A raiva e sua função em nossas vidas

A raiva e sua função em nossas vidas

Por Juliana Santos

Raiva! Quem já não sentiu? Num milésimo de segundo ela vem como uma avalanche. Nos toma, tira a nossa razão. Seca a boca, acelera o coração, esquenta o sangue e treme as mãos. É uma emoção avassaladora; e se  não controlada, pode produzir efeitos de difícil reparação.

Quando não sabemos lidar com nossos sentimentos, eles têm o poder de nos fazer responder sempre da mesma forma a eventos bastante diferentes. Desta forma, bater o dedinho do pé na mesinha de centro da sala e ver alguém bater no seu filho, podem invocar exatamente a mesma reação; isso porque o calor das emoções tem uma capacidade sobremaneira de afetar significativamente a nossa função racional.

Entretanto, a raiva é um sentimento muito importante. Ela nos auxilia durante a caminhada rumo à realização humana. Quando não gostamos de algo em nós, é dela que pode vir o impulso para a mudança. Quando nos indignamos com as injustiças sociais, ela pode ser a nossa força de luta e transformação. Quando sofremos pela separação de um parceiro(a), ela é companheira fiel na retomada da própria vida. Sem uma pitada de raiva, os sofrimentos não teriam fim. Assim, é uma função de extrema importância para as nossas defesas, estabelecimento de limites e tomadas de atitude.

Mas é preciso usá-la com consciência para aproveitar de sua sabedoria! Respostas sempre enfurecidas podem tanto ferir nossas relações afetivas mais preciosas, quanto gerar uma cadeia de mágoas e situações mal resolvidas, para nós e para os outros. Proporcionalmente, quando a projetamos apenas para dentro, podemos sentir o seu efeito destruidor através do doloroso sofrimento psíquico, ou da presença de inúmeras doenças que podem se associar a ela.

É comum às pessoas furiosas, a dificuldade de lidar com as frustrações; geralmente, “explodem” diante do ataque de alguém ou quando as expectativas, vontades e opiniões não são correspondidas. Jogamos sobre o outro a obrigação de apoiar nossas ideias, pensar como nós ou realizar nossos desejos, sem perceber que este tipo de atitude não corrobora para a construção de relações verdadeiras e maduras, aquelas em que podemos ser quem somos e crescemos no diálogo com as individualidades.

Portanto, seguem seis lições para quem quer se dar bem com a raiva:

1- Aprenda que todo sentimento deve ser reconhecido e respeitado, mas nenhum deles deve ganhar o lugar de “senhor de nossas vidas”.

2- Não tente resolver os problemas sem antes retomar o próprio controle. Conte até dez; se necessário, até cem ou mil. Sempre “espere a poeira baixar”.

3- Lembre-se que raiva demais é como penas espalhadas ao vento. Recolher os seus estragos pode ser uma tarefa bastante complicada.

4- Não se esqueça que não somos o centro do universo! Haverá sempre alguém que pensa e faz diferente de nós. Assim, construa relações de diálogo e não permita que o outro controle o seu comportamento.

5- Não permita que a carga emocional aprisione sua função racional. É preciso conhecer e atentar-se às próprias reações para tirar proveito da função positiva da raiva.

6- Se você engolir tudo o que sente, no final você se afoga! Dar vazão aos sentimentos é se permitir entrar em contato com as próprias fraquezas e sombras; assim se conhece os próprios limites, aprende e amadurece.

Boa sorte!

contioutra.com - A raiva e sua função em nossas vidas

contioutra.com - A raiva e sua função em nossas vidasJuliana Pereira dos Santos – Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica Junguiana. Aprimoranda em Psicopatologia e Psicologia Simbólica pelo Instituto Sedes Sapientiae e Coach formada pela Sociedade Brasileira de Coaching. CRP: 06/ 108582

13 de maio – dia da Abolição da Escravatura no Brasil

13 de maio – dia da Abolição da Escravatura no Brasil

Conti outra celebra a abolição da escravatura ouvindo a música Haiti, de Caetano Veloso. Pois é preciso celebrar as conquistas do passado sem deixar de aparar as arestas legadas ao tempo presente.

Haiti

Quando você for convidado pra subir no adro
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
Em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo…
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco
Brilhante de lixo do Leblon
E ao ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti, reze pelo
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui”

Caetano Veloso

Superar a inveja contribui com o progresso da humanidade

Superar a inveja contribui com o progresso da humanidade

Em 1951, o reconhecido psicólogo americano Solomon Asch foi a um instituto para realizar um teste de visão. Pelo menos isso foi o que ele disse aos 123 jovens voluntários que participaram – sem saber – de um experimento sobre a conduta humana em um entorno social. O experimento era muito simples. A uma turma de um colégio foi introduzido um grupo de sete alunos, que estavam mancomunados com Asch. Enquanto isso, um oitavo estudante entrava na sala achando que o resto dos garotos participava da mesma prova de visão que ele.

Fazendo-se passar por oculista, Asch mostrava três linhas verticais de diferentes comprimentos, desenhadas junto a uma quarta linha. Da esquerda para a direita, a primeira e a quarta mediam exatamente o mesmo. Então, Asch pedia que dissessem em voz alta qual das três linhas verticais era igual à outra desenhada justo ao lado. E organizava a atividade de tal maneira que o aluno que servia como cobaia do experimento sempre respondesse por último, depois de escutar a opinião do resto dos companheiros.

A resposta era tão óbvia e singela que quase não havia como errar. No entanto, os sete estudantes que haviam feito um acordo com Asch escolhiam sempre a mesma resposta incorreta. Para dissimular um pouco, um ou dois podiam escolher outra opção, que também estivesse equivocada. Este exercício foi repetido 18 vezes por cada um dos 123 voluntários que participaram do experimento. Todos compararam as mesmas quatro linhas verticais, dispostas em diferente ordem.

