Falência múltipla dos sentidos

Falência múltipla dos sentidos

Por Josie Conti

É devastador quando a realidade insiste em esmurrar a tua porta e te lembrar repetidamente que, na prática, são realmente poucos os que ainda merecem consideração, são dignos de respeito, profissionalismo e fidelidade.

Meu mundo dói ao ver criatividade usada apenas para postergar deveres.

A respiração falha ao relembrar a irresponsabilidade insana dos contratos não cumpridos, dos e-mails não respondidos, da violação das palavras.

Dói ver um mundo sem poesia, um mundo que sangra cinismo e que padece em hipocrisia.

Mas o que mais dói é ter esperança ferida, sentir asa cortada, ver sonho emudecido.

Que venha então o sofrimento, a decepção publicamente exposta, o berro contido de um corpo ferido em sua região mais vital.

Espero que amanheça logo, pois essa noite é noite de morte.

Morte por overdose de realidade.

Falência múltipla dos sentidos.

As minhas últimas palavras

As minhas últimas palavras

Por Raul Minh’alma

Estávamos casados há tão pouco tempo quando a vida decidiu que eu seria, também, uma daquelas pessoas de quem se ouvia falar nas notícias. Uma daquelas que eu lamentava à distância mas nunca imaginara ser. Estávamos casados há tão pouco tempo quando a vida decidiu que o meu fim seria um cancro no fígado. Caiu-me o mundo em cima e desfiz-me em lágrimas quando soube. Mas, por incrível que pareça, não é essa sensação horrível que me transporta para aquele momento, mas sim a tua reação. A tua reação calma, não por não acreditares que fosse verdade, mas por teres esperança que tudo ia dar certo, desde o primeiro segundo. E apesar das muitas pessoas que eu tenho na minha vida, é por ti que o meu coração chama neste momento, e é para ti que vão estas minhas palavras. Não queria, meu amor, mas sinto que são as últimas…

Era tão simples teres-me deixado entregue aos médicos durante todo este tempo. Era tão simples nunca te teres preocupado tanto se eu comia, se me doía ou se me tratavam bem. Era tão simples não teres passado tantas noites neste sofá desconfortável, ao lado da minha cama, quando apenas te bastava ires dormir a casa e voltares no dia seguinte. Era tudo tão simples, mas tu nunca deixaste que fosse, mesmo quando eu insistia contigo. Mesmo quando te implorei para seguires com a tua vida, tu decidiste sempre ficar. E fizeste tudo isto, não por obrigação, não por pena, não pelo que as outras pessoas iam pensar, mas porque um dia cometeste a loucura de te apaixonares por mim e de me escolheres para partilhar o resto dos teus dias. E todas essas noites mal dormidas, todas essas discussões com os médicos nos corredores (sim, eu ouvia), todas essas vezes em que ias a chorar para casa (sim, eu sabia), e todas essas horas perdidas a fazer-me companhia, tudo, tudo, por mim. Eu precisava de uma segunda vida para te compensar tudo isto. E tudo isto me dói, podes não acreditar, mas sinto que sofri mais com as tuas dores do que com as minhas. Posso não ter uma segunda vida, mas o que me sobra desta será dedicado a ti.

Deixaste, muitas vezes, de ser a minha mulher, por minha causa, para poderes ser a minha amiga, companheira e enfermeira. Deixaste de ser feliz por minha causa, porque tiveste de transformar toda a felicidade em esperança. E por tudo isto e tudo mais, te peço desculpa. Mesmo que não tenha culpa deixa-me pedir-te desculpa. Desculpa não ter sido a pessoa certa para ti, a pessoa que iria viver o suficiente para fazer valer o “para sempre” que te prometi. No fundo sabia que eu não tinha sido feito para durar muito tempo. Mas eu não queria viver muito tempo, queria viver o suficiente. O suficiente para te amar como mais ninguém, o suficiente para te dar os melhores dias da tua vida. O suficiente para experimentar, conhecer e viver tudo o que pudesse ser vivido ao teu lado. Só queria viver o suficiente, mas não aguento mais, meu amor, desculpa… Lembra-te apenas que, se algum dia realmente vivi, foi porque tu viveste comigo. Se algum dia valeu a pena viver, foi porque nesse dia tu estavas ao meu lado. Uma vida contigo, por mais longa que fosse, saberia sempre a pouco, mas o pouco que foi fez valer por uma vida inteira. Obrigado!

