Temos que fazer mais vezes

Temos que fazer mais vezes

Por Patrícia Dantas

Existe uma frase que anda colada em mim e costumo falar e repetir infindavelmente – “temos que fazer mais vezes” – quando algo transborda tal qual nosso olhar ao topo de uma montanha para uma paisagem deslumbrante. Digo isto para tudo que faz meus sentidos valerem a pena. É a confissão de um desejo insaciável.

É quando algo mágico acontece e nos toma por completo, quando o céu que nos pertence não tem limites. É quando também não desejamos fugir, nem escapar, nem sair tão cedo, mas permanecer, até sermos absorvidos em cada fibra, sem nada mais restar, só o contentamento de um prazer profundo.

Volto o rosto a mim, como uma espécie de Agatha Christie investigativa, misteriosa, provocante, atrás de desvendar outros gostos que atiçam todos os dias minhas vontades e fazem com que eu os busque e arraste de lugares até então intactos dentro de mim. Vão surgindo como aparições da mais fina arte surrealista.

Um trigal do pintor Van Gogh! Minhas aparições não têm limites, possuem escapadelas que faríamos um edifício de sombras borradas e coloridas, de tão cheias do viço da vida, pois elas sempre necessitam da urgência de existir, de tornarem-se reais à medida que realizam suas transgressões divinas em meu tocável interior.
Vou pisando nos trigais voluptuosos e encantadores como a primavera ardendo dentro dos olhos de tão fresca, piso fundo a cada passo, sinto os pés talhando o chão firme, desenhando finas esculturas atrás do rastro afoito, um estilo único de se traçar diante da própria personalidade – um desenho de mim inventado, invertido, transgressor.

Tenho ainda necessidades quase alheias, vindas de observações e percepções que não me pertencem até meus olhos tecerem suas insinuações nebulosas. São experiências profundas que podem partir de uma música, uma leitura, uma viagem, um olhar para outra pessoa. É algo que desperta diante de uma situação. Um acendedor de luz no meio da cabeça. E eu sigo, não gosto de me desprender de uma força tão brutal.

Quando li Florbela Espanca pela primeira vez, não pude acreditar como era possível alguém descrever tão bem os sentimentos mais crueis que consomem e dão criatividade, para o bem ou para o mal. Ela escrevia o que sentia, admitia o que quase ninguém ousaria levar debaixo do braço para qualquer um degustar a sangue frio.

E Virgínia Woolf, sobre a liberdade feminina? Como tecer romances tão bem quando não se é permitido, quando não se pode usufruir de uma liberdade completa? Quando uma época tolhe, vasculha, espia por entre frestas para encontrar algo que condene o que foi dito? Não teve jeito, ela escreveu com toda força e mostrou que o poder vai além do corpo, está muito mais incrustado em uma alma libertadora e indomável.

E Clarice Lispector, com suas inquietações incomuns, a vontade que dá é seguir viagem junto e entrar em suas águas complexas e cristalinas, o olho mágico do ser? A lista de leituras que gostaria de repetir é extensa, sem contar o novo que sempre está à espera.

Somos tomados pelas grandes empolgações do inusitado, pelo total embriagamento dos sentidos, pelos pequenos e grandes prazeres. Tudo que podemos sim fazer mais vezes! E por que não?

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Imagem do filme “Um divã para dois”.

“A moça tecelã”, um conto de Marina Colasanti

“A moça tecelã”, um conto de Marina Colasanti

Acordada ainda no escuro, como se houvesse o sol chegado atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se no tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto la fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.

Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidados de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria bom ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbeado, corpo emprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida.

Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, por algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

– Uma casa melhor é necessária – disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. -Por que ter casa, se podemos ter palácio? -Perguntou. Sem querer resposta, mediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates de prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal, o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

– É para que ninguém saiba do tapete – disse. E antes de trancar a porta a chave advertiu: – Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça para não fazer barulho, subiu a longa escada do torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou, e espantado olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe o corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Marina Colasanti

Contos Brasileiros Contemporâneos. São Paulo, Editora Moderna, 1991.

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O amor acaba – crônica de Paulo Mendes Campos

O amor acaba – crônica de Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Paulo Mendes Campos

 In: O amor acaba, Paulo Mendes Campos, seleção e apresentação Flávio Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2013

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Recém-nascidos de um amor perdido, por Fabrício Carpinejar

Recém-nascidos de um amor perdido, por  Fabrício Carpinejar

Por Fabrício Carpinejar 

Não seremos bebê uma vez só na vida.

Com o fim de um amor, voltaremos a ser uma criança de colo.

Sempre que perdermos um amor, retornaremos ao início de nossa linguagem e teremos que reinventar outra no lugar.

Deixaremos de caminhar e vamos engatinhar.

Vamos tropeçar, vamos cair da cama, vamos boiar no tapete com a cabeça virada ao teto, as pernas não estarão mais firmes e seguras para seguir suas próprias convicções.

Precisaremos rastejar pela casa, mexeremos em tomadas proibidas, esfolaremos os joelhos.

Atravessar o quarto à sala consistirá em trajeto paciente, de quedas e desistências.

Todos que se aproximarem de nossos passos serão gigantes, imensos, resolvidos. Nossa perspectiva é do chão para cima, nos veremos subestimados e inferiores, menores do que os demais conhecidos.
Sobreviveremos com o cerco das amigas e dos amigos, nossas mães e pais do luto, capazes de acalmar o nosso lamento e descobrir um jeito de nos fazer dormir.

Seremos bebê frágil, de infinita curiosidade sobre a dor e o medo.

Não nos alimentaremos com facilidade. Completaremos qualquer refeição a contragosto.

Os dentes estarão sem fio para cortar um pedaço de pão. A fome não vencerá o incômodo de engolir as palavras junto da comida.

Cabularemos o banho, esticaremos os olhos para definir quem se aproxima, se é vulto do ventre ou se é futuro se formando.

Não desejaremos sair do conforto do cafuné e do amparo dos adultos.
Não saberemos mais falar, apenas gritar e careceremos da mímica e dos dedos esticados para expor as nossas vontades.

Choraremos com a compulsão de um recém-nascido, entre o soluço e o gemido. Pode demorar horas, pode demorar dias, quebrar noites ao meio.

Somente a rotina nos salvará, a disciplina para comer, dormir e se movimentar. Os horários certos e fixos nos devolverão a paz das certezas.

A mobilidade se reduzirá ao básico e não há como cortar caminho e apressar a planta dos pés.
Sentiremos falta do andador, do chiqueiro, do berço, gaiolas dentro da residência, muletas infantis para recriar as asas das roupas.

Alguns não aguentam o excesso súbito de infância e jamais superam a hipnose regressiva.
Perder um amor não é morrer, é repetir o nosso nascimento, é recuar todas as casas já frequentadas pelo tabuleiro da vida.

Para andar novamente, dependeremos essencialmente de alguém no fim do corredor com as mãos espalmadas dizendo: – Vem, você consegue!
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Quando 1 + 1 = 3

Quando 1 + 1 = 3

Por Tatiana Nicz

“Amar é dar o que não se tem (a alguém que não o quer).” Jacques Lacan

Esses dias fui dormir com esse presente da minha conselheira. É uma frase profunda e real e me tirou o sono. O que é o amor? Há coisas na vida que não podem ser definidas, apenas sentidas. Amor certamente é uma delas. Mas, aceitei o desafio de falar sobre o tema. Talvez eu não seja muito indicada para falar sobre esse tema, porque não considero que realmente tenha experimentado o amor da maneira como gostaria. E quem não vive não conhece algo por inteiro.

Não quer dizer que não amei, amei de muitas maneiras, o primeiro amor, amores possíveis e impossíveis, amores não correspondidos, amores que não correspondi, platônicos, distantes, amores de histórias de Almodóvar e Nelson Rodrigues, em tudo isso entraram também medo, idealizações, racionalizações, dramas e, o que aprendi a chamar, muito auto-boicote.