[quote_box_right]A conformidade é o processo por meio do qual os membros de um grupo social mudam seus pensamentos, decisões e comportamentos para estar de acordo com a opinião da maioria
(Solomon Asch)[/quote_box_right]

Cabe ressaltar que apenas 25% dos participantes mantiveram seu critério todas as vezes que a pergunta foi feita; o resto se deixou influenciar pelo menos uma vez pela opinião dos demais. Os alunos cobaias responderam incorretamente mais de um terço das vezes para não ir contra o que dizia a maioria. Uma vez finalizado o experimento, os 123 alunos voluntários reconheceram que “distinguiam perfeitamente a linha correta, mas que não tinham dito em voz alta por medo de se equivocar, de ser exposto ao ridículo ou de ser o elemento discordante do grupo”.

Atualmente, este estudo continua a fascinar as novas gerações de pesquisadores da conduta humana. A conclusão é unânime: estamos muito mais condicionados em relação ao que pensamos. Para muitos, a pressão da sociedade continua sendo um obstáculo intransponível. O próprio Asch se surpreendeu ao ver o quanto está equivocado afirmar que os seres humanos são livres para decidir o próprio caminho na vida.

Além do famoso experimento, no jargão do desenvolvimento pessoal se diz que padecemos da síndrome de Solomon quando tomamos decisões ou adotamos comportamentos para evitar sobressair, se destacar ou brilhar em um determinado grupo social, e também quando nos boicotamos para não sair do caminho trilhado pela maioria. De forma inconsciente, muitos tememos chamar atenção em excesso – e inclusive triunfar – por medo de que nossas virtudes e nossas conquistas ofendam os demais. Esta é a razão pela qual, em geral, sentimos um pânico atroz ao falar em público. Não em vão, por uns instantes, nos transformamos no centro das atenções. E ao nos expormos abertamente, ficamos à mercê do que as pessoas possam pensar de nós, o que nos deixa em uma posição de vulnerabilidade.

A síndrome de Solomon evidencia o lado obscuro de nossa condição humana. Por um lado, revela nossa falta de autoestima e de confiança em nós mesmos, ao pensarmos o quanto o nosso valor enquanto pessoas depende de como os outros nos avaliam. E, por outro lado, constata uma verdade inconveniente: continuamos fazendo parte de uma sociedade na qual se tende a condenar o talento e o sucesso alheios. Embora ninguém fale sobre isso, em um plano mais profundo, o fato de prosperar é mal visto. E mais agora, em plena crise econômica, com a precária situação que assola milhões de cidadãos.

Por trás de condutas assim se esconde um vírus, tão escorregadio quanto letal, que não só nos adoece, mas também paralisa o progresso da sociedade: a inveja. A Real Academia Espanhola define esta emoção como o “desejo de algo que não se possui”, o que provoca “tristeza ao se observar o bem alheio”. A inveja surge quando nos comparamos com outra pessoa e concluímos que ela tem algo que queremos ou ao que aspiramos. Isso nos leva a pôr o foco em nossas carências, que se acentuam na medida em que pensamos nelas. E assim se cria o complexo de inferioridade; de repente, sentimos que somos menos porque outros têm mais.

Sob o feitiço da inveja, somos incapazes de ficar felizes com as alegrias alheias. De forma quase inevitável, essas atuam como um espelho onde costumamos ver refletidas nossas próprias frustrações. No entanto, reconhecer nosso complexo de inferioridade é tão doloroso, que necessitamos canalizar nossa insatisfação julgando a pessoa que conseguiu o que invejamos. E para encontrar motivos para criticar alguém basta ter um pouco de imaginação.

O primeiro passo para superar o complexo de Solomon consiste em compreender a futilidade que é se deixar incomodar pela opinião que as outras pessoas têm sobre nós. Se pensarmos minuciosamente, temos medo de nos destacar devido ao que certas pessoas – movidas pelo desgosto gerado por seu complexo de inferioridade – possam dizer de nós para compensar suas carências e sentir-se melhor consigo mesmas.

E o que fazer com a inveja? Como se supera? Muito simples: deixando de demonizar o sucesso alheio para começar a admirar e a aprender com as qualidades e com os pontos fortes que permitiram que outros realizassem seus sonhos. Apesar de que aquilo que cobiçamos nos destrói, o que admiramos nos constrói. Essencialmente porque passamos a cultivar esses sentimentos em nosso interior. Por isso, a inveja é um mestre que nos revela os dons e talentos inatos que ainda podemos desenvolver. Em vez de lutar contra o externo, devemos utilizá-la para nos aperfeiçoarmos interiormente. E no momento em que superemos coletivamente o complexo de Solomon, possibilitaremos que cada um contribua – de forma individual – com o melhor de si mesmo para sociedade.

contioutra.com - Superar a inveja contribui com o progresso da humanidade

Nota: Para outras matérias como essa, indicamos também o acompanhamento do site contioutra.com - Superar a inveja contribui com o progresso da humanidade

7 coisas que aprendi a desaprender

7 coisas que aprendi a desaprender

Por Marcela Picanço

Muitas ideias são plantadas em nossas cabeças desde que somos pequenininhos. Assim nasce uma cultura, um pensamento em larga escala, um comportamento padrão. Por isso, é muito difícil desconstruírmos uma ideia que foi plantada como uma sementinha, que depois germinou e virou uma árvore com raízes fortes. Chega uma hora, na nossa vida, em que é bom rever os conceitos. É necessário perceber se aquilo que sempre falaram realmente faz bem. Se sim, é só seguir em frente. Se não, é hora de arrancar essas raízes, quebrar os galhos e preparar a terra para novas e mais sadias ideias. É um processo difícil, mas a gente chega lá.

1) Idade

O tempo todo falam sobre idade. Com 30, não dá mais para fazer isso; com 40, não dá mais para fazer aquilo; com 20, você é um idiota que não sabe nada da vida e, com 25, você é um perdido. Com 18, nem lhe consideram nada, apesar de você se achar adulto o suficiente. Idade é o que menos importa. Aprendi a não perguntar a idade de ninguém. Não me importam quantos anos as pessoas viveram e sim as experiências que tiveram.

