O Grande Gatsby

O Grande Gatsby

Por Octavio Caruso

Ainda que não seja necessário, recomendo que a leitura da obra seminal de F. Scott Fitzgerald sobre a fragilidade do “Sonho Americano”, anteceda a sessão do filme. A mais famosa versão cinematográfica até o momento era a protagonizada por Robert Redford, que fracassava em diversos aspectos, inclusive como adaptação. Baz Luhrmann acerta onde todos erraram, demonstrando entender perfeitamente a essência do livro, incorporando-a ao seu próprio estilo de rebeldia elegante, que combina perfeitamente com a proposta do autor.

Nick Carraway (Tobey Maguire) e Jay Gatsby (Leonardo DiCaprio) representam facetas antagônicas da personalidade do autor: o tímido e respeitoso jovem que se deslumbra com os excessos da alta sociedade e o homem seguro, que utiliza seu carisma e posses para impressionar a mulher que deseja. No meio do fogo cruzado, Daisy Buchanan (Carey Mulligan), personagem parcialmente inspirada em Zelda, esposa do autor, escrava de seu amor pelo enriquecimento material, porém indiferente à afeição humana, uma caricatural crítica aos valores amorais da aristocracia da América dos anos 20.

Todos os personagens utilizam as pessoas como peões nos tabuleiros de seus desejos, descartando-as como se nada valessem, após o cumprimento de suas funções em seus planos. Gatsby talvez seja o único que não tenha sido corrompido pela sua riqueza, pois a utiliza objetivamente para galgar os degraus que o encaminham ao seu sonho pessoal. Ele não necessita de todo aquele luxo, conseguiria se destacar até mesmo na pobreza. Fitzgerald, captado com maestria por Luhrmann, aponta o dedo para a banalização dos valores humanos, na incessante busca pelo ilusório status que advém do sedutor e corruptível brilho do ouro.

O diretor exercita seu estilo, misturando música contemporânea, como o hip-hop que emoldura nosso primeiro vislumbre da fictícia cidade e o primeiro encontro de Carraway com o mundo boêmio, e canções da época, como a espirituosa “Let´s Misbehave”, de Cole Porter, além de utilizar generosamente o auxílio da computação gráfica nos exteriores, o que realça o tom de artificialidade que envolve a trama e os personagens. Interessante também é a forma como o roteiro utiliza de forma inteligente a inalcançável luz verde do píer, elemento importante no livro, como um tema visual recorrente, que simboliza o desejo de Gatsby por alcançar Daisy, prendê-la em seu mundo. “O Grande Gatsby” é um filme que deixaria seu autor orgulhoso.

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OCTAVIO CARUSO

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Carioca, apaixonado pela Sétima Arte. Ator, autor do livro “Devo Tudo ao Cinema”, roteirista, já dirigiu uma peça, curtas e está na pré-produção de seu primeiro longa. Crítico de cinema, tendo escrito para alguns veículos, como o extinto “cinema.com”, “Omelete” e, atualmente, “criticos.com.br” e no portal do jornalista Sidney Rezende. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, sendo, consequentemente, parte da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica.

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No aeroporto, uma crônica de Carlos Drummond de Andrade

No aeroporto, uma crônica de Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade

Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas o seu quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos, embora não falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito assunto, e não deixamos de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente parco de palavras, e, a bem dizer, não se digne de pronunciar nenhuma. Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões pelos quais se faz entender admiravelmente. É o seu sistema.

Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta, porque ostensiva. A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para com o mundo ocidental e oriental, e em particular o nosso trecho de rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos, gratificados com esse sorriso (encantador, apesar da falta de dentes), abonam a classificação.

Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários especiais, comidas especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados especiais. Mas sua simples presença e seu sorriso compensariam providências e privilégios maiores.

Recebia tudo com naturalidade, sabendo-se merecedor das distinções, e ninguém se lembraria de achá-lo egoísta ou importuno. Suas horas de sono – e lhe apraz dormir não só à noite como principalmente de dia – eram respeitadas como ritos sagrados, a ponto de não ousarmos erguer a voz para não acordá-lo. Acordaria sorrindo, como de costume, e não se zangaria com a gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus sonhos.

Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito concerto para violino e orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram à tortura da tevê. Andando na ponta dos pés, ou descalços, levamos tropeções no escuro, mas sendo por amor de Pedro não tinha importância.

Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de óculos alheios (e não os usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta das coisas para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pô-las na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém duvido que mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas pupilas azuis — porque me esquecia de dizer que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer suspeita ou acusação apressada, sobre a razão íntima de seus atos.

Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os cômodos, e o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com ele porque destruiu a lâmpada do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro que ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas coisas eram indiferentes à nossa amizade — e, até, que a nossa amizade lhe conferia caráter necessário de prova; ou gratuito, de poesia e jogo.

Viajou meu amigo Pedro. Fico refletindo na falta que faz um amigo de um ano de idade a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto ficou vazio.

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Aprendi muitas coisas na faculdade de medicina, mas a mortalidade não foi uma delas

Aprendi muitas coisas na faculdade de medicina, mas a mortalidade não foi uma delas

Por Josie Conti

 “Aprendi muitas coisas na faculdade de medicina, mas a mortalidade não foi uma delas.”

É com a frase acima que o médico cirurgião e escritor americano Atul Gawande introduz o seu novo livro “Mortais- Nós, a medicina e o que realmente importa no final “, da Editora Objetiva, lançado em junho de 2015 no Brasil. Escrito em tom pessoal e repleto de histórias de família e trabalho, o livro nos permite vivenciar a dor, as perdas e as consequências das escolhas finais dos profissionais, do paciente e dos familiares frente à iminência da morte.

Como escritor, Atul Gawande sabe que só o que é emocionalmente significativo fica gravado e ressoa na memória do leitor. Com muita delicadeza, coloca-nos em vivência compartilhada nos dramas que relata e questiona-nos: frente a uma doença incurável, devemos usar ilimitadamente os recursos da medicina existentes para prolongar o tempo em que um corpo permanece respirando, mesmo que ligado a aparelhos, ou deveríamos nos focar na qualidade de vida restante?

É fato que os médicos são formados para salvar vidas. Para eles, a competência, a segurança e a identidade do profissional, na maioria das vezes, está relacionada a não deixar que o paciente morra. Mas, será que o prolongamento da vida com o uso de aparelhos, alguns tipos de quimioterapia ou mesmo cirurgias agressivas não seriam “novas formas de torturas físicas a que submetemos nosso paciente?”, diz ele em um trecho do livro.

Como profissional da saúde, sempre me surpreendi com o abismo existente entre a teoria e realidade profissional. Nessa área creio que são raros os casos de pessoas que realmente têm noção do que encontrarão do lado de dentro de um consultório ou de um hospital. Os maiores exemplos de tratamento desumanizado que presenciei como pessoa vi lidando com médicos que atuavam sob uma falsa couraça de poder. Seria a arrogância e a prepotência, tantas vezes encontrada na classe, um mecanismo de defesa para lidar com as próprias inseguranças frente a limitações reais da prática profissional?