Esteja onde estiver, quando leres estas palavras, faz uma coisa por mim e por ti: não deixes de viver. Por favor. És tão nova e linda, mereces voltar a ser feliz, como um dia foste comigo. Tudo passará, acredita. Vou pedir ao tempo que te ajude. E não te sintas mal se o tempo for a única solução para a tua dor, pois não haverá forma mais natural de a curares. Sei que encontrarás alguém que te dará aquilo que eu não consegui. Não fujas disso, agarra essa oportunidade de voltar a viver. Eu estarei feliz por ti, acredita, esteja onde estiver. Só te peço que me guardes para sempre no teu coração. Não te peço muito, num cantinho apenas, é suficiente. Eu levarei comigo o teu amor e, acredita, conquistar o teu amor, para mim, foi conquistar a eternidade. O meu fígado deixou de funcionar, e tudo em mim em breve deixará de funcionar, mas nem o último bater do meu coração ditará o fim do amor que sinto por ti.

Acreditava que aguentava mais um dia, para te voltar a ver, mas não aguento mais. Tudo o que eu mais queria era morrer nos teus braços, enquanto olhava o teu lindo rosto, mas já não vou a tempo, meu amor. Vou morrer entre macas e pessoas de branco que eu…

Nota da Conti outra: Agradecemos ao autor português Raul Minh´alma por nos enviar esse texto e autorizar a publicação nesse espaço.

Toda gentileza é uma declaração de amor

Toda gentileza é uma declaração de amor

Gentil é aquele que passa pela vida do outro, toca-o com leveza e o marca, onde ninguém mais pode ver.

Lembro-me de que, quando pequena, sempre saia com meu avô pela rua. Figura agradável e prestativa, não economizava sorrisos ou negava favores. Jamais o vi reclamando que alguém não pagou pelo seu trabalho ou que foi explorado. Brincava com as meninas da padaria, dava gorjeta, ajudava aos irmãos, aos filhos e mimava as netas. Quando trabalhava, fazia-o assoviando. O que o tornava tão especial e querido por todos? O que o mantinha nesse estado de equilíbrio com o ambiente? Gosto de pensar que ele era gentil consigo e com a vida.

Todos passamos por situações complicadas. Somos ludibriados, destratados e, muitas vezes, até mal-amados. Sofremos com a falta de dinheiro, temos preocupações com a nossa saúde, com a saúde dos filhos, dos nossos pais, do nosso cachorro. Entretanto, o que difere o ser gentil é que ele não coloca seus problemas no centro do mundo e nem acha que todos têm de parar com suas vidas, porque ele não está bem. O verdadeiro entendedor da gentileza sabe ser suave com o outro, percebe que somos interligados por algo maior que nossos próprios interesses, que as relações humanas são pétalas de uma mesma flor.

Ainda hoje, embora tenham se tornado espécimes raros, diz a lenda que, quando vistos, são facilmente reconhecíveis. São aqueles que nos olham verdadeiramente nos olhos, que, quando íntimos, nos dão abraços apertados, que cumprem suas promessas e que não pensam antes de se levantarem e oferecerem seu lugar no banco.

O ser gentil é naturalmente educado, pois, valoriza o outro como pessoa. Sabe que respeito é afeto, que delicadeza é cuidado, e que toda gentileza é uma declaração de amor.

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Nota da autora: Alguns trechos desse texto são equivocadamente atribuídos ao escritor Mia Couto.

Jurisprudência do Amor, por Arnaldo Jabor

Jurisprudência do Amor, por Arnaldo Jabor

Já parou pra pensar sobre a jurisdição do relacionamento?!? É puro processo.
Todo relacionamento traz embutido um processo de conhecimento, ao qual se segue o processo de execução.