2) Trabalhar com o que se gosta é a fórmula da felicidade

Sim! Claro, essa dica é uma das principais para levar uma vida repleta de felicidade, mas nem de longe ela é a solução dos problemas. Trabalho dá trabalho. Tem dias em que você vai querer ficar dormindo até mais tarde, outros dias você vai desejar morar para sempre numa ilha distante. Trabalhar com o que eu realmente gosto é uma grande motivação para mim, mas aprendi a respeitar meu tempo. Ou pelo menos estou tentando.

3) Felicidade só é boa quando é compartilhada

O fato é que essa tal da felicidade me irrita. Não existe isso de ser feliz o tempo todo, mas deixa isso para o próximo tópico. Você não precisa dividir sua felicidade com uma única pessoa que vai entender todos os seus desejos e anseios. A felicidade deve ser compartilhada em momentos de felicidade. E, no final das contas, ela está em todos os detalhes: quando você aprende uma coisa nova, quando compartilham uma experiência, você consegue acessar a memória da outra pessoa e, de repente, parece que você esteve lá também. Quando você ri muito de alguma coisa por muito tempo, por mais que já tenha perdido a graça, você continua rindo porque a outra pessoa também está rindo. Quando você ajuda alguém e ela agradece. Quando você cruza com alguém que não vê há muito tempo. A felicidade deve ser compartilhada, mas com várias pessoas, várias vezes ao dia. E, claro, deve ser compartilhada com você também. Quando você fica ouvindo a mesma música no repeat, lendo um livro que o tira do ambiente em que você está. Ou, quando você pensa deitado na cama, com os pés para cima, apoiados na parede. Dá para ser feliz várias vezes ao dia. Não precisa estar apaixonado. Por isso, o mais legal é se apaixonar várias vezes ao longo da vida. Talvez seja pela mesma pessoa, talvez seja por várias, talvez por você mesmo. O importante é lembrar que você é sempre vários e ser companhia para si mesmo deveria ser uma felicidade compartilhada também.

4) Felicidade plena

Não sei quem colocou na nossa cabeça essa ideia de que vamos alcançar a tal felicidade. Já viram a peça “Esperando Godot”? Tudo bem, ela foi uma peça escrita depois da segunda guerra mundial e talvez quisesse dizer muito mais do que isso, mas a moral da história é que os dois personagens passam a peça inteira esperando por Godot, mas ele nunca vem. A peça inteira é uma discussão sem fim de “cadê o tal do Godot?” Sei que é clichê essa coisa de “sua vida passa enquanto você procura a felicidade”, mas é verdade. Porque a felicidade que você tanto almeja nunca vai chegar. Ela já está aqui, escondida em algum lugar que você não consegue ver. Ela está nos mínimos detalhes. Se parar para observar, tudo é mágico, tudo se conecta. Tudo é útil, porque tudo é um presente. Você usa isso da forma que quiser. Eu tive um professor que falava que, para saber se você tem uma vida feliz, basta observar como você se sente aos domingos. Se estiver muito bem, mesmo sabendo que no outro dia é segunda-feira, você é uma pessoa feliz. Criei uma teoria em cima disso: domingo é o dia em que você mais precisa focar no presente, senão ele escapa rápido. Se você aprendeu a lidar com os domingos, você aprendeu a viver o momento presente. Bingo! Muita doses de felicidade no seu dia a dia, sem essa lenga-lenga de feliz pra sempre.

5) Par perfeito

Não tem como encontrar o par perfeito em outra pessoa. Eu sou a única pessoa que convive comigo 24 horas por dia, então, eu tenho que ser meu par perfeito, para me aturar por tanto tempo. Odeio frases no imperativo, mas SEJA O PAR PERFEITO PARA SI MESMO. Todo mundo vai parecer menos problemático e, de repente, você vai perceber que é mais compatível com os outros do que imaginava. Sabe aquela história de que o que o irrita, no outro, na verdade, são defeitos seus que você não conseguiu trabalhar? Então, resolva-se primeiro, depois queira que alguém seja perfeito para você.

6) Namorar é ter alguém pra você

Em primeiro lugar, ninguém é de ninguém. Todo mundo já traz uma história de vida antes dos novos relacionamentos. Tem seus amigos, seus sonhos, sua rotina. Não é por que você encontrou alguém que agora deve isso tudo a ela. Ninguém tem o direito de invadir o espaço do outro, sistematizar o que o outro vai fazer, ficar chateado quando o outro não quer acompanhar no seu programa de índio. Namorar é dividir.

7) Seus pais sabem o que é melhor pra você

Nunca sabem. Eles, como qualquer outro ser humano, sabem só o que é melhor para eles.

Não é por acaso que Paris é uma festa

Não é por acaso que Paris é uma festa

Por Patrícia Dantas

Bistrôs aquecidos, baguetes quentinhas, a umidade cinzenta e fria da cidade-luz – que nesse cinzento outono-invernal, guia-se pelas luzes ofuscantes que se acendem no finalzinho das tardes – é assim, nesta breve descrição que acalenta viajantes natos, que já estamos dentro dessa Paris que festeja o que a vida tem de mais belo todos os dias do ano.

Além de Paris já falar por si para que veio, do imaginário dos mais afoitos flâneurs ao mais desatento transeunte, como nos relata Paris é uma festa, de Hemingway, e O Esplim de Paris, de Baudelaire, não precisamos mais traçar roteiros compactados para conhecer seus arrondissements, quando temos hoje, além de romances e crônicas já consagradas, sites de busca e superblogs de pessoas viajadas pelo mundo, que indicam com maestria os incontáveis pontos de Paris para se conhecer antes de morrer.

Falando assim, como não amar nossa era da informação, que nos presenteia com o universo na palma das nossas mãos? Sim, temos Paris, a Índia, a China, a Transilvânia o Polo Norte ao nosso alcance, bastam alguns cliques ou um roteiro de viagem para as próximas férias. Hoje, quase todo mundo pode viajar! Sem ironias com a modernidade, partamos já com nossas mochilas nas costas e alguns trocados no bolso. Não só Paris, mas lugares ainda nem cogitados nos esperam!

