Certo dia, apareceram num dos ashrams de Ganddhi dois homens e pediram ao Mahatma que os iniciasse nos mistérios do mundo espiritual.
Gandhi acedeu ao pedido e ofereceu-se para ajudá-los.
Os dois hospederam-se no ashram, prelibando as maravilhosas experiências, sob a direção de tão exímio chefe espiritual.
E, para dar prelúdio à iniciação, Gandhi encarregou os dois candidatos à suprema espiritualidade de varrerem o pátio do ashram coberto de folhas secas.
Os dois empunharam as vassouras e varreram o pátio.
Depois, Gandhi mandou que descarregassem batatas e cortassem verduras, e que rachassem lenha para o fogo sobre os qual se iria preparar o almoço de todos os residentes na colônia espiritual.
E assim se fez.
À tarde, Gandhi mandou os dois, com latas de creolina, às aldeias circunvizinhas para fazer limpeza nas privadas e fossas, como costumava fazer ele mesmo, em companhia de uma turma especial encarregada da higiene.
Ao voltarem do serviço, nada espiritual, um dos dois disse ao companheiro: “Será que Gandhi se esqueceu do nosso pedido de iniciação espiritual?”
Ao anoitecer, os dois aspirantes à suprema espiritualidade tomaram a sua frugal refeição em companhia de Gandhi e dos outros residentes na colônia.
Antes do descanso noturno, todos fizeram uma hora de meditação.
No dia seguinte, os mesmos trabalhos com pequenas variantes.
De manhã e à noite, horas de meditação.
Os doía estavam cada vez mais decepcionados. Esperavam, parece, que o Mahatma os convidasse pra uma sala fechada, misteriosamente imersa numa penumbra azulada ou esverdeada, recorresse a algum ritualismo mágico-místico, e que dessa cerimônia os iniciados saíssem definitivamente iniciados para o resto da vida. Viviam, como milhares de outros, na ilusão de que iniciação consiste em algum toque de magia, em algum ato momentâneo, e não numa permanente atitude, numa vivência contínua e progressiva ascensional.
Finalmente, no terceiro dia, um dos dois teve a coragem de perguntar a Gandhi:
– Mestre, quando começa a nossa iniciação?
– Já começou – respondeu Gandhi.
Humberto Rohden
Este texto foi retirado do livro “Mahatma Gandhi”, de Humberto Roden, publicado pela Editora Alvorada.
É um lugar em que todo mundo manda e faz o que bem entende.
O rei francês, de 1285 a 1314, Felipe IV, o Belo, resolveu comprar uma briga feia: cobra impostos sobre os bens da Igreja. A discussão foi tão séria que em 1303 o papa Bonifácio VII excomungou Felipe, que, em represália e por não ser tão belo assim, mandou que um de seus legistas ( o perito em legislação, Felipe ainda estava vivo), Gulherme de Nogaret, invadisse a Itália e prendesse o papa. Bonifácio VIII morreu na prisão e foi sucedido pelo Bento IX. Logo, logo, em 1305 assumia um novo papa, Clemente V, que, seguindo um gentil conselho de Felipe, transferiu a sede do papado, de Roma para a cidade provençal de Avignon.
Avignon foi residência de 7 papas, de 1309 a 1378, mas no início não era só dos papas, pertencia a uma napolitana, Joana I, rainha de Nápoles.
Linda e inteligente, Joana era mecenas de poetas e intelectuais. Ela se casou com o primo, Andrew, irmão de Luís I, da Hungria. Andrew foi assassinado numa conspiração que, dizem as más línguas, teve participação da própria esposa.
Furibundo, Luís invadiu Nápoles em 1348, obrigando Joana a se refugiar em Avignon. No mesmo ano, ela vendeu a cidade a Clemente V, com a condição de ser declarada inocente de sua participação na morte do ex-marido. Joana foi assassinada por seu sobrinho e herdeiro, Carlos de Anjou em 1382.
Enquanto ainda mandava e desmandava em Avignon, Joana resolveu regulamentar os bordéis da cidade. Uma de suas medidas foi estabelecer que todo bordel deveria ter uma porta por onde todos entrariam. Assim, cada prostíbulo ficou conhecido como “o paço da mãe” (a dona da cidade) Joana”, com o sentido de uma casa que está aberta a qualquer um.
A expressão viajou até Portugal e veio para o Brasil, onde a palavra paço, de uso pouco popular, foi logo substituída por casa.
Reinaldo Pimenta
O texto acima foi extraído do livro “A casa da Mãe Joana – Curiosidades nas origens das palavras, frases e marcas”. A obra é de Reinaldo Pimenta e foi publicada pela Campus Editora.
Cena do filme “”L’Apollonide, souvenirs de la maison close”
Livro desvenda uma civilização transparente, em que os políticos são cobrados como funcionários da população, onde todos se tratam como “você” e o sistema leva invariavelmente às raias da honestidade
PorElder Dias
Parauapebas pode não ser uma cidade tão conhecida, mas tem quase 200 mil habitantes e é a 6º mais populosa do Pará. É de lá o vereador Odilon Rocha de Sanção (SD), que, semanas atrás, tratou de dar visibilidade maior, embora controversa, ao município. É que viralizou nas redes sociais o vídeo em que ele, da tribuna da Câmara, no dia 24 de abril, contestava os vencimentos para exercer o cargo legislativo. “O valor que o vereador ganha aqui, se ele não for corrupto, mal se sustenta durante o mês”, bradou, contra o que considera uma injustiça.
Odilon-o-corrupto-assumido.
Um vereador de Parauapebas recebem R$ 10.013 de salário bruto. Tem também direito a R$ 2,8 mil para custear despesas com combustível e R$ 1 mil para despesas com telefone. No total, são mais de R$ 13,8 mil. Os 15 legisladores da cidade ainda usufruem, cada um, de uma caminhonete alugada e diárias para viagens que variam de 300 a 800 reais. O que Odilon questiona, entretanto, é que o salário não daria para custear o “padrão de vida” de um vereador.
O ano é 2015. Estamos já há uma década e meia dentro do século 21. E ainda há brasileiro que se acha no direito de lamentar não ter uma empregada doméstica “prestativa”. Não é raro ouvir de alguém algo como “tive de procurar um amigo deputado” para conseguir um emprego ou uma vaga de UTI. E é fato que políticos, entre eles muito provavelmente Odilon Rocha, considerem, se não justo, pelo menos normal ter um gabinete relativamente amplo, duas dúzias de assessores, carro oficial, auxílio-moradia, auxílio-combustível e apartamento funcional. Além de alguma verba indenizatória, para custear despesas gerais.
