Há quem roube e quem abençoe

Há quem roube e quem abençoe

Por Adriana Vitória

Outro dia chegando ao Rio, paramos em um sinal próximo a central, onde frequentemente há um grupo de cinco a sete pessoas, geralmente mal vestidas, que correm na direção dos carros com garrafas de plástico e sabão para limpar os vidros em busca de alguns trocados.

A cena é de fato ameaçadora, mas é de cortar o coração ver os motoristas se apressando em fechar suas janelas e fingir não vê-los. Ao mesmo tempo, ficar refém, por três eternos minutos, sem ter para onde correr.

Apesar de saber dos riscos, normalmente escolho manter minha janela ligeiramente aberta e até hoje não me arrependi, apesar de já ter sido assaltada algumas vezes em situações diversas.

Desta vez o homem se aproximou com uma mulher. Os dois aparentavam profunda exaustão. Separamos dois reais e, sorrindo, permitimos que limpassem os vidros.

Quando lhes demos o dinheiro os dois se voltaram, olharam bem pra nós e nos abençoaram. Estavam de fato gratos, não pelos dois reais, apesar de sempre ajudar, mas por não sermos apenas mais um, junto com o Estado, a lhes virar as costas indiferentes a sua real existência e necessidades.

O ser humano é um dos animais mais frágeis que existem. Necessita de muita atenção e amor para se construir e criar uma estrutura interna sólida para lidar com a vida.

Quando a carência prevalece, a sociedade cria anomalias. Seres cheios de rancor e revolta que sobrevivem à margem da sociedade em submundos que nenhum de nós poderia imaginar em nossos piores pesadelos.

No final das contas, nos tornamos todos reféns de um sistema sórdido e perverso. Triste.

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Umberto Eco e a “legião de imbecis” das redes sociais

Umberto Eco e a “legião de imbecis” das redes sociais

Sempre tento ler os livros publicados pelo escritor e filósofo italiano Umberto Eco. Confesso que leio alguns com mais e outros com menos interesse. Destes, há livros que nem mesmo concluo a leitura, mas é sempre bom ao menos tentar concluir.

Na semana passada, o escritor, crítico contumaz das novas tecnologias, ao receber o título de Doutor Honoris Causa em Comunicação e Cultura, em Turin (norte da Itália), tocou em um assunto que, ainda que seja ele um notório intelectual com profundidade temática em diversos assuntos, certamente tanto eu que aqui escrevo quanto você que me lê entende mais do que ele: as redes sociais.

Segundo Eco, a internet dá direito à palavra a uma “legião de imbecis” que antes falavam apenas “em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. Afirma Eco que, “normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel”. E arrematou: “O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”.

Estou aqui para concordar com o Eco e para analisar a sua brilhante constatação. De fato o escritor tem razão. Como duvidar dele? Idiotas de toda a ordem povoam as redes sociais. Mas o que o Eco não percebeu e que venho aqui ponderar é que os idiotas sempre tiveram a palavra, mesmo antes do advento da informatização.

Antes dela, gozavam da palavra muitos idiotas catedráticos. Seres dotados de conhecimento acadêmico, mas que, sem qualquer senso de humanidade, desfilavam as pérolas do seu conhecimento como se fosse exclusivamente seu, esquecidos de que centenas de pessoas laboraram para que aquele conhecimento se consolidasse, ao longo da história.

Antes dela, já gozam da palavra idiotas militarizados que estabeleciam verdades intocáveis e regras intransponíveis, cerceando atos e pensamentos.

Antes, valiam-se da palavra idiotas que, do alto de seus títulos, zombavam dos pequeninos situados lá embaixo, na pirâmide social, e estes tinham que agonizar calados diante das mazelas do mundo.

Antes da internet, estes e outros imbecis reinavam sozinhos, perfilando sua “vã filosofia” pelas cátedras, nos livros, em textos pouco compreensíveis, em dizeres enigmáticos, em tiradas de sarcasmo contra a massa inculta.

É preciso que alguém console o nobre escritor Umberto Eco, pois está democratizado o status de imbecil. Os primeiros já não reinam sozinhos e absolutos. Agora até quem não tem um Nobel, pasmem, pode achar-se gente e fazer uso da vez e da voz.

Dados insuficientes para resposta significativa

Dados insuficientes para resposta significativa

Por Josie Conti

O título deste texto é uma frase utilizada recorrentemente no conto de ficção-científica “A última pergunta” do escritor russo/ estadunidense Isaac Asimov. Embora o conto gire em torno da pergunta que poderia dar resposta à completa extinção do homem, no caso a “última pergunta”, o que mais me fascinou em todo o enredo foi a resposta que era dada pelos computadores, supercomputadores e tecnologias subsequentemente ao longo de bilhões de anos quando a pergunta era proferida: “Dados insuficientes para resposta significativa.” Ou seja, ainda não havia dados que pudessem evitar o fim da humanidade.

A linha de respostas para a vida é cíclica. Começamos praticamente no não saber.  Aprendemos muito na infância, achamos que sabemos tudo na adolescência e, se tivermos bom senso e amadurecermos, percebemos ao longo da idade adulta que o que sabemos é um quase nada. E haja reflexão para extrair sentidos em meio a tamanha ignorância descoberta.

Assim como o tempo das resposta muda, a quantidade e o significado também pode mudar. Lembro-me, por exemplo, de antigamente assistir a um filme achando que tinha que gostar de tudo. Hoje percebo que, se o filme tiver uma “sacada” ou frase genial, ele já valeu pelo seu tempo. É claro que ninguém tem tempo para ficar jogando fora, mas você está lá, já viu o filme, por que não extrair o melhor dele.  Aconteceu recentemente por aqui e já que o assunto é ficção científica prossigo com o exemplo. Inventei de assistir o filme “Esfera”, de 1998. O elenco era interessante e trazia nomes como Dustin Hoffman, Samuel, L. Jackson e Sharon Stone. Nem preciso dizer que achei péssimo, o filme não se alinhou com o meu gosto nem em roteiro e nem em produção. Gostei, entretanto, da mensagem contida em seus últimos minutos. Não que esses minutos  valham o filme- lembrem-se que ele tem mais de duas horas).

Explico:

A ideia era a seguinte: Os tripulantes, influenciados pela “esfera” que lhes conferia poder, transformavam seus maiores medos em realidade. Entretanto, somente nesse finalzinho da história é que ficou claro que a esfera mostrava a essência do homem e não necessariamente seus medos. Logo, eles não estavam prontos para ter esse poder porque não eram essencialmente bons. Não possuíam bondade suficiente, mesmo que superficialmente isso não aparecesse, para serem vistos no “real” de si. Eles não tinham “dados suficientes” dentro de si para administrar o poder da esfera.

Quantas vezes não erramos ao tirar conclusões e cometer atos e até atrocidades antes de termos “dados suficientes para uma resposta significativa”? A falta de maturidade para com nossa própria ignorância e do reconhecimento e aceitação de nosso lado- que não é tão bom quanto gostamos de imaginar- tem sido responsável por guerras reais e imaginárias e pelo progresso da destruição do planeta que continua em escalas geométricas.