Que tal, antes de soltar a mochila no primeiro quarto de um hostel ou hotel barato, conhecer de cara o primeiro bistrô apontado em nossa direção? Claro que é bom sempre lembrar se teremos a grana para arcar com todo o consumo delicioso e apressado.

Talvez fosse ali que o lendário crítico americano Robert Parker degustou uma sequência de vinhos raros e anotou em seu caderninho valioso nota por nota, ou seria aquele o lugar em que o colunista do Paladar Estadão, Luiz Horta, escrevera um longo artigo cheio de peripécias e sugestões de como pagar somente vinte e dois euros por uma refeição completa em Paris? Não há como não cogitar coisas desse tipo quando nos sentamos numa mesinha reservada de algum bistrô desconhecido. E se for verdade, e só venhamos a descobrir depois do ato consumado? Aí teremos uma boa história para contar!

Lembro que, numa das minhas primeiras viagens de férias, e com o pouco dinheiro que juntara desde que soube que o próximo destino seria um tour por algumas cidades da Europa – incluindo Paris! – fiquei tão extasiada não só pelas paisagens vistas somente nos filmes, mas também – e quase em igual proporção -, pelos vinhos de qualidade que iria tomar a preços bem menores que tomaria aqui no Brasil! Bordeaux, Borgonha, Côtes du Rhônes – regiões que você já ouviu falar, e sempre salivou quando via algum rótulo de lá! Nem é preciso tomar daquela safra rara, que tem mais de cinquenta anos, basta mesmo um vinho da casa para você saber que está diante de uma relíquia que faz história e desperta os sentidos de muita gente, inclusive o seu.

E os Plat du Jour? Existe coisa que atice mais os sentidos? Bem, nem precisa falar. Folheava os cardápios com um frenesi no estômago, com a curiosidade e fome com que se lê um envolvente romance de García Marques.

Confesso que não sou conhecedora de vinhos safrados, vencedores de prêmios internacionais, das denominações de origem controlada e garantida, da alta gastronomia mundial, das notas, apreciações, aprovações dos críticos e da mídia. Meu grande e maior segredo é que costumo me dar por inteira às experiências enogastronômicas que, por acaso, chegam sem nenhuma intenção de provocar além do que já me permiti.

O negócio é que um novo vinho, conhecido ou não, venha de onde vier, ele acaba desestruturando algo dentro da gente, é como se fosse um novo estranho, uma pessoa que depende da nossa aceitação, da última aprovação para entrar no círculo.

E, para mim, já conquistei a regra: novas sensações para tudo!

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Cena do filme “O fabuloso destino de Amelie Poulain”

A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada

A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada
Por Eliane Brum da Revista Época
Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.

Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.

Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçdo porque um dia ela acaba.

(Eliane Brum escreve às segundas-feiras na Revista Época.)

6 tipos de homem, por Mário Prata

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Tipos de homens

O MENTIROSO
É o que mente, claro. E claramente. O mentiroso é um pouco doente, vive da mentira. É caso para terapias. Normalmente tem algum problema de personalidade, de auto-afirmação. Mente para os outros e para ele mesmo.  Imagina-se outro. O bom mentiroso é aquele que acredita na própria mentira e a um determinado momento da sua vida não sabe mais o que é a verdade ou a mentira. Todo mundo, ao redor dele, sabe que ele é um mentiroso. Ele também. Mas não se emenda. Não há nenhum caso de mentiroso que deixou de ser mentiroso. Mentiroso não tem recaída. E isso não é uma mentira deslavada.

O PALHEIRO
Não confundir o palheiro com o mentiroso. O palheiro disserta sobre todos os assuntos. Geralmente assuntos não conhecidos na roda. O palheiro, geralmente, tem uma boa conversa e um bom vocabulário. O melhor palheiro é aquele em quem a gente chega a acreditar piamente por muito tempo. Tem palheiro que não foi descoberto que é palheiro até hoje. Os palheiros são muito mais inteligentes que os mentirosos. Poderíamos dizer que o palheiro é um mentiroso intelectualmente mais enganoso. Um mentiroso com PhD. Tenho um amigo (vamos chamá-lo de Zé) que é um palheiro conhecido na cidade. Um dia uma amiga comentou: se o Zé fosse viciado em drogas injetáveis, seria fácil achar uma agulha num palheiro.

O GRUPEIRO
Tudo que ele diz, a gente sabe que é grupo. Ao contrário do palheiro, que não tem nenhuma intenção a não ser a palha fina, o grupeiro é quase um estelionatário da mentira. Um bom grupo pode prejudicar pessoas e instituições. O grupeiro chega quase a ser um golpista. Todos nós, uma vez ou outra, já entramos no grupo de alguém. E o pior, é que, muitas vezes, sem perceber. Cair num grupo bem dado é péssimo, mas, às vezes, temos que tirar o chapéu para o bom grupeiro.

O CASCATEIRO
Intelectualmente menos brilhante que o palheiro, o cascateiro costuma cair sempre em contradições. O que ele mais ouve dos amigos é isso é cascata e ele nem sempre tem bons argumentos para se defender. Mas não se ofende, ao contrário do palheiro. O cascateiro nem sempre tem nível superior e gosta de contar suas cascatas em bares. Quando o cascateiro é público e notório, pode ser divertido provocá-lo para contar umas cascatas. Alguns deles sabem que tudo que dizem é cascata. Mas não se importam. Afinal, tudo é cascata mesmo. Pode observar que toda turma tem seu próprio cascateiro.

O LOROTEIRO
Este é o mais manso deles. Contar lorotas não ofende, nem agride. Afinal, a lorota se aproxima de uma piada, embora o narrador prove por a mais b, que aquilo realmente aconteceu. Geralmente com um amigo ou parente. Aliás, dizem que os loroteiros é que são os inventores das piadas. Nada melhor que um loroteiro simpático, chegado numa cerveja num fim de noite na mesa num barzinho de calçada. Os loroteiros são bons contadores de histórias. Contar uma lorota é como jogar uma história fora. Geralmente, boas histórias.