Levando os costumes nacionais ao pé da letra, ainda não saímos de 1808, ano da vinda da família real portuguesa para o Brasil. Dom João VI voltou para Portugal, vieram a independência política, os reinados de seu filho e de seu neto, uma República instalada por conveniência, alguns golpes de Estado, militares no poder, um processo de redemocratização e a estabilização econômica, mas nada conseguiu aniquilar o mal maior do País: a força patrimonialista que faz a corrupção perdurar como uma praga impossível de ser vencida. Um vergonhoso estandarte nacional. O sistema se desenrola de tal modo que, a rigor, torna-se quase impossível ser integralmente honesto por aqui. Mais grave ainda: esse “quase” da última frase se verifica um falso rigorismo do texto, um cuidado totalmente dispensável e até errôneo.
Se o Brasil tivesse, no globo terrestre, um lugar que fosse seu avesso em termos de ética, trato social e zelo pela coisa pública, qual seria? Não haveria nada de errado se o País passasse a se chamar “Aicéus”. É o anagrama inverso de Suécia, um reino no norte da Europa, na quase sempre gelada Escandinávia, que junta tradição e modernidade como forças para imprimir um modelo atualizado de respeito ao dinheiro do contribuinte e à igualdade entre seus habitantes, não obstante o status que cada um tenha em particular. Mais do que isso, por lá o sistema faz com que o cidadão seja impelido a ser… honesto!
Capa de “Um País Sem Excelências e Mordomias”: livro mostra que suecos dão às autoridades seu devido lugar
A forma com que os suecos lidam com seus pares em tese mais poderosos é o tema central de “Um País Sem Excelências e Mordomias”, obra escrita pela jornalista Claudia Wallin (Geração Editorial, 344 páginas) e que mora em Estocolmo, a capital da Suécia. Casada com um “viking”, ela começou a conhecer o que é um político na Suécia quando viu Carl Bildt empurrando seu carrinho de compras em um supermercado. Ele tinha sido primeiro-ministro e era então ministro das Relações Exteriores. Mas, ali, Bildt era só um cidadão sueco.
O livro é uma coletânea de informações e de depoimentos sobre como a esfera pública pode e deve trabalhar sob a tutela de um povo. Na Suécia, os cidadãos cobram cada centavo da considerável fatia que os tributos tomam de seus salários, a ponto de o que por aqui seria nada mais do que um privilégio tolerável se tornar um escândalo de derrubar gabinetes por lá.
Os suecos têm a honestidade quase como uma condição iminente. Veja a resposta de Göran Lambertz, um dos juízes mais conhecidos do Supremo Tribunal da Suécia, em entrevista publicada no livro, à questão “O que faz a Suécia para prevenir a corrupção no sistema judiciário?”:
— Na verdade, não muito. Isso porque existe na Suécia uma longa tradição de que as pessoas, em geral, não são corruptas. Se alguma pessoa oferecesse suborno a um juiz, ou se algum juiz pedisse algo, seria um grande escândalo no país. Mas isso simplesmente não acontece (…) Acho que nenhum juiz sueco jamais aceitaria um suborno. É algo tão proibido que chega a ser impensável. É distante demais das nossas tradições. E se algum ato irregular for cometido, ele será reportado à polícia. Por isso, mesmo se algum juiz pensar em cometer um ato impróprio, ele não o fará. Porque teria medo de ser reportado à polícia.
Boa parte dos que chegaram até este ponto do texto durante a leitura do parágrafo interior devem ter feito mentalmente uma analogia de Göran Lambertz com Nicolau dos Santos Neto, o juiz Lalau, ou com Flávio Roberto de Souza, aquele que levou para a garagem de seu prédio, no Rio, o Porsche do empresário Eike Batista, que estava apreendido pela Justiça Federal. Pois talvez Lambertz ou qualquer outro cidadão sueco não consiga nem fazer tal comparação, por falta de parâmetro. Falta-lhes vivência do que seja corrupção, ainda mais corrupção cometida por um magistrado.
Chega a hora, então, de pensar por que os políticos e demais poderosos daqui não são como os de lá. A resposta pode não ser das mais agradáveis: é uma questão histórica, cultural, de costumes. E aqui, como lá, os políticos não brotam de árvores — saem do seio da sociedade.
A história civilizatória dos nórdicos ajuda a compor a explicação para a diferença positiva aos suecos. Durante a Idade Média, entre os séculos 8 e 11, os vikings eram hegemônicos na Escandinávia. Salteadores dos oceanos, saqueavam e aterrorizavam as populações da Europa desde o Mar Báltico até os confins do Mediterrâneo. Nada de combatentes bonzinhos ou brutamontes agradáveis como o Hagar, o Horrível das tirinhas. Tons de cinza à parte, eles deixaram um legado importante à posteridade: as “tings”, assembleias que eram o que Claudia Wallin chama de “parlamentos embrionários”. Por meio dessas reuniões, os vikings tomavam decisões em conjunto, por consenso, observando um princípio: ninguém era mais importante do que qualquer outro. Todos iguais. Tão iguais que hoje, por lei, se aboliu qualquer pronome formal: um sueco nunca chama o outro, seja quem for, de “senhor”, muito menos de “excelência”. Todos e todas são “você”.
A igualdade se tornou valor essencial entre os suecos. E impulsionou uma precoce maturidade da democracia. Uma prova disso é que por lá vigora há um quarto de milênio — desde 1766 — uma norma que dá ao povo mecanismos para fiscalizar todos os atos dos agentes públicos. Foi a primeira lei de transparência da história. No Brasil, se ainda hoje é difícil até mesmo para outras autoridades, como representantes do Ministério Público, ter acesso a documentos necessários a uma investigação, imagina-se o que não seja escondido do cidadão comum.
Aliás, “cidadão comum” é uma expressão inexistente (ou desnecessária, ou, ainda, redundante) na Suécia. Lá há “cidadão”, apenas.
Um país transparente e onde ninguém é mais do que ninguém
Swedish diplomat and politician Hans Blix relaxing in the Swedish pavilion atrium. By: Tobias Andersson Åkerblom
Se há alguém que queira se candidatar a deputado na Suécia, que se prepare para ter mais sacrifícios do que benesses: usufruirá de um pequeno (minúsculo mesmo, ainda mais para os padrões brasileiros) apartamento funcional na cidade onde trabalhará — e isso só se sua cidade de origem ficar a mais de 50 quilômetros de Estocolmo; nada de assessor particular, muito menos equipe de gabinete — o máximo são algumas pessoas disponibilizadas ao partido para ajudar o conjunto de seus parlamentares; carro oficial? Dificilmente, e estritamente para missões em que isso se fizer necessário; motorista particular, nem pensar; verba indenizatória, aquela usada para fins diversos? Sem chance. E se pensar em ser vereador, que tenha disposição e disponibilidade para realizar um bom trabalho. E voluntário (talvez Odilon Rocha, o vereador inconformado de Parauapebas, não se agradasse da ideia).