Mesmo filho de médicos, o próprio Atul Gawande confessa que não imaginava como era viverciar rotineiramente a limitação, a falta de recursos terapêuticos e, principalmente, a morte real, consumada. Como lidar com a situação quando nada mais pode ser feito?

Um dos grandes diferenciais do autor é a sinceridade e a dignidade com que desbanca a onipotência da profissão ao analisar os aspectos emocionais dos envolvidos, ao falar da NEGAÇÃO cultural que o mundo moderno desenvolveu enquanto a medicina, o saneamento básico e outros fatos históricos permitiram o aumento da expectativa de vida das pessoas.

Sua mensagem é pela revisão dos gastos médicos realizados em tratamentos desnecessários, é pelo olhar para um paciente que precisa ser informado sobre sua real condição e, mais do que tudo, sobre a priorização da qualidade e não do tempo de vida de uma pessoa.

“Mortais- Nós, a medicina e o que realmente importa no final “

Três poemas de Sophia Andresen capazes de nos tirar o chão

Três poemas de Sophia Andresen capazes de nos tirar o chão

Terror de Te Amar

Terror de te amar
num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

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Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

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Pirata

Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Sophia de Mello Breyner Andresen, poetisa portuguesa.
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Somos todos passageiros

Somos todos passageiros

Por Gustl Rosenkranz

Ontem recebi uma notícia que me chocou: uma boa amiga me ligou para dizer que o sogro dela, que eu também conhecia, havia falecido. Ele caiu de uma escada, dentro de casa, bateu a cabeça no chão e morreu de imediato.

Pois é, por mais que saibamos que todos nós vamos um dia abandonar este mundo, por mais que a morte faça parte da vida e por mais que tenhamos maturidade suficiente para aceitá-la, sempre nos chocamos quando morre alguém que conhecemos, principalmente quando a morte vem de uma forma inesperada.

Fico imaginando a vida como um trem longuíssimo, com vários vagões. Neste trem só se embarca pela frente e tem-se então que caminhar por todos os vagões (as etapas da vida) até chegar ao último, onde então desembarcamos e deixamos de viver (neste mundo). Até aí, tudo bem: todos já embarcamos sabendo disso – ou ficamos sabendo bem cedo – e sabemos também que é inevitável. Aceitamos assim nosso destino e caminhamos de vagão para vagão, aprendendo, crescendo, vivendo. E, neste trem, viajam também diversas pessoas, algumas que embarcaram já antes de nós, outras que embarcaram conosco e já outras que vão embarcando depois nas diversas estações da vida. É também nessas estações que desembarcam aqueles que já se encontram no último vagão e que já passaram por todo o trem. Alguns vão felizes, pois sabem que tiraram o melhor proveito da viagem, outros vão amargos e solitários, pois só entenderam tarde demais que tinham muito o que aprender com aqueles outros passageiros que rejeitou e hostilizou o tempo todo. Já outros relutam, não querem desembarcar de forma alguma, tentando voltar para o vagão anterior (ou mesmo vários vagões atrás!), mas percebem que isso não é possível, pois a porta entre os vagões só permitem a passagem em um único sentido: do início para o fim, do nascimento para a morte.

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www.viajarhei.com

Os passageiros que se encontram mais à frente, que ainda têm vários vagões para percorrer, sabem que há pessoas queridas no fim do trem e ficam tristes, pois têm consciência de que eles logo descerão, mas aceitam, principalmente por saberem que não há outro jeito mesmo. O destino da vida é a morte, a morte faz parte da vida. Quando alguém então vai, isso dói e se fica triste, mas a dor é mais amena quando já contávamos com isso, porque houve então um tempo de familiarização, houve um tempo de despedida. Mas às vezes acontece de alguém, que ainda teria uma longa viagem pela frente, que estava ali, no meio do trem, no meio da vida, ser de repente levado para o último vagão ou mesmo para fora do trem, assim, sem que ninguém esperasse, de um momento para o outro. Alguém se vai e não conseguimos entender. Ficamos então chocados, primeiro pela perda, mas também por percebermos nossa fragilidade e por a vida nos lembrar que somos todos passageiros, passantes, viajantes no trem da vida. É como se passasse o chefe do trem pedindo para ver o bilhete e o destino de cada passageiro, lembrando a todos que estamos a caminho e que cada um de nós vai ter que descer um dia.

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Às vezes, acontece alguma coisa (uma catástrofe, uma epidemia, uma guerra…) e muitos abandonam o trem de uma vez só. E tem aqueles que, por tanto medo do que os espera nos vagões seguintes, terminam desistindo e descendo do trem muito antes de chegar sua estação.

Tenho a impressão de que a maior parte das pessoas evita pensar nisso e mais ainda falar disso. Entendo isso muito bem. Não acho que seria saudável se ocupar com a morte o tempo todo. Isso não seria bom. É mais fecundo pensar na vida. A morte é inevitável, todos vamos morrer e creio que não faz sentido algum negar isso e fazer de conta que a morte não existe, pois isso seria fugir de algo que precisamos aceitar para que possamos viver plenamente. Mas não precisamos ficar falando da morte o tempo todo. Só não devemos ignorá-la. É importante aceitá-la e ter consciência de que tudo este mundo é passageiro, tudo passa, tudo acaba. Tudo mesmo, também eu, também você. Quem aceita isso desenvolve uma maior capacidade de relativizar muitos problemas da vida e de perceber que é substancial dar a prioridade certa às coisas, que nem tudo é realmente tão importante assim. Essa pessoa entende que seu tempo no trem da vida é curto (talvez muito mais curto do que imagina) e que ainda tem muitos vagões para viver.

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Imagem: www.devouringfire.com

Gosto da palavra ‘passageiro’ em alemão: ‘Fahrgast‘. ‘Gast‘ é visitante, hóspede. Ao entrar em um trem, ônibus ou táxi na Alemanha, você é um Fahrgast, que eu traduzo aqui como visitante viajante. Nós estamos visitando este mundo e viajando por ele. Ele não é nosso. Mesmo assim, entre, chegue à frente, sinta-se em casa, mas com o respeito de quem só está passando, aproveitando a viagem intensamente, mas sem se prender a nada que não seja realmente essencial, pois uma hora você vai ter que descer. E você terá que deixar para trás tudo que guardou e não cabe em sua bagagem. Por isso, é mais sábio guardar somente aquilo que realmente tem um significado verdadeiro e mais profundo. Viva sua vida plenamente, busque relações sinceras, não deixe que o medo (nem o seu, nem o de ninguém!) lhe prenda, tenha coragem, viva cada momento intensamente, de uma forma madura, sendo bom para você mesmo, tratando você com carinho, não por vaidade ou egoísmo, mas por saber que você mesmo é a melhor companhia que você tem, é a única que com certeza plena ficará ao seu lado até seu desembarque do último vagão do trem da vida.