Entretanto, mais do que falar da falta de consciência global, precisamos retomar a consciência de nós mesmos, de quem somos, do que querermos e de quais realmente são os dados significativos que motivam as nossas vidas.

Que sua vida seja melhor que meu filme. E que, apesar de nossa natureza muitas vezes duvidosa, existam dados suficientes para uma resposta significativa, mesmo que estes cheguem nos últimos minutos.

Fernando Pessoa, em entrevista, fala de política, artes e literatura

Fernando Pessoa, em entrevista, fala de política, artes e literatura
Entrevista datada de outubro de 1923, na qual Fernando Pessoa discorre sobre diversos temas de seu tempo. Constante do acervo Fernando Pessoa, hoje de domínio público.

O escritor Fernando Pessoa expõe-nos as suas ideias…

AS NOSSAS ENTREVISTAS

O escritor Fernando Pessoa expõe-nos as suas ideias sobre os vários aspectos da arte e da literatura portuguesas.

Entrevistar Fernando Pessoa não é fácil. Só é fácil entrevistar os que não pensam, os que não se importam de jogar palavras, ao acaso, atirando-as impudicamente ao vento.

Fernando Pessoa, quer como Fernando Pessoa, quer como Álvaro de Campos – o engenheiro alucinado que comporta o seu segundo eu, e que aparece em toda a parte, enchendo a voz de louvores e raios para a Vida – raios partam a Vida e quem lá ande! -é sempre um voluptuoso do raciocínio, um amante da inteligência, podemos dizer: um criador duma nova Razão. Paradoxal? Sem dúvida. Mas há tantas maneiras de ser paradoxal!

A entrevista que se segue, toda escrita por Fernando Pessoa – nem podia deixar de ser, visto Fernando Pessoa possuir uma sintaxe própria para a lógica própria dos seus pensamentos, misto de seriedade e de ironia, vai decerto prender o espírito dos leitores…

Atenção! Fernando Pessoa vai responder às perguntas que lhe fizemos:

– Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos – político, moral e intelectual?

– A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico.

Todo povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que o povo não é colectivo.

O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita – como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova – o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática íntima.)

Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise.

As nossas crises particulares procedem desta crise geral. A nossa crise política é o sermos governados por uma maioria que não há. A nossa crise moral é que desde 1580 – fim da Renascença em nós e de nós na Renascença – deixou de haver indivíduos em Portugal para haver só portugueses. Por isso mesmo acabaram os portugueses nessa ocasião. Foi então que começou o português à antiga portuguesa, que é mais moderno que o português, e é o resultado de estarem interrompidos os portugueses. A nossa crise intelectual é simplesmente o não termos consciência disto.

Respondi, creio, à sua pergunta. Se V. reparar bem para o que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer.

– Que pensa dos nossos escritores do momento, prosadores poetas e dramaturgos?

– Citar é ser injusto. Enumerar é esquecer. Não quero esquecer ninguém de quem me não lembre. Confio ao silêncio a injustiça. A ânsia de ser completo leva ao desespero de o não poder ser. Não citarei ninguém. Julgue-se citado, quem se julgue com direito a sê-lo. Resolvo assim todos. Lavo as mãos, como Pilatos; lavo-as, porém, inutilmente, porque é sempre inutilmente que se faz um gesto simplificador. Que sei eu do presente, salvo que ele é já o futuro? Quem são os meus contemporâneos? Só o futuro o poderá dizer. Coexiste comigo muita gente que vive comigo apenas porque dura comigo. Esses são apenas os meus conterrâneos no tempo; e eu não quero ser bairrista em matéria de imortalidade. Na dúvida, repito, não citarei ninguém.

– Estaremos em face de uma renascença espiritual?

– Estamos tão desnacionalizados que devemos estar renascendo. Para os outros povos, na sua totalidade eles próprios, o desnacionalizar-se é o perder-se. Para nós, que não somos nacionais, o desnacionalizar-se é o encontrar-se. Apesar dos grandes obstáculos à nossa regeneração – todas as doutrinas de regeneração – estamos no início de tornar a começar a existir. Chegámos ao ponto em que colectivamente estamos fartos de tudo e individualmente fartos de estar fartos. Extraviámo-nos a tal ponto que devemos estar no bom caminho. Os sinais do nosso ressurgimento próximo estão patentes para os que não vêem o visível. São o caminho-de-ferro de Antero a Pascoaes e a nova linha que está quase construída. Falo em termos de vida metálica porque a época renasce nestes termos. O símbolo, porém, nasceu antes dos engenheiros.

Nada há a esperar, é certo, das classes dirigentes, porque não são dirigentes; e ainda menos da proletariagem, porque ser inferior não é uma superioridade. Com razão lhes chamei eu, a estes, subgente, num artigo da antigaÁguia – da Águia que voava. Só a burguesia, que é a ausência da classe social, pode criar o futuro. Só de uma classe que não há pode nascer uma classe que não há ainda. Seja como for, avancemos confiadamente. Todos os caminhos vão dar à ponte quando o rio não tem nenhuma.

– O que se deve entender por arte portuguesa? Concorda com este termo? Há arte verdadeiramente portuguesa?

– Por arte portuguesa deve entender-se uma arte de Portugal que nada tenha de português, por nem sequer imitar o estrangeiro. Ser português, no sentido decente da palavra, é ser europeu sem a má-criação de nacionalidade. Arte portuguesa será aquela em que a Europa – entendendo por Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro – se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações – a Grécia passada e Portugal futuro – receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras. Chamo a sua atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa e Atenas estão quase na mesma latitude.

– O regionalismo na literatura e na pintura?

– O regionalismo é uma degeneração gordurosa do nacionalismo, e o nacionalismo também. E como o nacionalismo é antiportuguês (sendo bom, cá no Sul, só para os povos latinos e ibéricos), o regionalismo em Portugal é uma doença do que não há. Amar a nossa terra não é gostar do nosso quintal. E isto de quintal também tem interpretações. O meu quintal em Lisboa está ao mesmo tempo em Lisboa, em Portugal e na Europa. O bom regionalismo é amá-lo por ele estar na Europa. Mas quando chego a este regionalismo, sou já português, e já não penso no meu quintal. (O facto de o meu quintal ser inteiramente metafórico não diminui a verdade de tudo isto: Deus, e o próprio universo, são metáforas também.)

– Teriam existido em toda a nossa história literária períodos de criação?

– O nosso único período de criação foi dedicado a criar um mundo. Não tivemos tempo para pensar nisso. O próprio Camões não foi mais que o que esqueceu fazer. Os Lusíadas é grande, mas nunca se escreveu a valer. Literariamente, o passado de Portugal está no futuro. O Infante, Albuquerque e os outros semideuses da nossa glória esperam ainda o seu cantor. Este poderá não falar deles; basta que os valha em seu canto, e falará deles. Camões estava muito perto para poder sonhá-los. Nas faldas do Himalaia o Himalaia é só as faldas do Himalaia. É na distância, ou na memória, ou na imaginação que o Himalaia é da sua altura, ou talvez um pouco mais alto. Há só um período de criação na nossa história literária: não chegou ainda.

– Continuará sendo o lirismo a nossa feição literária predominante?

