Total presença dos sentidos

Total presença dos sentidos

Por Patrícia Dantas

Algumas sensações são como explosões dentro da gente. Não precisa falar nada, elas vivem como um ser pulsante que corre em disparada a algo que nem sempre conhecemos, mas que está prestes a provar de uma nova aventura. Sabe quando você se torna a pessoa imprevisível de uma situação comum e normal, sem nada que fuja do ritmo habitual, sem que haja nenhuma transgressão? Apenas você começa a acontecer de uma forma inusitada, um pouco fora dos seus padrões.

Hora do almoço. Todos os lugares se acotovelam, as pessoas estão apressadas, temendo que o tempo fique contra elas, fazem tudo tão rápido e sem pensarem muito, sempre correndo o risco de não chegarem a tempo ao lugar de sempre. É a hora que voa, mas que dá para durar mais psicologicamente e alimentar mais que o estômago – que gritem as nossas manias secretas e insaciáveis.

Saí do trabalho com pressa de provar, experimentar algo, como quem diz que em uma hora dá para saciar todos os tipos de gostos, não só o da comida. Passei por dentro de um pequeno shopping à beira mar, olhei algumas vitrines, vasculhei umas duas lojas de roupas, e por fim entrei numa livraria nova, minúscula, mas aconchegante, que ia dos clássicos aos últimos lançamentos. Camilo Castelo Branco, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Mário Quintana, Agatha Christie, Jane Austen, Virgínia Woolf, Balzac, Baudelaire, John Green, E L James, Letícia Wierzchowski, Alain de Botton, Raphael Montes, Thalita Rebouças, Edney Silvestre, Julianna Costa, Isabela Freitas, Martha Medeiros! Folheei, cheirei, abri livros e mais livros, best-sellers, e nada!

Tão logo me deparei com uma confissão íntima: estava lendo um livro de crônicas, outro de poemas, um romance que já estava quase no finalzinho e um livro teórico sobre um curso de marketing que estava fazendo. Como comprimir tudo aquilo na cabeça, como na estante do escritório lá de casa? Balela! Muito daquilo, ou mais de noventa por cento, seria esquecido nos próximos meses ou nas horas de chegadas imprevisíveis. Mas sentia um prazer irrepreensível em estar por dentro de todas aquelas palavras e histórias misturadas e ao mesmo tempo encaixadas em minha cabeça. Se parasse para pensar, era tudo apavorante diante de tantas coisas a cumprir no dia a dia, mas era o que me tirava do louco locus humano.

Deixei tudo num raio de segundos, desci a escada rolante que dava para uma loja de chocolates, à esquerda, entrei quase em exaustão a procurar o tal do algo que ainda não encontrara. Talvez estivesse tudo ali naquelas prateleiras coloridas e de todos os tipos de chocolates, amargos, brancos, ao leite, com licores, castanhas, avelãs, para todos os gostos! Na minha cestinha não cabia mais nenhum tipo daquelas delícias, eu catara tudo o que via pela frente. Ia empurrando as pessoas que escolhiam tranquilamente seus chocolates, sem notarem minha presença aflita e descontrolada. Para o quê, ninguém saberia responder ou teria alguma pista. Estava ali o antídoto.

Aproximei-me do balcão, olhei a moça de olhos castanhos nos olhos, em tom de um contentamento que transbordava, e falei baixinho: “Mais chocolates, por favor! “. É que olhara por trás do balcão e percebi que ali havia uma mesinha que vendia chocolates a peso. Não me contive, a inquietação só aumentou, chegou ao seu último tom, a sua última nota se gastara sem completar o roteiro original. Estava no auge da minha insaciedade (ou insanidade) para me compor, por algo que não descobrira, mas apontava um caminho doce, leve e prazeroso: a total presença dos sentidos.

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O amor que me escapa

O amor que me escapa

Por Elika Takimoto

Quisera eu refazer o Meu Amor, como no instante da Criação onde não havia o tempo, portanto, o passado, como se tivesse reduzido a um nada todas as decepções e dores que causamos um para o outro e qualquer indício que elas permeariam o nosso futuro. Quisera eu refazer um universo novo sem pretéritos imperfeitos com exceção de uma coisa: que ele, também, ainda quisesse viver ao meu lado.

Sinto-me na obrigação de lembrar sempre o que vivemos juntos, tal como um imigrante de outro continente se esforça por não esquecer a língua natal para poder em muitos momentos recordar do berço pátrio que, por certo, não tornará a ver. Não trabalho as minhas recordações na esperança de descobrir uma lei de causas e efeitos e dar o fenômeno como compreendido. Tudo o que nos acontece pelo qual o amor permeia, o melhor a fazer é não tentar entender, posto que, no que possuem de inesperado e imprevisível parecem não regidos por leis racionais e sim mágicas, quiçá divinas. Diante o espetáculo do mundo dos sentimentos, impossível fazer o elo entre dois momentos, tudo fica tão incerto e anacrônico como se estivéssemos no plano onírico.

Eu, amante, plena de sofrimento e uma imaginação permanente, busco, em vão, adivinhar por qual motivo sou incapaz de atrair para mim o objeto amado. Ou então, se o atraio, por que ele não se aproxima e insiste em se comportar como a Lua que mantém a mesma distância da Terra tendo em vista a enorme força de atração entre esses astros? Mais esquizofrênica ainda é essa ideia que se apossa de mim e me impede, covardemente, de querer ver quem ainda amo. Por amar, não posso sequer sentir o cheiro sem que seja perturbada por um desejo de tudo o mais que me tira, perante a quem amo, a sensação anestésica de amar.

Não importa o que se tenha ouvido, lido, estudado e vivido. Diante de um Grande Amor, somos como Einstein em tempos de escola. Queremos a imaginação e não o que nos querem impôr. E preparamos os elementos que nos iludem como preparam para um doente pratos deliciosos, mas que piorará seu estado de saúde ao ingeri-los. Somos mestres em aceitar a existência própria de uma miragem, de dar a certas pessoas que vemos uma áurea que só emergem nesse encontro e, depois, desenvolvida somente em nós – que seguiremos recusando um outro amor, pois nos acostumamos por demais ao lugar no qual habitávamos. Toda música nova, toda pintura diferente, todo estilo novo de escrever sempre há de nos parecer, ainda que preciosos, por demais fatigantes e dão-nos a impressão de uma falta de prazer. Não queremos orientações alternativas, desvarios da nossa bússola interior.

O mal mais cruel de tudo é que sou eu mesma a artesã consciente e paciente do que me adoece. A única coisa que me interessa continuo tornando impossível, criando pouco a pouco, pela distância que se prolonga de meu amor, não a sua indiferença, mas a minha, o que vem a dar no mesmo. Nesse preciso instante em que me perdi de Meu Amor, pois estou resolvida a não mais lhe pedir atenção, sinto por ele mais e mais ternura e tudo o que sentia quando podia vê-lo todos os dias; nesse preciso instante a ideia de que algum dia sinta o mesmo por outro homem parece-me odiosa porque me rouba a outra muito mais cara: a do Amor Verdadeiro. Movimentei a minha vida para uma determinada pessoa e, quando ela não mais está comigo, prefiro viver prisioneira da moradia que só a ela era destinada do que a liberdade que pixa os muros dessa casa feita com tanto carinho. Senhor, desacorrente-me dessa escravidão.