Momentos como esses, de choque, de saber que alguém morreu, são sempre tristes. Mas é também um desses momentos que nos convida a parar e refletir, talvez com o sentimento saudável de que precisamos nos concentrar mais no que é essencial e de que vivemos correndo atrás de muita coisa que não faz sentido, que desperdiçamos nosso precioso tempo cuidando de coisas sem real importância e descuidando do que realmente conta. Para mim o sentido da vida é viver e não ficar procurando por ele. E muito menos ficar esperando pelo momento certo de começar a viver

AMOR DA MINHA VIDA, uma crônica de Maitê Proença

AMOR DA MINHA VIDA, uma crônica de Maitê Proença

O amor da minha vida eu encontrei, tem nome, é de carne e osso, e me ama também. Agora falta encontrar alguém com quem possa me relacionar. É que o homem da minha vida não cabe em mim e eu não caibo nele. Não basta que a gente se queira há muitos anos. Não basta nossos namoros longos, os rompimentos e a teimosia de desejar mais daquilo que não há de ser. Não presta que ele me visite pra acabar com as saudades e fuja correndo de pernas bambas e um bumbo no peito. Não importa que eu esqueça meu nome depois, nem que me perca num oco, ou que os sentimentos corram de ambos os lados, intensos e desarvorados. Não basta que haja amor para se viver um amor. Eu e ele somos as cruzadas da idade média, o Osama e o Tio Sam, o preto e o branco da apartheid, o falcão e o lobo, o Feitiço de Áquila. Seus mistérios me perturbam e minha clareza o ofusca. Tenho fascínio pelo plutão que ele habita, e ele vive intrigado por minha vênus, mas quando eu falo vem, ele entende vai. Enquanto ele avista o mar eu olho pra montanha. Quando um se sente em paz o outro quer a guerra. É preciso me traduzir a cada centímetro do caminho enquanto ele explica que eu também não entendi nada. Discordamos sobre o tempo, o tamanho das ondas, a cor da cadeira. O desacerto é de lascar, e não há cama que resista a tantas reconciliações – um dia a cama cai.

Esta semana fui ver a Ópera do Malandro em cartaz no Rio de Janeiro. Se o Chico Buarque nunca mais tivesse feito outra coisa na vida, ainda assim teria de ser imortalizado pelas alturas em que transita sua poesia nesta obra. Como ando as voltas com assuntos de amor, prestei atenção na cafetina Vitória que, do alto de sua experiência, ensinava: O amor jamais foi um sonho, o amor, eu bem sei, já provei, é um veneno medonho. É por isso que se há de entender que o amor não é ócio, e compreender que o amor não é um vício, o amor é sacrifício, o amor é sacerdócio.

Mais adiante Terezinha, a heroína quase ingênua, sofria:

Oh pedaço de mim, oh metade arrancada de mim, leva o vulto teu, que a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu. Leva o que há de ti, que a saudade dói latejada, é assim como uma fisgada no membro que já perdi.

Naquela noite, inspirada pelo Chico, voltei pra casa decidida – não quero mais o amor da minha vida ocupando o lugar de amor da minha vida. Venho portanto, pedir a ele publicamente, que libere a vaga. É com você mesmo que estou falando, você aí, que se instalou feito um posseiro dentro do meu coração, faça o favor de desinstalar-se. Xô. Há de haver um homem bom, me esperando em alguma esquina desse mundo. Um homem que aprecie o meu carinho, goste do meu jeito, fale a minha língua, e queira cuidar de mim. As qualidades podem até variar, mas aos interessados, se houver, vou avisando; existem defeitos que considero indispensáveis.

Meu amor tem de ter uns certos ciúmes, e reclamar quando eu precisar viajar pra longe. Pode se meter com minha roupa, com corte do cabelo, e achar que sou distraída e não sei dirigir. Quando ficar surpreso de eu ter chegado até aqui sem ele, afirmarei sem ironia, que foi mesmo por milagre. Este homem deve querer nosso lar impecável, com flores no jarro, e é imperativo que faça tromba quando não estiver assim. Ele irá me buscar no trabalho e levará direto pra casa, nada de madrugadas na rua! Desejo enfim que meu amor me reprima um pouco, e que me tolha as liberdades – esse vôo alucinante e sem rumo, anda me dando um cansaço danado.

Fonte indicada Maitê Proença- site

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Total presença dos sentidos

Total presença dos sentidos

Por Patrícia Dantas

Algumas sensações são como explosões dentro da gente. Não precisa falar nada, elas vivem como um ser pulsante que corre em disparada a algo que nem sempre conhecemos, mas que está prestes a provar de uma nova aventura. Sabe quando você se torna a pessoa imprevisível de uma situação comum e normal, sem nada que fuja do ritmo habitual, sem que haja nenhuma transgressão? Apenas você começa a acontecer de uma forma inusitada, um pouco fora dos seus padrões.

Hora do almoço. Todos os lugares se acotovelam, as pessoas estão apressadas, temendo que o tempo fique contra elas, fazem tudo tão rápido e sem pensarem muito, sempre correndo o risco de não chegarem a tempo ao lugar de sempre. É a hora que voa, mas que dá para durar mais psicologicamente e alimentar mais que o estômago – que gritem as nossas manias secretas e insaciáveis.

Saí do trabalho com pressa de provar, experimentar algo, como quem diz que em uma hora dá para saciar todos os tipos de gostos, não só o da comida. Passei por dentro de um pequeno shopping à beira mar, olhei algumas vitrines, vasculhei umas duas lojas de roupas, e por fim entrei numa livraria nova, minúscula, mas aconchegante, que ia dos clássicos aos últimos lançamentos. Camilo Castelo Branco, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Mário Quintana, Agatha Christie, Jane Austen, Virgínia Woolf, Balzac, Baudelaire, John Green, E L James, Letícia Wierzchowski, Alain de Botton, Raphael Montes, Thalita Rebouças, Edney Silvestre, Julianna Costa, Isabela Freitas, Martha Medeiros! Folheei, cheirei, abri livros e mais livros, best-sellers, e nada!

Tão logo me deparei com uma confissão íntima: estava lendo um livro de crônicas, outro de poemas, um romance que já estava quase no finalzinho e um livro teórico sobre um curso de marketing que estava fazendo. Como comprimir tudo aquilo na cabeça, como na estante do escritório lá de casa? Balela! Muito daquilo, ou mais de noventa por cento, seria esquecido nos próximos meses ou nas horas de chegadas imprevisíveis. Mas sentia um prazer irrepreensível em estar por dentro de todas aquelas palavras e histórias misturadas e ao mesmo tempo encaixadas em minha cabeça. Se parasse para pensar, era tudo apavorante diante de tantas coisas a cumprir no dia a dia, mas era o que me tirava do louco locus humano.

Deixei tudo num raio de segundos, desci a escada rolante que dava para uma loja de chocolates, à esquerda, entrei quase em exaustão a procurar o tal do algo que ainda não encontrara. Talvez estivesse tudo ali naquelas prateleiras coloridas e de todos os tipos de chocolates, amargos, brancos, ao leite, com licores, castanhas, avelãs, para todos os gostos! Na minha cestinha não cabia mais nenhum tipo daquelas delícias, eu catara tudo o que via pela frente. Ia empurrando as pessoas que escolhiam tranquilamente seus chocolates, sem notarem minha presença aflita e descontrolada. Para o quê, ninguém saberia responder ou teria alguma pista. Estava ali o antídoto.