Após algum tempo vivendo de meios amores e amores inventados, resolvi que era hora de dar um tempo, parar de buscar ou simplesmente parar. Porque menos que não tenha vivido, sei que amor não se busca e nem vem de nosso esforço. Então descobri algo bem óbvio, é provável que eu não tivesse conhecido o amor da maneira como acredito que ele é, em sua mais pura essência, porque ainda não conhecia o poder que existe em me amar e me aceitar. Hoje, felizmente, posso afirmar que conheço.

Mas o “problema” do amor próprio é que ele te torna um tanto auto-suficiente. Quanto mais eu me conheço e quanto mais tenho apreço pelo que me tornei, quanto mais entendo a profundidade das batalhas que travei, os caminhos que tracei e quando olho para tudo que me fez chegar a ser a pessoa que hoje sou, entendo que não preciso de ninguém para reconhecer como isso tudo é grandioso. Porque eu reconheço que é, isso basta.

Não, não é em tom narcisista ou arrogante que falo isso, com certeza sou imperfeita e incompleta, a única diferença é que aprendi a amar isso também. Aprender a respeitar e aceitar a impermanência da vida, a dançar conforme os diferentes ciclos que se apresentam e vivê-los por inteiro, aprender a enxergar beleza nas cicatrizes físicas e da alma, a dar sentido às nossas feridas, tudo isso não é algo que se pode adquirir com muita facilidade, muito menos através do outro.

Amar é algo que, que no que acredito, envolve conceitos parecidos com companheirismo, respeito, dedicação, admiração, e claro, amor em si. O mundo seria mesmo um lugar muito melhor se as pessoas soubessem amar dessa maneira, mais leve. Esse amor é lindo em teoria, mas quando juntamos ao nosso modelo lacrado e pasteurizado de relacionamentos, onde a fidelidade é exigida em contrato, onde o outro deve prestar contas, satisfações, onde duas almas se fundem em uma, é nisso que minha vontade de amar esbarra. Amar assim, tão convencionalmente, seguindo modelos impostos, sem liberdade, por obrigação é algo que não combina com a minha alma livre.

Certo dia li que existem três formas de relacionamentos, claro, devem existir milhares delas, mas achei curiosa essa descrição: quando 1 + 1 = 1 quando um dos dois se anula e só o que resta é a vontade do outro; quando 1 + 1 = 2 quando os dois têm personalidades e vidas bem distintas e constroem pouco juntos; quando 1 + 1 = 3, duas almas diferentes se unem em uma caminhada para formar uma terceira força, mais inteira e presente para o mundo.

Claro que acredito muito mais na última opção. Também acho que é a mais desafiadora e rara. Amar por afinidade muito mais que por necessidade ou convenção; saber que você não precisa do outro, mas escolher estar presente, caminhar lado a lado e co-construir é o que faz do amor algo tão grandioso.

O que entendo de amor e principalmente o que eu quero dele é algo totalmente diferente do que tenho visto por aí. A minha busca hoje é justamente abrir mão de ser reconhecida pelo outro, abrir mão de ser amada pelo outro, porque o que sinto por mim me basta. É um caminho difícil e solitário, mas que da sensação de completude.

Acredito que amor e liberdade são fruto de uma só raíz e liberdade tem a ver com poder de escolha, portanto acredito no poder de nosso ir e vir, do livre-arbítrio. Sendo assim, o amor é uma escolha. Escolher viver ou não a história que se apresenta, escolher amar o outro pelo que ele é. Escolher amar sem nada em troca. Escolher amar pela grandiosidade que existe no próprio amar. Sim, escolher amar e mais ainda, escolher como amar. Pois, quando o amor é livre, quando não é imposto e nem preso à nada, é ali, nessa linha tão tênue que a magia acontece. Quando damos algo que não temos e principalmente quando damos a quem não precisa, porque o outro também se basta, então o amor de fato pode florescer

Veja como as pessoas reagem a um racismo que não as representa

Veja como as pessoas reagem a um racismo que não as representa

Para avaliar reações da população local ao racismo, um experimento social realizado na Lituânia simulou uma seleção para um comercial de TV. Na sala de espera, eles eram solicitados a traduzir um texto em sua língua nativa para um homem negro que também estava esperando pela entrevista, mas que não sabia ler o texto em lituano, apenas em inglês.

O que você faria se tivesse que ler palavras racistas a uma pessoa que acabou de chegar a seu país como imigrante? Palavras que não te representam, mas que falam em nome do seu povo, da população de seus país.

Assista:

Fonte vídeo: Legendadus

“Miudezas”, poema de Manoel de Barros

“Miudezas”, poema de Manoel de Barros

Percorro todas as tardes um quarteirão de paredes
nuas.
Nuas e sujas de idade e ventos.
Vejo muitos rascunhos de pernas de grilos pregados
nas pedras.
As pedras, entrentanto, são mais favoráveias a pernas
de moscas do que de grilos.
Pequenos caracóis deixaram suas casas pregadas
nestas pedras.
E as suas lesmas saíram por aí à procura de outras
paredes.
Asas misgalhadinhas de borboletas tingem de azul
estas pedras.
Uma espécie de gosto por tais miudezas me paralisa.
Caminho todas as tardes por este quarteirões
desertos, é certo.
Mas nunca tenho certeza
Se estou percorrendo o quarteirão deserto
Ou algum deserto em mim.

Manoel de Barros

Pequena crônica policial, por Mário Quintana

Pequena crônica policial, por Mário Quintana

Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza…
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida…
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriam, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no Céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada…
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!

Mário Quintana
contioutra.com - Pequena crônica policial, por Mário Quintana

“DESTRALHE-SE” , por Carlos Solano

“DESTRALHE-SE” , por Carlos Solano

“-Bom dia, como tá a alegria”? Diz dona Francisca, minha faxineira rezadeira, que acaba de chegar.
“-Antes de dar uma benzida na casa, deixa eu te dar um abraço que preste!” e ela me apertou.
Na matemática de dona Francisca, “quatro abraços por dia dão para sobreviver; oito ajudam a nos manter vivos; 12 fazem a vida prosperar”.
Falando nisso, “vida nenhuma prospera se estiver pesada e intoxicada”. Já ouviu falar em toxinas da casa.

Pois são:
– objetos que você não usa,
– roupas que você não gosta ou não usa há um ano,
– coisas feias,
– coisas quebradas, lascadas ou rachadas,
– velhas cartas, bilhetes,
– plantas mortas ou doentes,
– recibos/jornais/revistas, antigos,
– remédios vencidos,
– meias velhas, furadas,
– sapatos estragados…

Ufa, que peso! “O que está fora está dentro e isso afeta a saúde”, aprendi com dona Francisca. “Saúde é o que interessa. O resto não tem pressa!”, ela diz, enquanto me ajuda a ‘destralhar’, ou liberar as tralhas da casa…
O ‘destralhamento’ é a forma mais rápidas de transformar a vida e ajuda as outras eventuais terapias. Com o destralhamento:
– A saúde melhora;
– A criatividade cresce;
– Os relacionamentos se aprimoram…

É comum se sentir cansado, deprimido, desanimado, em um ambiente cheio de entulho, pois “existem fios invisíveis que nos ligam à tudo aquilo que possuímos”.
Outros possíveis efeitos do “acúmulo e da bagunça”:
– sentir-se desorganizado;
– fracassado;
– limitado;
– aumento de peso;
– apegado ao passado…

No porão e no sótão, as tralhas viram sobrecarga; Na entrada, restringem o fluxo da vida; Empilhadas no chão, nos puxam para baixo; Acima de nós, são dores de cabeça;
“Sob a cama, poluem o sono”.
“Oito horas, para trabalhar; Oito horas, para descansar; Oito horas, para se cuidar.”

Perguntinhas úteis na hora de destralhar-se:
– Por que estou guardando isso?
– Será que tem a ver comigo hoje?
– O que vou sentir ao liberar isto?