– Há duas feições literárias -a épica e a dramática. O lirismo é a incapacidade comovida de ter qualquer delas. O que é ser lírico? É cantar as emoções que se têm. Ora cantar as emoções que se têm faz-se até sem cantar. O que custa é cantar as emoções que se não têm. Sentir profundamente o que se não sente é a flâmula de almirante da inspiração. O poeta dramático faz isto directamente; o poeta épico fá-lo indirectamente, sentindo o conjunto da obra mais que as partes dela, isto é, sentindo exactamente aquele elemento da obra de que não pode haver emoção nenhuma pessoal, porque é abstracto e por isso impessoal. Fomos esboçadamente épicos. Seremos inviolavelmente dramáticos. Fomos líricos quando não fomos nada. O lirismo só continuará sendo a nossa feição predominante se não formos capazes de ter feição predominante.

– O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?

-O Quinto Império. O futuro de Portugal —que não calculo mas sei —está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamo. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeismo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.

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Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

1ª publ. in Revista Portuguesa, nº 23-24. Lisboa: 13-10-1923.

Andar de manhã, um texto de Rubem Alves sobre como olhar a vida

Andar de manhã, um texto de Rubem Alves sobre como olhar a vida

Durante as duas últimas semanas tenho começado os meus dias cometendo um furto. Não sei como evitar esse pecado e, para dizer a verdade, não quero evitá-lo. A culpa é de uma amoreira que, desobedecendo as ordens do muro que a cerca, lançou seus galhos sobre a calçada. Não satisfeita, encheu-os de gordas amoras pretas, apetitosas, tentadoras, ao alcance de minha mão. Parece que os frutos são, por vocação, convites a furtos: basta mudar a ordem de uma única letra… Penso que o caso da amoreira comprova esta tese linguística: tudo tem a ver com o nome. Pois amora é a palavra que, se repetida muitas vezes, amoramoramoramora, vira amor. Pois não é isso que é o amor? Um desejo de comer, um desejo de ser comido… O muro, tal como o mandamento, diz que é proibido. Mas o amor não se contém e, travestido de amora, salta por cima da proibição. Foi assim no Paraíso… Os poucos transeuntes que passam por ali àquela hora da manhã talvez se espantem ao ver um homem de cabelos brancos colhendo amoras proibidas. Mas, se prestarem bem atenção, verão que quem está ali não é um homem com cerca de 70 anos, é um menino. E como o próprio filho de Deus que disse que é preciso voltar a ser menino para entrar no Reino dos Céus, colho e como as amoras com convicção redobrada. E para que não pairem dúvidas sobre a inspiração teologal do meu ato, enquanto mastigo e o caldo roxo me suja dedos e boca, vou repetindo as palavras sagradas: “Tomai e bebei, este é o meu sangue…”. Ah! A divina amora, graciosa dádiva sacramental! Começo assim meu dia, furtando o fruto mágico que opera o milagre por todos sonhado de voltar a ser criança.

Assim revigorado no corpo e na alma por esse maná divino caído dos céus, prossigo na minha caminhada matutina. Ando não mais que 50 passos e estou sob uma longa alameda de pinheiros. Neles, não há nenhuma fruta que eu possa roubar, pois nada produzem que possa ser comido. Pinheiros não são para boca. São dádivas aos olhos. É cedo ainda. O sol acabado de nascer ilumina suas espículas verdes, que brilham como agulhas de cristal. Lembro-me de Le Corbusier, que dizia que “as alegrias essenciais são o sol, o espaço, e verde”. Mas os pinheiros sabem mais que o arquiteto, e às alegrias da luz acrescentam as alegrias do cheiro. Respiro fundo e sinto o perfume de resina.

Se me perguntarem no que penso, respondo com um verso Tao: “O barulho da água diz o que eu penso”. Penso as amoras, penso os pinheiros, penso a luz do sol, penso no cheiro da resina.

É tempo da floração das sibipirunas. Verdes e amarelas, elas cresceram dos dois lados da rua onde ando, transformando-a num longo túnel sombrio. Durante a noite, suas flores caíram, cobrindo a calçada e transformando-a num tapete dourado. Desço da calçada e ando no asfalto para não pisá-las. Lembro-me da voz misteriosa que falou a Moisés, de dentro da sarça que ardia: “Tira as sandálias dos teus pés, pois o chão onde pisas é santo”.

Para contemplar esse espetáculo, é necessário levantar cedo, pois logo as donas de casa e suas vassouras tratarão de restaurar no cimento a sua fria limpeza. Isso me dói, e com a dor vem o pensamento. Pergunto-me sobre a educação perversa que fez com que as pessoas se tornassem cegas para a beleza generosa das árvores, tratando suas folhas como se fossem sujeira. Mas as sibipirunas, indiferentes à cegueira dos homens e das vassouras repetirão o milagre durante a noite. Amanhã as calçadas estarão de novo cobertas de ouro.

Caminho um pouco mais e chego ao Bosque dos Alemães. Espera-me ali um outro deleite, o deleite dos ouvidos: há uma infinidade de cantos de pássaros que se misturam ao barulho das folhas sopradas pelo vento. Não estou sozinho. Fazem-me companhia muitas outras pessoas, entregues ao exercício matutino do andar e do correr. Estão ali por medo de morrer antes da hora. É preciso exercitar o coração. Mas parece que é só isso que exercitam. Pois, por mais que me esforce, não consigo perceber em seus rostos sinais de que estejam exercitando também o deleite dos olhos, do nariz ou dos ouvidos. Correm e caminham com olhos fixos no chão, graves e concentradas, compelidas pelas necessidades médicas. E, por causa disso, por não saberem ver e ouvir, não se dão conta de um comovente caso de amor que ali se desenrola.

Percebi o romance faz muito tempo, quando ouvi os gemidos que me vinham do alto. Lá em cima, longe dos olhares indiscretos, um gigantesco eucalipto e uma árvore de rolha se abraçam. Seus galhos entrelaçados revelam o amor dos namorados. Acho que fazem amor, pois quandoo vento sopra fazendo suas cascas se esfregarem uma na outra, elas gemem de prazer… e dor.

Ando toda manhã. Por razões médicas, é bem verdade. Mas, mesmo que não existissem, andaria da mesma forma, pelos pensamentos leves e alegres que a natureza me faz pensar. Boa psicanalista é a natureza, sem nada cobrar, pelos sonhos de amor que nos faz sonhar.

Rubem Alves, no livro “As melhores crônicas de Rubem Alves” 

Conheçam o Instituto Rubem Alves e participem de seus projetos.

Dica de livro: Sete Vezes Rubem (Fruto do trabalho de uma década, esta obra reúne sete livros de Rubem Alves publicados pela Papirus entre 1996 e 2005.)

Até que o karma nos separe (ou não)

Até que o karma nos separe (ou não)

Por Adriana Abraham

Quando iniciamos uma relação amorosa com alguém que julgamos importante, os desafios com os filhos e parceiros de relacionamentos anteriores já são fatores automaticamente ponderados nos primeiros estágios. Cada um sabe qual o seu limite. É preciso ter alcançado maturidade emocional suficiente para saber o quanto estamos dispostos a nos comprometer para estabelecer uma relação saudável.