Aproximei-me do balcão, olhei a moça de olhos castanhos nos olhos, em tom de um contentamento que transbordava, e falei baixinho: “Mais chocolates, por favor! “. É que olhara por trás do balcão e percebi que ali havia uma mesinha que vendia chocolates a peso. Não me contive, a inquietação só aumentou, chegou ao seu último tom, a sua última nota se gastara sem completar o roteiro original. Estava no auge da minha insaciedade (ou insanidade) para me compor, por algo que não descobrira, mas apontava um caminho doce, leve e prazeroso: a total presença dos sentidos.

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O amor que me escapa

O amor que me escapa

Por Elika Takimoto

Quisera eu refazer o Meu Amor, como no instante da Criação onde não havia o tempo, portanto, o passado, como se tivesse reduzido a um nada todas as decepções e dores que causamos um para o outro e qualquer indício que elas permeariam o nosso futuro. Quisera eu refazer um universo novo sem pretéritos imperfeitos com exceção de uma coisa: que ele, também, ainda quisesse viver ao meu lado.

Sinto-me na obrigação de lembrar sempre o que vivemos juntos, tal como um imigrante de outro continente se esforça por não esquecer a língua natal para poder em muitos momentos recordar do berço pátrio que, por certo, não tornará a ver. Não trabalho as minhas recordações na esperança de descobrir uma lei de causas e efeitos e dar o fenômeno como compreendido. Tudo o que nos acontece pelo qual o amor permeia, o melhor a fazer é não tentar entender, posto que, no que possuem de inesperado e imprevisível parecem não regidos por leis racionais e sim mágicas, quiçá divinas. Diante o espetáculo do mundo dos sentimentos, impossível fazer o elo entre dois momentos, tudo fica tão incerto e anacrônico como se estivéssemos no plano onírico.

Eu, amante, plena de sofrimento e uma imaginação permanente, busco, em vão, adivinhar por qual motivo sou incapaz de atrair para mim o objeto amado. Ou então, se o atraio, por que ele não se aproxima e insiste em se comportar como a Lua que mantém a mesma distância da Terra tendo em vista a enorme força de atração entre esses astros? Mais esquizofrênica ainda é essa ideia que se apossa de mim e me impede, covardemente, de querer ver quem ainda amo. Por amar, não posso sequer sentir o cheiro sem que seja perturbada por um desejo de tudo o mais que me tira, perante a quem amo, a sensação anestésica de amar.

Não importa o que se tenha ouvido, lido, estudado e vivido. Diante de um Grande Amor, somos como Einstein em tempos de escola. Queremos a imaginação e não o que nos querem impôr. E preparamos os elementos que nos iludem como preparam para um doente pratos deliciosos, mas que piorará seu estado de saúde ao ingeri-los. Somos mestres em aceitar a existência própria de uma miragem, de dar a certas pessoas que vemos uma áurea que só emergem nesse encontro e, depois, desenvolvida somente em nós – que seguiremos recusando um outro amor, pois nos acostumamos por demais ao lugar no qual habitávamos. Toda música nova, toda pintura diferente, todo estilo novo de escrever sempre há de nos parecer, ainda que preciosos, por demais fatigantes e dão-nos a impressão de uma falta de prazer. Não queremos orientações alternativas, desvarios da nossa bússola interior.

O mal mais cruel de tudo é que sou eu mesma a artesã consciente e paciente do que me adoece. A única coisa que me interessa continuo tornando impossível, criando pouco a pouco, pela distância que se prolonga de meu amor, não a sua indiferença, mas a minha, o que vem a dar no mesmo. Nesse preciso instante em que me perdi de Meu Amor, pois estou resolvida a não mais lhe pedir atenção, sinto por ele mais e mais ternura e tudo o que sentia quando podia vê-lo todos os dias; nesse preciso instante a ideia de que algum dia sinta o mesmo por outro homem parece-me odiosa porque me rouba a outra muito mais cara: a do Amor Verdadeiro. Movimentei a minha vida para uma determinada pessoa e, quando ela não mais está comigo, prefiro viver prisioneira da moradia que só a ela era destinada do que a liberdade que pixa os muros dessa casa feita com tanto carinho. Senhor, desacorrente-me dessa escravidão.

Ando tão sozinha… Por mais que eu escreva, que eu converse, a verdade que quero nas palavras de nada adianta diretamente pois sofre de evidências. Sempre dizemos o que necessitamos dizer e que o outro jamais alcançará, pois o dizer é coisa destinada somente para nós mesmos. Será necessário que se decorra o tempo para que se possa formar em quem me ouve e me analisa uma verdade da mesma espécie que a minha. Como o adversário político que, diante das provas e de todos os documentos, considera traidor e ladrão o da doutrina rival e quando passa a acreditar no que lhe falaram já não mais interessa àquele que tentava esclarecê-las, isso pode acontecer com o leitor, o amigo e o analista. Esses, muitas das vezes, pioram tudo ao dar-nos conselhos deformados pela miopia que cada um carrega. Mas, nesse trabalho de acabar com O Amor, todos que se envolvem estão muito longe de desempenhar o papel tão importante como o de duas pessoas que, por excesso de bondade de um lado e do outro, de egoísmo, costumam desfazer tudo no tempo em que tudo estava para se consertar. Porém, dessas duas pessoas não guardamos mágoa nem conseguimos odiá-las pela razão que uma delas, a última, é quem eu amo e a outra, eu mesma.

Mas… quem sabe a felicidade, de novo, chegará para mim? O risco que corro é ela chegar quando não a poderei desfrutar, quando já não mais restar a saudade por ter ela virado hábito e, portanto, indolor e cômoda como um vizinho em silêncio. Tomara que, ao aproximar da felicidade, ainda que tardia, ela seja a mesma cuja falta me fez tanto sofrer. Só há uma pessoa capaz de resolver essa situação. Os que padecem de amor são, como se dizem aos doentes, os seus melhores médicos. Como não podemos achar consolo fora que provenha de quem amamos, em nós mesmos tratamos de fazer o remédio. O diabo é achar a fórmula correta para a droga que, ao menos, amenize os sintomas. Enquanto não a encontro, continuo elocubrando e rindo à toa quando consigo em um cochilo sonhar que estou feliz ao lado dele e ele me diz que nunca mais me fará padecer.

Essas constantes visões, essas miragens, esses devaneios e desejos, no que tocam o homem que não mais me quer, como no caso dos filhos desaparecidos, saber que nada se tem mais a esperar não me impede de continuar a esperar. Mesmo diante da certeza da sua morte, a mãe acredita que o filho voltará miraculosamente com fome e frio, portanto, pronto para receber seus carinhos e cuidados. Somos obrigados, para tornar a realidade ao menos suportável, a alimentar dentro da gente algumas pequenas loucuras. O ponto culminante do meu dia não foi aquele em que me arrumei para sair colocando a roupa que melhor me vestiu, mas o que consegui perfeitamente imaginar despindo-me novamente para o Meu Amor.

Elástico é o tempo quando amamos, quando estávamos juntos o estreitávamos e agora, separados, encho e dilato minhas horas com tantas divagações….