…e vá fazendo pilhas separadas…
– Para doar!
– Para jogar fora!

Para destralhar mais:
– livre-se de barulhos,
– das luzes fortes,
– das cores berrantes,
– dos odores químicos,
– dos revestimentos sintéticos…

e também…
– libere mágoas,
– pare de fumar,
– diminua o uso da carne,
– termine projetos inacabados.

“Se deixas sair o que está em ti, o que deixas sair te salvará.. Se não deixas sair o que está em ti, o que não deixas sair te destruirá”, Arremata o mestre Jesus, no evangelho de Tomé.
“Acumular nos dá a sensação de permanência, apesar de a vida ser impermanente”, diz a sabedoria oriental. O Ocidente resiste a essa ideia e, assim, perde contato com o sagrado instante presente.

Dona Francisca me conta que “as frutas nascem azedas e no pé, vão ficando docinhas com o tempo”. A gente deveria de ser assim, ela diz: “Destralhar ajuda a adocicar.”

Se os sábios concordam, quem sou eu para discordar…

+ Carlos Solano

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As disputas “amorosas” – Flávio Gikovate

As disputas “amorosas” – Flávio Gikovate

As disputas acontecem quando um dos parceiros sente que tem um rival, compondo uma triangulação amorosa. Caso ainda não tenham se separado, haverá a tentativa de reconquista, muito mais em decorrência da vaidade.

Entre aqueles que se separam, ao menos nos primeiros tempos, sobra uma espécie de gangorra: cada um quer se reencontrar antes que o ex esteja se sentindo muito bem, pois saber que o ex está feliz e reconstruiu sua vida aparece como uma péssima notícia!

Para mais informações sobre Flávio Gikovate

Site: www.flaviogikovate.com.br
Facebook: www.facebook.com/FGikovate
Twitter: www.twitter.com/flavio_gikovate
Livros: www.gikovatelojavirtual.com.br

Esse blog possui a autorização de Flávio Gikovate para reprodução deste material.

Deixem as rugas em paz

Deixem as rugas em paz

Por Josie Conti

Por que tanta perseguição às pobres rugas? Deixem-nas sulcar caminhos na pele, marcar sorrisos, grifar olhares, zebrar raios de sol.

As rugas contam histórias de desbravamentos em terras nem sempre férteis, mas, que foram aradas e deram as colheitas possíveis. Assim como as cicatrizes, são marcas de sobrevivência e deveriam ser motivo de orgulho, símbolos de respeito.

Negar as próprias rugas é negar um passado de alegrias e superações. Eliminá-las por processos cirúrgicos e excesso de preenchimento é soterrar o rio que chamamos de memória, o “eu” que reconhecemos no espelho e que empresta imagem ao nosso nome, ao nosso ser.

Penso que deve ser por isso que as pessoas que exageram nesses procedimentos perdem a expressão humana, ocultam a beleza da alma e ganham aspectos de museu de cera. Por onde vão correr as lágrimas sem seus velhos e conhecidos caminhos? Como o rosto vai transmitir completamente seus sentimentos se tem seus músculos paralisados?

Assim se apresenta a humanidade, enquanto uns mostram demais, outros ocultam a todo e qualquer custo. Dois lados da mesma ausência de si.

Daqui, sigo a vida já marcada e agradeço por isso. E, por sorte, coincidência ou poesia, te envio sorrisos emoldurados por vincos.

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“O segundo sexo 25 anos depois”, entrevista histórica (1976) com Simone de Beauvoir

“O segundo sexo 25 anos depois”, entrevista histórica (1976) com Simone de Beauvoir

“O SEGUNDO SEXO 25 ANOS DEPOIS: Entrevista com Simone de Beauvoir.

Simone de Beauvoir.

Gerassi — Já se passaram 25 anos desde que O Segundo Sexo foi publicado. Muitas pessoas, principalmente nos Estados Unidos, o consideram o início do movimento feminista contemporâneo. Você consideraria…

Beauvoir — Acho que não. O movimento feminista atual, que começou há uns cinco ou seis anos, não conhecia realmente o livro. Posteriormente, com o crescimento do movimento, algumas das líderes tiraram parte de sua fundamentação teórica do livro. Mas não foi O Segundo Sexo que desencadeou o movimento. A maior parte das mulheres que se tornaram ativas no movimento era muito jovem quando o livro foi lançado, em 1949-50, para serem influenciadas por ele. O que me lisonjeia, é claro, foi elas o terem descoberto mais tarde. Certamente algumas mulheres mais velhas — Betty Friedan, por exemplo, que dedicou The Feminine Mystique (A Mística Feminina) a mim — tinham lido O Segundo Sexo e talvez tenham sido influenciadas por ele de algum modo. Mas as outras, de forma alguma. Kate Millet, por exemplo, não me cita nenhuma vez em seu trabalho. Pode ser que elas tenham se tornado feministas pelas razões que eu explico em O Segundo Sexo; mas elas descobriram essas razões em suas experiências de vida, não em meu livro.

Gerassi — Você disse que sua própria consciência feminista surgiu da experiência de escrever O Segundo Sexo. Como você vê o desenvolvimento do movimento após a publicação do seu livro em termos de sua própria trajetória?

