas. Por causa deles aconteceram bancarrotas econômicas, crises financeiras e derrotas dos militares; são eles que trouxeram a febre amarela e a peste negra e todas as outras pestes.
A Inglaterra os expulsou, nenhum escapou, no ano de 1290, porém isso não impediu Chaucer, Marlowe e Shakespeare, que nunca tinham visto um judeu, fossem obedientes à caricatura tradicional e reproduzissem personagens judeus segundo o modelo satânico de parasita sanguessuga e o avaro usurário. Acusados de servir ao Maligno, estes malditos andaram durante séculos de expulsão em expulsão e de matança em matança. Depois da Inglaterra foram sucessivamente expulsos da França, Áustria, Espanha, Portugal e de numerosas cidades suíças, alemães e italianos. Os reis católicos Izabel e Fernando expulsaram os judeus e também os muçulmanos porque sujavam o sangue. Os judeus haviam vivido na Espanha durante treze séculos. Levaram com eles as chaves de suas casas. Há quem as guardem ainda. Nunca mais voltaram.
A colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação. A caça aos judeus tem sido sempre um esporte europeu. Agora, os palestinos, que jamais a praticaram, pagam a culpa.

O Demônio é mulher

“Toda a bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”

O livro Malleus Maleficarum, também chamado O martelo das bruxas, recomenda o mais ímpio exorcismo contra o demônio que tem seios e cabelos compridos.
Dois inquisidores alemães, Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, o escreveram, a pedido do Papa Inocêncio VIII, para enfrentar as conspirações demoníacas contra a Cristandade. Foi publicado pela primeira vez em 1486 e até o final do século XVIII foi o fundamento jurídico e teológico dos tribunais da Inquisição em vários países.
Os autores afirmavam que as bruxas, do harém de Satanás, representavam as mulheres em estado natural: “Toda bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”. E demonstravam que “esses seres de aspecto belo, cujo contato é fétido e a companhia mortal” encantavam os homens e os atraíam com silvos de serpentes, rabos de escorpião, para aniquilá-los. Os autores advertiam aos incautos: “A mulher é mais amarga que a morte. É uma armadilha. Seu coração, uma rede; e correias, seus braços”.
Esse tratado de criminologia, que enviou milhares de mulheres às fogueiras da Inquisição, aconselhava que todas as suspeitas de bruxaria fossem submetidas à tortura. Se confessassem, mereceriam o fogo. Se não confessassem também, porque só uma bruxa, fortalecida por seu amante, o Demônio, nos conciliábulos das bruxas, poderia resistir a semelhante suplício sem soltar a língua.
O papa Honório III sentenciara que o sacerdócio era coisa de machos: – As mulheres não devem falar. Seus lábios têm o estigma de Eva, que provocou a perdição dos homens.
Oito séculos depois, a Igreja Católica continua negando o púlpito às filhas de Eva.
O mesmo pânico faz com que os mulçumanos fundamentalistas as mutilem o sexo e lhes cubram a cara.
E o alívio pelo perigo conjurado leva os judeus mais ortodoxos a começar o dia sussurrando: “Graças, Senhor, por não me ter feito mulher”.

O Demônio é homossexual

Em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo
Desde 1446, os homossexuais iam para a fogueira em Portugal. Desde 1497 eram queimados vivos na Espanha. O fogo era o destino merecido pelos filhos do inferno, que surgiam do fogo.
Na América, ao contrário, os conquistadores preferiam jogá-los aos cachorros. Vasco Núnez de Balboa, que entregou muitos deles para a refeição dos cães, acreditava que a homossexualidade era contagiosa. Cinco séculos depois, ouvi o Arcebispo de Montevidéu dizer o mesmo. Quando os conquistadores apontaram no horizonte, só os astecas e os incas, em seus impérios teocráticos, castigavam a homossexualidade com a pena de morte. Os outros americanos a toleravam e em alguns lugares a celebravam, sem proibição ou castigo.
Essa provocação insuportável devia desencadear a cólera divina. Do ponto de vista dos invasores, a varíola, o sarampo e a gripe, pestes desconhecidas que matavam índios como moscas, não vinham da Europa, mas sim do Céu. Assim, Deus castigava a libertinagem dos índios que praticavam a anormalidade com toda a naturalidade.
Nem na Europa, nem na América, nem em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo. Nada sabemos dos longínquos tempos e pouco ou nada sabemos dos tempos de agora.
Na Alemanha nazista, estes “degenerados culpados de aberrante delito contra a natureza” eram obrigados a exibir a estrela amarela. Quantos foram para os campos de concentração? Quantos lá morreram? Dez mil? Cinqüenta mil? Nunca se soube. Ninguém os contou, quase ninguém os mencionou. Tampouco se soube quantos foram os ciganos exterminados.
No dia 18 de setembro de 2002, o governo alemão e os bancos suíços resolveram “retificar a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do Holocausto”. Levaram mais de meio século para corrigir essa omissão. A partir dessa data os homossexuais que tinham sobrevivido em Auschwitz e em outros campos, se é que ainda haja algum vivo, puderam reclamar uma indenização.