Para concluir: será de bom tom que o político saiba lavar e passar sua própria roupa — para o caso de ser desafiado a demonstrar suas habilidades domésticas em talk-shows, como ocorreu com Fredrik Reinfeldt. Primeiro-ministro de 2006 a 2014, ele periodicamente ia à TV para dar dicas de como fazer a faxina em casa.
Nos casos relatados em “Um País Sem Excelências e Mordomias”, o que mais se vê são autoridades suecas — cujos equivalentes no Brasil costumam ser tratados por todos com salamaleques — fazendo compras no supermercado (como o citado Carl Bildt, ex-primeiro-ministro e então ministro das Relações Exteriores), pegando a fila do ônibus (Sten Nordin, prefeito de Estocolmo), pedalando e depois pegando um trem para chegar ao trabalho (Göran Lambertz, juiz do Supremo Tribunal da Suécia), ou ainda trocando os pneus do próprio carro (Hans Blix, ex-primeiro-ministro e ex-chefe de inspetores da ONU, conhecido por ter desafiado os Estados Unidos quando da invasão do Iraque, sustentando que lá não havia as armas de destruição em massa aludidas por George W. Bush para justificar o ataque).
Além de tudo isso, prepare-se o candidato a político para sofrer bastante cobrança da imprensa e da população a respeito de seus gastos. Se a corrupção é rara por lá, isso não significa que político sueco seja santo: o livro conta vários episódios em que parlamentares e outras autoridades se tornaram suspeitos daquilo que aqui seria tratado como “apenas uma irregularidade”. Mas, e lá? São escândalos de consequências torrenciais. “Em geral, suas carreiras políticas acabam”, conta, no livro, o repórter político Mats Knutson.
A população e a imprensa são muito duras com relação aos desvios, pelo mesmo motivo: “Sou eu quem paga os políticos. Não vejo razão alguma para dar a eles uma vida de luxo”, resumiu Joakim Holm, um cidadão sueco entrevistado para reportagem do “Jornal da Band”, para o qual Claudia Wallin produziu material. O que move o sistema todo nessa marcha que traz assepsia ao modelo? A vigilância permanente. Eleitores e jornalistas estão sempre de olho no que fazem os representantes do povo. E qualquer desvio, por menor que seja, repercute gravemente.
É assim, simples: na Suécia, a máxima de que o político é um sujeito a serviço da sociedade é levada às últimas consequências pelo cidadão. E, como Claudia deixa bem entendido no livro, tudo gira em torno da satisfação (prestação de contas) devida pelos ocupantes de postos públicos à população. Por isso, tudo o que puder ser transparente terá de ser transparente.
Isso vale, inclusive, para as comunicações recebidas e enviadas pelo primeiro-ministro: as correspondências oficiais e mesmo o e-mail do chefe do governo podem ser lidos por qualquer pessoa, sem que esta precise se identificar nem justificar o pedido. Obviamente, quando há questões de segurança (e isso, sim, precisa ser justificado à população) envolvidas nas informações, guarda-se o sigilo devido durante o tempo necessário.
A triste discrepância entre o destino dos impostos pagos por suecos e brasileiros
A escrita da autora de “Um País Sem Excelências e Mordomias” é apenas esforçada. Por vezes, o texto se apresenta de forma redundante, até repetitiva. Mas a jornalista Claudia Wallin cumpre o papel de repassar ao leitor as impressões sobre o estilo de vida sueco, principalmente no que diz respeito à relação “cidadãos versus políticos”. Nas entrevistas inseridas no decorrer do livro, é interessante notar o enfoque e a ênfase que os personagens envolvidos dão à figura do “contribuinte”. O termo é citado diretamente na maioria dos diálogos e indiretamente é o principal foco de todos. É o bolso do cidadão o centro das preocupações na hora de calcular qualquer reajuste no vencimento de parlamentares e demais autoridades. O mais interessante: a valorização da remuneração nunca é feita pelos próprios interessados — ao contrário do Brasil, onde, mais do que costume, está previsto em lei que deputados devam reajustar seu próprio salário e que os juízes decidam eles mesmos o quão justo é o aumento que vão receber.
A preocupação sueca — e dos nórdicos em geral — com a destinação dos impostos tem razão de ser. Todos os países da Escandinávia estão entre os de maior carga tributária. A Suécia, em particular, segundo dados de 2012, da Heritage Foundation, ostentava o 3º posto no ranking. Em outras classificações relativas ao mesmo tema, o reino sempre estará em posição de destaque. É o preço que se paga por ter, em compensação, um dos serviços públicos mais completos e de mais alta qualidade em todo o mundo.
Portanto, ainda que a revolta por aqui seja alta e haja um impostômetro instalado no coração da gigante São Paulo, lá na Suécia se pagam mais tributos do que aqui. Um adendo a se considerar é que, por outro lado, ano após ano o Brasil vem subindo degraus na corrida da carga tributária. Enquanto na terra dos vikings que serve de comparação o total pago em impostos correspondia a 44,3% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2012, o Brasil fechou aquele ano com essa relação já em 35,8%.
A diferença está no respeito com que o poder público e os detentores de cargo tratam o dinheiro que têm sob sua guarda. E também em como o povo fiscaliza a aplicação do que pagam. Enquanto por lá o que se cobra é devolvido em forma de benesses, o título de uma reportagem da Agência Brasil feita há pouco mais de um mês traz desalento: “Brasil continua em último no ranking de retorno de tributos à população”. O estudo, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), comparou dados de 30 países.
Ou seja, pagar impostos é algo que tanto brasileiros como suecos fazem de forma elevada. Só que o retorno em serviços é absurdamente discrepante: na Escandinávia as pessoas, exigentes, têm consciência de que a estrutura disponibilizada pelo governo para setores como educação, saúde e outros funciona e de que, apesar de ter nível de excelência, pode e precisa ser melhorada. No Brasil, as escolas públicas estão sucateadas física e humanamente; o Sistema Único de Saúde (SUS), cuja concepção merece elogios do mundo todo, é na prática uma lástima; a segurança pública, o saneamento básico, os pontos de cultura, tudo fica a dever. Pagamos impostos nível Suécia, recebemos serviços nível Azerbaijão — ex-república da União Soviética e à frente do Brasil no ranking mundial do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Mais grave: se observarmos o irrisório retorno em relação ao considerável montante que o brasileiro paga, a conta final seria justificativa para uma revolta. Como nunca antes na história deste País.