Por isso, além da preocupação com a compatibilidade moral, física, intelectual, financeira ou qualquer outra que seja considerada importante para os envolvidos no relacionamento, não seria interessante nos preocuparmos também com o carma da pessoa com a qual pretendemos compartilhar nossa vida?

É certo que não se trata de assumir os resultados das ações positivas ou negativas do parceiro, uma vez que isso seria impossível pela lei do carma. Cada indivíduo é responsável pelos efeitos produzidos a partir de seus pensamentos, palavras e ações.

Jetsunma Tenzin Palmo, em uma passagem do livro “No coração da vida”, ensina que o Buda disse que carma é intenção. Isso significa que as sementes que plantamos não são influenciadas pela real ação manifesta, mas pela motivação que há por trás dessa ação.
Logo, num relacionamento amoroso no qual os parceiros pratiquem a atenção plena de forma habitual, ambos se esforçariam para não acrescentar negatividade ao carma do outro de forma intencional. Tal ação desafiaria o nível de desapego e compaixão de um pelo outro.

Lama Tsering Everest, em seus ensinamentos acerca dos venenos da mente, descreve uma situação em que um dos parceiros decide se separar, não apenas por considerar o seu próprio sofrimento com as ações do outro, mas por não desejar que mais carma negativo fosse acumulado pelo parceiro por conta de suas ações.
Quem diria que a maior prova de amor pode ser justamente se afastar de seu parceiro para que suas ações negativas não produzam mais carma. Esse ensinamento budista poderia ser um substituto para os clichês ditos ao final dos relacionamentos, como por exemplo:

– Você vai ficar bem. Pelo menos não vai acumular mais carma negativo.

Os relacionamentos amorosos, vistos sob a ótica budista, começam e terminam dependendo do carma de cada um dos envolvidos. Isso fica mais claro quando os parceiros se dispõem a fazer uma análise pregressa dos fatos, o que geralmente é feito ao final de uma relação.

Chagdud Tulku, no livro “Para abrir o coração”, ensina que o ideal é que nosso objetivo, nos relacionamentos, seja trazer felicidade, e não dor e sofrimento. Não temos tanto tempo juntos antes que a morte nos separe.
Seria então possível considerar a impermanência das relações humanas como fator principal para evitar a separação? Os casamentos mais duradouros seriam aqueles em que ambos sabem que não há tempo a perder com as pequenas desavenças. Se tudo pode acabar a qualquer momento, por que não aproveitar o há de melhor no parceiro?

Vale lembrar que o carma acumulado ao longo de muitas vidas também serve para unir um casal, como bem ensina Chagdud Tulku em passagem do mesmo livro: se houver carma para que o relacionamento seja bem-sucedido, nada impedirá que o casamento dê certo.

Assim, que o carma nunca deixe de nos unir. E, caso nos separe, que seja para o bem de ambos. Amém.

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Terapia em Grupo: a parte e o todo

Terapia em Grupo: a parte e o todo

Por Elika Takimoto

Oi, doutora. É o seguinte: você vai precisar fazer análise de um grupo. Quem são os componentes? Não se preocupe, na sua frente só serei eu mesma. É que eu tenho um leque de vidas que vou levando. Até há pouco tempo não percebia que era formada de muitas. Por estar em um corpo só, pensava ser um eu-somente. Até que li Fernando Pessoa e entendi o meu plural e a ebulição em que me encontro. Na verdade, foi esse amontoado de eus que entraram em conflito, mas não eu mesma se é que você me entende. Cada eu exige de mim uma postura diferente e esses múltiplos querem sincronicidade em lugares diversos. Tá tenso, doutora. Mega tenso. E pelo que estou entendendo, digo, esse eu-inteiro não está suportando essa convivência entre as partes.

Meu corpo, doutora, está padecendo. Enxaquecas horríveis, insônias, falta de apetite e de atenção e crises de choro no meio de minhas corridas de final de tarde. Consegue imaginar? Sim, posso lhe dar exemplos. Quero conhecer o mundo, muitos dizem que eu ia amar ser mochileira na Itália, mas não consigo mudar o meu CEP por ser o mesmo dos meus pais há quarenta anos. Veja que coisa ridícula. Todos os meus irmãos saíram de casa, minhas irmãs mudaram até de Estado. Não, eu não moro com meus pais. Moro ao lado deles. Pois então, o meu eu-filha faz o meu eu-mundo empacar. E ainda que o eu-mundo vença ele será infeliz e preocupado.

Preocupante, eu sei.

O meu eu-professora está travado pelo meu eu-filósofa. Comecei, digo, o meu eu-filósofa começou a questionar o quanto o eu-professora contribui dentro de sala de aula para que meus alunos formem um conceito – do qual não concordo – de ciência. Física para mim hoje é uma ciência inexata. Einstein, Newton, Galileu não eram gênios da ciência e sim da arte. De objetivo nem mais os números, para mim.

O meu eu-adulta se existe deve estar vagando pelo Universo. Se está em mim, certamente é mudo, surdo e cego. Não posso contar com ele. Ainda que eu saiba que não são os cabelos brancos e as rugas, não é o cérebro bem usado ou o corpo calejado, não é quilometragem rodada que nos apontam que chegamos à vida adulta e sim o fato de sabermos que há mistérios indecifráveis, perguntas cada vez mais profundas e incertezas infindáveis, mesmo sabendo de tudo isso, doutora, eu ainda me assusto em demasiado com a escuridão.

Quantos somos até agora? Contei cinco. Mas há muito mais.

Quero passar rápido pelo conflito eu-mulher versus eu-mãe. Nesta área, viro um clichezão. Você deve estar careca de ouvir mulheres que não sabem dosar cada um desses lados. Pode ter certeza que comigo não é diferente. Acho que a confusão maior tem se dado não com o eu-mãe e sim com o eu-escritora. Minha Vida é um Blog Aberto não é devidamente aceito e compreendido por ele-homem. Cheguei a essa conclusão. Aprendi a fazer arte com cenas do meu cotidiano, inclusive, com minhas inseguranças e minhas dores. Fui premiada com a literatura que consegui elaborar. Mas os textos nada dizem sobre o meu eu-inteiro. E se escrevo um texto feliz e publico para todos lerem, isso está longe de significar que estou imersa em um certo estado de graça. Somente aponta que eu vivi um momento bom. Não sei porquê cargas d´água as pessoas tomam a parte pelo todo e julgam como está funcionando o resto dos meus órgãos. Minhas postagens nas redes sociais apresentam o mesmo problema. A despeito de eu me expor muito, jamais me mostro por inteira. O que veem é uma porcentagem de um eu somente. Amigos têm me falado que me exponho demais e me aconselham a parar de agir assim. Isso me dói muito, doutora, porque é o mesmo que me pedir para não mais escrever. É o mesmo que pedirem que eu morra. Mas, de fato, não há um eu-mulher e um ele-homem que se entendam com o que julgam do meu eu-inteiro ao lerem a produção do meu eu-escritora.