O Demônio é índio

Os conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas que o Demônio havia usurpado
Os conquistadores descobriram que Satã, quando expulso da Europa, tinha encontrado refúgio na América. Nas ilhas e nas praias do mar do Caribe, beijadas dia e noite por seus lábios flamejantes, habitadas por seres bestiais que andavam nus, tal como o Demônio os havia colocado no mundo, que cultuavam o sol, a terra, as montanhas, os mananciais e outros demônios disfarçados de deuses, que chamavam de jogo ao pecado carnal e o praticavam sem horário nem contrato, que ignoravam os dez mandamentos e os sete sacramentos e os sete pecados capitais, que não conheciam a palavra pecado nem temiam o inferno, que não sabiam ler nem tinham nunca ouvido falar do direito de propriedade, nem de nenhum direito e que, como se tudo isso fosse pouco, tinham o costume de comerem uns aos outros. E crus.
A conquista da América foi uma longa e difícil tarefa de exorcismo. Tão arraigado estava o Demônio nestas terras, que quando parecia que os índios se ajoelhavam devotamente ante a Virgem, estavam na realidade adorando a serpente que ela amassava com o pé; e quando beijavam a Cruz não estavam reconhecendo ao Filho de Deus, mas estavam celebrando o encontro da chuva com a terra.
Os conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas que o Demônio havia usurpado. Não foi fácil recuperar o tesouro. Ainda bem que de vez em quando recebiam alguma pequena ajuda de lá de cima. Quando o dono do inferno preparou uma emboscada em um desfiladeiro, para impedir a passagem dos espanhóis em busca da prata de Cerro Rico de Potosi, um arcanjo baixou das alturas e lhe deu uma tremenda surra.

O Demônio é negro

Supunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa esqueceu de ensiná-los a ler.
Como a noite, como o pecado, o negro é inimigo da luz e da inocência.
Em seu célebre livro de viagens, Marco Pólo fala dos habitantes de Zanzibar. “Tinham uma boca muito grande, lábios muito grossos e nariz como o de um macaco. Caminhavam nus, totalmente negros e para quem de qualquer outra região que os visse acreditaria que eram demônios”.
Três séculos depois, na Espanha, Lúcifer, pintado de negro, trepado numa carroça em chamas, entrava nos pátios das comédias e nos palcos das feiras. Santa Tereza de Jesus, que viveu para combatê-lo, apesar disso nunca pode entendê-lo. Uma vez ficou ao lado e viu “um negrinho abominável”. Outra vez ela viu que do seu corpo negro saía uma chama vermelha, quando se sentou em cima de seu livro de orações e queimou os textos do ofício religioso.
Uma breve história do intercâmbio entre África e Europa: durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a África vendia escravos e comprava fuzis. Trocava trabalho pela violência. Os fuzis punham ordem no caos infernal e a escravidão iniciava o caminho da redenção. Antes de serem marcados com ferro quente, na cara e no peito, todos os negros recebiam uma boa unção de água benta. O batismo espantava o demônio e dava alma a esses corpos vazios. Depois, durante os séculos XIX e XX, a África entregava ouro, diamantes, cobre, marfim, borracha e café e recebia Bíblias.Trocava produtos por palavras. Supunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa esqueceu de ensiná-los a ler.

O Demônio é estrangeiro

O imigrante está disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças
O “culpômetro” indica que o imigrante vem roubar-nos o emprego e o “perigosímetro” acende a luz vermelha. Se for pobre, jovem e não for branco, o intruso, que veio de fora, está condenado, a primeira vista, por indigência, inclinação ao tumulto ou por ter aquela pele. De qualquer maneira, se não é pobre, nem jovem, nem escuro, deve ser mal recebido, porque chega disposto a trabalhar o dobro em troca da metade.
O pânico diante da perda do emprego é um dos medos mais poderosos entre todos os medos que nos governam nestes tempos de medo. E o imigrante está sempre disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças.
Em outros tempos, a Europa distribuía para o mundo soldados, presos e camponeses mortos de fome. Estes protagonistas das aventuras coloniais passaram à história como agentes viajantes de Deus. Era a Civilização lançada nos braços da barbárie.
Agora a viagem se faz na contramão. Os que chegam, ou tentam chegar do sul em direção ao norte, não trazem nenhuma faca entre os dentes nem fuzil no ombro. Vêm de países que foram oprimidos até a última gota de seu sugo e não têm a intenção de conquistar nada além de um trabalho ou trabalhinho. Esses protagonistas das desventuras parecem, muito mais, mensageiros do Demônio. É a barbárie que toma de assalto a Civilização.

O Demônio é pobre

Os bens de poucos sofrem a ameaça dos males de muitos
Se lambem enquanto você come, espiam enquanto você dorme: os pobres espreitam. Em cada um se esconde um delinqüente, talvez um terrorista. Os bens de poucos sofrem a ameaça dos males de muitos. Nada de novo. Tem sido assim desde quando os donos de tudo não conseguem dormir e os donos de nada não conseguem comer.
Submetidas a um acossamento durante milhares de anos, as ilhas da decência estão encurraladas pelos turbulentos mares da vida desgraçada. Rugem as ondas sucessivas que forçam viver em sobressalto perpétuo. Nas cidades de nosso tempo, imensos cárceres que prendem os prisioneiros ao medo, as fortalezas dizem ser casas e as armaduras simulam ser trajes.
Estado de sítio. Não se distraia, não baixe a guarda, desconfie: você está estatisticamente marcado, mais cedo ou mais tarde terá que sofrer algum assalto, seqüestro, violação ou crime. Nos bairros malditos espreitam, ocultos, remoendo invejas, tragando rancores, os autores de sua próxima desgraça. São vagabundos, pobres diabos, bêbados, drogados, carne de cárcere ou bala, pessoas sem dentes, sem rumo e sem destino.
Ninguém os aplaude, porém os ladrões de galinha fazem o que podem imitando, modestamente, os mestres que ensinam ao mundo as fórmulas do êxito. Ninguém os compreende, porém eles aspiram serem cidadãos exemplares, como esses heróis de nosso tempo que violam a terra, envenenam o ar e a água, estrangulam salários, assassinam empregos e sequestram países.

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