O CHUTADOR
Este sabe de tudo, senão, não daria tantos chutes. Normalmente ficam quietos no seu canto, como um centro-avante avançado e, de repente, surgem dando um chute estrondoso, certeiro. O chutador chuta em qualquer direção. Até mesmo contra o próprio gol. O chute tem suas características particulares: tem que ser dado na hora certa, com precisão e sem pestanejar. Senão, vira cascata, palha, mentira, lorota. O chutador é, antes de tudo, um atento. Tem que saber a hora exata do chute para não acertar na trave. São os artilheiros da mentira.

Mário Prata

Vale conhecer o site oficial do escritor Mário Prata Oficial 

contioutra.com - 6 tipos de homem, por Mário Prata

 

“A beleza, no fim”, uma crônica de Marina Colasanti

“A beleza, no fim”, uma crônica de Marina Colasanti

Você folheia um livro, uma revista, e de repente, como se cruzasse uma esquina, um fato pelo qual não esperava está à sua frente. Como a foto em que esbarrei ao virar uma página 7.

Ali estava uma cena de museu absolutamente incomum. Diante de um auto retrato de Rembrandt, moldura dourada sobre parede cinzenta, uma mulher cujo rosto não se vê porque voltado para o quadro, olha. Não está de pé. Está deitada em uma maca hospitalar conectada a aparelhos. Quatro assistentes estão com ela. Todos olham o quadro, menos a jovem mulher que controla os aparelhos.

O fotógrafo é Roel Foppen, militar aposentado, acompanhante voluntário da Stichting Ambulance Wens, uma associação holandesa cuja finalidade é a realização de desejos de doentes em fase terminal. De ambulância, a associação leva pessoas próximas à morte para rever algum país, cidade, obra, parente ou amigo que lhe seja especialmente caro e cuja visão queira ter consigo na última viagem.

“No dia 3 de março – diz o autor da foto- levamos três doentes de mobilidade reduzida ao Rijksmuseum . Eram 17 horas. Tínhamos o museu somente para nós.” A luz que incidia sobre o quadro, iluminando o olhar quase amoroso com que o velho pintor parecia dialogar com a mulher, chamou sua atenção. Afastou-se e fotografou.

Nada disse à mulher, uma senhora de 78 anos, portadora de esclerose lateral amiotrófica. O rosto dela não aparece, a discrição é absoluta, e ele não quis interromper o seu momento de contemplação. Mais tarde, postou a foto nas redes sociais – é possível que você que agora me lê a tenha visto – não para exibir sua foto, mas para chamar a atenção do mundo para a atividade da associação.

Certamente chamou a minha. Parei como todos os que estão na foto. Porém, não para olhar o ” Auto retrato com dois círculos”, obra do final da vida de Rembrandt da qual todos nos sentimos íntimos, e sim para permitir que a visão daquele gesto de amor ao próximo e de busca da beleza afagasse minha alma diariamente maltratada pelo noticiário.

A associação de idéias recolheu na memória um filme visto no início da década de 70, “Soylent Green”. Definido como ficção científica é, na verdade, uma ficção profética que retrata Nova Iorque no ano de 2022, com 40 milhões de habitantes. A ciência conseguiu vencer as doenças, mas o calor é sufocante, a água é só para beber, no planeta poluído e super povoado os recursos naturais se esgotaram, a população pobre suada e suja se alimenta de tabletes fornecidos pela indústria Soylent. O último lançamento de tabletes é verde.

Não foi pelos tabletes que me lembrei do filme. Foi pela cena final, quando o velho companheiro do detetive Thorn ( Charlton Heston) decide que chegou a hora de morrer e se encaminha para a Casa, espaço destinado aos que querem receber o fim através de um medicamento. Ali, deitado numa maca diante de imensa tela, verá projetadas durante vinte minutos cenas de como o planeta era antes, rico e verdejante, com seus campos e bosques, seus rios claros, suas geleiras e desertos, seus imensos oceanos. Acompanhando as cenas, ouve a Patética, de Tchaikovsky e a Pastoral, de Beethoven. E morre levando consigo a harmonia da criação.

Não foi só a personagem Sol, que levou atrás dos olhos essa visão. Seu intérprete, o ator Edward G. Robinson estava doente de câncer, terminal. A cena foi uma dupla despedida que fez chorar Charlton Heston. Edward G. Robinson morreu 10 dias após o término das filmagens.

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Marina Colasanti
Esta crônica encontra-se publicada no site da escritora Marina manda lembranças. Recomendamos conhecer o site, relicário de jóias de inestimável valor literário.

Quando e como dar conselhos – Flávio Gikovate

Quando e como dar conselhos – Flávio Gikovate

Aconselhar é algo muito delicado, principalmente se forem conselhos que envolvam algum tipo observação crítica, pois, ainda que sem intenção, podem ser inconvenientes e interpretados como desrespeito.

A experiência diz que só se deve dar conselhos quando se é insistentemente solicitado e se houver competência para falar do assunto; e ainda assim com o maior cuidado para não magoar.

Para mais informações sobre Flávio Gikovate

Site: www.flaviogikovate.com.br
Facebook: www.facebook.com/FGikovate
Twitter: www.twitter.com/flavio_gikovate
Livros: www.gikovatelojavirtual.com.br


Esse blog possui a autorização de Flávio Gikovate para reprodução deste material.

13 coisas que quem ama alguém extremamente sensível deveria saber

13 coisas que quem ama alguém extremamente sensível deveria saber

Por Lindsay Holmes

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Quando eu estava no jardim de infância um menino da minha turma jogou meu livro favorito por cima do muro da nossa escolinha. Lembro-me de chorar sem parar, não porque eu estava triste de perdê-lo, mas por estar furiosa de ver que ele era tão valentão. Foi provavelmente uma das primeiras vezes que expressei essa minha sensibilidade aos meus coleguinhas – uma montanha-russa que ainda faz parte da minha vida.