Beauvoir — Ao escrever O Segundo Sexo tomei consciência, pela primeira vez, de que eu mesma estava levando uma vida falsa, ou melhor, estava me beneficiando dessa sociedade patriarcal sem ao menos perceber. Acontece que bem cedo em minha vida aceitei os valores masculinos e vivia de acordo com eles. É claro, fui muito bem-sucedida e isso reforçou em mim a crença de que homens e mulheres poderiam ser iguais se as mulheres quisessem essa igualdade. Em outros termos, eu era uma intelectual. Tive a sorte de pertencer a uma família burguesa, que, além de financiar meus estudos nas melhores escolas, também permitiu que eu brincasse com as idéias. Por causa disso, consegui entrar no mundo dos homens sem muita dificuldade. Mostrei que poderia discutir filosofia, arte, literatura, etc., no “nível dos homens”. Eu guardava tudo o que fosse próprio da condição feminina para mim. Fui, então, motivada por meu sucesso a continuar, e, ao fazê-lo, vi que poderia me sustentar financeiramente assim como qualquer intelectual do sexo masculino, e que eu era levada a sério assim como qualquer um de meus colegas do sexo masculino. Sendo quem eu era, descobri que poderia viajar sozinha se quisesse, sentar nos cafés e escrever, e ser respeitada como qualquer escritor do sexo masculino, e assim por diante. Cada etapa fortalecia meu senso de independência e igualdade. Portanto, tornou-se muito fácil para mim esquecer que uma secretária nunca poderia gozar destes mesmos privilégios. Ela não poderia sentar-se num café e ler um livro sem ser molestada. Raramente ela seria convidada para festas por seus “dotes intelectuais”. Ela não poderia pegar um empréstimo ou comprar uma propriedade. Eu sim. E pior ainda, eu costumava desprezar o tipo de mulher que se sentia incapaz, financeiramente ou espiritualmente, de mostrar sua independência dos homens. De fato, eu pensava, sem dizê-lo a mim mesma, “se eu posso, elas também podem”. Ao pesquisar e escrever O Segundo Sexo foi que percebi que meus privilégios resultavam de eu ter abdicado, em alguns aspectos cruciais pelo menos, à minha condição feminina. Se colocarmos o que estou dizendo em termos de classe econômica, você entenderá facilmente. Eu tinha me tornado uma colaboracionista de classe. Bem, eu era mais ou menos o equivalente em termos da luta de sexos. Através de O Segundo Sexo tomei consciência da necessidade da luta. Compreendi que a grande maioria das mulheres simplesmente não tinha as escolhas que eu havia tido; que as mulheres são, de fato, definidas e tratadas como um segundo sexo por uma sociedade patriarcal, cuja estrutura entraria em colapso se esses valores fossem genuinamente destruídos. Mas assim como para os povos dominados econômica e politicamente, o desenvolvimento da revolução é muito difícil e muito lento. Primeiro, as mulheres têm que tomar consciência da dominação. Depois, elas têm de acreditar na própria capacidade de mudar a situação. Aquelas que se beneficiam de sua “colaboração” têm que compreender a natureza de sua traição. E, finalmente, aquelas que têm mais a perder por tomar posição, isto é, mulheres que, como eu, buscaram uma situação confortável ou uma carreira bem-sucedida, têm que estar dispostas a arriscar sua situação de segurança — mesmo que seja apenas se expondo ao ridículo — para alcançar respeito próprio. E elas têm que entender que suas irmãs que são mais exploradas serão as últimas a se juntarem a elas. Uma esposa de operário, por exemplo, é menos livre para se juntar ao movimento. Ela sabe que seu marido é mais explorado do que a maioria das líderes feministas e que ele depende de seu papel de mãe/dona-de-casa para sobreviver. De qualquer forma, por todas essas razões, as mulheres não se mobilizaram. Ah sim, houve alguns pequenos movimentos bem interessantes, bem inteligentes, que lutaram por promoções políticas, pela participação das mulheres na política, no governo. Eu não me refiro a esses grupos. Então veio 1968 e tudo mudou. Sei que alguns eventos importantes aconteceram antes disso. O livro de Betty Friedan, por exemplo, foi publicado antes de 1968. Na verdade, as mulheres norte-americanas já estavam se mobilizando nessa época. Elas, mais do que ninguém, e por razões óbvias, estavam cientes das contradições entre as novas tecnologias e o papel conservador de manter as mulheres na cozinha. Com o desenvolvimento da tecnologia — tecnologia como poder do cérebro e não dos músculos — a lógica masculina de que as mulheres são o sexo frágil e, por isso, devem representar um papel secundário não pôde mais ser sustentada. Como as inovações tecnológicas eram muito difundidas nos Estados Unidos, as mulheres norte-americanas não escaparam às contradições. Foi, portanto, natural que o movimento feminista tivesse seu maior ímpeto no coração do capitalismo imperial, ainda que esse ímpeto tenha sido estritamente econômico, isto é, a reivindicação por salários iguais, trabalhos iguais. Mas foi dentro do movimento anti-imperialista que a verdadeira consciência feminista se desenvolveu. Tanto no movimento contra a Guerra do Vietnã nos EUA quanto logo depois da rebelião de 1968 na França e em outros países europeus, as mulheres começaram a sentir seu poder. Ao compreender que o capitalismo leva necessariamente à dominação dos povos pobres em todo o mundo, milhares de mulheres começaram a aderir à luta de classes — mesmo quando não aceitavam o termo “luta de classes”. Elas se tornaram ativistas. Elas aderiram às marchas, às demonstrações, às campanhas, aos grupos clandestinos, à militância de esquerda. Elas lutavam, tanto quanto qualquer homem, por um futuro sem explorações, sem alienações. Mas o que aconteceu? Nos grupos ou organizações a que aderiram, elas descobriram que, assim como na sociedade que tentavam combater, também eram tratadas como o segundo sexo. Aqui na França, e eu me arrisco a dizer também nos EUA, elas perceberam que os líderes eram sempre os homens. As mulheres se tornavam datilógrafas e serviam café nesses grupos pseudo-revolucionários. Bom, eu não deveria dizer pseudo. Muitos dos participantes desses movimentos eram revolucionários genuínos. Mas tendo sido treinados, educados e moldados em uma sociedade patriarcal, estes revolucionários trouxeram esses valores para o movimento. Compreensivelmente, estes homens não iriam abrir mão desses valores voluntariamente, assim como a classe burguesa não abrirá mão de seu poder voluntariamente. Dessa forma, assim como cabe ao pobre tomar o poder do rico, também cabe às mulheres tirar o poder dos homens. E isso não quer dizer que, por outro lado, elas devam dominar os homens. Significa estabelecer igualdade. Assim como o socialismo, o verdadeiro socialismo, estabelece igualdade econômica entre todos os povos, o movimento feminista aprendeu que ele teria que estabelecer igualdade entre os sexos tirando o poder da classe que liderava o movimento, isto é, dos homens. Colocando em outros termos: uma vez dentro da luta de classes, as mulheres perceberam que a luta de classes não eliminava a luta de sexos. Foi nesse ponto que eu mesma tomei consciência do que acabei de dizer. Antes disso, estava convencida de que a igualdade entre homens e mulheres só era possível com a destruição do capitalismo e, portanto — e é esse “portanto” que é uma falácia — nós temos que lutar primeiro a luta de classes. É verdade que a igualdade entre homens e mulheres é impossível no capitalismo. Se todas as mulheres trabalharem tanto quanto os homens, o que acontecerá com essas instituições das quais o capitalismo depende, instituições como igreja, casamento, exército, e os milhões de fábricas, lojas, etc. que dependem de trabalho de meio-expediente e mão-de-obra barata? Mas não é verdade que a revolução socialista estabelece necessariamente a igualdade entre homens e mulheres. Dê uma olhada na União Soviética ou na Tchecoslováquia, onde (mesmo se nós estivermos dispostos a chamar esses países de “socialistas”, e eu não estou) há uma confusão profunda entre emancipação do proletariado e emancipação da mulher. De alguma forma, o proletariado sempre termina sendo constituído de homens. Os valores patriarcais permaneceram intactos, tanto lá quando aqui. E isso — essa consciência entre as mulheres de que a luta de classes não engloba a luta de sexos — é que é novo. A maioria das mulheres sabe disso agora. Essa é a maior conquista do movimento feminista. É a que vai alterar a história nos próximos anos.

Gerassi — Mas essa consciência está limitada às mulheres que são de esquerda, isto é, mulheres comprometidas com a reestruturação de toda a sociedade.

Beauvoir — Bom, é claro, já que as outras são conservadoras, o que significa que elas querem conservar o que foi ou o que é. Mulheres de direita não querem revolução. Elas são mães, esposas, devotadas aos seus homens. Ou, quando são agitadoras, o que elas querem é um pedaço maior do bolo. Elas querem salários melhores, eleger mulheres para os parlamentos, ver uma mulher se tornar presidente. Fundamentalmente, acreditam na desigualdade, só que elas querem estar no topo e não por baixo. Mas elas se acomodam bem ao sistema como ele é ou com as pequenas mudanças para acomodar suas reivindicações. O capitalismo certamente pode se dar ao luxo de permitir às mulheres a servir o exército ou entrar para a força policial. O capitalismo é certamente inteligente o suficiente para deixar mais mulheres participarem do governo. O pseudo-socialismo pode certamente permitir que uma mulher se torne secretária-geral de seu partido. Isso são apenas reformas sociais, como o seguro social ou as férias pagas. A institucionalização das férias pagas mudou a desigualdade do capitalismo? O direito das mulheres trabalharem em fábricas com salários iguais aos dos homens mudou os valores masculinos da sociedade Tcheca? Mas mudar todo o sistema de valor de qualquer sociedade, destruir o conceito de maternidade: isso é revolucionário.
Uma feminista, quer ela se autodenomine esquerdista ou não, é uma esquerdista por definição. Ela está lutando por uma igualdade plena, pelo direito de ser tão importante, tão relevante, quanto qualquer homem. Por isso, incorporada em sua revolta pela igualdade de gêneros está a reivindicação pela igualdade de classes. Numa sociedade em que o homem pode ser a mãe, em que, vamos dizer, para colocar o argumento em termos de valores para que fique claro, a assim chamada “intuição feminina” é tão importante quanto o “conhecimento masculino” — para usar a linguagem corrente, apesar de absurda — em que ser gentil ou delicado é melhor do que ser durão; em outras palavras, em uma sociedade na qual a experiência de cada pessoa é equivalente a qualquer outra, você já estabeleceu automaticamente a igualdade, o que significa igualdade econômica e política e muito mais. Dessa forma, a luta de sexos inclui a luta de classes, mas a luta de classes não inclui a luta de sexos. As feministas são, portanto, esquerdistas genuínas. De fato, elas estão à esquerda do que nós chamamos tradicionalmente de esquerda política.