Tenho muita pena de alguém morrer, doutora. O ideal seria conciliar, mas não está sendo possível. Não tenho medo de perder um braço, doutora, não é isso, mas como disse Clarice, a Lispector, cortar os defeitos pode ser perigoso. No meu caso, asfixiar um determinado eu. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Quem me garante que deixando de escrever e de mostrar uma pequena parte de minha vida para o público não perderei o indivíduo mais importante que me habita?

É possível, doutora, instituir uma ordem nessa habitação coletiva?

Não. Não me terminei ainda. Faltam, segundo as minhas contas, mais dezenove. E há ainda as subdivisões. Por exemplo, eu-mãe se divide em eu-mãe-do-Hideo, eu-mãe-da-Nara e eu-mãe-do-Yuki. Sou filha-do-meu-pai, filha-da-mãe e filha-da-puta. Eu-pilates, eu-corredora, eu-inerte. Eu-leitora, eu-leiteira, eu-literal, eu-literatura. Eu-escritora, eu-escrutínio, eu-escrachada. Eu-professora, eu-proferida, eu-professia, eu-prolixa, eu-proliferada. Eu-supermercado, eu-superficial, eu-supracitada, eu-superstição. Eu-quero, eu-querida, eu-quermesse, eu-querela. Eu-reflexão, eu-reflexo, eu-refratada, eu-refratária. Eu-cozinha, eu-lavabo, eu-banheiro, eu-quarto, eu três-quartos, eu-inteira.

Estou em pedaços, doutora.

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Tao: o caminho sem meio

Tao: o caminho sem meio

Por Tatiana Nicz

“Trinta raios convergem para o meio de uma roda
Mas é o buraco em que vai entrar o eixo que a torna útil.

Molda-se o barro para fazer um vaso;
É o espaço dentro dele que o torna útil.

Fazem-se portas e janelas para um quarto;
São os buracos que o tornam útil.

Por isso, a vantagem do que está lá
Assenta exclusivamente
na utilidade do que lá não está.”

Tao Te Ching (道德經), Cap. 11

Os ensinamentos budistas são implacáveis na questão do caminho do meio, mesmo quem não conheça nada ou quase nada de budismo já ouviu falar no caminho do meio. Eu, como uma boa libriana que nunca se equilibra, acho esse papo de caminho do meio um saco. Talvez seja puro recalque mesmo, porque em poucas situações na minha vida fui bem sucedida em achar o tal caminho do meio, não, eu transito pelas bordas, nos limites, ora cá, ora acolá.

Acontece que agora virei uma espécie de boa samaritana careta e como todo bom samaritano careta, fiquei chata. Tipo, muito chata. Chata e deslocada, mas até aí tudo bem, deslocada eu sempre me senti, a vida toda. Sempre me senti nadando contra a maré.

No terceirão, enquanto todos escolhiam suas carreiras entre cursos como Direito, Medicina, Jornalismo, eu quis fazer Filosofia. Quando o Ecoturismo não era moda, fui morar em Bonito. Quando o vegetarianismo não era tão divulgado virei vegetariana. Quando morava em Londres e o verão se aproximava, os destinos mais cotados eram a costa da Espanha, Grécia, Itália e, para o desespero da minha família, resolvi curtir o verão fazendo trabalho voluntário em um Kibbutz em Israel. Nem a visita da minha irmã grávida em Londres – em missão para me convencer de não ir – resolveu.

Minha irmã gosta de dizer que sou do contra, que às vezes gosto ou não gosto de algo só para contrariar todo mundo. Talvez ela esteja certa, é difícil saber todos os motivos psicológicos que nos fazem gostar ou não de algo, fato é que não escolho nada por modismos e fato é também que não gosto de me sentir igual à massa. Talvez foi por isso que não tenha comprado “O Jardim Secreto”, ou deve ser por isso que eu gostava muito mais do Atlético quando ele jogava na “Baixadinha” e não havia sido Campeão Brasileiro.

Mas, andar pelas beiradas cansa tanto quanto o papo de caminho do meio. Sim, porque esse papo de ser impulsiva e inconsequente, colocar a cabeça para fora da janela na highway com o vento na cara, correr de meia na neve, viver (e contar) histórias surreais, isso tudo cola muito melhor nos filmes e nos livros do que na vida real, na vida real cansa ser intenso, para quem é e para quem convive com pessoas que o são.

E se cansa ser intenso é pior ainda ser careta, tipo eu agora. Sério, nem eu me aguento mais de tanta caretice. Chata. Tipo tomando chá de camomila e comendo granola. E nessa de ser careta tudo (ou quase tudo) perdeu a graça. O mundo anda esquisito, isso sabemos, só que eu não vejo mais sentido em quase nada do que acontece. Pois é, como eu disse: chata.

E eu na versão careta não bebo e acho a noite um saco. Acho as pessoas que estão na noite pior ainda. Assim como as pessoas da natureza e das Ecovilas, as que meditam, fazem Yoga e dizem “gratidão”, putz essas são malas-plus.

Têm ainda as que falam de crossfit, corrida ou aquelas que acham que a culpa de TODOS os males do Brasil (e suspeito que até do mundo) é da presidenta e do PT, essas vão além da minha cota de tolerância. Enfim, ao final de tudo isso pude concluir que elas não são um saco, porque ao menos, mesmo que sejam, elas estão seguindo seus caminhos e se divertindo. No fundo mesmo quem virou um saco sou eu que não se diverte mais porque acha tudo um saco.

E por não conseguir viver, nem entender o caminho do meio, apesar de achá-o necessário (porém utópico), ou talvez por andar sempre contra a maré, larguei os estudos budistas e comecei a estudar o Tao. Até porque acho não tem muito equilíbrio no caminho do meio do budismo (repare nos monges).

O Taoísmo é bacana porque aborda a nossa natureza de viver e de precisar das polaridades. Segundo o Tao, a vida é regida por dois elementos (dualismo): yin (feminino) e yang (masculino). Estas duas forças se complementam e não podem existir uma sem a outra.

A minha leitura do Tao faz validar que é preciso ter experiências de vida nos limites, ou seja, é preciso ser inconsequente e depois ser careta (ou o contrário) até equilibrar as duas forças em si; mais ainda: é preciso viver as fases da vida que se apresentam, como se apresentam: mesmo que eu me sinta assim tão chata, é hora de ser chata. Sem caminho do meio. Talvez isso seja apenas eu tentando justificar minha chatice. Talvez esse caminho do meio seja algo intangível mesmo, talvez nós estejamos condenados à viver nas polaridades, às vezes àgua, outras fogo. Ou não. Qualquer que seja a resposta, hoje acredito que viver por inteiro nos dois pólos vem antes de encontrar o meio.

E enquanto não descubro respostas para minhas perguntas, continuo aqui com minha caretice, essa chatice incurável que só tem quem enxerga o mundo de maneira tão literal e vê no mundo tanta coisa sem nexo. Mas juro que tenho me esforçado para ser uma boa samaritana daquelas bem “cool”  (se é que elas existem) e deixar as pessoas serem o que são, retirando-lhes os rótulos (sim, os mesmos que usei há pouco).

Porque sei que pode parecer limitado e chato ser careta, mas tenho certeza que mais limitado ainda é viver rotulando tudo. Se o mundo é feito de dualidades, eu ainda vejo milhares delas. E mesmo que não ache todas legais é importante, ao menos, aprender a respeitá-las. Portanto, gratidão.