A doutrina da mocidade, então, inventou as medidas cautelares e a tutela antecipada. Afinal de contas, com o “ficar”, você já obtém aquilo que conseguiria com o relacionamento principal, e, além do mais, toma conhecimento de tudo o que possa acontecer no futuro, já estando precavido.

Esse processo de conhecimento pode, de cara, ser extinto sem julgamento de mérito, por carência de ação. Pior é o indeferimento da inicial por inépcia. E sem contar que na ausência do impulso oficial a coisa não vai pra frente. Havendo ilegitimidade de parte, o que normalmente se constata apenas na fase probatória; ou ainda, a impossibilidade do pedido, não tem quem agüente.

E quando é o caso, ainda mais freqüente, de falta de interesse….aí paciência!

Se ocorrer intervenção de terceiros, a coisa complica, pois amplia objetiva e subjetivamente o campo do relacionamento, transformando-o em questão prejudicial.

Pois, como se sabe, todo litisconsórcio ativo é facultativo, dependendo do grau de abertura e modernidade do relacionamento.

É necessário estar sempre procedendo ao saneamento da relação, para se manter a higidez das fases futuras.

É um procedimento especial, uma mescla entre processos civil e penal, podendo seguir o rito ordinário, sumário, ou, até mesmo, o sumaríssimo…dependendo da disposição de cada um.

A competência para dirimir conflitos é concorrente. E a regra é que se busque sempre a transação.

Com o passar do tempo, depois de produzidas todas as provas de amor, chega o momento das alegações finais… é o noivado! Este pode acontecer por simples requerimento ou então por usucapião. Alguns conseguem a prescrição nesta fase.

E na hora da sentença: “Eu vos declaro marido e mulher, até que a morte os separe”. Em outras palavras, está condenado a pena de prisão perpétua.

São colocadas as algemas no dedo esquerdo de cada um, na presença de todas as testemunhas de acusação.

E, de acordo com as regras de direito das coisas, “o acessório segue o principal”… casou, ganha uma sogra de presente. E neste caso específico, ainda temos uma exceção, pois laços de afinidade não se desfazem com o fim do casamento.

Mas essa sentença faz apenas coisa julgada formal. É possível revê-la a qualquer tempo… mas se for consensual, tem que esperar um ano, apenas!

Talvez você consiga um “habeas corpus” e… novamente a liberdade.
Como disse alguém que não me lembro agora, “o casamento é a única prisão em que se ganha liberdade por mau comportamento”.

Ah!!! Nesse caso você será condenado nas custas processuais e a uma pena restritiva de direitos: prestação pecuniária ou perdimento de bens e valores.

Arnaldo Jabor´
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Temos que fazer mais vezes

Temos que fazer mais vezes

Por Patrícia Dantas

Existe uma frase que anda colada em mim e costumo falar e repetir infindavelmente – “temos que fazer mais vezes” – quando algo transborda tal qual nosso olhar ao topo de uma montanha para uma paisagem deslumbrante. Digo isto para tudo que faz meus sentidos valerem a pena. É a confissão de um desejo insaciável.

É quando algo mágico acontece e nos toma por completo, quando o céu que nos pertence não tem limites. É quando também não desejamos fugir, nem escapar, nem sair tão cedo, mas permanecer, até sermos absorvidos em cada fibra, sem nada mais restar, só o contentamento de um prazer profundo.

Volto o rosto a mim, como uma espécie de Agatha Christie investigativa, misteriosa, provocante, atrás de desvendar outros gostos que atiçam todos os dias minhas vontades e fazem com que eu os busque e arraste de lugares até então intactos dentro de mim. Vão surgindo como aparições da mais fina arte surrealista.

Um trigal do pintor Van Gogh! Minhas aparições não têm limites, possuem escapadelas que faríamos um edifício de sombras borradas e coloridas, de tão cheias do viço da vida, pois elas sempre necessitam da urgência de existir, de tornarem-se reais à medida que realizam suas transgressões divinas em meu tocável interior.
Vou pisando nos trigais voluptuosos e encantadores como a primavera ardendo dentro dos olhos de tão fresca, piso fundo a cada passo, sinto os pés talhando o chão firme, desenhando finas esculturas atrás do rastro afoito, um estilo único de se traçar diante da própria personalidade – um desenho de mim inventado, invertido, transgressor.