Gerassi — Mas, enquanto isso, ao travar a luta de sexos apenas dentro da esquerda — já que, como você disse, a luta de sexos é, pelo menos temporariamente, irrelevante dentro de outros setores políticos — as feministas não estariam enfraquecendo a esquerda, e, conseqüentemente, fortalecendo aqueles que exploram tanto as mulheres como os pobres?

Beauvoir — Não, e, a longo prazo, isso só vai fortalecer a esquerda. Pelo simples fato de que, ao serem confrontados como esquerdistas, isto é, como opositores à exploração, homens esquerdistas serão forçados a descer do pedestal. Mais e mais grupos se sentem compelidos a botar em xeque seus líderes do sexo masculino. Isso é progresso. Aqui em nosso jornal, Libération, a maioria se sentiu obrigada a deixar uma mulher se tornar sua diretora. Isso é progresso. Os homens de esquerda estão começando a tomar cuidado com a linguagem, estão…

Gerassi — Mas isso é real? Quer dizer, eu aprendi, por exemplo, a nunca usar a palavra “gostosa”, a prestar atenção nas mulheres em qualquer discussão de grupo, a lavar a louça, arrumar a casa, fazer as compras. Mas será que eu sou menos sexista em meus pensamentos? Será que eu rejeitei os valores masculinos?

Beauvoir — Você quer dizer, no seu íntimo? Para ser sincera, quem se importa? Pense um pouco. Você conhece um sulista racista. Você sabe que ele é racista porque o conhece desde que nasceu. Mas ele nunca diz “crioulo”. Ele escuta a todas as reclamações dos homens negros e dá o melhor de si para lidar com elas. Ele combate outros racistas. Ele insiste em dar uma educação acima da média para crianças negras, para compensar os anos em que faltou escola para essas crianças. Ele dá recomendações para que homens negros consigam empréstimos bancários. Ele dá apoio a candidatos negros em seu distrito através de ajuda financeira e com seu voto. Você acha que os negros se importam que ele seja tão racista quanto antes em seu íntimo? Essencialmente, exploração é hábito. Se você consegue controlar seus hábitos, fazer com que seja “natural” ter hábitos contrários, já é um grande passo. Se você lava a louça, arruma a casa, e toma a atitude de que não se sente menos “homem” por fazê-lo, você estará ajudando a estabelecer novos hábitos. Duas gerações sentindo que têm que parecer não-racistas o tempo inteiro e a terceira geração não será racista de fato. Então finja ser não-sexista, e continue fingindo. Pense nisso como um jogo. Em seus pensamentos íntimos, pode continuar pensando que você é superior às mulheres. Enquanto você representar de forma convincente – lavando a louça, fazendo as compras, arrumando a casa, cuidando das crianças – você estará abrindo precedentes, especialmente para homens como você, que tem certa pose de “machão”. A questão é: eu não acredito nisso. Eu não acredito que você realmente faça o que diz. Uma coisa é lavar a louça, trocar fraldas dia e noite é outra.

Gerassi — Bem, eu não tenho filhos…

Beauvoir — Por que não? Porque você escolheu não tê-los. Acha que as mães que você conhece escolheram ter filhos? Ou elas foram intimidadas a tê-los? Ou, em termos mais sutis, elas foram criadas para pensar que é natural e normal e próprio da mulher ter filhos e, por isso, escolheram tê-los? Esses são os valores que têm que mudar.

Gerassi — Certo. E é por isso, e eu compreendo, que muitas feministas insistem em ser separatistas. Mas em termos de revolução, tanto a delas quanto a minha, será que podemos ganhar se nos separarmos em dois grupos totalmente diferentes? Será que o movimento feminista conseguirá alcançar seu objetivo excluindo os homens de sua luta? Até hoje, a parte dominante do movimento das mulheres, aqui na França, e isso também é verdade para os Estados Unidos, é separatista.

Beauvoir — Só um minuto. Nós temos que investigar o porquê de elas serem separatistas. Não posso falar pelos Estados Unidos, mas aqui na França há muitos grupos, grupos de conscientização, dos quais os homens são excluídos porque as militantes acham muito importante redescobrir sua identidade como mulheres. Elas só podem fazê-lo conversando entre elas, contando entre si coisas que elas nunca ousariam falar na frente dos maridos, amantes, irmãos, pais, ou qualquer outro representante do poder masculino. A necessidade de falar com a intensidade e honestidade desejada só pode ser realizada dessa maneira. E elas têm conseguido se comunicar com uma profundidade que nunca pensei que fosse possível quando eu tinha 25 anos. Até mesmo quando eu estava entre minhas amigas mulheres mais íntimas naquela época, problemas verdadeiramente femininos nunca eram discutidos. Então agora, pela primeira vez, por causa desses grupos de conscientização, e por causa da força do desejo de confrontar genuinamente os problemas femininos dentro desses grupos, amizades verdadeiras entre mulheres se desenvolveram. Eu quero dizer, no passado, na minha juventude, até bem recentemente, as mulheres não costumavam se tornar amigas de verdade de outras mulheres. Elas se viam umas às outras como rivais, até mesmo inimigas, ou, na melhor das hipóteses, como concorrentes. Atualmente, sobretudo como resultado desses grupos de conscientização, as mulheres não se tornaram apenas capazes de construir amizades verdadeiras entre si, elas também aprenderam a ser calorosas, abertas, profundamente ternas umas com as outras: elas estão transformando irmandade e fraternidade em realidade — e sem tornar esse relacionamento dependente de uma sexualidade lésbica. É claro, há muitas batalhas, até mesmo batalhas estritamente feministas com impacto social, das quais as mulheres esperam que os homens participem, e muitos têm participado. Estou pensando, por exemplo, na luta pela legalização do aborto aqui na França. Quando organizamos a primeira demonstração de peso pela legalização do aborto há três ou quatro anos, lembro bem da grande quantidade de homens presentes. Isso não quer dizer que eles não fossem sexistas: para extrair o que foi inculcado no padrão de comportamento e sistema de valores de uma pessoa desde a primeira infância leva-se anos, décadas. Mas aqueles eram homens que, pelo menos, estavam cientes do sexismo na sociedade e tomaram uma posição política contra isso. Nessas ocasiões, os homens são bem-vindos, até mesmo encorajados, a aderir à luta.

Gerassi — Mas também há muitos grupos, pelo menos aqui na França, que proclamam seu separatismo com orgulho e definem sua luta como estritamente lésbica.

Beauvoir — Sejamos precisos. Dentro do MLF [Movimento de Libertação da Mulher] há, sim, muitos grupos que se denominam lésbicos. Muitas dessas mulheres, graças ao MLF e aos grupos de conscientização, podem dizer agora abertamente que são lésbicas, e isso é ótimo. Não costumava ser assim. Há outras mulheres que se tornaram lésbicas por uma espécie de compromisso político: isto é, elas acham que é uma atitude política ser lésbica; dentro da luta de sexos, isso seria mais ou menos o equivalente aos princípios do black power na luta racial. E é verdade que essas mulheres tendem a ser mais dogmáticas com relação à exclusão dos homens de sua luta. Mas isso não significa que elas ignorem as numerosas lutas que estão sendo travadas por todo o mundo contra a opressão. Por exemplo, quando Pierre Overney, o jovem militante maoísta, foi assassinado a sangue frio por um policial de uma fábrica da Renault por não dispersar durante uma manifestação, e toda a esquerda organizou uma marcha de protesto em Paris, todas as assim chamadas separatistas lésbicas radicais aderiram à manifestação e levaram flores ao seu túmulo. Isso, por outro lado, não significa que elas expressaram sua solidariedade por Overney, o homem, mas que elas se identificaram com o protesto contra o Estado que explora e comete abusos contra as pessoas — homens e mulheres.