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Indicação de filme “O filho do outro”

Indicação de filme “O filho do outro”

Por Marcia Berman Neumann, Marcela Alice Bianco e Andréia Carelli L. Magalhães

E se seu filho fosse seu maior inimigo? E se o outro fosse você? O Cine Sedes Jung e Corpo apresenta a análise dessa trama psicológica imperdível.

Um drama familiar, um dilema individual e ao mesmo coletivo: a necessidade de olhar para o “Outro” e reconhecer a si mesmo como em um espelho! O exercício do amor, da alteridade e da reflexão! São muitos os pontos trazidos pelo belíssimo e impactante drama francês: O Filho do Outro (Le Fils de l’Autre, 2012), da diretora Lorraine Lévy.

A trama retrata um assunto polêmico de maneira brilhante e sutil! Somos apresentados a duas famílias que veem suas vidas reviradas ao descobrirem que tiveram seus filhos trocados no hospital em que nasceram.

De um lado encontra-se uma família judia, que vive em Tel Aviv, Israel. Seu filho Joseph está prestes a ingressar no serviço militar quando um teste de sangue revela que não poderia ser filho daquela família. Sua mãe médica, Orith, e seu pai, Alon, que tem um alto cargo no exército israelense, ficam atordoados com a notícia e acabam descobrindo que seu bebê foi trocado na maternidade por um outro bebê, palestino.

Já no outro núcleo, temos Yacine, filho de Said e Leila, e irmão de Bilal, palestinos que moram na Cisjordânia e que também recebem a notícia da troca, ficando consequentemente chocados.

contioutra.com - Indicação de filme "O filho do outro"

O conflito religioso e político entre judeus e palestinos permeia as polaridades mostradas aqui no filme.  São famílias que vivem em culturas opostas em todos os sentidos, mas que devido a uma situação traumática são forçados a viver uma  experiência que demandará muita empatia. Afinal, os dois jovens descobrem: EU SOU MEU MAIOR INIMIGO… PRECISO ME AMAR MESMO ASSIM.

De imediato o filme nos coloca como tema central a questão das polaridades da vida e a função da alteridade, que propõe uma relação dialética, simétrica, entre as polaridades.

A questão das polaridades é apresentada na psicologia Junguiana como a base do funcionamento da experiência simbólica. Morte e vida, luz e sombra, bem e mal, certo e errado – toda nossa vivência é baseada em polaridades. Elas influenciam sobremaneira os relacionamentos em geral e podem estar na base das imagens, fantasias, sentimentos, pensamentos, sonhos, projeções, etc.

Quando mantemos nossas identidade e visão fixadas apenas em um dos aspectos dos pares de opostos, nossas capacidades adaptativa e criativa ficam comprometidas. Nossos relacionamentos cristalizam-se e nossa personalidade se enrijece.

A função da alteridade nos permite a saída deste padrão engessado de relacionamento consigo mesmo e com o outro. Porém, o colocar-se no lugar do outro nem sempre é tarefa fácil. Pelo contrário, exige de nós um grande poder de empatia e desapego. Para isso, precisamos abrir mão de nossa certezas e convicções, elaborar nossa Sombra (aspecto do inconsciente que carrega tudo aquilo que é negado em nós) e trazer para a consciência todas essas oposições, integrando-as de maneira transformadora na consciência.

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Os filhos recebem a notícia que foram trocados e ficam profundamente abalados. Suas identidades são postas em cheque. Vemos aqui a questão da Natureza versus a marca da Cultura e do Inato versus o Aprendido. A fala de Joseph quando pergunta ao Rabino: – Ele é mais judeu que eu? é um grande exemplo do impacto desta nova realidade na personalidade do jovem. Mostra a ferida que se abriu em sua identidade a partir daquilo que até então era desconhecido para ele (sua origem) e a necessidade de uma nova formatação para a mesma. Os questionamentos deterministas podem ser entendidos nesta fala. Seria o sangue, a cultura, a educação, os relacionamentos, os interesses ou outro aspecto, o(s) determinante(s) da nossa identidade?

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Diante de todo este drama, as famílias resolvem se encontrar. A família de Joseph convida todos para um jantar. Nesta cena, podemos ver as diferenças nas relações entre adultos e jovens, assim como entre os homens, as mulheres e as crianças.

As crianças rapidamente fazem uma ligação: as irmãs menores de ambas as famílias vão brincar juntas. Ainda não possuem o peso tão forte da cultura e da compreensão da realidade quanto os adultos. Já os jovens (Joseph e Yacine), vão conversar e se conhecer melhor. Os pais ficam na sala e percebe-se ali um grande incômodo devido à questão religiosa-cultural. A situação é realmente difícil, pois eles devem trazer o inimigo para dentro de suas casas e aprender a amá-lo e respeitá-lo. Aqui temos a presença de uma interferência vinda da dimensão coletiva: um bombardeio no hospital foi o problema que afetou as duas famílias e gerou um conflito comum, determinando em ambas uma transformação profunda.

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As mulheres têm mais facilidade para aceitar as diferenças, as emoções e são mais abertas para acolher-agregar o outro. Mostram-se mais flexíveis. O instinto materno faz com que elas queiram se aproximar e cuidar dos filhos biológicos, e elas se aliam com respeito e reconhecimento das diferenças que haviam entre elas, mas também com a empatia gerada pela semelhança entre suas dores. Já os homens quase não têm diálogo e a dificuldade de lidar com o afeto e o conflito impera a maior parte do tempo, como na cena em que tomam café juntos, um indício de aproximação, mas ficam calados.

A descoberta da troca dos bebês é vivida como uma verdadeira experiência de luto, e um processo de elaboração tanto individual quanto familiar é percebido no desenrolar do filme. Cada um ao seu modo e no seu tempo passam pelas etapas de choque, negação, revolta, expressividade emocional, depressão e, por fim, a aceitação. As diferenças individuais nesta questão também são motivo de confronto entre os personagens, o que nos faz pensar que é preciso respeitar o tempo de cada um, bem como suas defesas, a forma como estão estruturadas e a importância da elaboração delas.

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O filme nos coloca em contato com as oposições o tempo todo. Os jovens resolvem cruzar as fronteiras em busca de suas identidades – SOU O OUTRO OU O OUTRO SOU EU? 

O conflito apresentado pelo enredo ocorre bem em um momento que marca a construção da identidade dos jovens: a saída da adolescência e a entrada na primeira fase da vida adulta. Momento crucial e estruturante para a personalidade e para a definição de formas de agir no mundo. Período de emancipação e busca, de experimentação da vida.

É através do contato informal com o outro que eles exercitam a desconstrução da identidade e a descoberta de si e do outro. Podem julgar o quanto são fruto da cultura onde foram criados, dos valores ensinados e do que querem se tornar deste momento em diante. Quando Yacine diz ao irmão Bilal – EU VOU SER O QUE EU QUISER! –  ele está elaborando essa questão e procurando uma terceira via, que não é mais nem um polo e nem o outro, é uma terceira coisa: Ele!