Tenho ainda necessidades quase alheias, vindas de observações e percepções que não me pertencem até meus olhos tecerem suas insinuações nebulosas. São experiências profundas que podem partir de uma música, uma leitura, uma viagem, um olhar para outra pessoa. É algo que desperta diante de uma situação. Um acendedor de luz no meio da cabeça. E eu sigo, não gosto de me desprender de uma força tão brutal.

Quando li Florbela Espanca pela primeira vez, não pude acreditar como era possível alguém descrever tão bem os sentimentos mais crueis que consomem e dão criatividade, para o bem ou para o mal. Ela escrevia o que sentia, admitia o que quase ninguém ousaria levar debaixo do braço para qualquer um degustar a sangue frio.

E Virgínia Woolf, sobre a liberdade feminina? Como tecer romances tão bem quando não se é permitido, quando não se pode usufruir de uma liberdade completa? Quando uma época tolhe, vasculha, espia por entre frestas para encontrar algo que condene o que foi dito? Não teve jeito, ela escreveu com toda força e mostrou que o poder vai além do corpo, está muito mais incrustado em uma alma libertadora e indomável.

E Clarice Lispector, com suas inquietações incomuns, a vontade que dá é seguir viagem junto e entrar em suas águas complexas e cristalinas, o olho mágico do ser? A lista de leituras que gostaria de repetir é extensa, sem contar o novo que sempre está à espera.

Somos tomados pelas grandes empolgações do inusitado, pelo total embriagamento dos sentidos, pelos pequenos e grandes prazeres. Tudo que podemos sim fazer mais vezes! E por que não?

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Imagem do filme “Um divã para dois”.

“A moça tecelã”, um conto de Marina Colasanti

“A moça tecelã”, um conto de Marina Colasanti

Acordada ainda no escuro, como se houvesse o sol chegado atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se no tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto la fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.

Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidados de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria bom ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbeado, corpo emprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida.

Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, por algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

– Uma casa melhor é necessária – disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. -Por que ter casa, se podemos ter palácio? -Perguntou. Sem querer resposta, mediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates de prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal, o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

– É para que ninguém saiba do tapete – disse. E antes de trancar a porta a chave advertiu: – Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça para não fazer barulho, subiu a longa escada do torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou, e espantado olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe o corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Marina Colasanti

Contos Brasileiros Contemporâneos. São Paulo, Editora Moderna, 1991.

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O amor acaba – crônica de Paulo Mendes Campos

O amor acaba – crônica de Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Paulo Mendes Campos

 In: O amor acaba, Paulo Mendes Campos, seleção e apresentação Flávio Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2013

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Recém-nascidos de um amor perdido, por Fabrício Carpinejar

Recém-nascidos de um amor perdido, por  Fabrício Carpinejar

Por Fabrício Carpinejar 

Não seremos bebê uma vez só na vida.

Com o fim de um amor, voltaremos a ser uma criança de colo.

Sempre que perdermos um amor, retornaremos ao início de nossa linguagem e teremos que reinventar outra no lugar.

Deixaremos de caminhar e vamos engatinhar.

Vamos tropeçar, vamos cair da cama, vamos boiar no tapete com a cabeça virada ao teto, as pernas não estarão mais firmes e seguras para seguir suas próprias convicções.

Precisaremos rastejar pela casa, mexeremos em tomadas proibidas, esfolaremos os joelhos.

Atravessar o quarto à sala consistirá em trajeto paciente, de quedas e desistências.

Todos que se aproximarem de nossos passos serão gigantes, imensos, resolvidos. Nossa perspectiva é do chão para cima, nos veremos subestimados e inferiores, menores do que os demais conhecidos.
Sobreviveremos com o cerco das amigas e dos amigos, nossas mães e pais do luto, capazes de acalmar o nosso lamento e descobrir um jeito de nos fazer dormir.

Seremos bebê frágil, de infinita curiosidade sobre a dor e o medo.