Nem Ingmar Bergman escapou
Ingmar Bergman: doente após ser acusado de crime fiscal
Celebridades não têm vida fácil na Suécia. Assim como ocorre com os políticos, também os famosos são tratados de forma equânime aos cidadãos anônimos. No livro “Um País Sem Excelências e Mordomias”, consta uma passagem emblemática envolvendo o diretor Ingmar Bergman, ícone do cinema mundial. Ele sentiu a força do poder da isonomia de tratamento sueca em 1976, ao ser detido dentro do Teatro Dramático Real de Estocolmo, onde conduzia o ensaio de uma peça, “Dança da Morte”. Motivo: uma empresa de Bergman estabelecida na Suíça teria sido criada só para escapar da alta tributação de seu país de origem.
Conduzido a um tribunal fiscal, onde o promotor expôs a acusação, o cineasta se tornou réu de um processo por evasão fiscal entre 1969 e 1974. No fim, acabou inocentado — o inquérito foi arquivado. Mas, dias depois de ser arrebatado pelas forças policiais do teatro em que trabalhava, Bergman teve um colapso nervoso e chegou a ser hospitalizado com quadro de depressão. Corroborava, assim, o preceito ético do país: ser acusado de ato desonesto na Suécia é estar à beira da morte, pelo menos moral.
“Perdoado”, o diretor partiu para um exílio voluntário do país, deixando bens e propriedades para que ninguém pensasse que estaria tentando alguma forma de subterfúgio. O responsável por obras como “Morangos Silvestres” (1957) e “Gritos e Sussurros” (1972) chegou a dizer que não voltaria à Suécia, mas para lá retornou em 1984 e foi lá que morreu, em 2007, aos 87 anos.
São poucos os que sabem viajar. São muitos os que viajam.
Viajante não precisa de distância para se encantar com os detalhes. Viajante valoriza a história, a geografia, o sotaque do bairro. Viajante dança. Celebra o outro. Se desmancha para fazer parte da paisagem.
Viajante e criança partilham esse estado constante de despertar o entorno e chamar para brincar. Se engana aquele que pensa que é preciso passaporte. Viajar para dentro é muito mais difícil, bonito e transformador.
Arrisco dizer que há uma função social desse viajante que não sai do lugar, ainda que entenda que ele não faz pelos outros. Ele, por consequência ou generosidade, nos empresta o óculos da poesia para que enxerguemos nossa própria vida. Esse óculos corrige um estrabismo muito comum, que arrasta nosso olho direito para o umbigo e o esquerdo para o vizinho.
Eu só ando por dentro de mim; se fui em outro lugar foi pra me ver (Manoel de Barros)
Boa parte das pessoas mais interessantes que conheci, viajaram muito pouco. Possivelmente nunca deixaram o país. Elas não sentiram a necessidade de conhecer a Torre Eiffel. Não estiveram no Coliseu. Nunca atribuíram felicidade à New York. Mas elas abraçam negros, pardos, brancos e coloridos, sem precisar filosofar a respeito. Elas riem de histórias de amor, sem questionar gêneros. Elas contam causos, ignorando os cursos de Storytelling. Elas não atravessaram oceanos para conhecer o diferente, pois o diferente esta à volta, divertindo a todo instante.
E antes que você me questione se o viajante de bairro é diferente do viajante de avião, adianto que não. Ambos são guiados pela estrela da curiosidade que os faz sentir plenamente vivos no Pari ou em Bogotá. E que alegria quando eles se encontram e o macro mundo festeja o micro. E vice e versa. E versa e vice. É prosa e poesia sem fim.
A grande diferença está no viajante e naquele que percorre distâncias.
Se você só fez fotos, sem saber a história daquele lugar, só percorreu distâncias. Se sabe falar a língua mas não a usou para fazer uma amizade que seja, só percorreu distâncias. Se julgou o que é diferente e buscou apenas as vantagens do destino por esquecer de se despir dos óculos de lentes colonizadoras, só percorreu distâncias. Se a sua viagem te fez sentir superior aos seus conhecidos, por ter ido além deles, te garanto: você só percorreu distâncias. Se você não se sentiu pequeno diante de alguma beleza maior. Se você não chorou ao superar os próprios preconceitos. Se não se permitiu confiar em desconhecidos. Se não ajudou ninguém no caminho… amigo, você tem muito o que viajar ainda. A notícia boa é que não precisa ir longe para começar.
Texto reproduzido com a autorização da autora.
Para mais textos da jornalista Bia Dourado visite o Blog Circo Dourado.
Muito se diz sobre o tal “amor à primeira vista”, porém pouco se questiona acerca de tal fenômeno. Será mesmo possível que de repente, como em um passe de mágica, tão grande sentimento surgisse? De onde viriam tais afetos, vidas passadas? Sem querer ser estraga prazeres, terei de negar as hipóteses mais românticas que poderiam ser ofertadas frente a esta questão.
Nenhum grande sentimento nasce do nada, tanto ódio quanto amor são afetos construídos sob muita frustração e/ou satisfação (não custa dizer que amor e ódio andam sempre juntos). O bebê, por exemplo, nasce sem compreender exatamente que existe algo que não seja extensão de seu próprio corpo. Ao perceber parcialmente a existência de um outro ser (no caso a mãe) ele começa a desenvolver seus afetos por esta. Tal fenômeno ocorre simplesmente por conta de uma carga filogenética? Negativo! A mãe irá oferecer muita segurança e satisfação (fisiológica e afetiva) para que o amor de seu filho seja conquistado.
Ok, já ultrapassamos a primeira parte da questão, agora resta-nos explicar algo de extrema relevância. Se tais sentimentos não surgem do nada, como é que se pode explicar aquele grande “amor” (ou ódio, por que não?) sentido ao ver uma pessoa pela primeira vez?
A resposta é simples: “Não existe amor à primeira vista, porém existe um mecanismo nomeado transferência”. Por meio deste, um afeto construido por um indivíduo é transferido para outro. Gosto de dizer que ocorre um deslocamento duplo. Primeiramente o deslocamento temporal, afinal, um sentimento do passado (mais ou menos remoto) ressurge agora, no presente. E em segundo, o deslocamento de objeto, neste momento o amor que foi construído para um indivíduo agora está sendo ofertado a outro.