Ando tão sozinha… Por mais que eu escreva, que eu converse, a verdade que quero nas palavras de nada adianta diretamente pois sofre de evidências. Sempre dizemos o que necessitamos dizer e que o outro jamais alcançará, pois o dizer é coisa destinada somente para nós mesmos. Será necessário que se decorra o tempo para que se possa formar em quem me ouve e me analisa uma verdade da mesma espécie que a minha. Como o adversário político que, diante das provas e de todos os documentos, considera traidor e ladrão o da doutrina rival e quando passa a acreditar no que lhe falaram já não mais interessa àquele que tentava esclarecê-las, isso pode acontecer com o leitor, o amigo e o analista. Esses, muitas das vezes, pioram tudo ao dar-nos conselhos deformados pela miopia que cada um carrega. Mas, nesse trabalho de acabar com O Amor, todos que se envolvem estão muito longe de desempenhar o papel tão importante como o de duas pessoas que, por excesso de bondade de um lado e do outro, de egoísmo, costumam desfazer tudo no tempo em que tudo estava para se consertar. Porém, dessas duas pessoas não guardamos mágoa nem conseguimos odiá-las pela razão que uma delas, a última, é quem eu amo e a outra, eu mesma.

Mas… quem sabe a felicidade, de novo, chegará para mim? O risco que corro é ela chegar quando não a poderei desfrutar, quando já não mais restar a saudade por ter ela virado hábito e, portanto, indolor e cômoda como um vizinho em silêncio. Tomara que, ao aproximar da felicidade, ainda que tardia, ela seja a mesma cuja falta me fez tanto sofrer. Só há uma pessoa capaz de resolver essa situação. Os que padecem de amor são, como se dizem aos doentes, os seus melhores médicos. Como não podemos achar consolo fora que provenha de quem amamos, em nós mesmos tratamos de fazer o remédio. O diabo é achar a fórmula correta para a droga que, ao menos, amenize os sintomas. Enquanto não a encontro, continuo elocubrando e rindo à toa quando consigo em um cochilo sonhar que estou feliz ao lado dele e ele me diz que nunca mais me fará padecer.

Essas constantes visões, essas miragens, esses devaneios e desejos, no que tocam o homem que não mais me quer, como no caso dos filhos desaparecidos, saber que nada se tem mais a esperar não me impede de continuar a esperar. Mesmo diante da certeza da sua morte, a mãe acredita que o filho voltará miraculosamente com fome e frio, portanto, pronto para receber seus carinhos e cuidados. Somos obrigados, para tornar a realidade ao menos suportável, a alimentar dentro da gente algumas pequenas loucuras. O ponto culminante do meu dia não foi aquele em que me arrumei para sair colocando a roupa que melhor me vestiu, mas o que consegui perfeitamente imaginar despindo-me novamente para o Meu Amor.

Elástico é o tempo quando amamos, quando estávamos juntos o estreitávamos e agora, separados, encho e dilato minhas horas com tantas divagações….

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Indicação de filme “O filho do outro”

Indicação de filme “O filho do outro”

Por Marcia Berman Neumann, Marcela Alice Bianco e Andréia Carelli L. Magalhães

E se seu filho fosse seu maior inimigo? E se o outro fosse você? O Cine Sedes Jung e Corpo apresenta a análise dessa trama psicológica imperdível.

Um drama familiar, um dilema individual e ao mesmo coletivo: a necessidade de olhar para o “Outro” e reconhecer a si mesmo como em um espelho! O exercício do amor, da alteridade e da reflexão! São muitos os pontos trazidos pelo belíssimo e impactante drama francês: O Filho do Outro (Le Fils de l’Autre, 2012), da diretora Lorraine Lévy.

A trama retrata um assunto polêmico de maneira brilhante e sutil! Somos apresentados a duas famílias que veem suas vidas reviradas ao descobrirem que tiveram seus filhos trocados no hospital em que nasceram.

De um lado encontra-se uma família judia, que vive em Tel Aviv, Israel. Seu filho Joseph está prestes a ingressar no serviço militar quando um teste de sangue revela que não poderia ser filho daquela família. Sua mãe médica, Orith, e seu pai, Alon, que tem um alto cargo no exército israelense, ficam atordoados com a notícia e acabam descobrindo que seu bebê foi trocado na maternidade por um outro bebê, palestino.

Já no outro núcleo, temos Yacine, filho de Said e Leila, e irmão de Bilal, palestinos que moram na Cisjordânia e que também recebem a notícia da troca, ficando consequentemente chocados.

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O conflito religioso e político entre judeus e palestinos permeia as polaridades mostradas aqui no filme.  São famílias que vivem em culturas opostas em todos os sentidos, mas que devido a uma situação traumática são forçados a viver uma  experiência que demandará muita empatia. Afinal, os dois jovens descobrem: EU SOU MEU MAIOR INIMIGO… PRECISO ME AMAR MESMO ASSIM.

De imediato o filme nos coloca como tema central a questão das polaridades da vida e a função da alteridade, que propõe uma relação dialética, simétrica, entre as polaridades.

A questão das polaridades é apresentada na psicologia Junguiana como a base do funcionamento da experiência simbólica. Morte e vida, luz e sombra, bem e mal, certo e errado – toda nossa vivência é baseada em polaridades. Elas influenciam sobremaneira os relacionamentos em geral e podem estar na base das imagens, fantasias, sentimentos, pensamentos, sonhos, projeções, etc.

Quando mantemos nossas identidade e visão fixadas apenas em um dos aspectos dos pares de opostos, nossas capacidades adaptativa e criativa ficam comprometidas. Nossos relacionamentos cristalizam-se e nossa personalidade se enrijece.

A função da alteridade nos permite a saída deste padrão engessado de relacionamento consigo mesmo e com o outro. Porém, o colocar-se no lugar do outro nem sempre é tarefa fácil. Pelo contrário, exige de nós um grande poder de empatia e desapego. Para isso, precisamos abrir mão de nossa certezas e convicções, elaborar nossa Sombra (aspecto do inconsciente que carrega tudo aquilo que é negado em nós) e trazer para a consciência todas essas oposições, integrando-as de maneira transformadora na consciência.

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Os filhos recebem a notícia que foram trocados e ficam profundamente abalados. Suas identidades são postas em cheque. Vemos aqui a questão da Natureza versus a marca da Cultura e do Inato versus o Aprendido. A fala de Joseph quando pergunta ao Rabino: – Ele é mais judeu que eu? é um grande exemplo do impacto desta nova realidade na personalidade do jovem. Mostra a ferida que se abriu em sua identidade a partir daquilo que até então era desconhecido para ele (sua origem) e a necessidade de uma nova formatação para a mesma. Os questionamentos deterministas podem ser entendidos nesta fala. Seria o sangue, a cultura, a educação, os relacionamentos, os interesses ou outro aspecto, o(s) determinante(s) da nossa identidade?

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Diante de todo este drama, as famílias resolvem se encontrar. A família de Joseph convida todos para um jantar. Nesta cena, podemos ver as diferenças nas relações entre adultos e jovens, assim como entre os homens, as mulheres e as crianças.

As crianças rapidamente fazem uma ligação: as irmãs menores de ambas as famílias vão brincar juntas. Ainda não possuem o peso tão forte da cultura e da compreensão da realidade quanto os adultos. Já os jovens (Joseph e Yacine), vão conversar e se conhecer melhor. Os pais ficam na sala e percebe-se ali um grande incômodo devido à questão religiosa-cultural. A situação é realmente difícil, pois eles devem trazer o inimigo para dentro de suas casas e aprender a amá-lo e respeitá-lo. Aqui temos a presença de uma interferência vinda da dimensão coletiva: um bombardeio no hospital foi o problema que afetou as duas famílias e gerou um conflito comum, determinando em ambas uma transformação profunda.

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As mulheres têm mais facilidade para aceitar as diferenças, as emoções e são mais abertas para acolher-agregar o outro. Mostram-se mais flexíveis. O instinto materno faz com que elas queiram se aproximar e cuidar dos filhos biológicos, e elas se aliam com respeito e reconhecimento das diferenças que haviam entre elas, mas também com a empatia gerada pela semelhança entre suas dores. Já os homens quase não têm diálogo e a dificuldade de lidar com o afeto e o conflito impera a maior parte do tempo, como na cena em que tomam café juntos, um indício de aproximação, mas ficam calados.