Não nos alimentaremos com facilidade. Completaremos qualquer refeição a contragosto.

Os dentes estarão sem fio para cortar um pedaço de pão. A fome não vencerá o incômodo de engolir as palavras junto da comida.

Cabularemos o banho, esticaremos os olhos para definir quem se aproxima, se é vulto do ventre ou se é futuro se formando.

Não desejaremos sair do conforto do cafuné e do amparo dos adultos.
Não saberemos mais falar, apenas gritar e careceremos da mímica e dos dedos esticados para expor as nossas vontades.

Choraremos com a compulsão de um recém-nascido, entre o soluço e o gemido. Pode demorar horas, pode demorar dias, quebrar noites ao meio.

Somente a rotina nos salvará, a disciplina para comer, dormir e se movimentar. Os horários certos e fixos nos devolverão a paz das certezas.

A mobilidade se reduzirá ao básico e não há como cortar caminho e apressar a planta dos pés.
Sentiremos falta do andador, do chiqueiro, do berço, gaiolas dentro da residência, muletas infantis para recriar as asas das roupas.

Alguns não aguentam o excesso súbito de infância e jamais superam a hipnose regressiva.
Perder um amor não é morrer, é repetir o nosso nascimento, é recuar todas as casas já frequentadas pelo tabuleiro da vida.

Para andar novamente, dependeremos essencialmente de alguém no fim do corredor com as mãos espalmadas dizendo: – Vem, você consegue!
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Quando 1 + 1 = 3

Quando 1 + 1 = 3

Por Tatiana Nicz

“Amar é dar o que não se tem (a alguém que não o quer).” Jacques Lacan

Esses dias fui dormir com esse presente da minha conselheira. É uma frase profunda e real e me tirou o sono. O que é o amor? Há coisas na vida que não podem ser definidas, apenas sentidas. Amor certamente é uma delas. Mas, aceitei o desafio de falar sobre o tema. Talvez eu não seja muito indicada para falar sobre esse tema, porque não considero que realmente tenha experimentado o amor da maneira como gostaria. E quem não vive não conhece algo por inteiro.

Não quer dizer que não amei, amei de muitas maneiras, o primeiro amor, amores possíveis e impossíveis, amores não correspondidos, amores que não correspondi, platônicos, distantes, amores de histórias de Almodóvar e Nelson Rodrigues, em tudo isso entraram também medo, idealizações, racionalizações, dramas e, o que aprendi a chamar, muito auto-boicote.

Após algum tempo vivendo de meios amores e amores inventados, resolvi que era hora de dar um tempo, parar de buscar ou simplesmente parar. Porque menos que não tenha vivido, sei que amor não se busca e nem vem de nosso esforço. Então descobri algo bem óbvio, é provável que eu não tivesse conhecido o amor da maneira como acredito que ele é, em sua mais pura essência, porque ainda não conhecia o poder que existe em me amar e me aceitar. Hoje, felizmente, posso afirmar que conheço.

Mas o “problema” do amor próprio é que ele te torna um tanto auto-suficiente. Quanto mais eu me conheço e quanto mais tenho apreço pelo que me tornei, quanto mais entendo a profundidade das batalhas que travei, os caminhos que tracei e quando olho para tudo que me fez chegar a ser a pessoa que hoje sou, entendo que não preciso de ninguém para reconhecer como isso tudo é grandioso. Porque eu reconheço que é, isso basta.

Não, não é em tom narcisista ou arrogante que falo isso, com certeza sou imperfeita e incompleta, a única diferença é que aprendi a amar isso também. Aprender a respeitar e aceitar a impermanência da vida, a dançar conforme os diferentes ciclos que se apresentam e vivê-los por inteiro, aprender a enxergar beleza nas cicatrizes físicas e da alma, a dar sentido às nossas feridas, tudo isso não é algo que se pode adquirir com muita facilidade, muito menos através do outro.