Não seria nada adequado encerrar por aqui sem responder uma questão crucial: “E como é que se define para quem tais afetos serão transferidos?”.
Costumo trabalhar com duas hipóteses primordiais:
– Proximidade temporal: É muito comum e costuma ocorrer em alta frequência tanto no caso do amor quanto no do ódio. Proximidade temporal remete à curta distância de tempo entre uma construção afetiva e sua transferência. Como assim? Simples! Você nunca se estressou com alguém e descarregou seu ódio em outra pessoa que nada tinha a ver com a circunstância inicial? Então, eis um belo exemplo! E sobre o amor? Podemos citar os casos em que um casal se separa e rapidamente a garota (ou garoto) adentra um novo relacionamento com as mesmas características do anterior.
– Similaridade estética e/ou comportamental: Nestes casos o afeto irá surgir por conta de um indivíduo ter alguma característica que o conecte com uma figura afetiva importante do passado. Também ocorre com alta frequência e demoramos a perceber a quantia imensa de similaridades que o objeto atual de afeto tem se comparado ao anterior. Estes casos são bem demarcados pelo fato de que a pessoa que “ama” sempre espera que o indivíduo atual se comporte de maneira identica ao do passado, fazendo com que o afeto vá sendo desconstruído conforme a convivência força a pessoa a perceber as diferenças da pessoa real frente àquela idealizada inicialmente.
Agora, com tudo muito bem esclarecido resta-me apresentar um ponto positivo e um negativo acerca do que foi dito acima.
– Todos ganhamos uma maior compreensão acerca da psicologia humana e começaremos a perceber de forma muito mais adequada circunstâncias que antes nos passavam despercebidas;
– Continuaremos tão vulneráveis quanto antes aos explosivos sentimentos de amor e ódio que surgirão durante nossa existência.
Diego Caroli Orcajo, 23 anos. Estuda psicologia na Faculdade Municipal Professor Franco Montoro.
A aparente normalidade de nossas rotinas não nos prepara para os eventos-limite da derrota, abandono, depressão, doença e morte. Olhar esses acontecimentos com olhos de profundidade, antes que eles ocorram, nos ajuda a ter lucidez quando se concretizam. Omitir a realidade deles é inútil. Referindo-se à inevitabilidade da morte, Chagdud Rinpoche dizia, sorrindo: “antes de cair na água é necessário aprender a nadar”.
Na nossa cultura, a morte parece algo a ser evitado. Confrontados com a proximidade do fim de nossos entes queridos, nos sentimos incapazes de ajudá-los. Parece insuportável até mesmo ouvi-los. Impotentes, sofremos diante de suas dores e lamentos. Como ajudá-los e a nós mesmos quando nos aproximarmos desse momento? Onde colocar nossa mente e nossas emoções nessa passagem? O que fazer quando entendemos que não poderemos mais ajudar nossos pais, nossos filhos e nossos amigos queridos? Nesse momento, as habilidades quanto ao funcionamento comum do mundo perdem seu poder. Defrontamo-nos com o desconhecido, impenetrável à nossa compreensão.
Situações-limite ocorrem também durante nossa trajetória, quando estamos doentes, derrotados, excluídos, impotentes. Parece não haver mais lugar para nós na vida, que então se apresenta hostil e inescrutável. Quando uma pessoa amada nos abandona, por exemplo, há um mundo que cessa. A dor da morte nos invade. Tudo ao redor perde o sentido, o brilho e a cor. A própria respiração é afetada. A energia vai embora. O futuro desaparece. O passado muda. O segredo dos mestres é que o potencial de visão, lucidez e cura está em cada um de nós. O que as estrelas no céu diriam das nossas dores e frustrações? Olhando a partir do espaço longínquo, o próprio planeta parece diminuto. O que dizer dos seres minúsculos e suas vidas, frustrações e dores flutuantes? Os mestres vivem no espaço livre além das bolhas e de lá nos ajudam com sua visão.
Mergulhados nas realidades estreitas e suas aflições, perdemos a consciência até mesmo do céu infinito sobre as nossas cabeças. A dor abarca a bolha onde estamos mergulhados. Quando reconhecemos essas bolhas de realidade e sua ação, é porque nossos olhos migraram para um lugar além delas e, portanto, além do sofrimento inerente a elas. Magicamente há o renascimento, o momento em que voltamos a sorrir e a energia passa a circular novamente. É como uma nova vida; talvez seja mesmo uma nova vida.
PADMA SAMTEN é lama budista. Fundou e dirige o Centro de Estudos Budistas Bodisatva, em Viamão, RS.
Tenho a mania interiorana de ouvir conversa alheia. Certo dia, goiana que sou, sentei-me no mercado central de Goiânia para comer uma empadinha de frango, enquanto ouvia três senhores de avançada idade, avós, bons cidadãos, comentarem sobre a violência e dizer que o seu crescimento se dava pela frouxidão com que as penas são cumpridas no Brasil.
O problema é que eles só enxergam uma ponta do nó afrouxado. Mas as pontas são duas e vou mostrá-las.
Proponho que pensemos no seguinte experimento:
Caminhe por sua rua e catalogue todos os cães ferozes, indomados, aparentemente não domesticados. Escolha um reduto pequeno, uns 10 metros quadrados, e aprisione-os a todos. Dá para colocar uns 30 cães nesse espaço. Comida regrada, pouco ou nenhum contato com o ambiente externo. Uns ferirão a outros, mas não tome partido. Deixe que a lei do mais forte prevaleça ali no cativeiro. Os mais fracos e os mais velhos, os menos ferozes, serão mortos em meio aos demais. Não se ocupe disso. Não os adestre. Não lhes dê carinho e afeto. Não lhes dê qualquer sorte de retribuição considerável por bons comportamentos. Nada.
Deixe-os ali por 5, talvez 10 anos. Findo esse prazo, chame a sua filha, ou sua neta de 5 anos e diz a ela:
– Pronto, já ensinamos essas feras. Está aqui a chave do cativeiro. Você pode soltá-los agora, querida. Já estão aptos ao convívio social.
Você faria isso? Entregaria a chave para a sua filha? Penso que não.
Todavia, assim como no experimento acima, trancafiamos humanos de tendência infeliz, descumpridores da lei penal, de comportamento antissocial e caráter questionável, na mesma condição que teríamos trancafiado os cães, no citado experimento. E, pasmem, ainda há quem se queixe e não entenda a escalada da violência em nosso país e diga estar estarrecido pela insegurança de nossos filhos.