A individuação aparece aqui como uma força que impulsiona para a integração desses opostos: os jovens são obrigados a viver a realidade do outro, a se comunicar na língua do outro, e atravessam a fronteira física (o muro que separa Israel da Palestina), pessoal (Ego), familiar, sociocultural e política. Precisam transpor uma grande tensão para obter o pertencimento. E aos poucos eles se abrem para o novo, para o seu oposto.

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O espelho produz essa possibilidade de conscientização. Através dele, Joseph e Yacine veem suas imagens refletidas e lembram-se de Isaac e Ismael, dois filhos de Abraão, sendo que do primeiro segue a descendência judia e do segundo a descendência árabe, mas ambos filhos do mesmo pai, mostrando aqui a mesma origem e a possibilidade de uma integração das polaridades outrora estabelecidas.

No filme os jovens conseguem integrar os opostos pelo funcionamento afetivo, e não no nível agressivo, ou no mundo das ideias. É a experiência vivida que permite a transformação. A música, a sensibilidade e a busca de algo que é comum a eles e que os conecta são as pontes que possibilitam essa construção amorosa da relação consigo mesmo e com o outro. Eles obtêm um novo entendimento sobre questões difíceis e mostram para nós, espectadores, de um modo emocionante, como é possível viver da melhor maneira, como ter orgulho de si e dar orgulho ao outro, já que é ele que está ocupando o seu lugar! Descobrem que não é o rabino ou alguma outra autoridade que lhes dará esta resposta – eles terão que construir suas próprias histórias e suas identidades.

Existe aqui um fato interessante a ser analisado que é o chamado biológico, muito comum em casos de adoção ou de troca de bebês. Esse chamado para um entendimento profundo de quem eu sou, a quem ou qual grupo eu pertenço é muito comum, forte e importante.

Podemos pensar que se ambos fossem da mesma cultura, o drama seria vivido de modo mais pessoal e menos inclinado às questões coletivas e culturais. Este fato cultural, histórico e religioso que está para além de suas identidades e que nada tem a ver com eles, ao mesmo tempo tem tudo a ver, pois é nesta realidade que estão inseridos!

As polaridades aqui são representadas por identidades opostas, a criação nas famílias com culturas diferentes. A psique também lida com questões opostas, pois fazem parte de nossa psique as oposições. A grande questão é COMO lidamos com as mesmas.

As relações sadias de apego com as mães são o alicerce de ambos os filhos para conseguirem lidar com toda a problemática instalada. A via do materno acolhedor também ajuda na conciliação do aspecto Patriarcal predominante. Cada mãe encontra seu jeito de digerir a realidade da maternidade vivida e da maternidade negada, e aos poucos ambas se aproximam da nova realidade e de seus “novos” filhos.

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O que está fora também está dentro, o que está em cima também está embaixo! E com essa noção de que em cada parte existe também o seu oposto percebemos o OUTRO que habita em Nós! Mas como realmente conseguimos fazer esse exercício ante nossos julgamentos de valor?

Seja nos obstáculos das fronteiras físicas entre os países ou nos preconceitos e julgamentos morais, para que possamos integrar os opostos será preciso romper as barreiras, encarar os riscos, assim como faz o pai que é militar israelense e cruza a fronteira sozinho à noite. Ou como faz Bilal, irmão de Yacine que precisa lidar com o medo de perder tudo o que tem construído e se abrir para o “novo” e para o “velho” irmão.

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O Filme também mostra a consciência Patriarcal agindo ao considerar excludentes os polos opostos de uma polaridade, como a discriminação entre BEM e MAL (representado por Bilal). Em contrapartida apresenta a necessidade de se transpor esse modelo e aponta para a consciência da Alteridade, que busca simetria, sintonia, um diálogo não hierárquico entre as polaridades. O próprio título do filme nos remete a pensar na Alteridade como um caminho a ser almejado.

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Como enfatiza Maria Helena Mandacarú Guerra: AMAR O INIMIGO É O DESAFIO! Para isto é preciso um encontro da humanidade, no qual se busca uma identidade mais profunda, uma síntese. Afinal, somos todos filhos da mesma mãe Terra!

Por fim, podemos pensar que a autora foi brilhante ao nos fazer refletir sobre os conflitos que existem no mundo e em nós mesmos de maneira tão afetiva. Mais uma vez, a arte nos leva a querer lidar com as polaridades de uma forma equilibrada! Mas, sejamos sinceros, que desafio, não?

Por Marcia Berman Neumann, Marcela Alice Bianco e Andréia Carelli L. Magalhães

Comissão Organizadora Cine Sedes Jung e Corpo

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Este texto foi produzido pela Comissão Organizadora do Cine Sedes Jung e Corpo com base nas reflexões realizadas durante o evento realizado em Abril de 2015, com os comentários do Profa. e Psicóloga Junguiana Maria Helena Mandacarú Guerra e Psicóloga Clínica Thaís Khoury de Souza.

O Cine Sedes Jung e Corpo é uma atividade extracurricular do curso Jung e Corpo: Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo.

É um evento gratuito e aberto ao público geral organizado pelos professores do curso em conjunto com ex-alunos e ocorre todas as últimas sextas-feiras dos meses letivos do curso.

Para maiores informações acompanhe o Blog do Cine Sedes Jung e Corpo

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Não temer os ventos e navegar nas nuvens: esta é a proposta de Raimundo Lonato

Não temer os ventos e navegar nas nuvens: esta é a proposta de Raimundo Lonato

Ventos

movimentam-se as palavras
coreografadas no vento

fios de espuma vestem poemas.
correm os séculos, não apagam
as estrelas no céu do meu país.

veias
são laços
no peito.

na linha do tempo
não morrem as águas.
ondas namoram o sol.

a deusa louca dança.
giram olhos e braços

uma flecha transpassa, fere o corpo.
minúscula pedra expulsa o pulmão.

Ao Vento

Quando voltares, nada direi.
Ouvirás silêncios e uma canção
no vento.

Há flores colhidas no orvalho.
O céu está aberto. Estrelas
chegam às mãos.

Cansado de esperas, recolho os fios
do tempo e as promessas de nuvens.

{A casa exala perfumes e palavras}.

Os olhos esperam as cores do mundo.
Apago as dúvidas no peito e na face;

poemas são aves. Voam acima dos mares.

Quando Setembro Passa

As flores deixam perfumes
nas mãos cansadas de lutas.

Brilham as pedras,
refletem as horas,
o suor e o sono.

As almas mais puras
ouvem o sol, os pássaros
e os homens.

As crianças colhem
sonhos, desfiam
nuvens e manhãs.

Setembro guarda
nos lábios dos deuses
mil poemas bordados
em nuvens.

À espera do sábado

Manhãs carregadas de chuva,
abraçam o amor e as flores.

Deus desce do paraíso,
ouve e escreve recados.

Anjos tocam guitarras
à sombra das árvores.
os versos das canções
soam sem lágrimas.

Iluminado e perfeito,
os dias vestem as cores
e os corpos nas ruas.

Olhares e frutos
dialogam nas mesas.
Amigos desenham
as rotas do sol.

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Raimundo Lonato é escritor e poeta paulista.