Louvor do Aprender, um poema de Bertold Brecht

Louvor do Aprender, um poema de Bertold Brecht

Louvor do Aprender

Aprende o mais simples! Pra aqueles
Cujo tempo chegou
Nunca é tarde de mais!
Aprende o abc, não chega, mas
Aprende-o! E não te enfades!
Começa! Tens de saber tudo!
Tens de tomar a chefia!

Aprende, homem do asilo!
Aprende, homem na prisão!
Aprende, mulher na cozinha!
Aprende, sexagenária!
Tens de tomar a chefia!

Frequenta a escola, homem sem casa!
Arranja saber, homem com frio!
Faminto, pega no livro: é uma arma.
Tens de tomar a chefia.

Não te acanhes de perguntar, companheiro!
Não deixes que te metam patranhas na cabeça:
Vê c’os teus próprios olhos!
O que tu mesmo não sabes
Não o sabes.
Verifica a conta:
És tu que a pagas.
Põe o dedo em cada parcela,
Pergunta: Como aparece isto aqui?
Tens de tomar a chefia.

Bertold Brecht, in ‘Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas’
Tradução de Paulo Quintela

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A borboleta amarela, por Rubem Braga

A borboleta amarela, por Rubem Braga

Era uma borboleta. Passou roçando em meus cabelos, e no primeiro instante pensei que fosse uma bruxa ou qualquer outro desses insetos que fazem vida urbana; mas, como olhasse, vi que era uma borboleta amarela.

Era na esquina da Graça Aranha com Araújo Porto Alegre; ela borboleteava junto ao mármore negro do Grande Ponto; depois desceu, passando em face das vitrinas de conservas e uísques; eu vinha na mesma direção; logo estávamos defronte da ABI. Entrou um instante no hall, entre duas colunas; seria uma jornalista? – pensei com certo tédio.

Mas logo saiu. E subiu mais alto, acima das colunas, até o travertino encardido. Na Rua México eu tive de esperar que o sinal abrisse; ela tocou, fagueira, para o outro lado, indiferente aos carros que passavam roncando sob suas leves asas. Fiquei a olhá-la. Tão amarela e tão contente da vida, de onde vinha, aonde iria? Fora trazida pelo vento das ilhas – ou descera saçaricante e leve da floresta da Tijuca ou de algum morro – talvez o de São Bento? Onde estaria uma hora antes, qual sua idade? Nada sei de borboletas. Nascera, acaso, no jardim do Ministério da Educação? Não; o Burle Marx faz bons jardins, mas creio que ainda não os faz com borboletas – o que, aliás, é uma boa idéia. Quando eu o mandar fazer os jardins do meu palácio, direi: Burle, aqui sobre esses manacás, quero uma borboleta amare… Mas o sinal abriu e atravessei a rua correndo, pois já ia perdendo de vista a minha borboleta.

A minha borboleta! Isso, que agora eu disse sem querer, era o que eu sentia naquele instante: a borboleta era minha – como se fosse meu cão ou minha amada de vestido amarelo que tivesse atravessando a rua na minha frente, e eu devesse segui-la. Reparei que nenhum transeunte olhava a borboleta; eles passavam, devagar ou depressa, vendo vagamente outras coisas – as casas, os veículos – ou se vendo; só eu vira a borboleta, e a seguia, com meu passo fiel. Naquele ângulo há um jardinzinho, atrás da Biblioteca Nacional. Ela passou entre os ramos de acácia e de uma árvore sem folhas, talvez um flamboyant; havia, naquela hora, um casal de namorados pobres em um banco, e dois ou três sujeitos espalhados pelos outros bancos, dos quais uns são de pedra, outros de madeira, sendo que estes são pintados de azul e branco. Notei isso pela primeira vez, aliás, naquele instante, eu sempre passo por ali; é que minha borboleta amarela me tornava sensível às cores.

Ela borboleteou um instante sobre um casal de namorados; depois passou quase junto da cabeça de um mulato magro, sem gravata, que descansava num banco; e seguiu em direção à avenida. Amanhã eu conto mais.

Eu ontem parei minha crônica no meio da história da borboleta que vinha pela Rua Araújo Porto Alegre; parei no instante em que ela começava a navegar pelo oitão da Biblioteca Nacional.

Oitão, uma bonita palavra. Usa-se muito no Recife; lá todo mundo diz: no oitão da Igreja de São José, no oitão do Teatro Santa Isabel… Aqui a gente diz: do lado. Dá no mesmo, porém oitão é mais bonito. Oitão, torreão.

Falei em torreão porque, no ângulo da Biblioteca, há uma coisa que deve ser o que se chama um torreão. A borboleta subiu um pouco por fora do torreão; por um instante acreditei que ela fosse voltar, mas continuou ao longo da parede. Em certo momento desceu até perto da minha cabeça, como se me quisesse dizer: “estou aqui”.

Logo subiu novamente, foi subindo, até ficar em face de um leão, aliás há várias, cada uma com uma espécie de argola na boca, na Biblioteca. A pequenina borboleta amarela passou junto ao focinho da fera, aparentemente sem o menor susto. Minha intrépida, pequenina, vibrante borboleta amarela! pensei eu. Que fazes aqui sozinha, longe de tuas irmãs que talvez estejam agora mesmo adejando um bando álacre na beira de um regato, entre moitas amigas – e aonde vais sobre o cimento e o asfalto, nessa hora em já começa a escurecer, ó tola, ó tonta, ó querida pequena borboleta amarela! Vieste talvez de Goiás, escondida dentro de algum avião; saíste no Calabouço, olhaste pela primeira vez o mar, depois…

Mas um amigo me bateu nas costas, me perguntou “como vai, bichão, o que é que você está vendo aí?” Levei um grande susto, e tive vergonha de dizer que estava olhando uma borboleta; ele poderia chegar em casa e dizer: “encontrei hoje o Rubem, na cidade, parece que estava caçando borboleta”.

Me lembrei de uma história de Lúcio Cardoso, que trabalhava na Agência Nacional: Um dia acordou cedo para ir trabalhar; não estava se sentindo muito bem. Chegou a se vestir, descer, andar um pouco junto da Lagoa, esperando condução, depois viu que não estava mesmo bem, resolveu voltar para casa, telefonou para um colega, explicou que estava gripado, até chegara a se vestir para ir trabalhar, mas estava um dia feio, com um vento ruim, ficou com medo de piorar – e demorou um pouco no bate-papo, falou desse vento, você sabe (era o Noroeste) que arrasta muita folha seca, com certeza mais tarde vai chover, etc., etc.

Quando o chefe do Lúcio perguntou por ele, o outro disse: “Ah, o Lúcio hoje não vem não. Ele telefonou, disse que até saiu de casa, mas no caminho encontrou uma folha seca, de maneira que não pôde vir e voltou para casa”.