Gerassi — Uma das conseqüências da libertação das mulheres, de acordo com pesquisas recentes realizadas em campus universitários dos Estados Unidos, é que os casos de impotência masculina aumentaram bastante, especialmente entre os homens jovens que tentam confrontar seu sexismo…

Beauvoir — A culpa é deles mesmos. Eles tentam representar papéis…

Gerassi — Mas precisamente, eles tomaram consciência de que representavam papéis, de que era fácil ser machão e fazer acreditarem que eram tipos egoístas, viris, quando, na realidade, eles agora notaram que freqüentemente tinham que fazer amor ou tentar seduzir a mulher porque era isso que se esperava deles, enquanto agora…

Beauvoir — Ao tomar consciência do papel que eles representavam, que, contudo, os satisfazia — nos dois aspectos, isto é, era fácil e os satisfazia sexualmente — enquanto agora têm que se preocupar em satisfazer a mulher, eles não conseguem satisfazer a si mesmos. Uma pena. Quero dizer, se sentissem uma afeição genuína pelas mulheres que estivessem com eles, se fossem honestos consigo mesmos e com suas parceiras, automaticamente pensariam em satisfazer aos dois. Agora eles estão preocupados em serem taxados de sexistas se não satisfizerem a mulher, então não conseguem nem ter relações. Mas ainda assim é uma representação, não é? Esses homens são impotentes por causa da contradição em que vivem. É uma pena que é esse grupo de homens, que pelo menos está ciente do sexismo, que mais sofra com o movimento feminista, enquanto a maioria dos homens tira vantagem disso, tornando a vida das mulheres mais intolerável…

Gerassi — Tira vantagem?

Beauvoir — Agora há pouco estávamos conversando sobre como o MLF ajudou as mulheres a se tornarem fraternas, afetuosas umas com as outras, e etc. Isso pode ter causado a impressão de que acho que as mulheres estão em uma situação melhor agora. Mas não. A luta está só começando e, nas fases iniciais, ela torna a vida mais difícil. Por causa da publicidade, a palavra “libertação” está na ponta da língua de cada homem, estando eles cientes ou não da opressão sexual que as mulheres sofrem. A atitude generalizada dos homens agora é “bem, já que vocês foram libertadas, vamos para a cama”. Em outras palavras, os homens agora estão muito mais agressivos, vulgares, violentos. Na minha juventude, nós podíamos passear por Montparnasse ou sentar em cafés sem sermos molestadas. Oh, a gente recebia sorrisos, acenos, olhares, e etc. Mas agora é impossível uma mulher sentar sozinha em um café para ler um livro. E se ela é categórica em ser deixada sozinha quando um homem a acossa, o comentário deste ao partir é, freqüentemente, vadia ou puta. Há muito mais estupro agora. Em geral, a agressividade e hostilidade masculinas se tornaram tão comuns, que nenhuma mulher se sente à vontade em Paris, e pelo que tenho ouvido, tampouco nas cidades dos Estados Unidos. A não ser que, é claro, as mulheres fiquem em casa. E é isso que está por trás dessa agressividade masculina: a ameaça que, aos olhos dos homens, a libertação das mulheres representa trouxe à tona suas inseguranças; por isso essa raiva, que tem como resultado a tendência de se comportar como se só as mulheres que ficam em casa são “puras”, enquanto as outras são fáceis. Quando as mulheres não se mostram tão fáceis assim, os homens se sentem pessoalmente desafiados, por assim dizer. Ficam com a idéia fixa de “pegar” a mulher.

Gerassi — Então o que aconteceu com o mito, que todo francês sustentava, mas que, é claro, nunca foi verdade, de que fazer amor é uma arte e que ele era o maior artista de todos?

Beauvoir — Exceto em algumas camadas muito ricas e parasitas da sociedade, o mito está morto. Ultimamente, os franceses se comportam como os homens norte-americanos ou italianos: eles só querem saber de “marcar pontos”, como se diz por aí. E com exceção de alguns poucos homens que tentam lidar com seu sexismo, eles têm a atitude de que quanto mais livre a mulher alega ser, isto é, quanto mais a mulher tenta batalhar para sobressair financeira e profissionalmente no mundo deles, o mundo dos homens, mais fácil deveria ser levá-la para a cama.

Gerassi — A conversa sobre mulheres serem mais livres me intriga. Em nossa sociedade, a liberdade é alcançada com dinheiro e poder. As mulheres têm mais poder hoje, depois de quase uma década do movimento feminista?

Beauvoir — No sentido em que você pergunta, não. As intelectuais, mulheres jovens que estão dispostas a correr o risco de serem marginalizadas, as filhas de ricos, quando estão dispostas e são capazes de romper com os valores de seus pais: essas mulheres sim, são mais livres. Isto é, por causa de seu nível de educação, estilo de vida, ou recursos financeiros, essas mulheres conseguem escapar de uma sociedade competitiva, viver em comunidades ou à margem, e desenvolver relações com outras mulheres similares a elas ou homens sensíveis aos seus problemas, e, dessa forma, se sentirem mais livres. Em outras palavras, como indivíduos, as mulheres que podem se sustentar, seja lá por qual motivo, conseguem se sentir mais livres. Mas como classe, as mulheres certamente não são mais livres, precisamente porque, como você diz, elas não têm poder econômico. Atualmente, há todo o tipo de estatística para provar que o número de mulheres advogadas, médicas, publicitárias, etc., está crescendo. Mas essas estatísticas são enganosas. O número de advogadas e executivas poderosas não aumentou. Quantas advogadas podem pegar um telefone e ligar para um juiz ou oficial do governo para marcar um horário ou pedir favores especiais? Essas mulheres têm que operar através de seus equivalentes homens, já estabelecidos. Médicas? Quantas são cirurgiãs, diretoras de hospital? Mulheres no governo? Sim, poucas. Na França nós temos duas. Uma, séria, trabalhadora, Simone Weil, é ministra da saúde. A outra, Françoise Giroud, que é a ministra responsável pelas questões femininas é basicamente uma peça de mostruário, destinada a aplacar as necessidades das mulheres burguesas de integração no sistema. Mas quantas mulheres controlam verbas no Senado? Quantas mulheres controlam a política editorial de jornais? Quantas são juízas? Quantas são presidentes de banco, capazes de financiar empresas? Só porque há muito mais mulheres em posições de nível médio, como os jornalistas dizem, isso não quer dizer que elas têm poder. E até mesmo essas mulheres têm que jogar o jogo dos homens para serem bem-sucedidas. Agora, isso não quer dizer que eu não acredito que as mulheres tenham feito progresso na luta. Mas o progresso é resultado da ação de massa. Pense na nova lei de aborto proposta por Simone Weil, por exemplo. Os abortos não serão cobertos pelo programa de saúde nacional e, portanto, serão mais acessíveis para as ricas do que para as pobres, mas ainda assim, a lei certamente é um grande passo. No entanto, apesar de toda a seriedade com que Simone Weil lutou por essa lei, a razão pela qual ela pôde ser apresentada é porque milhares de mulheres se mobilizaram em toda a França por essa lei, porque milhares de mulheres assumiram publicamente que fizeram abortos (forçando o governo a processá-las ou a mudar a lei), porque milhares de médicos e de parteiras correram o risco de serem processados ao admitir que tinham realizado abortos, porque alguns foram processados e lutaram no tribunal pela causa, etc. O que estou dizendo é que, em ações de massa, as mulheres têm poder. Quanto mais as mulheres tomarem consciência da necessidade dessas ações de massa, mais progresso elas alcançarão. E, voltando ao caso das mulheres que podem financiar a busca da liberação individual, quanto mais ela puder influenciar suas amigas e irmãs, mais essa conscientização se espalhará, o que, por outro lado, quando frustrada pelo sistema, estimulará a ação de massa. É claro, quanto mais essa conscientização se espalhar, mais agressivos e violentos os homens se tornarão. Mas então, quanto mais agressivos forem os homens, mais as mulheres precisarão de outras mulheres para revidar, isto é, maior será a necessidade de ações de massa. Hoje em dia, a maioria dos operários do mundo capitalista está ciente da luta de classes, quer eles se denominem Marxistas ou não, de fato, quer eles sequer já tenham ouvido falar de Marx ou não. E assim deve acontecer na luta de sexos. E acontecerá.