Amar é algo que, que no que acredito, envolve conceitos parecidos com companheirismo, respeito, dedicação, admiração, e claro, amor em si. O mundo seria mesmo um lugar muito melhor se as pessoas soubessem amar dessa maneira, mais leve. Esse amor é lindo em teoria, mas quando juntamos ao nosso modelo lacrado e pasteurizado de relacionamentos, onde a fidelidade é exigida em contrato, onde o outro deve prestar contas, satisfações, onde duas almas se fundem em uma, é nisso que minha vontade de amar esbarra. Amar assim, tão convencionalmente, seguindo modelos impostos, sem liberdade, por obrigação é algo que não combina com a minha alma livre.

Certo dia li que existem três formas de relacionamentos, claro, devem existir milhares delas, mas achei curiosa essa descrição: quando 1 + 1 = 1 quando um dos dois se anula e só o que resta é a vontade do outro; quando 1 + 1 = 2 quando os dois têm personalidades e vidas bem distintas e constroem pouco juntos; quando 1 + 1 = 3, duas almas diferentes se unem em uma caminhada para formar uma terceira força, mais inteira e presente para o mundo.

Claro que acredito muito mais na última opção. Também acho que é a mais desafiadora e rara. Amar por afinidade muito mais que por necessidade ou convenção; saber que você não precisa do outro, mas escolher estar presente, caminhar lado a lado e co-construir é o que faz do amor algo tão grandioso.

O que entendo de amor e principalmente o que eu quero dele é algo totalmente diferente do que tenho visto por aí. A minha busca hoje é justamente abrir mão de ser reconhecida pelo outro, abrir mão de ser amada pelo outro, porque o que sinto por mim me basta. É um caminho difícil e solitário, mas que da sensação de completude.

Acredito que amor e liberdade são fruto de uma só raíz e liberdade tem a ver com poder de escolha, portanto acredito no poder de nosso ir e vir, do livre-arbítrio. Sendo assim, o amor é uma escolha. Escolher viver ou não a história que se apresenta, escolher amar o outro pelo que ele é. Escolher amar sem nada em troca. Escolher amar pela grandiosidade que existe no próprio amar. Sim, escolher amar e mais ainda, escolher como amar. Pois, quando o amor é livre, quando não é imposto e nem preso à nada, é ali, nessa linha tão tênue que a magia acontece. Quando damos algo que não temos e principalmente quando damos a quem não precisa, porque o outro também se basta, então o amor de fato pode florescer

Veja como as pessoas reagem a um racismo que não as representa

Veja como as pessoas reagem a um racismo que não as representa

Para avaliar reações da população local ao racismo, um experimento social realizado na Lituânia simulou uma seleção para um comercial de TV. Na sala de espera, eles eram solicitados a traduzir um texto em sua língua nativa para um homem negro que também estava esperando pela entrevista, mas que não sabia ler o texto em lituano, apenas em inglês.

O que você faria se tivesse que ler palavras racistas a uma pessoa que acabou de chegar a seu país como imigrante? Palavras que não te representam, mas que falam em nome do seu povo, da população de seus país.

Assista:

Fonte vídeo: Legendadus

“Miudezas”, poema de Manoel de Barros

“Miudezas”, poema de Manoel de Barros

Percorro todas as tardes um quarteirão de paredes
nuas.
Nuas e sujas de idade e ventos.
Vejo muitos rascunhos de pernas de grilos pregados
nas pedras.
As pedras, entrentanto, são mais favoráveias a pernas
de moscas do que de grilos.
Pequenos caracóis deixaram suas casas pregadas
nestas pedras.
E as suas lesmas saíram por aí à procura de outras
paredes.
Asas misgalhadinhas de borboletas tingem de azul
estas pedras.
Uma espécie de gosto por tais miudezas me paralisa.
Caminho todas as tardes por este quarteirões
desertos, é certo.
Mas nunca tenho certeza
Se estou percorrendo o quarteirão deserto
Ou algum deserto em mim.

Manoel de Barros

Pequena crônica policial, por Mário Quintana

Pequena crônica policial, por Mário Quintana

Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza…
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida…
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriam, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no Céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada…
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!