A descoberta da troca dos bebês é vivida como uma verdadeira experiência de luto, e um processo de elaboração tanto individual quanto familiar é percebido no desenrolar do filme. Cada um ao seu modo e no seu tempo passam pelas etapas de choque, negação, revolta, expressividade emocional, depressão e, por fim, a aceitação. As diferenças individuais nesta questão também são motivo de confronto entre os personagens, o que nos faz pensar que é preciso respeitar o tempo de cada um, bem como suas defesas, a forma como estão estruturadas e a importância da elaboração delas.

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O filme nos coloca em contato com as oposições o tempo todo. Os jovens resolvem cruzar as fronteiras em busca de suas identidades – SOU O OUTRO OU O OUTRO SOU EU? 

O conflito apresentado pelo enredo ocorre bem em um momento que marca a construção da identidade dos jovens: a saída da adolescência e a entrada na primeira fase da vida adulta. Momento crucial e estruturante para a personalidade e para a definição de formas de agir no mundo. Período de emancipação e busca, de experimentação da vida.

É através do contato informal com o outro que eles exercitam a desconstrução da identidade e a descoberta de si e do outro. Podem julgar o quanto são fruto da cultura onde foram criados, dos valores ensinados e do que querem se tornar deste momento em diante. Quando Yacine diz ao irmão Bilal – EU VOU SER O QUE EU QUISER! –  ele está elaborando essa questão e procurando uma terceira via, que não é mais nem um polo e nem o outro, é uma terceira coisa: Ele!

A individuação aparece aqui como uma força que impulsiona para a integração desses opostos: os jovens são obrigados a viver a realidade do outro, a se comunicar na língua do outro, e atravessam a fronteira física (o muro que separa Israel da Palestina), pessoal (Ego), familiar, sociocultural e política. Precisam transpor uma grande tensão para obter o pertencimento. E aos poucos eles se abrem para o novo, para o seu oposto.

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O espelho produz essa possibilidade de conscientização. Através dele, Joseph e Yacine veem suas imagens refletidas e lembram-se de Isaac e Ismael, dois filhos de Abraão, sendo que do primeiro segue a descendência judia e do segundo a descendência árabe, mas ambos filhos do mesmo pai, mostrando aqui a mesma origem e a possibilidade de uma integração das polaridades outrora estabelecidas.

No filme os jovens conseguem integrar os opostos pelo funcionamento afetivo, e não no nível agressivo, ou no mundo das ideias. É a experiência vivida que permite a transformação. A música, a sensibilidade e a busca de algo que é comum a eles e que os conecta são as pontes que possibilitam essa construção amorosa da relação consigo mesmo e com o outro. Eles obtêm um novo entendimento sobre questões difíceis e mostram para nós, espectadores, de um modo emocionante, como é possível viver da melhor maneira, como ter orgulho de si e dar orgulho ao outro, já que é ele que está ocupando o seu lugar! Descobrem que não é o rabino ou alguma outra autoridade que lhes dará esta resposta – eles terão que construir suas próprias histórias e suas identidades.

Existe aqui um fato interessante a ser analisado que é o chamado biológico, muito comum em casos de adoção ou de troca de bebês. Esse chamado para um entendimento profundo de quem eu sou, a quem ou qual grupo eu pertenço é muito comum, forte e importante.

Podemos pensar que se ambos fossem da mesma cultura, o drama seria vivido de modo mais pessoal e menos inclinado às questões coletivas e culturais. Este fato cultural, histórico e religioso que está para além de suas identidades e que nada tem a ver com eles, ao mesmo tempo tem tudo a ver, pois é nesta realidade que estão inseridos!

As polaridades aqui são representadas por identidades opostas, a criação nas famílias com culturas diferentes. A psique também lida com questões opostas, pois fazem parte de nossa psique as oposições. A grande questão é COMO lidamos com as mesmas.

As relações sadias de apego com as mães são o alicerce de ambos os filhos para conseguirem lidar com toda a problemática instalada. A via do materno acolhedor também ajuda na conciliação do aspecto Patriarcal predominante. Cada mãe encontra seu jeito de digerir a realidade da maternidade vivida e da maternidade negada, e aos poucos ambas se aproximam da nova realidade e de seus “novos” filhos.

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O que está fora também está dentro, o que está em cima também está embaixo! E com essa noção de que em cada parte existe também o seu oposto percebemos o OUTRO que habita em Nós! Mas como realmente conseguimos fazer esse exercício ante nossos julgamentos de valor?

Seja nos obstáculos das fronteiras físicas entre os países ou nos preconceitos e julgamentos morais, para que possamos integrar os opostos será preciso romper as barreiras, encarar os riscos, assim como faz o pai que é militar israelense e cruza a fronteira sozinho à noite. Ou como faz Bilal, irmão de Yacine que precisa lidar com o medo de perder tudo o que tem construído e se abrir para o “novo” e para o “velho” irmão.

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O Filme também mostra a consciência Patriarcal agindo ao considerar excludentes os polos opostos de uma polaridade, como a discriminação entre BEM e MAL (representado por Bilal). Em contrapartida apresenta a necessidade de se transpor esse modelo e aponta para a consciência da Alteridade, que busca simetria, sintonia, um diálogo não hierárquico entre as polaridades. O próprio título do filme nos remete a pensar na Alteridade como um caminho a ser almejado.

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Como enfatiza Maria Helena Mandacarú Guerra: AMAR O INIMIGO É O DESAFIO! Para isto é preciso um encontro da humanidade, no qual se busca uma identidade mais profunda, uma síntese. Afinal, somos todos filhos da mesma mãe Terra!

Por fim, podemos pensar que a autora foi brilhante ao nos fazer refletir sobre os conflitos que existem no mundo e em nós mesmos de maneira tão afetiva. Mais uma vez, a arte nos leva a querer lidar com as polaridades de uma forma equilibrada! Mas, sejamos sinceros, que desafio, não?

Por Marcia Berman Neumann, Marcela Alice Bianco e Andréia Carelli L. Magalhães

Comissão Organizadora Cine Sedes Jung e Corpo

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Este texto foi produzido pela Comissão Organizadora do Cine Sedes Jung e Corpo com base nas reflexões realizadas durante o evento realizado em Abril de 2015, com os comentários do Profa. e Psicóloga Junguiana Maria Helena Mandacarú Guerra e Psicóloga Clínica Thaís Khoury de Souza.

O Cine Sedes Jung e Corpo é uma atividade extracurricular do curso Jung e Corpo: Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo.

É um evento gratuito e aberto ao público geral organizado pelos professores do curso em conjunto com ex-alunos e ocorre todas as últimas sextas-feiras dos meses letivos do curso.

Para maiores informações acompanhe o Blog do Cine Sedes Jung e Corpo

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Não temer os ventos e navegar nas nuvens: esta é a proposta de Raimundo Lonato

Não temer os ventos e navegar nas nuvens: esta é a proposta de Raimundo Lonato

Ventos

movimentam-se as palavras
coreografadas no vento

fios de espuma vestem poemas.
correm os séculos, não apagam
as estrelas no céu do meu país.

veias
são laços
no peito.

na linha do tempo
não morrem as águas.
ondas namoram o sol.

a deusa louca dança.
giram olhos e braços

uma flecha transpassa, fere o corpo.
minúscula pedra expulsa o pulmão.

Ao Vento

Quando voltares, nada direi.
Ouvirás silêncios e uma canção
no vento.

Há flores colhidas no orvalho.
O céu está aberto. Estrelas
chegam às mãos.

Cansado de esperas, recolho os fios
do tempo e as promessas de nuvens.

{A casa exala perfumes e palavras}.

Os olhos esperam as cores do mundo.
Apago as dúvidas no peito e na face;

poemas são aves. Voam acima dos mares.

Quando Setembro Passa

As flores deixam perfumes
nas mãos cansadas de lutas.