Muitos dos meus amigos carinhosamente me provocam sobre essa minha reação emocional, mas é, com certeza, algo que não consigo controlar. Algumas pessoas são mais sensíveis do que outras e isso nem sempre é ruim. Eu não estou sozinha: aproximadamente uma de cada cinco pessoas – mulheres e homens – fazem parte da classificação HSP (Highly Sensitive Person, ou Pessoas Altamente Sensíveis) e, de acordo com a pesquisadora do assunto e psicóloga Elaine Aron, Ph.D., isso faz com que seja extremamente provável que você conheça e ame alguém que possua essa característica de personalidade.

Abaixo estão algumas coisas para termos em mente ao tratar com familiares e amigos altamente sensíveis.

1. Nós vamos chorar

Quando estamos felizes, quando estamos tristes e quando estamos com raiva. Isso porque as pessoas altamente sensíveis naturalmente sentem mais profundamente e reagem de acordo.

2. Nem todos nós somos introvertidos

A introversão não é sinônimo de sensibilidade. De fato, de acordo com as pesquisas da Dra. Aron, cerca de 30 por cento das pessoas altamente sensíveis são extrovertidas.

3. Decisões nos deixam nervosos

Indivíduos altamente sensíveis são notoriamente ruins em fazer escolhas – mesmo que seja apenas escolher onde jantar. Isto acontece principalmente porque agonizamos com a possibilidade de errar. (E se a comida for ruim?!)

4. Nós percebemos aquela mudança sutil no tom

Se você costuma terminar cada mensagem de texto com um ponto de exclamação e ultimamente você está usando um ponto, acredite, nós iremos notar. As pessoas altamente sensíveis são geralmente mais intuitivas quando se trata de pequenas nuances no nosso ambiente e sentimos mais as mudanças de humor nas outras pessoas.

5. Nós estamos sempre dispostos a ouvir você desabafar

Não tenha medo de falar com a gente quando precisar de um ombro amigo. Nossa natureza excessivamente empática nos permite sermos excelentes ouvintes quando você precisar, pois quando você sente dor nós também sentimos – e faremos de tudo para que você se sinta confortável. As pessoas altamente sensíveis são excelentes professores, terapeutas e gestores por esta mesma razão.

6. Ruídos repetitivos e altos são os piores

Aquela mastigação barulhenta, um trem a todo vapor, colegas de trabalho ruidosos: o que quer que seja, nós sentimos demais. Isso acontece porque ambientes caóticos ou superestimulantes influenciam muito mais uma pessoa altamente sensível, de acordo com Aron.

7. Nossos hábitos de trabalho são um pouco atípicos

Trabalhar de casa ou em um espaço tranquilo é um sonho para as pessoas altamente sensíveis – especialmente porque permite que nos concentremos se ficarmos sobrecarregados. No entanto, não se deixe enganar pelo nosso trabalho solitário. “As pessoas sensíveis podem usar a personalidade a seu favor… Eles vão chegar longe”, disse Aron anteriormente ao HuffPost. “Eles sabem como trazer novas ideias sem serem ridicularizados ou desprezados.” As pessoas altamente sensíveis também são excelentes com trabalhos em equipe devido à natureza analítica e a consideração com as ideias dos outros (só não nos obriguem a tomar a decisão final sobre o projeto).

8. Não nos peçam para ver o mais novo filme de terror

A mesma empatia que sentimos pelos outros, combinada com superestimulação faz com que filmes violentos e sangrentos sejam uma péssima opção para pessoas altamente sensíveis.

 

9. A crítica é incrivelmente angustiante

Como resultado tendemos a evitar qualquer coisa que possa causar sentimentos de vergonha. Isso significa que nos envolvemos em comportamentos para agradar os outros ou nos autodepreciar mais do que a maioria de nossos colegas. Em outras palavras, estamos longe de sermos perfeitos.

10. Ouvimos constantemente que levamos as coisas muito a sério

Uma piada às nossas custas, muitas vezes, não é apenas uma piada. Sabemos que é um pouco bobo ficarmos chateados, mas o que mais vamos fazer com todos os nossos sentimentos?

11. Temos pouca tolerância à dor.

Passe o gelo, por favor. Não importa se é um braço quebrado ou um corte no dedo do pé, qualquer ferida dói demais. Isto porque as pessoas altamente sensíveis sentem mais dor do que as outras, de acordo com as pesquisas da Dra. Aron.

12. Nós desejamos relacionamentos profundos

De acordo com a Dra. Aron, pessoas altamente sensíveis tendem a se entediar mais no casamento do que casais que não são, principalmente devido à falta de interação significativa que ocorre naturalmente com o tempo. No entanto, isso não significa necessariamente que estamos insatisfeitos com o relacionamento – nós só precisamos encontrar uma maneira de termos mais conversas estimulantes.

13. Nós não podemos simplesmente deixar de ser altamente sensíveis

Um estudo de 2014, publicado na Revista Brain and Behavior, descobriu que pessoas altamente sensíveis experimentaram maior atividade em regiões cerebrais associadas com empatia e consciência quando expostas a imagens de indivíduos emocionais do que a média das pessoas. Em outras palavras, nós estamos neurologicamente programados para nos comportar da maneira que nos comportamos.

Com isso em mente sabemos que a melhor maneira de nos amar é nos apoiar. Tente não nos envergonhar por causa da nossa sensibilidade. Diga-nos que está bem ser da maneira que somos. E, em troca, vamos tentar não chorar com suas amáveis palavras (sem promessas, no entanto).

(Tradução: Simone Palma)

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O Fusca de Paulinho

O Fusca de Paulinho

Por Lúcia Costa

Aquele menino tinha uns quatro anos. Descobriu que era espacial bem mais que especial. O Mundo era estreito e as pequenas rodas de sua bicicleta percorriam seu universo em segundos. Adorava pedalar, mas estava exausto de sair de nenhum lugar para lugar nenhum. Queria velocidade. Queria um fusca igualzinho ao do pai.