A insegurança aumenta porque a maldade é viscosa. Uma vez em contato com a violência, ficamos impregnados do ódio, da sede de vingança, do desejo de retribuir o mal com um mal equivalente ou maior. Nós nos permitimos o uso da violência para com os violentos como se essa fosse a panaceia de todos males e o resultado disso é a sentença que hoje pesa sobre nós: medo, dor, insegurança, tristeza. Somos assombrados pelo espectro da nossa não caridade para com os menos afeitos à bondade: o “bandido” estuprado, ferido, ofendido, extorquido por autoridades vai voltar para a rua dez vezes pior do que quando entrou para a prisão. Isso é fato.
A violência é crescente porque pulou as nossas cercas morais e se alojou no sofá das nossas almas. Por isso aqueles bons senhores diziam: “Estuprador tem que ser estuprado mesmo. E tinha que matar a quem rouba.”
Acaso quem estupra ou quem faz apologia ao estupro de um estuprador é menos estuprador que o primeiro criminoso? Acaso a sociedade que mata a quem pratica um crime grave ou hediondo é menos criminosa, é menos vil que aquele a quem a pena capital está a ser aplicada?
A frouxidão do nó da justiça penal no Brasil não se dá apenas quando a pena é parcialmente cumprida, quando o culpado é inocentado ou quando o apenado, de dentro do presídio, permanece a praticar crimes. Tem outro lado e ainda mais frouxo: quando não tratamos o apenado como humano, quando retiramos dele muito mais do que a lei prevê, privando-o não só da sua liberdade, mas também do seu senso de dignidade, da possibilidade de ocupar-se decoisas nobres, da sua integridade física, da sua integridade psíquica.
Manoel de Barros, poeta matogrossense, pensava renovar o homem de um modo muito peculiar: usando borboletas. Sábio Manoel! Só a beleza, a candura, a pureza e a liberdade é que renovam o homem. Que elas (as borboletas) inspirem-nos na tolerância da grande metamorfose que necessita advir para que possamos experimentar a real evolução.
Assim como hoje nos envergonhamos dos nossos antepassados em razão da escravidão a que submetiam outros humanos valendo-se de parâmetros como a cor, a origem ou a classe social, as futuras gerações se envergonharão de nós pela forma com que tratamos primeiro a educação dos nossos jovens e, depois, da reeducação dos nossos infratores.
Os nossos filhos e netos saberão, quando tiverem nas mãos as chaves do “canil humano” a que submetemos os nossos apenados, que os verdadeiros culpados da violência são aqueles que estão atrás das grades. E diga-me aqui: Algum de nós hoje é livre? Não estamos todos atrás das grades?
Quem nunca se imaginou num divã, fazendo uma terapia instigante, ser mais livre de si e do peso dos outros, acreditando que todas aquelas palavras iriam salvar sua vida do tédio e da confusão instalada? Eu sempre me imaginei e tinha certeza que algum dia, mais cedo ou mais tarde, iria acontecer.
A qualquer momento estaria pronta para embarcar em percepções que poderiam mudar o rumo de toda uma vida. Minha terapia, em minha cabeça, seria um daqueles tipos alternativos; algo que eu teria o controle e mudaria o ponto de vista a qualquer momento; uma tremenda de uma ficção com toques brutalmente reais.
Foi numa daquelas tardes, aparentemente sem novidade alguma, como costumamos chamar o novo que pode acontecer sem que tenhamos necessidade de esperar ou sabê-lo – ele apenas acontece, às vezes com longos pousos, prazeres e uma certa ironia quando se vai – e é como se ele (esse novo que chega tão repentino) escapasse de dentro da gente e ganhasse formas humanas irreconhecíveis.
Eu, tão quanto ela, era a moça da rua, das pessoas, da catarse das emoções. Alana Dias. Soava melhor Alana dos Dias – mas deixa como está. Ela veio a mim. Uma mulher tão humana e palpável como eu. Uma coincidência, como se eu realmente fizesse parte desse nome tão familiar que me foi confiado não sei por quanto tempo. Então, decidi que Alana seria o nome da minha primeira personagem que se fartará de si mesma num divã largo e de liberdade completa, no meio de tantas outras também personagens que ocupariam lugares secundários, mas não menos interessantes. Pode parecer autobiográfico porque ela – a Alana solta e livre – tem muito de mim, mas a desejo em sua total independência do meu universo tão vasto de trivialidades.
Alana agora é quase meu nome, como uma insígnia, veste as mesmas roupas, transita no mesmo cotidiano, sofre das mesmas inquietações quase esquizofrênicas, e vive como se não restassem as sombras do passado; para ela, é o futuro que se ergue a cada dia e a complexidade das relações que moldam seu universo. O presente – deste já lhe falaram tanto – é tudo o que ela deseja saber, perscrutar, arrancar com força e coragem de dentro de si, como um vulcão em erupção, não sabe por onde espalhar seus rastros ainda incertos. Ela depende imensamente do seu presente, mas necessita ainda mais saber o rumo que sua vida tomará em pouco tempo.
Há alguém para escutar, ou o divã parecerá mais um monólogo a sangue frio, como se Alana estivesse sozinha, convivendo aflitivamente com sua própria sombra? É o que muitos se perguntarão, ao tomarem conhecimento de toda essa história, dessa vontade de poder mais que superar, do desejo imenso e louco de voar, de permear os ares desconhecidos e vias inalcançáveis às pernas humanas, mas que o voo da imaginação as levará ainda mais alto. Há alguém que escuta, respira, acena, e não necessita ser visto ou notado. Há Alana agora somente, frente a frente com suas máscaras conflituosas.
E por que não serão permitidos diálogos intercalados e frequentes, um jogo de perguntas e respostas? Dá para saber que há mais alguém para escutar, e que talvez fale bem pouco ou não fale nenhuma palavra sequer, apenas um aceno de cabeça como quem diz “continue, continue” – e só se interessará pelo que perceber de necessário no meio ao redemoinho das histórias conectadas ou desconexas, ambíguas ou inúteis. Não será um bate e volta de diálogos, mas uma viagem de descobertas que poderá ter um fim inimaginável, com convergências e muito mais divergências, uma composição aleatória de complexas mesclas humanas não esperadas. São as minhas múltiplas vidas espalhadas num divã.
Desejamos e sonhamos com a liberdade – desesperadamente! -, e quando nos sentimos livres num divã, espalhamos mais que o necessário da nossa individualidade, de como somos e nos apresentamos no mundo, de como muitas vezes somos extrapolados, tomados e guiados por intensos e desvairados desejos; é a forma que aprendemos a nos conter e construímos socialmente nossas ações pelo nosso inimigo-amigo disfarçado que está sempre ao nosso lado.