Gerassi — Você me disse ano passado que estava pensando em escrever outro livro sobre mulheres, uma espécie de seqüência de O Segundo Sexo. Você vai escrevê-lo?

Beauvoir — Não. Em primeiro lugar, esse tipo de trabalho teria que resultar de um esforço coletivo. E, além disso, ele teria que se basear mais na prática do que na teoria. O Segundo Sexo foi pelo caminho inverso. Agora, isso não é mais válido. É na prática que hoje podemos ver como a luta de classes e a luta de sexos se intercalam, ou, pelo menos, como elas podem ser articuladas. Mas isso vale para todas as lutas atuais: nós temos que formular nossas teorias com base na prática, e não o contrário. O que se faz realmente necessário é que todo um grupo de mulheres, de todo tipo de país, reúna suas experiências de vida e que, a partir dessas experiências, nós possamos identificar os padrões com os quais as mulheres lidam em todos os lugares. E tem mais, essa informação deveria ser coletada de todas as classes, e isso é duas vezes mais difícil. Afinal, as mulheres que travam a luta pela libertação hoje em dia são, em sua maioria, intelectuais burguesas; as esposas de operários e até mesmo as operárias se mantêm presas ao sistema de valor da classe média. Tente, por exemplo, conversar com uma operária sobre os direitos das prostitutas e o respeito que se deve a elas. A maioria das operárias ficaria chocada com essa idéia. Conscientizar as operárias é um processo muito lento e necessita de muito tato. Eu sei que há extremistas do MLF que estão tentando fazer com que as esposas de operários se rebelem contra seus maridos, considerando-os opressores masculinos. Acho que isso é um erro. Uma esposa de operário, aqui na França pelo menos, não hesitará em responder: “mas o meu inimigo não é o meu marido, e sim meu patrão”. Até mesmo se ela tem que lavar as meias do marido e fazer o jantar dele depois de também ela ter passado todo o dia em alguma fábrica. É o mesmo nos Estados Unidos, onde as mulheres negras se recusaram a dar ouvidos às defensoras do movimento de libertação das mulheres porque elas eram brancas. Essas mulheres negras continuaram apoiando seus maridos negros apesar da exploração, simplesmente porque as pessoas que tentaram conscientizá-las sobre a exploração eram brancas. Gradualmente, no entanto, uma feminista burguesa consegue atingir uma esposa de operário, assim como nos Estados Unidos, hoje em dia, há algumas mulheres negras — muito poucas, eu admito — que dizem, “não, nós não queremos nos submeter à opressão de nossos homens sob o pretexto de que eles são negros e de que nós temos que lutar juntos contra os brancos; não, isso não é motivo para que nossos homens nos oprimam, só porque eles são nossos homens negros”.
No entanto, a luta de classes pode encorajar e, de fato, encoraja e promove a luta de sexos de maneiras bem concretas. Nos últimos anos, por exemplo, houve muitas greves aqui na França em fábricas onde os operários eram quase todos do sexo feminino. Estou pensando na greve da indústria têxtil em Troyes, no norte do país, ou na Nouvelles Galeries em Thionville, ou a famosa greve da Lip. Em cada caso, as operárias não só adquiriram uma nova consciência como também passaram a acreditar mais em seu poder, e essa atitude abalou o sistema machista que elas vivenciavam em casa. Na Lip, por exemplo, as mulheres tomaram a fábrica e se recusaram a evacuar o prédio apesar das ameaças da polícia de usar a força para tirá-las de lá. A princípio, seus maridos ficaram muito orgulhosos de suas esposas militantes. Os homens levaram comida, ajudaram a fazer cartazes para o piquete, etc. Mas quando as mulheres decidiram ser totalmente iguais aos poucos homens que também trabalhavam na Lip e que também participavam da greve, os problemas começaram a surgir. Os grevistas da Lip decidiram organizar turnos para vigiar a fábrica e impedir que a polícia invadisse. Isso significava serviço noturno. Oh, oh. Então, de repente, os maridos das grevistas ficaram incomodados. “Vocês podem fazer greve e piquete o quanto quiserem,” eles disseram, “mas somente durante o dia, à noite não. O que, serviço de vigilância noturno? Ah não! Dormir em turnos em grandes quartos coletivos? Ah não.” Naturalmente, as operárias resistiram. Elas tinham lutado por igualdade, não iriam desistir agora. Assim, elas se envolveram com duas lutas: a luta de classes contra os patrões da Lip, a polícia, o governo, etc., por um lado, e a luta de sexos contra seus próprios maridos. Sindicalistas da Lip contaram que as mulheres se transformaram completamente depois da greve, dizendo “uma coisa que eu aprendi disso tudo foi que nunca mais eu vou deixar meu marido fazer as vezes de patrão em casa. Agora eu sou contra todos os patrões.”

Gerassi — A sua conscientização sobre a velhice mudou quando você escreveu sobre isso, da mesma forma que a sua conscientização sobre ser mulher mudou ao escrever O Segundo Sexo?

Beauvoir — Na verdade, não. Eu descobri muitas coisas; aprendi muito sobre povos antigos. Mas não tomei consciência de minha velhice ao escrever o livro; na verdade foi a constatação de que eu estava velha que me motivou a escrever o livro, a princípio. Mas agora consigo me relacionar muito melhor com os idosos do que antes. Eu costumava ser muito mais severa. Agora compreendo que, quando uma pessoa idosa está muito suscetível, muito egoísta, ela está apenas se protegendo, criando mecanismos de defesa. Mas, veja bem, uma mulher pode passar a vida toda se recusando a encarar o fato de que ela é fundamentalmente, em termos de valores, experiência, e filosofia de vida, diferente dos homens. Mas é muito difícil não tomar consciência de que se está envelhecendo. Chega um momento em que você simplesmente sabe que tem que cruzar a linha ou que você já cruzou a linha. Hoje sei que nunca mais serei capaz de caminhar pelas montanhas a pé, que nunca mais andarei de bicicleta, que nunca mais terei relações com um homem. Eu tinha muito medo, ou, pelo menos, era muito apreensiva com relação à idade madura antes de alcançá-la. Então, quando ela chegou, quando eu soube que havia cruzado a linha, bem, foi muito mais fácil do que eu esperava. É claro que você tem que parar de olhar para trás. Mas acho que viver dia após dia está sendo muito mais fácil do que eu pensava. Mas eu soube que tinha cruzado a linha independente da minha pesquisa para o meu livro sobre a velhice. Trabalhar no livro simplesmente me ensinou a entender os idosos e a ser mais tolerante.

Gerassi — Em que você está trabalhando agora?

Beauvoir — Basicamente, em nada. Estou ajudando em um roteiro sobre, precisamente, a velhice, para um diretor sueco. Vou ajudar Sartre com seu projeto para televisão. Você sabe que ele assinou um contrato com a televisão nacional para fazer dez programas de uma hora, cada um, que irão ao ar a partir de outubro. Os programas serão sobre os 75 anos desse século e a relação de Sartre com os principais eventos. Mas não tenho planos de realizar nenhum projeto particular. Isso também é novo para mim. Eu costumava ter todo tipo de projetos na minha cabeça, mesmo quando estava trabalhando em algum livro específico.

Gerassi — Você escreveu que teve uma vida boa e não se arrepende de nada. Você sabia que há muitos casais que tomam sua vida com Sartre como modelo, especialmente no sentido de que vocês não tinham ciúmes um do outro, que tinham um relacionamento aberto, e que deu certo por 45 anos?