Os pais riram daquela decisão quase ordem do pequeno. Era uma graça constante. Era uma criança-instante. Era uma garça ao volante. Sonhava em morar com os pássaros. Desejava casar com uma mulher que lhe desse beija-flor ao invés de filho. Paulinho adormecia em rosas e acordava em cama de madeira com o colchão todo molhado. Defendia-se:

_ Não fui eu. Foi o jardineiro. Ele disse que meu jardim só pode receber água à noite.

E por essa ia se passando.

Um dia, Paulinho  já desesperado pelas avenidas que não conhecia, entrou no fusca enquanto o pai o lavava, soltou a marcha e saiu descendo ladeira abaixo. O frio que lhe invadiu o estômago alimentava as borboletas que moravam por ali. O medo era um desconhecido de máscara. O veículo oscilava, montanha-russa andante  e sem direção. Por segundos, estar sem curso exercia uma fascínio em Paulinho; achava que aquele carro iria levantar voo.

E levantou!

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Kevin Conor Keller

Um dos mais belos poemas de Neruda

Um dos mais belos poemas de Neruda

Poema 20

Posso escrever os versos mais tristes esta noite
Escrever por exemplo:
A noite está fria e tiritam, azuis, os astros à distância
Gira o vento da noite pelo céu e canta
Posso escrever os versos mais tristes esta noite
Eu a quis e por vezes ela também me quis
Em noites como esta, apertei-a em meus braços
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito
Ela me quis e as vezes eu também a queria
Como não ter amado seus grandes olhos fixos ?
Posso escrever os versos mais lindos esta noite
Pensar que não a tenho
Sentir que já a perdi
Ouvir a noite imensa mais profunda sem ela
E cai o verso na alma como orvalho no trigo
Que importa se não pode o meu amor guardá-la ?
A noite está estrelada e ela não está comigo
Isso é tudo
A distância alguém canta. A distância
Minha alma se exaspera por havê-la perdido
Para tê-la mais perto meu olhar a procura
Meu coração procura-a, ela não está comigo
A mesma noite faz brancas as mesmas árvores
Já não somos os mesmos que antes havíamos sido
Já não a quero, é certo
Porém quanto a queria !
A minha voz no vento ia tocar-lhe o ouvido
De outro. será de outro
Como antes de meus beijos
Sua voz, seu corpo claro, seus olhos infinitos
Já não a quero, é certo,
Porém talvez a queira
Ah ! é tão curto o amor, tão demorado o olvido
Porque em noites como esta
Eu a apertei em meus braços,
Minha alma se exaspera por havê-la perdido
Mesmo que seja a última esta dor que me causa
E estes versos os últimos que eu lhe tenha escrito.
Pablo Neruda

Para ter criatividade, resiliência e coragem é preciso brincar!

Para ter criatividade, resiliência e coragem é preciso brincar!

 

Por Renate Keller Ignacio
Via Aliança pela infância

Nos primeiros anos de vida a criança explora seu corpo e o mundo ao redor brincando. Brincar nesta fase significa experimentar diversas possibilidades de movimento, de manuseio de objetos, de interação com outras crianças, de sensações através dos sentidos, sempre partindo da iniciativa própria de cada criança. Brincar acontece inesperadamente, inconscientemente, sem intenção utilitária, mas a partir da alegria, da curiosidade, da vontade de agir e interagir. Quando nos adultos observamos crianças pequenas brincando livremente, somos surpreendidos à cada momento. As brincadeiras parecem brotar do corpo e da alma da criança espontaneamente, numa riqueza de transformações, sempre aparecendo novas formas e significados. Misturam-se experiências reais vividas na família, na escola ou na comunidade com a fantasia da criança e com os movimentos corporais.

Por que isto é importante para desenvolver resiliência?

A capacidade de resistir às intempéries da vida e sair fortalecido de crises graves, depende do desenvolvimento de uma confiança inabalável no sentido da vida, e do sentimento de fazer parte de um todo maior. Isto as crianças experimentam na infância ao brincar: na brincadeira a criança mergulha no mundo da imaginação que por sua vez tem a origem nas forças criativas atuantes no corpo em desenvolvimento. Tudo é interligado, as coisas tem inúmeros significados, inúmeras soluções ou possibilidades. Frustrações podem ser vividas e superadas, flexibilidade é exercitada. A criança que brinca a partir de si mesmo, se acalma, respira profundamente e entra num estado de bem estar, onde ela sente uma profunda confiança na existência. Esta confiança se transforma na idade adulta em fé na vida, em fé em si próprio e no seu destino. Esta fé é a base da resiliência.

Por que brincar é importante para desenvolver coragem?

Coragem é uma força do “cor”ação que possibilita o adulto levar uma ação para frente, mesmo quando tem obstáculos, ou desafios assustadores. Coragem não é a ausência do medo, mas a força que faz você persistir, apesar do medo, porque você tem a convicção que o objetivo é importante. Esta força de vontade que não desiste tem a sua fonte no brincar. Brincar é ação, ação física, ação imaginativa, é movimento. O polo oposto é a reflexão, o pensar que necessita distancia da ação, que necessita da cabeça fria. Se a criança pode viver no polo do movimento, ou seja brincando sem que exigimos dela reflexão, então ela fortalece este polo caloroso que é a base da coragem. Assim quando ela cresce e desenvolve cada vez mais a atividade pensante, reflexiva ela terá um equilíbrio entre os dois polos. Isto é principalmente importante na nossa sociedade atual que é regida unilateralmente pelo intelecto.

E a criatividade?

Quem é criativo conseguiu salvaguardar um pouco de sua infância para a vida adulta. Quem tem criatividade consegue olhar para as coisas com olhar novo, sem preconceito, com olhar de criança. Ele consegue fazer associações inesperadas, consegue ver um fato de inúmeros lados sem se fixar num único ponto de vista. Isto se aprende brincando, porque brincar é justamente isto: fazer de um prato um chapéu, ver numa caixa de papelão um teatro de fantoche, ou pegar um pano qualquer e amarrando alguns nós transformá-lo numa boneca.