Eles me esperam – os outros personagens! Saio correndo daqui, quase tombo diante da cadeira da escrivaninha; vou solta e leve como uma pluma. São tantos e tantos, leves, pesados, ingênuos, tirânicos, suas personalidades vão de deuses aos seres mais satânicos; são solitários, mas adoram a algazarra que há dentro de uma introspecção armada; eles estão à solta, longe da prisão. Vão se mostrar, uma a um, cara a cara. Veremos bichos soltos correrem de um lado para o outro, aflitos em suas confissões quase indizíveis.
Agora, o divã é só nosso. Temos pressa para que tudo aconteça e dê um basta em nossas vidas espalhadas em meio a estilhaços incompreensíveis. E que tudo recomece e seja breve e intenso e solto no mundo.
Ele é maravilhoso ! Temos muito em comum ! Ela adora meus filhos ! Ele é bonzinho ! Ela é legal ! Ela é divertida ! E por aí vai …
Essas são algumas das muitas expressões que tenho ouvido ao longo dos anos. Alguns meses, semanas ou até, dias depois a coisa muda:
Ele é um egoísta ! Ela é muito chata, não gosta de fazer nada que eu gosto ! Ele não suporta meus filhos! Ela é pão dura ! E seguem as lamentações quase como refrões.
É o fim ! Mais um ! E a fila, que mais parece a de um banco, segue em frente aumentando cada dia mais a frustração.
A solidão anda incomodando cada vez mais, e na tentativa de resolver a questão, tenho visto muita gente, cada vez mais deprimida e desesperançada, se apaixonando pelo primeiro(a) que aparece e logo desaparece, como na música de Altemar Dutra, “Você não me Ensinou a te Esquecer”:
“E nesse desespero em que me vejo
Já cheguei a tal ponto
De me trocar diversas vezes por você
Só pra ver se te encontro”
Ou nesse:
“Agora, que faço eu da vida sem você?
Você não me ensinou a te esquecer
Você só me ensinou a te querer
E te querendo eu vou tentando te encontrar Vou me perdendo
Buscando em outros braços seus abraços
Perdido no vazio de outros passos
Do abismo em que você se retirou
E me atirou e me deixou aqui sozinho”
E termina:
“Você só me ensinou a te querer
E te querendo eu vou tentando me encontrar“
Na tentativa de denunciar o abandono, acabamos nos denunciando. A música deixa claro que o indivíduo esta em busca de si mesmo.
Linda música ! Linda e melancólica.
A verdade é que, a solidão só aparece para aqueles que não suportam o vácuo, aqueles momentos tão necessários em que estamos cara a cara conosco, nossos medos, ansiedades e necessidades, então partem em busca de um lugar “seguro”, aquele que nos distancia de tudo que mais tememos, nós mesmos.
Nunca entenderam que, este contato é fundamental para desmistificar nossos fantasmas, descobrir nossas qualidades, nos transformar, tomar fôlego e pegar a estrada novamente, renovados e mais maduros.
Não há mágica no ciclo da vida, é a única forma de crescer.As eternas frustrações seriam evitadas se parássemos de tentar nos encontrar no outro e no outro, fugindo de nós mesmos, iludidos e refugiados em “casamentos” ou “sociedades” amargas com pessoas que mal conhecemos. E como poderíamos se nem nos demos a chance de sabermos quem somos e o que de fato queremos ?Seguimos sabotando a nós mesmos com a ilusão de que o próximo irá proporcionar a felicidade tão desejada e o amor tão esperado. A angustia só termina quando paramos para nos apreciar, arrumar a bagunça e seguir em frente.Quantos de nós, hipocritamente, não acham graça daqueles que passam anos sozinhos sem querer sair com qualquer um ? Como diz o ditado: “Antes só do que mal acompanhado.”
Muito se perde ao longo dos anos com esta recusa, incluindo nosso tempo de vida desperdiçado com quem não tem nada em comum conosco. Se perdem as oportunidades de se ser feliz profissionalmente e até de encontrar quem de fato seria, o amor da nossa vida.
Não confundam tudo isto com amor. O amor não julga e nem cobra porque não precisa, ele sabe a quem pertence.
Todos ambicionam a paz. Raros ajudam-na.
Que fazes por sustentá-la?
Recorda que a segurança dos aparelhos mais delicados depende, quase sempre, de
parafusos pequeninos ou de junturas inexcedivelmente singelas.
Não haverá tranqüilidade no mundo, sem que as nações pratiquem a tolerância e a
fraternidade.
E se a nação é conjunto de cidades, a cidade é um agrupamento de lares, tanto quanto o
lar é um ninho de corações.
A harmonia da vida começará, desse modo, no íntimo de nossas próprias almas ou toda
harmonia aparente na paisagem humana será sempre simples jogo de inércia.
Comecemos, pois, a sublime edificação no âmago de nós mesmos.
Não transmitas o alarme da crítica, nem estendas o fogo da crueldade.
Inicia o teu apostolado de paz, calando a inquietação no campo do próprio ser.
Conforme noticiado pela Revista Fórum, há algum tempo, o Papa Francisco recebeu, no Vaticano, a viúva do Pedagogo Paulo Freire, Ana Maria Araújo Freire, em encontro privado que durou cerca de 40 minutos.
A audiência fora solicitada viúva e ocorreu há cerca de um mês para pedir ao Bispo de Roma que intercedesse junto aos sacerdotes de sorte a trazerem a público as cartas que lhes foram escritas por Paulo Freire acerca da Teologia da Libertação (corrente latino-americana que defende que a igreja deve estar sempre voltada às necessidades dos menos favorecidos).
Solicitou, ainda, que fossem abertos os arquivos do Vaticano para que se pudesse pesquisar a possível influência do livro “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire, nos pontificados a partir de 1970, data de sua publicação.
A viúva de nosso notável pedagogo e grande humanista obteve uma notícia que revela, de pronto, a grandeza da obra de Freire e sua repercussão junto à Igreja Católica: o Papa Francisco revelou ter lido o livro “Pedagogia do Oprimido”.
O livro mencionado por Francisco e todos os demais livros de Paulo Freire podem ser baixados gratuitamente, no Acervo Paulo Freire.
Sabe, um dia desses, em um desses momentos únicos, em que mergulhamos na infinitude de nossos pensamentos e parecemos esquecer do resto do mundo, minha mente me fez a seguinte pergunta: o que dá sentido a vida?