Beauvoir — Mas é ridículo nos usar como modelo. As pessoas têm que encontrar seu próprio estilo, sua própria estrutura. Sartre e eu tivemos muita sorte, mas nossa criação também tinha sido muito singular, excepcional. Nós nos conhecemos quando éramos bem jovens. Ele tinha 23 anos, eu 20. Nós ainda não estávamos formados, apesar de já estarmos moldados para sermos intelectuais, com motivações semelhantes. Para nós dois, a literatura tinha substituído a religião.

Gerassi — No entanto, vocês poderiam ter competido, se tornado rivais…

Beauvoir — É verdade. Personalidades semelhantes com ambições semelhantes freqüentemente competem entre si. Mas nós tínhamos outra coisa em comum: havíamos sido criados de forma semelhante em nossa juventude. Nossas infâncias tinham sido muito sólidas, muito seguras. Isso significa que nenhum de nós dois tinha que provar o que quer que fosse para nós mesmos nem para os outros. Éramos confiantes. É como se tudo estivesse predestinado desde o início. Meus pais agiam como se nada no universo pudesse alterar o curso normal da minha vida, que era ser uma pequena intelectual burguesa. O avô de Sartre, que o criou — você sabe que seu pai morreu quando ele ainda era um bebê — se comportava da mesma forma, absolutamente convencido de que Sartre cresceria para ser um professor universitário. E assim aconteceu. Dessa forma, mesmo quando ocorriam crises, como quando a mãe de Sartre se casou novamente quando ele tinha 12-13 anos, ou como quando eu tinha 14-15 anos e percebi que meu pai não me amava mais como eu esperava que ele amasse, a firmeza de nossas infâncias nos fez exteriorizar essas crises. Foram eles que mudaram, não nós. Éramos muito bem-estruturados para nos sentirmos inseguros. Além disso, independente de algumas divergências, estávamos, fundamentalmente, de acordo com os planos traçados para nós por nossos pais. Eles queriam que fôssemos intelectuais, que lêssemos, estudássemos, ensinássemos, e nós concordávamos, portanto, foi o que fizemos. Assim, quando Sartre e eu nos conhecemos, não apenas nossos passados se fundiram como também nossa firmeza, nossas convicções individuais, de que éramos o que fomos feitos para ser. Nesse contexto, não podíamos ser rivais. Então, à medida que o meu relacionamento com Sartre se aprofundou, me tornei convicta de que eu era insubstituível em sua vida, e ele na minha. Em outras palavras, nós estávamos totalmente seguros de que nosso relacionamento também era totalmente sólido, novamente, predestinado, apesar de, na época, não levarmos essa palavra a sério. Quando se é tão confiante, é fácil não sentir ciúmes. Mas é claro que se eu achasse que outra mulher representasse o mesmo papel que eu na vida de Sartre, eu teria tido ciúmes.

Gerassi — Como você vê o resto de sua vida?

Beauvoir — Eu não vejo. Imagino que, em breve, começarei a escrever novamente, voltarei ao trabalho, mas ainda não tenho idéia do que farei. Sei que continuarei a trabalhar com as mulheres, nos grupos feministas, na Liga das Mulheres, e que continuarei a militar de alguma forma, da forma que eu puder, na — vamos chamá-la assim — luta revolucionária. E sei que permanecerei com Sartre até que um de nós dois morra. Mas, você sabe, ele está com 70 anos agora e eu com 67.

Gerassi — Você está otimista? Acha que as mudanças pelas quais está lutando se realizarão?

Beauvoir — Eu não sei. De qualquer forma, não durante a minha vida. Talvez em quatro gerações. Não sei quanto à revolução. Mas as mudanças pelas quais as mulheres estão lutando, essas sim, tenho certeza de que, a longo prazo, as mulheres vencerão.”

Originalmente publicado em: Interviewed by John Gerassi, Society , Jan.-Feb. 1976, pp. 79-85
contioutra.com - "O segundo sexo 25 anos depois", entrevista histórica (1976) com Simone de Beauvoir

 

 

 

Você já ganhou algum “elefante branco”? Saiba a origem da expressão

Você já ganhou algum “elefante branco”? Saiba a origem da expressão

ELEFANTE BRANCO

No antigo Sião (hoje Tailândia), quando o rei antipatizava com um cortesão, presenteava-o com um elefante branco, que era um animal sagrado. A vítima evidentemente não podia cometer a grosseria de recusar o mimo real. E , assim, ficava com a obrigação de cuidar do animal, cujo porte, apetite e longevidade arruínam qualquer um que não seja dono de um circo. Pior, o elefante tinha de ser enfeitado e mantido com soberbo aspecto para não irritar o rei, que fazia visitas de surpresa para pessoalmente fiscalizar o tratamento dispensado ao seu presente. Dizem que, quando o cortesão era muito, mas muito chato, o rei brindava-o com gêmeos.

A expressão ficou com o sentido de presente incômodo e ganhou popularidade a partir do século XVIII, com a comédia francesa “L” Elephant Du Roi Du Siam”, de Ferdinand Lalou, transformada em opereta por Albert Henry Monnier e De Grooot.

Excerto do livro “A Casa da Mãe Joana”, de Reinaldo Pimenta – Editora Campus
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O amor não morre quando a presença acaba

O amor não morre quando a presença acaba

Por Clara Baccarin

‘Dorme que passa’,

dizia a amiga, dizia a mãe, dizia a revista, a mulher na televisão, o livro de autoajuda de cabeceira.

E os olhos inchados e não passava nada, nada daquela história passava, nada dele passava. Passavam sim os dias, passavam rios de lágrimas, passavam as falas das pessoas que já não aguentavam mais falar que tudo passa, passavam mais noites mal dormidas e mais dias sem sentido e mais vontades repentinas rompidas por lembranças masoquistas. Passavam filmes, todos os filmes nossos passavam na minha cabeça, e se repetiam pelos dias em ininterruptas sessões, os dramas, as comédias, os água com açúcar, os épicos. E vinham doces amargar meus pensamentos.

‘Dorme que passa’

Como passa se no sono é onde ele mais habita? Sonho com tempos bonitos, acordo cega pela cortante luz da realidade. Aqui ele não está mais. Dormir não faz passar nada, dormir faz tudo permanecer. Então eu não dormia para ver se passava. E nem assim passava, eu conversava comigo mesma, eu tentava diferentes técnicas, aprendi a cantar alto quando seu sorriso surgia na minha cabeça, eu entrei na yoga, no cross fit, na aula de mandarim, no tinder. Tudo para criar barulhos mentais que pichassem sua imagem, que ensurdecessem a eloquência do seu silêncio, que recolorissem as paredes do meu coração tatuadas com seu nome.

E não passava, porque eu não deixava, porque quer saber, eu não queria que passasse, a gente não tem que morrer na mesma hora que a outra pessoa. Não era só a presença de seu corpo que fazia nossa história. O amor não se alimenta apenas de contatos, beijos, falas, mãos dadas, cheiros (quase choro de novo ao lembrar do seu cheiro). O amor se alimenta de sonhos, de lembranças, de pensamentos. O amor é planta que sobrevive muito tempo depois de cortada as raízes, as fontes de alimentação.

‘Dorme que passa’

Não passa, mas hoje eu durmo, porque dormindo eu o reencontro, em cada esquina de cada um dos meus sonhos. E eu já não desvio das esquinas, dos sonhos, da saudade, do amor.

Digo a mim mesma:

‘Dorme e deixa o amor crescer, deixa o amor respirar, deixa o amor ser até aonde ele conseguir. Deixa ele ser assim mesmo, triste, entre risos e lágrimas, mas deixa ele estar, sereno, até que se dilua nos dias, no meio de outras coisas boas que surgirem. Devagar, no seu compasso, ele fica um pouco, ele passa um pouco.’

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