Brilham as pedras,
refletem as horas,
o suor e o sono.

As almas mais puras
ouvem o sol, os pássaros
e os homens.

As crianças colhem
sonhos, desfiam
nuvens e manhãs.

Setembro guarda
nos lábios dos deuses
mil poemas bordados
em nuvens.

À espera do sábado

Manhãs carregadas de chuva,
abraçam o amor e as flores.

Deus desce do paraíso,
ouve e escreve recados.

Anjos tocam guitarras
à sombra das árvores.
os versos das canções
soam sem lágrimas.

Iluminado e perfeito,
os dias vestem as cores
e os corpos nas ruas.

Olhares e frutos
dialogam nas mesas.
Amigos desenham
as rotas do sol.

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Raimundo Lonato é escritor e poeta paulista.

“O primeiro beijo”, um conto de Clarice Lispector

“O primeiro beijo”, um conto de Clarice Lispector

Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.

– Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:

– Sim, já beijei antes uma mulher.

– Quem era ela? perguntou com dor.

Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.

O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.

E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.

A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.

Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.

O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava… o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.

De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.

Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida… Olhou a estátua nua.

Ele a havia beijado.

Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.

Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.

Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele…

Ele se tornara homem.

“Felicidade Clandestina” – Ed. Rocco – Rio de Janeiro, 1998
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O mistério das portas

O mistério das portas

Por Marcela Picanço

Se existe alguma coisa que me intriga, nesse mundo, são portas.

As portas estão em todas as histórias, nas metáforas e em todos os problemas de lógica. As portas são um dos símbolos mais universais que existem, porque elas representam sempre o mistério. E, se a gente for pensar, a vida é realmente uma constante abertura de portas. A cada instante, a gente escolhe ou faz uma decisão – e decidir algo é sempre abrir uma porta. É sempre o inesperado.

Se você decide comer carne em vez de frango, no almoço, é uma porta. Se você decide pegar um ônibus, é uma porta. Se você decide acordar 10 minutos mais tarde, é uma porta. E tudo pode mudar a partir das suas escolhas diárias, por mais que a gente não perceba, por mais que não pareça que está tudo mudando constantemente e que as portas estão se abrindo a cada segundo que passa. O fato de que querer começar a escrever a próxima frase é uma porta. E quem decidiu abrir esse texto para ler também está abrindo uma porta. A gente vive assim, abrindo portas, sem perceber que, a cada cinco minutos, a gente tem a oportunidade de virar o jogo. O nosso jogo, claro. Cada porta que se abre é uma chance de mudar tudo. Assim mesmo. De uma hora para outra. Posso escolher fazer qualquer coisa, se eu tiver coragem de encarar as consequências.

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Imagem via Comunicadores

E é libertador atravessar uma porta se medo do que há do outro lado. Ou melhor, é muito bom escolher uma porta para atravessar, porque, no fundo, todas estão abertas. E a gente nunca sabe qual delas vai dar em um precipício ou um paraíso; e sabe o que mais? A gente nunca vai saber se escolheu a porta certa. Porque a gente nunca vai saber o que teria acontecido se a gente tivesse escolhido a outra, ou a outra, ou a outra.

As portas carregam as nossas incertezas sobre o que há do outro lado. As portas sempre foram um enigma. Como se escolher a porta certa fosse como num problema de lógica, em que você escolhe a porta onde está a cabra e tudo se resolvesse. Mas, antes de abrir uma porta, nada existe ali atrás, porque o futuro se constrói no presente, a partir do que você faz E o fato de você abrir uma porta e não outra não interessa, porque não existe nada lá atrás, ou melhor, existe tudo. A porta é um mistério justamente por carregar nossa indecisão, nossa insegurança. A porta, na verdade, é um espelho. E, enquanto a gente não decide, nada acontece. Vale abrir todas as maçanetas, vale atravessar tudo, porque é a única forma de desvendar o mistério das portas. O mistério das portas somos nós mesmos e, cá entre nós, descobrir o que está por trás da nossa própria porta é uma das coisas mais difíceis que existem, mas também uma das melhores.

Todas as possibilidades que não são o presente existem ou poderiam ter existido e a gente nunca vai saber. Escolher nunca é uma aposta, porque, numa aposta, você sabe se você ganhou ou perdeu. Na vida, quando a gente escolhe, a gente nunca sabe se ganhou ou perdeu. Por isso, se a gente escolher as portas que quiser, sem hesitar, sem ser pela vontade do outro, a gente vai encarar as consequências de outra forma e vai pensar que sempre deu certo. A gente sempre teve uma escolha.

“É assim que acontece a bondade”- Rubem Alves

“É assim que acontece a bondade”- Rubem Alves

“Se te perguntarem quem era essa que às areias e aos gelos quis ensinar a primavera…”: é assim que Cecília Meireles inicia um de seus poemas. Ensinar primavera às areias e aos gelos é coisa difícil. Gelos e areias nada sabem sobre primaveras.., Pois eu desejaria saber ensinar a solidariedade a quem nada sabe sobre ela. O mundo seria melhor. Mas como ensiná-la?

Seria possível ensinar a beleza de uma sonata de Mozart a um surdo? Como, se ele não ouve? E poderei ensinar a beleza das telas de Monet a um cego? De que pedagogia irei me valer para comunicar cores e formas a quem não vê? Há coisas que não podem ser ensinadas. Há coisas que estão além das palavras. Os cientistas, os filósofos e os professores são aqueles que se dedicam a ensinar as coisas que podem ser ensinadas. Coisas que são ensinadas são aquelas que podem ser ditas. Sobre a solidariedade muitas coisas podem ser ditas. Por exemplo: eu acho possível desenvolver uma psicologia da solidariedade. Acho também possível desenvolver uma sociologia da solidariedade. E, filosoficamente, uma ética da solidariedade… Mas o saberes científicos e filosóficos da solidariedade não ensinam a solidariedade, da mesma forma como a crítica da música e da pintura não ensina às pessoas a beleza da música e da pintura. A solidariedade, como a beleza, é inefável – está além das palavras.

Palavras que ensinam são gaiolas para pássaros engaioláveis. Os saberes, todos eles, são pássaros engaiolados. Mas a solidariedade é um pássaro que não pode ser engaiolado. Ela não pode ser dita. A solidariedade pertence a uma classe de pássaros que só existem em voo. Engaiolados, esses pássaros morrem.

A beleza é um desses pássaros. A beleza está além das palavras. Walt Whitman tinha a consciência disso quando disse: “Sermões e lógicas jamais convencem. O peso da noite cala bem mais fundo a alma…”. Ele conhecia os limites das suas próprias palavras. E Fernando Pessoa sabia que aquilo que o poeta quer comunicar não se encontra nas palavras que ele diz; antes, aparece nos espaços vazios que se abrem entre elas, as palavras. Nesse espaço vazio se ouve uma música. Mas essa música – de onde vem se ela se não foi o poeta que a tocou?

Não é possível fazer uma prova sobre a beleza porque ela não é um conhecimento. Tampouco é possível comandar a emoção diante da beleza. Somente atos podem ser comandados. “Ordinário! Marche!”, o sargento ordena. Os recrutas obedecem. Marcham. À ordem segue-se o ato. Mas sentimos que não podem ser comandados. Não poso ordenar que alguém sinta a beleza que estou sentindo.

O que pode ser ensinado são as coisas que moram no mundo de fora: astronomia, física, química, gramática, anatomia, números, letras, palavras.