Mário Quintana
contioutra.com - Pequena crônica policial, por Mário Quintana

“DESTRALHE-SE” , por Carlos Solano

“DESTRALHE-SE” , por Carlos Solano

“-Bom dia, como tá a alegria”? Diz dona Francisca, minha faxineira rezadeira, que acaba de chegar.
“-Antes de dar uma benzida na casa, deixa eu te dar um abraço que preste!” e ela me apertou.
Na matemática de dona Francisca, “quatro abraços por dia dão para sobreviver; oito ajudam a nos manter vivos; 12 fazem a vida prosperar”.
Falando nisso, “vida nenhuma prospera se estiver pesada e intoxicada”. Já ouviu falar em toxinas da casa.

Pois são:
– objetos que você não usa,
– roupas que você não gosta ou não usa há um ano,
– coisas feias,
– coisas quebradas, lascadas ou rachadas,
– velhas cartas, bilhetes,
– plantas mortas ou doentes,
– recibos/jornais/revistas, antigos,
– remédios vencidos,
– meias velhas, furadas,
– sapatos estragados…

Ufa, que peso! “O que está fora está dentro e isso afeta a saúde”, aprendi com dona Francisca. “Saúde é o que interessa. O resto não tem pressa!”, ela diz, enquanto me ajuda a ‘destralhar’, ou liberar as tralhas da casa…
O ‘destralhamento’ é a forma mais rápidas de transformar a vida e ajuda as outras eventuais terapias. Com o destralhamento:
– A saúde melhora;
– A criatividade cresce;
– Os relacionamentos se aprimoram…

É comum se sentir cansado, deprimido, desanimado, em um ambiente cheio de entulho, pois “existem fios invisíveis que nos ligam à tudo aquilo que possuímos”.
Outros possíveis efeitos do “acúmulo e da bagunça”:
– sentir-se desorganizado;
– fracassado;
– limitado;
– aumento de peso;
– apegado ao passado…

No porão e no sótão, as tralhas viram sobrecarga; Na entrada, restringem o fluxo da vida; Empilhadas no chão, nos puxam para baixo; Acima de nós, são dores de cabeça;
“Sob a cama, poluem o sono”.
“Oito horas, para trabalhar; Oito horas, para descansar; Oito horas, para se cuidar.”

Perguntinhas úteis na hora de destralhar-se:
– Por que estou guardando isso?
– Será que tem a ver comigo hoje?
– O que vou sentir ao liberar isto?

…e vá fazendo pilhas separadas…
– Para doar!
– Para jogar fora!

Para destralhar mais:
– livre-se de barulhos,
– das luzes fortes,
– das cores berrantes,
– dos odores químicos,
– dos revestimentos sintéticos…

e também…
– libere mágoas,
– pare de fumar,
– diminua o uso da carne,
– termine projetos inacabados.

“Se deixas sair o que está em ti, o que deixas sair te salvará.. Se não deixas sair o que está em ti, o que não deixas sair te destruirá”, Arremata o mestre Jesus, no evangelho de Tomé.
“Acumular nos dá a sensação de permanência, apesar de a vida ser impermanente”, diz a sabedoria oriental. O Ocidente resiste a essa ideia e, assim, perde contato com o sagrado instante presente.

Dona Francisca me conta que “as frutas nascem azedas e no pé, vão ficando docinhas com o tempo”. A gente deveria de ser assim, ela diz: “Destralhar ajuda a adocicar.”

Se os sábios concordam, quem sou eu para discordar…

+ Carlos Solano

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As disputas “amorosas” – Flávio Gikovate

As disputas “amorosas” – Flávio Gikovate

As disputas acontecem quando um dos parceiros sente que tem um rival, compondo uma triangulação amorosa. Caso ainda não tenham se separado, haverá a tentativa de reconquista, muito mais em decorrência da vaidade.

Entre aqueles que se separam, ao menos nos primeiros tempos, sobra uma espécie de gangorra: cada um quer se reencontrar antes que o ex esteja se sentindo muito bem, pois saber que o ex está feliz e reconstruiu sua vida aparece como uma péssima notícia!

Para mais informações sobre Flávio Gikovate

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Livros: www.gikovatelojavirtual.com.br

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