“O primeiro beijo”, um conto de Clarice Lispector

“O primeiro beijo”, um conto de Clarice Lispector

Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.

– Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:

– Sim, já beijei antes uma mulher.

– Quem era ela? perguntou com dor.

Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.

O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.

E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.

A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.

Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.

O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava… o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.

De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.

Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida… Olhou a estátua nua.

Ele a havia beijado.

Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.

Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.

Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele…

Ele se tornara homem.

“Felicidade Clandestina” – Ed. Rocco – Rio de Janeiro, 1998
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O mistério das portas

O mistério das portas

Por Marcela Picanço

Se existe alguma coisa que me intriga, nesse mundo, são portas.

As portas estão em todas as histórias, nas metáforas e em todos os problemas de lógica. As portas são um dos símbolos mais universais que existem, porque elas representam sempre o mistério. E, se a gente for pensar, a vida é realmente uma constante abertura de portas. A cada instante, a gente escolhe ou faz uma decisão – e decidir algo é sempre abrir uma porta. É sempre o inesperado.

Se você decide comer carne em vez de frango, no almoço, é uma porta. Se você decide pegar um ônibus, é uma porta. Se você decide acordar 10 minutos mais tarde, é uma porta. E tudo pode mudar a partir das suas escolhas diárias, por mais que a gente não perceba, por mais que não pareça que está tudo mudando constantemente e que as portas estão se abrindo a cada segundo que passa. O fato de que querer começar a escrever a próxima frase é uma porta. E quem decidiu abrir esse texto para ler também está abrindo uma porta. A gente vive assim, abrindo portas, sem perceber que, a cada cinco minutos, a gente tem a oportunidade de virar o jogo. O nosso jogo, claro. Cada porta que se abre é uma chance de mudar tudo. Assim mesmo. De uma hora para outra. Posso escolher fazer qualquer coisa, se eu tiver coragem de encarar as consequências.

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Imagem via Comunicadores

E é libertador atravessar uma porta se medo do que há do outro lado. Ou melhor, é muito bom escolher uma porta para atravessar, porque, no fundo, todas estão abertas. E a gente nunca sabe qual delas vai dar em um precipício ou um paraíso; e sabe o que mais? A gente nunca vai saber se escolheu a porta certa. Porque a gente nunca vai saber o que teria acontecido se a gente tivesse escolhido a outra, ou a outra, ou a outra.

As portas carregam as nossas incertezas sobre o que há do outro lado. As portas sempre foram um enigma. Como se escolher a porta certa fosse como num problema de lógica, em que você escolhe a porta onde está a cabra e tudo se resolvesse. Mas, antes de abrir uma porta, nada existe ali atrás, porque o futuro se constrói no presente, a partir do que você faz E o fato de você abrir uma porta e não outra não interessa, porque não existe nada lá atrás, ou melhor, existe tudo. A porta é um mistério justamente por carregar nossa indecisão, nossa insegurança. A porta, na verdade, é um espelho. E, enquanto a gente não decide, nada acontece. Vale abrir todas as maçanetas, vale atravessar tudo, porque é a única forma de desvendar o mistério das portas. O mistério das portas somos nós mesmos e, cá entre nós, descobrir o que está por trás da nossa própria porta é uma das coisas mais difíceis que existem, mas também uma das melhores.

Todas as possibilidades que não são o presente existem ou poderiam ter existido e a gente nunca vai saber. Escolher nunca é uma aposta, porque, numa aposta, você sabe se você ganhou ou perdeu. Na vida, quando a gente escolhe, a gente nunca sabe se ganhou ou perdeu. Por isso, se a gente escolher as portas que quiser, sem hesitar, sem ser pela vontade do outro, a gente vai encarar as consequências de outra forma e vai pensar que sempre deu certo. A gente sempre teve uma escolha.

“É assim que acontece a bondade”- Rubem Alves

“É assim que acontece a bondade”- Rubem Alves

“Se te perguntarem quem era essa que às areias e aos gelos quis ensinar a primavera…”: é assim que Cecília Meireles inicia um de seus poemas. Ensinar primavera às areias e aos gelos é coisa difícil. Gelos e areias nada sabem sobre primaveras.., Pois eu desejaria saber ensinar a solidariedade a quem nada sabe sobre ela. O mundo seria melhor. Mas como ensiná-la?

Seria possível ensinar a beleza de uma sonata de Mozart a um surdo? Como, se ele não ouve? E poderei ensinar a beleza das telas de Monet a um cego? De que pedagogia irei me valer para comunicar cores e formas a quem não vê? Há coisas que não podem ser ensinadas. Há coisas que estão além das palavras. Os cientistas, os filósofos e os professores são aqueles que se dedicam a ensinar as coisas que podem ser ensinadas. Coisas que são ensinadas são aquelas que podem ser ditas. Sobre a solidariedade muitas coisas podem ser ditas. Por exemplo: eu acho possível desenvolver uma psicologia da solidariedade. Acho também possível desenvolver uma sociologia da solidariedade. E, filosoficamente, uma ética da solidariedade… Mas o saberes científicos e filosóficos da solidariedade não ensinam a solidariedade, da mesma forma como a crítica da música e da pintura não ensina às pessoas a beleza da música e da pintura. A solidariedade, como a beleza, é inefável – está além das palavras.

Palavras que ensinam são gaiolas para pássaros engaioláveis. Os saberes, todos eles, são pássaros engaiolados. Mas a solidariedade é um pássaro que não pode ser engaiolado. Ela não pode ser dita. A solidariedade pertence a uma classe de pássaros que só existem em voo. Engaiolados, esses pássaros morrem.

A beleza é um desses pássaros. A beleza está além das palavras. Walt Whitman tinha a consciência disso quando disse: “Sermões e lógicas jamais convencem. O peso da noite cala bem mais fundo a alma…”. Ele conhecia os limites das suas próprias palavras. E Fernando Pessoa sabia que aquilo que o poeta quer comunicar não se encontra nas palavras que ele diz; antes, aparece nos espaços vazios que se abrem entre elas, as palavras. Nesse espaço vazio se ouve uma música. Mas essa música – de onde vem se ela se não foi o poeta que a tocou?

Não é possível fazer uma prova sobre a beleza porque ela não é um conhecimento. Tampouco é possível comandar a emoção diante da beleza. Somente atos podem ser comandados. “Ordinário! Marche!”, o sargento ordena. Os recrutas obedecem. Marcham. À ordem segue-se o ato. Mas sentimos que não podem ser comandados. Não poso ordenar que alguém sinta a beleza que estou sentindo.

O que pode ser ensinado são as coisas que moram no mundo de fora: astronomia, física, química, gramática, anatomia, números, letras, palavras.