Mas há coisas que não estão do lado de fora. Coisas que moram dentro do corpo. Estão enterradas na carne, como se fossem sementes à espera…

Sim, sim! Imagine isso: o corpo como um grande canteiro! Nele se encontram, adormecidas, em estado de latência, as mais variadas sementes – lembre-se da história da Bela Adormecida! Elas poderão acordar, brotar. Mas poderão também não brotar. Tudo depende… As sementes não brotarão se sobre elas houver uma pedra. E também pode acontecer que, depois de brotar, elas sejam arrancadas… De fato, muitas plantas precisam ser arrancadas, antes que cresçam. Nos jardins há pragas: tiriricas, picões…

Uma dessas sementes é a “solidariedade”. A solidariedade não é uma entidade do mundo de fora, ao lado de estrelas, pedras, mercadorias, dinheiro, contratos. Se ela fosse uma entidade do mundo de fora, poderia ser ensinada e produzida. A solidariedade é uma entidade do mundo interior. Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz. A solidariedade tem de brotar e crescer como uma semente…

 

Veja o ipê florido! Nasceu de uma semente. Depois de crescer não será necessária nenhuma técnica, nenhum estímulo, nenhum truque para que ele floresça. Angelus Silesius, místico antigo, tem um verso que diz: “A rosa não tem porquês. Ela floresce porque floresce”. O ipê floresce porque floresce. Seu florescer é um simples transbordar natural da sua verdade.

A solidariedade é como um ipê: nasce e floresce. Mas não em decorrência de mandamentos éticos ou religiosos. Não se pode ordenar: “Seja solidário!”. A solidariedade acontece como um simples transbordamento: as fontes transbordam… Da mesma forma como o poema é um transbordamento da alma do poeta e a canção, um transbordamento da alma do compositor…

Já disse que solidariedade é um sentimento. É esse o sentimento que nos torna mais humanos. É um sentimento estranho, que perturba nossos próprios sentimentos. A solidariedade me faz sentir sentimentos que não são meus, que são de um outro. Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo balas num semáforo. Ela me pede que eu compre um pacotinho de suas balas. Eu e a criança – dois corpos separados e distintos. Mas, ao olhar para ela, estremeço: algo em mim me faz imaginar aquilo que ela está sentindo. E então, por uma magia inexplicável esse sentimento imaginado se aloja junto aos meus próprios sentimentos. Na verdade, desaloja meus sentimentos, pois eu vinha, no meu carro, com sentimentos leves e alegres, e agora esse novo sentimento se coloca no lugar deles. O que sinto não são meus sentimentos. Foram-se a leveza e a alegria que me faziam cantar. Agora, são os sentimentos daquele menino que estão dentro de mim. Meu corpo sofre uma transformação: ele não é mais limitado pela pele que o cobre. Expande-se. Ele está agora ligado a um outro corpo que passa a ser parte dele mesmo. Isso não acontece nem por decisão racional, nem por convicção religiosa, nem por mandamento ético. É o jeito natural de ser do meu próprio corpo, movido pela solidariedade. Acho que esse é o sentido do dito de Jesus de que temos de amar o próximo como amamos a nós mesmos. A solidariedade é uma forma visível do amor. Pela magia do sentimento de solidariedade, meu corpo passa a ser morada de outro. É assim que acontece a bondade.

Mas fica pendente a pergunta inicial: como ensinar primavera a gelos e areias? Para isso as palavras do conhecimento são inúteis. Seria necessário fazer nascer ipês no meio dos gelos e das areias! E eu só conheço uma palavra que tem esse poder: a palavra dos poetas. Ensinar solidariedade? Que se façam ouvir as palavras dos poetas nas igrejas, nas escolas, nas empresas, nas casas, na televisão, nos bares, nas reuniões políticas, e, principalmente, na solidão…
“O menino me olhou com olhos suplicantes.
E, de repente, eu era um menino que olhava com olhos suplicantes…”.

Rubem Alves, no livro “As melhores crônicas de Rubem Alves” 

Conheçam o Instituto Rubem Alves e participem de seus projetos.

Dica de livro: Sete Vezes Rubem (Fruto do trabalho de uma década, esta obra reúne sete livros de Rubem Alves publicados pela Papirus entre 1996 e 2005.)

O sucesso dos livros de autoajuda e a tendência à repetição psicanalítica

O sucesso dos livros de autoajuda e a tendência à repetição psicanalítica

Por Josie Conti

A tendência à repetição é um conceito psicanalítico que descreve como, através da quantidade e do contato com situações familiares, a pessoa direciona suas questãos mal resolvidas. É como se, apesar de ainda não existir a resolução do problema que gera a atração pelo tema, a pessoa obtivesse uma resposta de conforto por reencontrar situações similares as que já passou em outras fases de sua vida.

Vemos muito disso, falando à grosso modo, em situações cotidianas como em caso de filhos de pais alcoólatras que também escolhem parceiros que tem problemas com álcool para se relacionar ou mesmo pessoas que, mesmo tendo passado por diversos problemas decorrentes de um comportamento, continuam a repeti-lo ininterruptamente.

É como se situações repetidas, mesmo que algumas vezes perigosas, passassem a segurança do que é familiar, daquilo que já foi vivido e do que a pessoa entende ser merecedora. Essas repetições tornam-se quase espelhos da própria pessoa e de como ela se vê.

É importante ressaltar que a repetição do comportamente foge a plena consciência e que, muitas vezes, mesmo sabendo que os caminhos trilhados não são bons, a pessoa não consegue deixar de repeti-los.

E aqui entramos em contato com o grande segredo do sucesso de toda a literatura de autoajuda existente na internet e nas livrarias: sua promessa de respostas simples para situações que as pessoas percebem erradas em si, querem mudar, pois sofrem com elas, mas que não conseguem alterar na prática. Surge, então, um livro que fala de seu problema e não só promete a resolução, mas fornece uma lista para que a pessoa, passo a passo, realize as mudanças necessárias e liberte-se do que a incomoda para sempre. É um verdadeiro conto de fadas.

Se nós pensarmos sem preconceito no conteúdo dos livros de autoajuda veremos que, na maioria das vezes, eles trazem mensagens boas e positivas, são temas agradáveis e, por que não dizer, também familiares e com os quais crescemos tendo algum tipo de contato. Eles falam de valores, de relacionamentos, de autonomia, organização, limites, entre milhares de outras coisas. Não há nada, absolutamente nada de mal nisso. A falácia está contida na promessa de uma solução que vem “de fora para dentro” quando, na verdade, toda e qualquer mudança pessoal real e duradora na vida de uma pessoa só pode acontecer se for fruto de uma decisão pessoal.

Eu não exorcizo e nem sou contra os livros de autoajuda como muitos o fazem- muitas vezes até em uma postura intelectualmente arrogante. Acredito, inclusive, que até mesmo um material simples como uma lista ou livrinho comum pode ser gatilho transformador de vidas. Um olhar pode ser!

Quem somos nós para julgar qual é o momento exato que uma pessoa terá para perceber qual é a melhor coisa para si mesma? Agora, como em tudo na vida, fica o convite para que tenhamos senso crítico para com as repetições e, se existe um consumo compulsivo de uma literatura mais rasa  e que promete respostas miraculosas, talvez esse seja o sinal de que é necessário um pouco mais de profundidade. E, ao contrário do que pode indicar essa linha de raciocínio, na maioria das vezes, essa profundidade também não será encontrada em “literatura” tida como superior.

Há demandas que só encontram respostas na construção de novos caminhos. Caminhos que não são externos. São aqueles trilhados dentro de si.

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Há quem roube e quem abençoe

Há quem roube e quem abençoe

Por Adriana Vitória

Outro dia chegando ao Rio, paramos em um sinal próximo a central, onde frequentemente há um grupo de cinco a sete pessoas, geralmente mal vestidas, que correm na direção dos carros com garrafas de plástico e sabão para limpar os vidros em busca de alguns trocados.

A cena é de fato ameaçadora, mas é de cortar o coração ver os motoristas se apressando em fechar suas janelas e fingir não vê-los. Ao mesmo tempo, ficar refém, por três eternos minutos, sem ter para onde correr.

Apesar de saber dos riscos, normalmente escolho manter minha janela ligeiramente aberta e até hoje não me arrependi, apesar de já ter sido assaltada algumas vezes em situações diversas.