O que nos faz ter a vontade de levantar todo dia pela manhã e abrir a janela, mesmo quando o sol insiste em não aparecer?
Talvez seja uma ousadia, e até mesmo bobagem da minha parte tentar desvendar esse mistério, mas acredito que a resposta dessa pergunta pode ser resumida em apenas uma palavra: o desconhecido.
Já parou para pensar se nossa vida fosse um livro escrito, a partir do qual teríamos acesso não só aos grandes, como aos pequenos acontecimentos de nosso dia a dia?
Sendo assim, você levaria o guarda chuva ao sair de casa, pois saberia que a chuva viria, mas não desfrutaria da sensação única que é sentir ela escorrendo pelo seu corpo.
Você não tomaria as decisões erradas, mas também não teria a chance de adquirir o amadurecimento que, muitas vezes, só elas são capazes de nos fornecer.
Você não escolheria se apaixonar e se envolver com alguém que, segundo seu livro, irá te fazer sofrer, porém não traria consigo lindas lembranças dos momentos que dividiram juntos.
Mas não. Felizmente não é assim. Somos convidados cada dia a ir deitar sem saber o que esperar do dia de amanhã.
E é isso, esse total mistério e infinitude de possibilidades que nos dá, se não o sentido, a vontade de viver.
Tudo bem, a vida pode até ser um livro, mas somos nós quem pegamos o lápis e o preenchemos a cada dia com nossas constantes descobertas daquilo que, até então, era desconhecido.
Sean Yoro é um artista havaiano que, mesmo morando em Nova Iorque, mantém parte de seu trabalho criativo sobre uma prancha de surfe. Para isso ele realiza pinturas de “street art” em murais de concreto que foram construídos dentro da água.
As figuras femininas surgem, então, também da água e o artista explora seus reflexos em um efeito tridimensional hiper-realista.
Convido-os para conhecer o seu trabalho.
Conheça mais sobre o artista em seu website HULA/ Instagram.
Desde o ano passado, episódios de racismo contra jogadores de futebol têm sido frequentes. Em meados de 2014 um caso, relatado abaixo no texto, chamou a atenção devido a maneira como a torcedora do Grêmio foi identificada e perseguida após sua manifestação racisca. Em abril de 2015 a pôlemica foi reacesa quando o jogador Elias do Corinthians sofreu o mesmo tipo de insulto. Convido-os para refletir sobre o tema e o posicionamento das pessoas frente a situações como essas.
Racismo, linchamento e meias – verdades
Por Ana Flávia Velloso
Os jornais dão notícia do incêndio criminoso na casa da torcedora que chamou o goleiro do time adversário de “macaco.” O linchamento, que antes era moral, passou às vias de fato. Não se trata de minimizar o conteúdo racista da palavra usada. Mas é a história toda que se deve contar, pois, como me ensinou meu pai, pior do que a mentira é a meia verdade.
O insulto ocorreu num estádio de futebol, onde gramados e arquibancadas têm o hábito de testemunhar impropérios. Por que tanta comoção em torno de seis letrinhas proferidas num contexto tão, digamos, específico?
Psicanalistas costumam evocar a inclinação do indivíduo a se exaltar com feitos que ele próprio identifica como potencial fraqueza sua. É como se pela indignação pudéssemos expurgar o mal que habita nossa própria alma. Segundo essa lógica, a crítica voraz seria um meio de exorcizar nossos demônios, promovendo a equação simples: ele, malvado, eu, que o reprovo e repudio, bonzinho.
Hannah Arendt, ao presenciar o julgamento de Adolf Eichmann, expressou a opinião de que aquele homem, visto como a encarnação do mal, não passava de um burocrata. Ele seria, para ela, a personificação daquilo que chamou de a “banalidade do mal”, ou seja, de uma ideologia criminosa que permeava as estruturas de um Estado, de uma sociedade, de uma cultura.
A notável pensadora alemã, de origem judaica, foi mal interpretada. Acusaram-na de assumir a defesa do criminoso nazista. Hannah Arendt foi alvo de uma espécie de linchamento intelectual. Também pudera. Tocava ela num ponto nevrálgico. Sua tese era impalatável aos judeus, que buscavam, na condenação de Eichmann, uma catarse de sentimentos com os quais se tornava difícil conviver. Identificar o mal numa pessoa e aniquilá-la deve ser menos penoso que vislumbrar a injustiça como difusa, sem rosto, sem nome.
A sociedade ocidental, por sua vez, tão ciosa dos valores elevados que propagava naquele pós-guerra, pode ter sido insuportável a ideia de que a barbárie pudesse ter se disseminado também em suas bases, e de que ela própria teria sido cúmplice do horror que então censurava com veemência. A todos, quem sabe, teria parecido uma boa saída detonar os símbolos, acreditando que com as suas cinzas evaporava-se uma aberração, purgavam-se os crimes cometidos contra a humanidade.
Pergunto-me se o alvoroço criado pelo racismo – se é que houve mesmo manifestação de racismo – da jovem torcedora não se produziu por termos sido obrigados a confrontar um de nossos maiores flagelos. Talvez os julgadores mais severos tenham bem presente na memória o fato de que até outro dia alguns clubes brasileiros barravam abertamente a entrada de negros, que expressões pejorativas para designar os afrodescendentes, não faz muito tempo, eram articuladas impunemente, e ainda o são, hoje, em voz baixa. Talvez, enfim, seja um ódio racial inconsciente, convertido em insuportável culpa, que a sociedade brasileira queira arrancar de suas vísceras mediante atos de hostilidade dirigidos a uma pessoa determinada, escolhida no meio da multidão para purgar seus pecados.
Sigmund Freud mencionou a escolha de bodes expiatórios como o mais primitivo dos mecanismos de defesa do ser humano. É aquele gesto corriqueiro de descontar no outro as próprias frustrações e rancores. A sublimação seria o mais bem sucedido daqueles mecanismos. Sublimamos quando extraímos do sofrimento o poder de criar, como escrever um poema ou pintar um quadro. No âmbito coletivo, a agressão está longe de ser a forma mais evoluída de expressar boas intenções.
Gilberto Freyre escreveu, nos anos trinta, Casa Grande e Senzala. Se não podemos produzir obra-prima semelhante sobre as origens da discriminação racial em nossa sociedade, que tenhamos, pelo menos, ânimo para ler o livro, coragem para examinar nossas consciências e nos contarmos uma verdade inteira, e não cortada ao meio, por mais infame que ela nos pareça.