Foi a história que lembrei naquele instante. Tive – por que não confessar? – tive certa vergonha de minha borboleta amarela. Mas enquanto trocava algumas palavras com o amigo, procurando despachá-lo, eu ainda vigiava a minha borboleta. O amigo foi-se. Por um instante julguei, aflito, que tivesse perdido a borboleta de vista. De maneira que vocês tenham paciência; na outra crônica, vai ter mais história de borboleta.

Mas , como eu ia dizendo, a borboleta chegou à esquina da Araújo Porto Alegre com a Avenida Rio Branco; dobrou à esquerda, como quem vai entrar na Biblioteca Nacional pela escada do lado, e chegou até perto da estátua de uma senhora nua que ali existe; voltou; subiu, subiu até mais além da copa das árvores que há na esquina – e se perdeu.

Está claro que esta é a minha maneira de dizer as coisas; na verdade, ela não se perdeu; eu é que a perdi de vista. Era muito pequena, e assim, no alto, contra a luz do céu esbranquiçado da tardinha, não era fácil vê-la. Cuidei um instante que atravessava a avenida em direção à estátua de Chopin; mas o que eu vi era apenas um pedaço de papel jogado de não sei onde. Essa falsa pista foi que me fez perder a borboleta.

Quando atravessei a avenida ainda a procurava no ar, quase sem esperança. Junto à estátua de Floriano, dezenas de rolinhas comiam farelos que alguém todos os dias joga ali. Em outras horas, além das rolinhas juntam-se também ali pombos, desses grandes, de reflexos verdes e roxos no papo, e alguns pardais; mas naquele momento havia apenas rolinhas. Deus sabe que horários têm esses bichos do céu.

Sentei-me num banco, fiquei a ver rolinhas – ocupação ou vagabundagem sempre doce, a que me dedico todo dia uns quinze minutos. Dirás, leitor, que esse quarto de hora poderia ser mais bem aproveitado. Mas eu já não quero aproveitar nada; ou melhor, aproveito, no meio desta cidade pecaminosa e aflita, a visão das rolinhas, que me faz um vago bem no coração.

Eu poderia contar que uma delas pousou na cruz de Anchieta; seria bonito; não seria verdade. Que algum dia deve ter pousado, isso deve; elas pousam em toda parte; mas eu não vi. O que digo, e vi, foi que uma pousou na ponta do trabuco de Caramuru. Falta de respeito, pensei. Não sabes, rolinha vagabunda, cor de tabaco lavado, que esse é Pai do Fogo, Filho do Trovão?

Mas essa conversa de rolinha, vocês compreendem, é para disfarçar meu desaponto pelo sumiço da borboleta amarela. Afinal arrastei o desprevenido leitor ao longo de três crônicas, de nariz no ar, atrás de uma borboleta amarela. Cheguei a receber telefonemas: ” eu só quero saber o que vai acontecer com essa borboleta”. Havia, no circulo das pessoas íntimas, uma certa expectativa, como se uma borboleta amarela pudesse promover grandes proezas no centro urbano. Pois eu decepciono a todos, eu morro, mas não falto à verdade: minha borboleta amarela sumiu. Ergui-me do banco, olhei o relógio, saí depressa, fui trabalhar, providenciar, telefonar… Adeus, pequenina borboleta amarela.

Rubem Braga, (1913-1990) foi um escritor e jornalista brasileiro. Tornou-se famoso como cronista de jornais e revistas de grande circulação no país.

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O voto: uma abordagem psicológica

O voto: uma abordagem psicológica

Uma matéria produzida pela BBC constatou algumas verdades acerca do comportamento do eleitor na hora do voto. Ocorre que, toda vez que uma importante votação se aproxima, nós, eleitores, passamos meses e meses ouvindo sobre políticos, políticas e ideologias. No dia da eleição, saímos para as urnas com a sensação de termos tomado uma decisão racional sobre em quem votar. Mas será mesmo?

Segundo muitos psicólogos, são possíveis que não tenhamos tanto controle assim sobre nossa escolha política quanto imaginamos. Educação, saúde e economia são, sem dúvida, assuntos importantes, mas eleitores também podem ser “atraídos” por fatores aparentemente sem nenhuma relação, como sensações de medo e repugnância.

Já se sabe que nossas decisões conscientes são frequentemente influenciadas por processos inconscientes, emoções e ideias preconcebidas. Jon Krosnick, professor de ciência política da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, dedicou sua carreira a estudar o fenômeno. “Todas as escolhas são, na realidade, inconscientes”, defende.

Segundo Krosnick, durante um debate na televisão, muitos fatores podem ter impacto na decisão do eleitor – e não apenas o que cada candidato está dizendo. Ele e seus colegas descobriram que, durante as eleições presidenciais americanas de 2008, muitos eleitores não perceberam o quanto foram influenciados pela etnia dos candidatos Barack Obama e John McCain. Pessoas que marcaram mais pontos em um teste para medir o racismo implícito tinham menos tendência a optar por Obama.

 

Propensão à repulsa

Já Yoel Inbar, professor de Psicologia da Universidade de Toronto, no Canadá, estuda outra maneira como podemos ser influenciados: coisas que despertam sensações de nojo. Sua equipe testou voluntários em uma “escala de repugnância” e, em seguida, apresentou a eles um questionário sobre suas visões políticas.

O estudo descobriu que aquelas pessoas que sentem repulsa mais facilmente tendem a ser mais conservadoras politicamente.

Inbar acredita que associações políticas e morais com a repugnância podem ser explicadas pela biologia pré-histórica: quando o homem passou a permanecer mais tempo em grupos sociais maiores, ele desenvolveu uma série de comportamentos para minimizar seus riscos de contrair doenças, o que psicólogos chamam de “sistema imunológico comportamental”.

Segundo Inbar, isso significa “evitar grupos com quem não se está familiarizado, aderir a práticas sociais tradicionais e se impor uma certa restrição sexual”. “O nojo é uma emoção que realmente nos avisa: ‘não faça isso, fique longe daí, isso é perigoso'”, afirma o cientista.

A principal implicação é algo que alguns marqueteiros políticos já perceberam: usar uma linguagem que desperte uma sensação de nojo – como dizer que “tal político ou tal partido fede” – pode ter uma influência muito mais profunda em algumas pessoas do que se pensa.

Jogo do medo

Outro estudo, que avaliou o impacto da “sensibilidade ao medo” na ideologia política, sugere conclusões semelhantes. Um grupo de 46 voluntários do Estado americano de Nebraska foi convidado a dar sua opinião a uma série de assuntos, da guerra ao Iraque à pena de morte. Os que mostraram ter opiniões fortes, foram chamados para uma segunda fase.

Nela, os voluntários foram expostos a uma série de imagens ameaçadoras e a vários ruídos barulhentos, enquanto eram avaliados em sua suscetibilidade ao medo. Os pesquisadores descobriram que as pessoas que se assustavam mais facilmente tinham mais opiniões alinhadas com uma ideologia de direita.

Portanto, um discurso político que provoque medo – enfatizando o risco de instabilidade econômica ou de ataques terroristas, por exemplo – pode ter um efeito impactante em alguns grupos quando é usado para tentar atrair votos.

 

Força da rejeição

Outras respostas subconscientes já são bem exploradas em campanhas políticas. Uma delas é o negativismo – uma tendência das pessoas de se lembrarem preferencialmente de informações negativas e permitirem que emoções negativas dominem suas decisões.