Desta vez o homem se aproximou com uma mulher. Os dois aparentavam profunda exaustão. Separamos dois reais e, sorrindo, permitimos que limpassem os vidros.

Quando lhes demos o dinheiro os dois se voltaram, olharam bem pra nós e nos abençoaram. Estavam de fato gratos, não pelos dois reais, apesar de sempre ajudar, mas por não sermos apenas mais um, junto com o Estado, a lhes virar as costas indiferentes a sua real existência e necessidades.

O ser humano é um dos animais mais frágeis que existem. Necessita de muita atenção e amor para se construir e criar uma estrutura interna sólida para lidar com a vida.

Quando a carência prevalece, a sociedade cria anomalias. Seres cheios de rancor e revolta que sobrevivem à margem da sociedade em submundos que nenhum de nós poderia imaginar em nossos piores pesadelos.

No final das contas, nos tornamos todos reféns de um sistema sórdido e perverso. Triste.

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Umberto Eco e a “legião de imbecis” das redes sociais

Umberto Eco e a “legião de imbecis” das redes sociais

Sempre tento ler os livros publicados pelo escritor e filósofo italiano Umberto Eco. Confesso que leio alguns com mais e outros com menos interesse. Destes, há livros que nem mesmo concluo a leitura, mas é sempre bom ao menos tentar concluir.

Na semana passada, o escritor, crítico contumaz das novas tecnologias, ao receber o título de Doutor Honoris Causa em Comunicação e Cultura, em Turin (norte da Itália), tocou em um assunto que, ainda que seja ele um notório intelectual com profundidade temática em diversos assuntos, certamente tanto eu que aqui escrevo quanto você que me lê entende mais do que ele: as redes sociais.

Segundo Eco, a internet dá direito à palavra a uma “legião de imbecis” que antes falavam apenas “em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. Afirma Eco que, “normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel”. E arrematou: “O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”.

Estou aqui para concordar com o Eco e para analisar a sua brilhante constatação. De fato o escritor tem razão. Como duvidar dele? Idiotas de toda a ordem povoam as redes sociais. Mas o que o Eco não percebeu e que venho aqui ponderar é que os idiotas sempre tiveram a palavra, mesmo antes do advento da informatização.

Antes dela, gozavam da palavra muitos idiotas catedráticos. Seres dotados de conhecimento acadêmico, mas que, sem qualquer senso de humanidade, desfilavam as pérolas do seu conhecimento como se fosse exclusivamente seu, esquecidos de que centenas de pessoas laboraram para que aquele conhecimento se consolidasse, ao longo da história.

Antes dela, já gozam da palavra idiotas militarizados que estabeleciam verdades intocáveis e regras intransponíveis, cerceando atos e pensamentos.

Antes, valiam-se da palavra idiotas que, do alto de seus títulos, zombavam dos pequeninos situados lá embaixo, na pirâmide social, e estes tinham que agonizar calados diante das mazelas do mundo.

Antes da internet, estes e outros imbecis reinavam sozinhos, perfilando sua “vã filosofia” pelas cátedras, nos livros, em textos pouco compreensíveis, em dizeres enigmáticos, em tiradas de sarcasmo contra a massa inculta.

É preciso que alguém console o nobre escritor Umberto Eco, pois está democratizado o status de imbecil. Os primeiros já não reinam sozinhos e absolutos. Agora até quem não tem um Nobel, pasmem, pode achar-se gente e fazer uso da vez e da voz.

Dados insuficientes para resposta significativa

Dados insuficientes para resposta significativa

Por Josie Conti

O título deste texto é uma frase utilizada recorrentemente no conto de ficção-científica “A última pergunta” do escritor russo/ estadunidense Isaac Asimov. Embora o conto gire em torno da pergunta que poderia dar resposta à completa extinção do homem, no caso a “última pergunta”, o que mais me fascinou em todo o enredo foi a resposta que era dada pelos computadores, supercomputadores e tecnologias subsequentemente ao longo de bilhões de anos quando a pergunta era proferida: “Dados insuficientes para resposta significativa.” Ou seja, ainda não havia dados que pudessem evitar o fim da humanidade.

A linha de respostas para a vida é cíclica. Começamos praticamente no não saber.  Aprendemos muito na infância, achamos que sabemos tudo na adolescência e, se tivermos bom senso e amadurecermos, percebemos ao longo da idade adulta que o que sabemos é um quase nada. E haja reflexão para extrair sentidos em meio a tamanha ignorância descoberta.

Assim como o tempo das resposta muda, a quantidade e o significado também pode mudar. Lembro-me, por exemplo, de antigamente assistir a um filme achando que tinha que gostar de tudo. Hoje percebo que, se o filme tiver uma “sacada” ou frase genial, ele já valeu pelo seu tempo. É claro que ninguém tem tempo para ficar jogando fora, mas você está lá, já viu o filme, por que não extrair o melhor dele.  Aconteceu recentemente por aqui e já que o assunto é ficção científica prossigo com o exemplo. Inventei de assistir o filme “Esfera”, de 1998. O elenco era interessante e trazia nomes como Dustin Hoffman, Samuel, L. Jackson e Sharon Stone. Nem preciso dizer que achei péssimo, o filme não se alinhou com o meu gosto nem em roteiro e nem em produção. Gostei, entretanto, da mensagem contida em seus últimos minutos. Não que esses minutos  valham o filme- lembrem-se que ele tem mais de duas horas).

Explico:

A ideia era a seguinte: Os tripulantes, influenciados pela “esfera” que lhes conferia poder, transformavam seus maiores medos em realidade. Entretanto, somente nesse finalzinho da história é que ficou claro que a esfera mostrava a essência do homem e não necessariamente seus medos. Logo, eles não estavam prontos para ter esse poder porque não eram essencialmente bons. Não possuíam bondade suficiente, mesmo que superficialmente isso não aparecesse, para serem vistos no “real” de si. Eles não tinham “dados suficientes” dentro de si para administrar o poder da esfera.

Quantas vezes não erramos ao tirar conclusões e cometer atos e até atrocidades antes de termos “dados suficientes para uma resposta significativa”? A falta de maturidade para com nossa própria ignorância e do reconhecimento e aceitação de nosso lado- que não é tão bom quanto gostamos de imaginar- tem sido responsável por guerras reais e imaginárias e pelo progresso da destruição do planeta que continua em escalas geométricas.

Entretanto, mais do que falar da falta de consciência global, precisamos retomar a consciência de nós mesmos, de quem somos, do que querermos e de quais realmente são os dados significativos que motivam as nossas vidas.

Que sua vida seja melhor que meu filme. E que, apesar de nossa natureza muitas vezes duvidosa, existam dados suficientes para uma resposta significativa, mesmo que estes cheguem nos últimos minutos.

Fernando Pessoa, em entrevista, fala de política, artes e literatura

Fernando Pessoa, em entrevista, fala de política, artes e literatura
Entrevista datada de outubro de 1923, na qual Fernando Pessoa discorre sobre diversos temas de seu tempo. Constante do acervo Fernando Pessoa, hoje de domínio público.

O escritor Fernando Pessoa expõe-nos as suas ideias…

AS NOSSAS ENTREVISTAS

O escritor Fernando Pessoa expõe-nos as suas ideias sobre os vários aspectos da arte e da literatura portuguesas.

Entrevistar Fernando Pessoa não é fácil. Só é fácil entrevistar os que não pensam, os que não se importam de jogar palavras, ao acaso, atirando-as impudicamente ao vento.

Fernando Pessoa, quer como Fernando Pessoa, quer como Álvaro de Campos – o engenheiro alucinado que comporta o seu segundo eu, e que aparece em toda a parte, enchendo a voz de louvores e raios para a Vida – raios partam a Vida e quem lá ande! -é sempre um voluptuoso do raciocínio, um amante da inteligência, podemos dizer: um criador duma nova Razão. Paradoxal? Sem dúvida. Mas há tantas maneiras de ser paradoxal!