Por Renate Keller Ignacio
– Conselheira da Aliança pela Infância, professora Waldorf, gestora de Desenvolvimento Institucional da Associação Comunitária Monte Azul e professora de música.

“As coisas essenciais”, uma crônica de Rubem Alves

“As coisas essenciais”, uma crônica de Rubem Alves

Leia este poema bem devagar, pois cada imagem merece a preguiça do olhar.

“No mistério do sem-fim

equilibra-se um planeta.

E, no planeta, um jardim

e, no jardim, um canteiro:

no canteiro, uma violeta

e, sobre ela, o dia inteiro

entre o planeta e o sem-fim

a asa de uma borboleta”.

É pequeno, mas diz tudo. Nada lhe falta, Uni-verso. Nenhuma palavra lhe poderia ser acrescentada. Nenhuma palavra lhe poderia ser tirada. Assim se faz um poema, com palavras essenciais. O poema diz o essencial.

O essencial é aquilo que se nos fosse roubado, morreríamos. O que não pode ser esquecido. Substância do nosso corpo e da nossa alma. Por isto as pessoas se suicidam: quando se sentem roubadas do essencial, mutiladas sem remédio, e a vida, então, não mais vale a pena ser vivida.

Os poetas são aqueles que, em meio a dez mil coisas que nos distraem, são capazes de ver o essencial e chamá-lo pelo nome. Quando isso acontece o coração sorri e se sente em paz.

Encontrou aquilo que procurava Kirilov, personagem de Dostoievski assim descreve o encontro com o essencial. “Há momentos em que a gente sente de súbito a presença da harmonia eterna. É um sentimento claro, indiscutível, absoluto. Apanhamos de repente a natureza inteira e dizemos ‘é exatamente assim!’ É uma alegria tão grande! Se durasse mais de cinco segundos a alma não o suportaria e teria de desaparecer. Nesses cinco segundos vivo uma experiência inteira, e por eles daria toda a minha vida, pois eles bem o valem”.

Chamava-se Norma. Estava doente, muito doente. Na véspera de sua morte, arrastou-se até o banheiro e foi até a pia para lavar-se dos vômitos. Abriu a torneira e a água fria escorreu sobre as suas mãos. Ela parou como que encantada pelo líquido que a acariciava. E de sua boca saíram estas palavras inesperadas: “A água… Como é bela! Sempre que a vejo penso em Deus. Acho que Deus é assim…”.

A morte na pia… A água que escorre… Os olhos contemplam a eternidade… O universo essencial de Norma está cheio de fontes frescas e regatos transparentes onde brincam as suas mãos.

O nome do filme eu nem me lembro. Sei que se passava no Japão, um casal de velhinhos. A esposa havia morrido. Os filhos, reunidos para a divisão das coisas deixadas. De repente percebem uma ausência. O pai, onde estará? Pois não estava ali, entre eles. Depois de uma longa espera aflita, lá vem o seu vulto, banhado pela luz do crepúsculo.

“Papai, onde foi? Estávamos preocupados!”.

“Onde fui? Fui ver o pôr-do-sol. É tão bonito…”.

Os filhos repartem os despojos. Os olhos do pai contemplam o horizonte colorido… O universo essencial do pai está cheio de pores-do-sol. Sem eles os seus olhos ficariam eternamente tristes.

Este poema é de Brecht:

“Quando no quarto branco do hospital

acordei certa manhã

e ouvi o melro, compreendi bem.

Há algum tempo já não tinha medo da morte.

Pois nada me poderá faltar se eu mesmo faltar.

Então consegui me alegrar com todos os cantos dos

melros depois de mim…”.

A morte branca no quarto de hospital. Fora, o melro canta. Alegria pelos cantos que não ouvirei. No universo essencial de Brecht, o canto dos melros continuará, sem fim.

“Pergunto se, depois que se navega,

a algum lugar, enfim, se chega …

O que será talvez até mais triste.

Nem barca, nem gaivota: somente sobre-humanas

companhias…”.

Cecília Meireles sabia o que era essencial. No seu mundo as barcas navegariam as águas e gaivotas planariam pelos ares…

O que é essencial?

Os filósofos antigos reduziam o essencial a quatro elementos fundamentais: a água, a terra, o ar e o fogo. Concordo com eles. Pensavam estar fazendo cosmologia, mas estavam fazendo poesia. Sabiam dos segredos da alma.

Pois é disto que somos feitos. Posso imaginar um mundo sem que eu sinta por isto, nenhuma tristeza especial. Mas não posso pensar um mundo sem a chuva que caí, sem regatos cristalinos, sem o mar misterioso… Não posso imaginar um mundo sem o calor do sol que agrada a pele e colore o poente, sem o fogo que ilumina e aquece… Não posso imaginar um mundo sem o vento onde navegam as nuvens, os pássaros e o cheiro das magnólias…

Não posso imaginar um mundo sem a terra prenhe de vida onde as plantas mergulham suas raízes… São estes os amantes com que a vida faz amor e engravida, de onde brota toda a exuberância e mistério deste mundo, nosso lar. Não preciso de deuses mais belos que estes.

Ouço, pelo mundo inteiro, em meio ao barulho das dez mil coisas que fazem a nossa loucura, as vozes-poema daqueles que percebem o essencial. Elas dizem uma coisa somente: “Este mundo maravilhoso precisa ser preservado”. Mas ouço também a voz sombria dos que perguntam: “Conseguiremos?”.

Rubem Alves

O Retorno e Terno: crônicas. 27ª Edição. Campinas, Editora Papirus, 2008
Conheça o Instituto Rubem Alves e faça parte de seus projetos.

A quem interessar: o poema inicial da crônica é de Cecília Meireles e chama-se “Canção Mínima”. (Antologia Poética, 1963).

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