A pesquisa de Krosnick sugere que quando um político enfatiza as características negativas de seus rivais, ele pode fazer com que mais simpatizantes seus compareçam às urnas (em países onde o voto não é obrigatório).

Da mesma maneira, o estudo mostrou que apenas gostar de um determinado candidato não necessariamente faz o eleitor sair de casa para votar: a rejeição é um motivo muito mais forte para levar uma pessoa às urnas. “Se você não gosta de um dos candidatos, fica mais incentivado a participar. Ou seja, é a rejeição que motiva o comparecimento”, afirma Krosnick.

 

Punição nas urnas

Também há cada vez mais indícios de que eleitores inconscientemente punem políticos quando se sentem decepcionados com eles – mesmo em questões completamente desassociadas da política.

Os cientistas políticos Larry Bartels e Christopher Achen, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, têm a teoria de que a disputada e polêmica eleição de 2000, nos Estados Unidos, entre Al Gore e George W. Bush, foi também influenciada por uma série de secas e enchentes que castigaram várias partes do país.

Ao analisarem o resultado das urnas e o clima em cada Estado, os pesquisadores perceberam que os democratas, que estavam no poder até então, obtiveram até 3,6% menos votos do que normalmente receberiam – o que pode indicar que muitos eleitores resolveram “castigar” o partido por sua má sorte com o tempo.

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Fonte: Diário da Manhã

“Vista cansada”, uma crônica a quem não se fez cego de indiferença

“Vista cansada”, uma crônica a quem não se fez cego de indiferença

Otto Lara Resende

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992.

Otto Lara Resende nasceu no dia 1°. de maio de 1922,em São João del Rei, Minas Gerais. Foi, dentre outras atividades, professor, jornalista e escritor, tendo publicado 10 livros.

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Fotografia de Elena Shumilova

“Ahasverus e o Gênio” – momento de reler Castro Alves

“Ahasverus e o Gênio” – momento de reler Castro Alves

Sabes quem foi Ahasverus?… — o precito,
O mísero judeu, que tinha escrito
Na fronte o selo atroz!
Eterno viajor de eterna senda…
Espantado a fugir de tenda em tenda
Fugindo embalde à vingadora voz!

Misérrimo! Correu o mundo inteiro,
E no mundo tão grande… o forasteiro
Não teve onde… pousar.
Co’a mão vazia — viu a terra cheia.
O deserto negou-lhe — o grão de areia,
A gota d’água — rejeitou-lhe o mar.

D’Ásia as florestas — lhe negaram sombra
A savana sem fim — negou-lhe alfombra
O chão negou-lhe o pó!…
Tabas, serralhos, tendas e solares…
Ninguém lhe abriu a porta de seus lares

E o triste seguiu só.
Viu povos de mil climas, viu mil raças,
E não pôde entre tantas populaças
Beijar uma só mão…
Desde a virgem do norte à de Sevilhas
Desde a inglesa à crioula das Antilhas
Não teve um coração!…

E caminhou!… E as tribos se afastavam
E as mulheres tremendo murmuravam
Com respeito e pavor.
Ai! Fazia tremer do vale à serra…
Ele que só pedia sobre a terra
— Silêncio, paz e amor! —

No entanto à noite, se o Hebreu passava,
Um murmúrio de inveja se elevava,
Desde a flor da campina ao colibri.
“Ele não morre” a multidão dizia…
E o precito consigo respondia:
— “Ai! mas nunca vivi!” —

O gênio é como Ahasverus… solitário
A marchar, a marchar no itinerário
Sem termo de existir.
Invejado! A invejar os invejosos.
Vendo a sombra dos álamos frondosos…
E sempre a caminhar… sempre a seguir…

Pede u’a mão de amigo — dão-lhe palmas:
Pede um beijo de amor — e as outras almas
Fogem pasmas de si.
E o mísero de glória em glória corre…
Mas quando a terra diz: — “Ele não morre”
Responde o desgraçado: “Eu não vivi!…”

Castro Alves, no livro “Espumas Flutuantes”

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Que tudo fique apenas entre nós

Que tudo fique apenas entre nós

Por Patrícia Dantas

Hilda Hilst é uma transgressão necessária, um soco no estômago, daqueles que nos obriga parar a leitura e respirar ofegante, porque nossa santíssima dignidade já se perdeu ou foi parar em algum lugar mais sórdido que escondemos dos nossos hábitos. E, tendo Hilst nas mãos, também é a certeza que teremos alguma coisa desfigurada e pedindo clemência dentro da gente – porque se queimou com a brasa de sua própria pele e já foi engolido por um riso tolo e nostálgico que jamais compreendeu a necessidade de se pertencer, ter a si mesmo revelado entre mãos corajosas e dentes famintos. Hilst faz você comer a si e dentro de si num ato de gratidão e contentamento pela vida. Tudo é dentro e vem de dentro. E Deus, pai tão misterioso e observador contumaz dos nossos atos acha graça de tudo e nos olha com uma bondade estampada na cara.

É do paradoxo pessoa-humano-pessoa que vem essa sensação de esvaziamento para se chegar a algum lugar que faça tão bem ao processo interior da criação; é não morrer de tédio, mas asfixiar-se por dentro, de excesso de vida. É desse poder que tomamos das mãos de Hilst – o “divino ato criador” – esse arregaçar de mangas para exteriorizar o concreto de energias que se lança ao mundo e que se necessita de uma linguagem mais intensa e nua galgando cada fio limítrofe das nossas palavras.

Ela nos faz ver – e vemos sem mais transgredir a brutalidade cega e perspicaz como tomamos proporções desconexas e insanas, porque esse mesmo poder é também do extravio de algo que deixamos inerte por um tempo dentro da gente, é o que faz sentido na esfera do existir e não-existir. É o que somos em tempos cruzados. Não é questão de intimidade, mas de um tato revelador de corpos ausentes.

Existe uma coisa da qual não podemos fugir: o amor e o temor pelos nossos personagens. Não posso deixar de questionar com a minha profunda desaprovação de mim quando olho o outro (é que me vejo muito mais nos personagens que me falam, e não no real palpável que me açoita). Como posso não depender deles, se assim vivo e morro dentro de todos eles? Apossam-se de mim e me transmitem como gostariam de ser na pequena e elástica realidade que deles se desprende. A história de cada um segue as curvas e o contexto de roteiros muito particulares. Gesticulam e atuam com devoção e compaixão pelo substrato do humano.

O que fazer com alguém que nem sabemos ao certo se existe, se não se declara, se não fala, nem se define, não apresenta virtudes ou defeitos, que apenas se deixa existir livremente, de fomes, tormentos e algumas insaciedades? Eu nunca soube o que fazer deles, nem de mim. Também vou me descobrindo aos poucos – como eles que se deixam levar pelas suas chamas ardentes de curiosidade pelo estranho.

Do meu medo passando pelo eco do estranhamento e solidão encontro o familiar que me adapta ao mundo e remove toda a sensação de que algo é revelado somente em pleno contato. A revelação às vezes só precisa que fiquemos um pouco sozinhos e conectados com nosso estado de graça.

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