A entrevista que se segue, toda escrita por Fernando Pessoa – nem podia deixar de ser, visto Fernando Pessoa possuir uma sintaxe própria para a lógica própria dos seus pensamentos, misto de seriedade e de ironia, vai decerto prender o espírito dos leitores…

Atenção! Fernando Pessoa vai responder às perguntas que lhe fizemos:

– Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos – político, moral e intelectual?

– A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico.

Todo povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que o povo não é colectivo.

O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita – como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova – o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática íntima.)

Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise.

As nossas crises particulares procedem desta crise geral. A nossa crise política é o sermos governados por uma maioria que não há. A nossa crise moral é que desde 1580 – fim da Renascença em nós e de nós na Renascença – deixou de haver indivíduos em Portugal para haver só portugueses. Por isso mesmo acabaram os portugueses nessa ocasião. Foi então que começou o português à antiga portuguesa, que é mais moderno que o português, e é o resultado de estarem interrompidos os portugueses. A nossa crise intelectual é simplesmente o não termos consciência disto.

Respondi, creio, à sua pergunta. Se V. reparar bem para o que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer.

– Que pensa dos nossos escritores do momento, prosadores poetas e dramaturgos?

– Citar é ser injusto. Enumerar é esquecer. Não quero esquecer ninguém de quem me não lembre. Confio ao silêncio a injustiça. A ânsia de ser completo leva ao desespero de o não poder ser. Não citarei ninguém. Julgue-se citado, quem se julgue com direito a sê-lo. Resolvo assim todos. Lavo as mãos, como Pilatos; lavo-as, porém, inutilmente, porque é sempre inutilmente que se faz um gesto simplificador. Que sei eu do presente, salvo que ele é já o futuro? Quem são os meus contemporâneos? Só o futuro o poderá dizer. Coexiste comigo muita gente que vive comigo apenas porque dura comigo. Esses são apenas os meus conterrâneos no tempo; e eu não quero ser bairrista em matéria de imortalidade. Na dúvida, repito, não citarei ninguém.

– Estaremos em face de uma renascença espiritual?

– Estamos tão desnacionalizados que devemos estar renascendo. Para os outros povos, na sua totalidade eles próprios, o desnacionalizar-se é o perder-se. Para nós, que não somos nacionais, o desnacionalizar-se é o encontrar-se. Apesar dos grandes obstáculos à nossa regeneração – todas as doutrinas de regeneração – estamos no início de tornar a começar a existir. Chegámos ao ponto em que colectivamente estamos fartos de tudo e individualmente fartos de estar fartos. Extraviámo-nos a tal ponto que devemos estar no bom caminho. Os sinais do nosso ressurgimento próximo estão patentes para os que não vêem o visível. São o caminho-de-ferro de Antero a Pascoaes e a nova linha que está quase construída. Falo em termos de vida metálica porque a época renasce nestes termos. O símbolo, porém, nasceu antes dos engenheiros.

Nada há a esperar, é certo, das classes dirigentes, porque não são dirigentes; e ainda menos da proletariagem, porque ser inferior não é uma superioridade. Com razão lhes chamei eu, a estes, subgente, num artigo da antigaÁguia – da Águia que voava. Só a burguesia, que é a ausência da classe social, pode criar o futuro. Só de uma classe que não há pode nascer uma classe que não há ainda. Seja como for, avancemos confiadamente. Todos os caminhos vão dar à ponte quando o rio não tem nenhuma.

– O que se deve entender por arte portuguesa? Concorda com este termo? Há arte verdadeiramente portuguesa?

– Por arte portuguesa deve entender-se uma arte de Portugal que nada tenha de português, por nem sequer imitar o estrangeiro. Ser português, no sentido decente da palavra, é ser europeu sem a má-criação de nacionalidade. Arte portuguesa será aquela em que a Europa – entendendo por Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro – se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações – a Grécia passada e Portugal futuro – receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras. Chamo a sua atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa e Atenas estão quase na mesma latitude.

– O regionalismo na literatura e na pintura?

– O regionalismo é uma degeneração gordurosa do nacionalismo, e o nacionalismo também. E como o nacionalismo é antiportuguês (sendo bom, cá no Sul, só para os povos latinos e ibéricos), o regionalismo em Portugal é uma doença do que não há. Amar a nossa terra não é gostar do nosso quintal. E isto de quintal também tem interpretações. O meu quintal em Lisboa está ao mesmo tempo em Lisboa, em Portugal e na Europa. O bom regionalismo é amá-lo por ele estar na Europa. Mas quando chego a este regionalismo, sou já português, e já não penso no meu quintal. (O facto de o meu quintal ser inteiramente metafórico não diminui a verdade de tudo isto: Deus, e o próprio universo, são metáforas também.)

– Teriam existido em toda a nossa história literária períodos de criação?

– O nosso único período de criação foi dedicado a criar um mundo. Não tivemos tempo para pensar nisso. O próprio Camões não foi mais que o que esqueceu fazer. Os Lusíadas é grande, mas nunca se escreveu a valer. Literariamente, o passado de Portugal está no futuro. O Infante, Albuquerque e os outros semideuses da nossa glória esperam ainda o seu cantor. Este poderá não falar deles; basta que os valha em seu canto, e falará deles. Camões estava muito perto para poder sonhá-los. Nas faldas do Himalaia o Himalaia é só as faldas do Himalaia. É na distância, ou na memória, ou na imaginação que o Himalaia é da sua altura, ou talvez um pouco mais alto. Há só um período de criação na nossa história literária: não chegou ainda.

– Continuará sendo o lirismo a nossa feição literária predominante?

– Há duas feições literárias -a épica e a dramática. O lirismo é a incapacidade comovida de ter qualquer delas. O que é ser lírico? É cantar as emoções que se têm. Ora cantar as emoções que se têm faz-se até sem cantar. O que custa é cantar as emoções que se não têm. Sentir profundamente o que se não sente é a flâmula de almirante da inspiração. O poeta dramático faz isto directamente; o poeta épico fá-lo indirectamente, sentindo o conjunto da obra mais que as partes dela, isto é, sentindo exactamente aquele elemento da obra de que não pode haver emoção nenhuma pessoal, porque é abstracto e por isso impessoal. Fomos esboçadamente épicos. Seremos inviolavelmente dramáticos. Fomos líricos quando não fomos nada. O lirismo só continuará sendo a nossa feição predominante se não formos capazes de ter feição predominante.

– O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?

-O Quinto Império. O futuro de Portugal —que não calculo mas sei —está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamo. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeismo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.

contioutra.com - Fernando Pessoa, em entrevista, fala de política, artes e literatura

 

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

1ª publ. in Revista Portuguesa, nº 23-24. Lisboa: 13-10-1923.

Andar de manhã, um texto de Rubem Alves sobre como olhar a vida

Andar de manhã, um texto de Rubem Alves sobre como olhar a vida

Durante as duas últimas semanas tenho começado os meus dias cometendo um furto. Não sei como evitar esse pecado e, para dizer a verdade, não quero evitá-lo. A culpa é de uma amoreira que, desobedecendo as ordens do muro que a cerca, lançou seus galhos sobre a calçada. Não satisfeita, encheu-os de gordas amoras pretas, apetitosas, tentadoras, ao alcance de minha mão. Parece que os frutos são, por vocação, convites a furtos: basta mudar a ordem de uma única letra… Penso que o caso da amoreira comprova esta tese linguística: tudo tem a ver com o nome. Pois amora é a palavra que, se repetida muitas vezes, amoramoramoramora, vira amor. Pois não é isso que é o amor? Um desejo de comer, um desejo de ser comido… O muro, tal como o mandamento, diz que é proibido. Mas o amor não se contém e, travestido de amora, salta por cima da proibição. Foi assim no Paraíso… Os poucos transeuntes que passam por ali àquela hora da manhã talvez se espantem ao ver um homem de cabelos brancos colhendo amoras proibidas. Mas, se prestarem bem atenção, verão que quem está ali não é um homem com cerca de 70 anos, é um menino. E como o próprio filho de Deus que disse que é preciso voltar a ser menino para entrar no Reino dos Céus, colho e como as amoras com convicção redobrada. E para que não pairem dúvidas sobre a inspiração teologal do meu ato, enquanto mastigo e o caldo roxo me suja dedos e boca, vou repetindo as palavras sagradas: “Tomai e bebei, este é o meu sangue…”. Ah! A divina amora, graciosa dádiva sacramental! Começo assim meu dia, furtando o fruto mágico que opera o milagre por todos sonhado de voltar a ser criança.