Mas há coisas que não estão do lado de fora. Coisas que moram dentro do corpo. Estão enterradas na carne, como se fossem sementes à espera…

Sim, sim! Imagine isso: o corpo como um grande canteiro! Nele se encontram, adormecidas, em estado de latência, as mais variadas sementes – lembre-se da história da Bela Adormecida! Elas poderão acordar, brotar. Mas poderão também não brotar. Tudo depende… As sementes não brotarão se sobre elas houver uma pedra. E também pode acontecer que, depois de brotar, elas sejam arrancadas… De fato, muitas plantas precisam ser arrancadas, antes que cresçam. Nos jardins há pragas: tiriricas, picões…

Uma dessas sementes é a “solidariedade”. A solidariedade não é uma entidade do mundo de fora, ao lado de estrelas, pedras, mercadorias, dinheiro, contratos. Se ela fosse uma entidade do mundo de fora, poderia ser ensinada e produzida. A solidariedade é uma entidade do mundo interior. Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz. A solidariedade tem de brotar e crescer como uma semente…

 

Veja o ipê florido! Nasceu de uma semente. Depois de crescer não será necessária nenhuma técnica, nenhum estímulo, nenhum truque para que ele floresça. Angelus Silesius, místico antigo, tem um verso que diz: “A rosa não tem porquês. Ela floresce porque floresce”. O ipê floresce porque floresce. Seu florescer é um simples transbordar natural da sua verdade.

A solidariedade é como um ipê: nasce e floresce. Mas não em decorrência de mandamentos éticos ou religiosos. Não se pode ordenar: “Seja solidário!”. A solidariedade acontece como um simples transbordamento: as fontes transbordam… Da mesma forma como o poema é um transbordamento da alma do poeta e a canção, um transbordamento da alma do compositor…

Já disse que solidariedade é um sentimento. É esse o sentimento que nos torna mais humanos. É um sentimento estranho, que perturba nossos próprios sentimentos. A solidariedade me faz sentir sentimentos que não são meus, que são de um outro. Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo balas num semáforo. Ela me pede que eu compre um pacotinho de suas balas. Eu e a criança – dois corpos separados e distintos. Mas, ao olhar para ela, estremeço: algo em mim me faz imaginar aquilo que ela está sentindo. E então, por uma magia inexplicável esse sentimento imaginado se aloja junto aos meus próprios sentimentos. Na verdade, desaloja meus sentimentos, pois eu vinha, no meu carro, com sentimentos leves e alegres, e agora esse novo sentimento se coloca no lugar deles. O que sinto não são meus sentimentos. Foram-se a leveza e a alegria que me faziam cantar. Agora, são os sentimentos daquele menino que estão dentro de mim. Meu corpo sofre uma transformação: ele não é mais limitado pela pele que o cobre. Expande-se. Ele está agora ligado a um outro corpo que passa a ser parte dele mesmo. Isso não acontece nem por decisão racional, nem por convicção religiosa, nem por mandamento ético. É o jeito natural de ser do meu próprio corpo, movido pela solidariedade. Acho que esse é o sentido do dito de Jesus de que temos de amar o próximo como amamos a nós mesmos. A solidariedade é uma forma visível do amor. Pela magia do sentimento de solidariedade, meu corpo passa a ser morada de outro. É assim que acontece a bondade.

Mas fica pendente a pergunta inicial: como ensinar primavera a gelos e areias? Para isso as palavras do conhecimento são inúteis. Seria necessário fazer nascer ipês no meio dos gelos e das areias! E eu só conheço uma palavra que tem esse poder: a palavra dos poetas. Ensinar solidariedade? Que se façam ouvir as palavras dos poetas nas igrejas, nas escolas, nas empresas, nas casas, na televisão, nos bares, nas reuniões políticas, e, principalmente, na solidão…
“O menino me olhou com olhos suplicantes.
E, de repente, eu era um menino que olhava com olhos suplicantes…”.

Rubem Alves, no livro “As melhores crônicas de Rubem Alves” 

Conheçam o Instituto Rubem Alves e participem de seus projetos.

Dica de livro: Sete Vezes Rubem (Fruto do trabalho de uma década, esta obra reúne sete livros de Rubem Alves publicados pela Papirus entre 1996 e 2005.)

O sucesso dos livros de autoajuda e a tendência à repetição psicanalítica

O sucesso dos livros de autoajuda e a tendência à repetição psicanalítica

Por Josie Conti

A tendência à repetição é um conceito psicanalítico que descreve como, através da quantidade e do contato com situações familiares, a pessoa direciona suas questãos mal resolvidas. É como se, apesar de ainda não existir a resolução do problema que gera a atração pelo tema, a pessoa obtivesse uma resposta de conforto por reencontrar situações similares as que já passou em outras fases de sua vida.

Vemos muito disso, falando à grosso modo, em situações cotidianas como em caso de filhos de pais alcoólatras que também escolhem parceiros que tem problemas com álcool para se relacionar ou mesmo pessoas que, mesmo tendo passado por diversos problemas decorrentes de um comportamento, continuam a repeti-lo ininterruptamente.

É como se situações repetidas, mesmo que algumas vezes perigosas, passassem a segurança do que é familiar, daquilo que já foi vivido e do que a pessoa entende ser merecedora. Essas repetições tornam-se quase espelhos da própria pessoa e de como ela se vê.

É importante ressaltar que a repetição do comportamente foge a plena consciência e que, muitas vezes, mesmo sabendo que os caminhos trilhados não são bons, a pessoa não consegue deixar de repeti-los.

E aqui entramos em contato com o grande segredo do sucesso de toda a literatura de autoajuda existente na internet e nas livrarias: sua promessa de respostas simples para situações que as pessoas percebem erradas em si, querem mudar, pois sofrem com elas, mas que não conseguem alterar na prática. Surge, então, um livro que fala de seu problema e não só promete a resolução, mas fornece uma lista para que a pessoa, passo a passo, realize as mudanças necessárias e liberte-se do que a incomoda para sempre. É um verdadeiro conto de fadas.

Se nós pensarmos sem preconceito no conteúdo dos livros de autoajuda veremos que, na maioria das vezes, eles trazem mensagens boas e positivas, são temas agradáveis e, por que não dizer, também familiares e com os quais crescemos tendo algum tipo de contato. Eles falam de valores, de relacionamentos, de autonomia, organização, limites, entre milhares de outras coisas. Não há nada, absolutamente nada de mal nisso. A falácia está contida na promessa de uma solução que vem “de fora para dentro” quando, na verdade, toda e qualquer mudança pessoal real e duradora na vida de uma pessoa só pode acontecer se for fruto de uma decisão pessoal.

Eu não exorcizo e nem sou contra os livros de autoajuda como muitos o fazem- muitas vezes até em uma postura intelectualmente arrogante. Acredito, inclusive, que até mesmo um material simples como uma lista ou livrinho comum pode ser gatilho transformador de vidas. Um olhar pode ser!

Quem somos nós para julgar qual é o momento exato que uma pessoa terá para perceber qual é a melhor coisa para si mesma? Agora, como em tudo na vida, fica o convite para que tenhamos senso crítico para com as repetições e, se existe um consumo compulsivo de uma literatura mais rasa  e que promete respostas miraculosas, talvez esse seja o sinal de que é necessário um pouco mais de profundidade. E, ao contrário do que pode indicar essa linha de raciocínio, na maioria das vezes, essa profundidade também não será encontrada em “literatura” tida como superior.

Há demandas que só encontram respostas na construção de novos caminhos. Caminhos que não são externos. São aqueles trilhados dentro de si.

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