Assim revigorado no corpo e na alma por esse maná divino caído dos céus, prossigo na minha caminhada matutina. Ando não mais que 50 passos e estou sob uma longa alameda de pinheiros. Neles, não há nenhuma fruta que eu possa roubar, pois nada produzem que possa ser comido. Pinheiros não são para boca. São dádivas aos olhos. É cedo ainda. O sol acabado de nascer ilumina suas espículas verdes, que brilham como agulhas de cristal. Lembro-me de Le Corbusier, que dizia que “as alegrias essenciais são o sol, o espaço, e verde”. Mas os pinheiros sabem mais que o arquiteto, e às alegrias da luz acrescentam as alegrias do cheiro. Respiro fundo e sinto o perfume de resina.

Se me perguntarem no que penso, respondo com um verso Tao: “O barulho da água diz o que eu penso”. Penso as amoras, penso os pinheiros, penso a luz do sol, penso no cheiro da resina.

É tempo da floração das sibipirunas. Verdes e amarelas, elas cresceram dos dois lados da rua onde ando, transformando-a num longo túnel sombrio. Durante a noite, suas flores caíram, cobrindo a calçada e transformando-a num tapete dourado. Desço da calçada e ando no asfalto para não pisá-las. Lembro-me da voz misteriosa que falou a Moisés, de dentro da sarça que ardia: “Tira as sandálias dos teus pés, pois o chão onde pisas é santo”.

Para contemplar esse espetáculo, é necessário levantar cedo, pois logo as donas de casa e suas vassouras tratarão de restaurar no cimento a sua fria limpeza. Isso me dói, e com a dor vem o pensamento. Pergunto-me sobre a educação perversa que fez com que as pessoas se tornassem cegas para a beleza generosa das árvores, tratando suas folhas como se fossem sujeira. Mas as sibipirunas, indiferentes à cegueira dos homens e das vassouras repetirão o milagre durante a noite. Amanhã as calçadas estarão de novo cobertas de ouro.

Caminho um pouco mais e chego ao Bosque dos Alemães. Espera-me ali um outro deleite, o deleite dos ouvidos: há uma infinidade de cantos de pássaros que se misturam ao barulho das folhas sopradas pelo vento. Não estou sozinho. Fazem-me companhia muitas outras pessoas, entregues ao exercício matutino do andar e do correr. Estão ali por medo de morrer antes da hora. É preciso exercitar o coração. Mas parece que é só isso que exercitam. Pois, por mais que me esforce, não consigo perceber em seus rostos sinais de que estejam exercitando também o deleite dos olhos, do nariz ou dos ouvidos. Correm e caminham com olhos fixos no chão, graves e concentradas, compelidas pelas necessidades médicas. E, por causa disso, por não saberem ver e ouvir, não se dão conta de um comovente caso de amor que ali se desenrola.

Percebi o romance faz muito tempo, quando ouvi os gemidos que me vinham do alto. Lá em cima, longe dos olhares indiscretos, um gigantesco eucalipto e uma árvore de rolha se abraçam. Seus galhos entrelaçados revelam o amor dos namorados. Acho que fazem amor, pois quandoo vento sopra fazendo suas cascas se esfregarem uma na outra, elas gemem de prazer… e dor.

Ando toda manhã. Por razões médicas, é bem verdade. Mas, mesmo que não existissem, andaria da mesma forma, pelos pensamentos leves e alegres que a natureza me faz pensar. Boa psicanalista é a natureza, sem nada cobrar, pelos sonhos de amor que nos faz sonhar.

Rubem Alves, no livro “As melhores crônicas de Rubem Alves” 

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Dica de livro: Sete Vezes Rubem (Fruto do trabalho de uma década, esta obra reúne sete livros de Rubem Alves publicados pela Papirus entre 1996 e 2005.)

Até que o karma nos separe (ou não)

Até que o karma nos separe (ou não)

Por Adriana Abraham

Quando iniciamos uma relação amorosa com alguém que julgamos importante, os desafios com os filhos e parceiros de relacionamentos anteriores já são fatores automaticamente ponderados nos primeiros estágios. Cada um sabe qual o seu limite. É preciso ter alcançado maturidade emocional suficiente para saber o quanto estamos dispostos a nos comprometer para estabelecer uma relação saudável.

Por isso, além da preocupação com a compatibilidade moral, física, intelectual, financeira ou qualquer outra que seja considerada importante para os envolvidos no relacionamento, não seria interessante nos preocuparmos também com o carma da pessoa com a qual pretendemos compartilhar nossa vida?

É certo que não se trata de assumir os resultados das ações positivas ou negativas do parceiro, uma vez que isso seria impossível pela lei do carma. Cada indivíduo é responsável pelos efeitos produzidos a partir de seus pensamentos, palavras e ações.

Jetsunma Tenzin Palmo, em uma passagem do livro “No coração da vida”, ensina que o Buda disse que carma é intenção. Isso significa que as sementes que plantamos não são influenciadas pela real ação manifesta, mas pela motivação que há por trás dessa ação.
Logo, num relacionamento amoroso no qual os parceiros pratiquem a atenção plena de forma habitual, ambos se esforçariam para não acrescentar negatividade ao carma do outro de forma intencional. Tal ação desafiaria o nível de desapego e compaixão de um pelo outro.

Lama Tsering Everest, em seus ensinamentos acerca dos venenos da mente, descreve uma situação em que um dos parceiros decide se separar, não apenas por considerar o seu próprio sofrimento com as ações do outro, mas por não desejar que mais carma negativo fosse acumulado pelo parceiro por conta de suas ações.
Quem diria que a maior prova de amor pode ser justamente se afastar de seu parceiro para que suas ações negativas não produzam mais carma. Esse ensinamento budista poderia ser um substituto para os clichês ditos ao final dos relacionamentos, como por exemplo:

– Você vai ficar bem. Pelo menos não vai acumular mais carma negativo.

Os relacionamentos amorosos, vistos sob a ótica budista, começam e terminam dependendo do carma de cada um dos envolvidos. Isso fica mais claro quando os parceiros se dispõem a fazer uma análise pregressa dos fatos, o que geralmente é feito ao final de uma relação.

Chagdud Tulku, no livro “Para abrir o coração”, ensina que o ideal é que nosso objetivo, nos relacionamentos, seja trazer felicidade, e não dor e sofrimento. Não temos tanto tempo juntos antes que a morte nos separe.
Seria então possível considerar a impermanência das relações humanas como fator principal para evitar a separação? Os casamentos mais duradouros seriam aqueles em que ambos sabem que não há tempo a perder com as pequenas desavenças. Se tudo pode acabar a qualquer momento, por que não aproveitar o há de melhor no parceiro?

Vale lembrar que o carma acumulado ao longo de muitas vidas também serve para unir um casal, como bem ensina Chagdud Tulku em passagem do mesmo livro: se houver carma para que o relacionamento seja bem-sucedido, nada impedirá que o casamento dê certo.

Assim, que o carma nunca deixe de nos unir. E, caso nos separe, que seja para o bem de ambos. Amém.

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