Três mini-contos de Franz Kafka

Três mini-contos de Franz Kafka

A PERGUNTA
Só a nossa noção de tempo nos faz pensar em Juízo Final, quando é de justiça sumária que se trata.
O suicida é como o prisioneiro que, vendo armar-se uma forca no pátio, imagina que é para ele – foge de sua cela, à noite, desce ao pátio e pendura-se ao baraço.
Os mártires não menosprezam o corpo, apenas fazem-no pregar à cruz: é no que estão de acordo com seus adversários.
As portas são inumeráveis, a saída é uma só, mas as possibilidades de saída são tão numerosas quanto as portas. Há um propósito e nenhum caminho: o que denominamos caminho não passa de vacilação.
Os leopardos invadem o Templo e esvaziam os vasos sagrados… O fato não cessa de reproduzir-se; até que se chega a prever o momento exato e isso entra a fazer parte do ritual.
Os bons vão a passo certo; os outros, ignorando-os inteiramente, dançam à volta deles a coreografia da hora que passa.
Outrora eu não podia compreender que minhas perguntas não obtivessem resposta; hoje em dia não compreendo que jamais tivesse admitido a hipótese de formular perguntas… Bem, eu não acreditava então em coisa alguma – só fazia perguntar.

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Franz Kafka, nascido no dia 03 de julho de 1883.

 O PIÃO
Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E se via um menino que tinha um pião já ficava à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as crianças fizessem o maior barulho e tentassem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião enquanto este ainda irava, ficava feliz, mas só por um instante, depois atirava-o ao chão e ia embora. Na verdade, acreditava que o conhecimento de qualquer insignificância, por exemplo, o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo assim só se ocupava do pião rodando. E sempre que se realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que agora ia conseguir; e se o pião girava, a esperança se transformava em certeza enquanto corria até perder o fôlego atrás dele. Mas quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal e a gritaria das crianças – que ele até então não havia escutado e agora de repente penetrava nos seus ouvidos – afugentava-o dali e ele cambaleava como um pião lançado com um golpe sem jeito da fieira.

A PONTE
Eu era rígido e frio, eu era uma ponte; estendido sobre um precipício eu estava. Aquém estavam as pontas dos pés, além, as mãos, encravadas; no lodo quebradiço mordi, firmando-me. As pontas da minha casaca ondeavam aos meus lados. No fundo rumorejava o gelado arroio das trutas. Nenhum turista se extraviava até estas alturas intransitáveis, a ponte não figurava ainda nos mapas. Assim jazia eu e esperava; devia esperar. Nenhuma ponte que tenha sido construída alguma vez, pode deixar de ser ponte sem destruir-me. Foi certa vez, para o entardecer – se foi o primeiro, se foi o milésimo, não o sei – meus pensamentos andavam sempre confusos, giravam, sempre em círculo. Para o entardecer, no verão, obscuramente murmurava o arroio, quando ouvi o passo de um homem. A mim, a mim. Estira-te, ponte, coloca-te em posição, viga órfã de balaústres, sustém aquele que te foi confiado. Nivela imperceptivelmente a incerteza de seu passo, mas se cambaleia, dá-te a conhecer e, como um deus da montanha, atira-o à terra firme. Veio, golpeou-me com a ponta férrea de seu bastão, depois ergueu com ela as pontas de minha casaca e arrumou-as sobre mim. Com a ponta andou entre meu cabelo emaranhado e a deixou longo tempo ali dentro, olhando provavelmente com olhos selvagens ao seu redor. Mas então – quando eu sonhava atrás dele sobre montanhas e vales – saltou, caindo com ambos os pés na metade de meu corpo. Estremeci-me em meio da dor selvagem, ignorante de tudo o mais. Quem era? Uma criança? Um sonho? Um assaltante de estrada? Um suicida? Um tentador? Um destruidor? E voltei-me para vê-lo. A ponta de volta! Não me voltara ainda, e já me precipitava, precipitava-me e já estava dilacerado e varado nos pontiagudos calhaus que sempre me tinham olhado tão aprazivelmente da água veloz.

Em um mundo de extremos, caminho do meio é estrada deserta.

Em um mundo de extremos, caminho do meio é estrada deserta.

Por Josie Conti

Às vezes, parece que, para sobrevivermos emocionalmente, a melhor opção é nos alienarmos, mesmo que sazonalmente,  de algumas realidades. Assistir TV quase sempre destrói as esperanças no ser humano, ler as manchetes dos principais jornais e revistas é alimentar e reforçar o sensacionalismo. Opinar é lançar-se à jaula dos leões.

Tudo o que soa dissonante é imediatamente rechaçado e as reações são tão díspares que fica difícil acreditar que elas são provenientes da mesma origem. Mas, existe explicação para isso: a leitura do mundo nunca acontece antes de que as informações passem pelo crivo histórico e emocional de seu leitor. A interpretação é quase sempre tendenciosa e contaminada de si mesmo e, em nossa falta de humildade, quem interpreta diferente é considerado ignorante, é aquele que não entendeu, aquele com capacidade inferior.

contioutra.com - Em um mundo de extremos, caminho do meio é estrada deserta.Quando, entretanto, não vemos a diferença como uma afronta pessoal, as situações ficam leves e até cômicas. Uma dinâmica que eu inventei inspirada em técnicas projetivas e que, por gostar dos resultados, sempre usava em grupos era assim: Uma imagem da Monalisa era projetada na parede e eu pedia para que as pessoas pensassem consigo mesmas “Quando você vê a Monalisa, você acha que ela tem cara de quê? Que tipo de sentimentos ela transmite?”.

A questão não era saber quem pintou o quadro, as curiosidades que o envolviam, se alguém já o tinha visto pessoalmente ou não. O enfoque era um olhar pessoal e emocional. Como devem ter percebido, a própria pergunta que era feita já era feita de maneira leve para deixar fluir o que quer que viesse em resposta. Não existia certo ou errado.

Muitas vezes, pela primeira vez, as pessoas olhavam para um dos quadros mais famosos do mundo e pensavam na mulher “Monalisa” e no que ela transmitia a cada um e, como era de se esperar, eu ouvia uma infinidade de respostas para o que ela representava a cada um. Assim, a atividade acabava sendo, além de um exercício de observação, reconhecimento e respeito à diferença do olhar do outro, um grande momento lúdico e de descontração.

Do ponto de vista pessoal, meu interesse pelas pessoas costuma ser inversamente proporcional aos títulos que exaltam, as grandes verdades que apregoam e aos “amigos” que exibem. Creio que não há nada mais pobre do que alguém que precisa se valer de sua titulação para fazer uma afirmativa. Vejo com desconfiança a segurança emocional de quem usa de estratégias como essas para ornamentar seus nomes ou quer ter artistas para decorar suas fotos.

Entre os extremos, o caminho do meio tem se tornado uma estrada deserta, cena de filme de faroeste, onde rolam bolas de feno. Chego a ouvir a música de fundo.

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Preocupa-me também a surdez para com as entrelinhas. As pessoas estão tão fechadas em si e em suas visões de mundo que reagem mais a si mesmas que ao outro. É um efeito espelho. E, se a pessoa olha para o outro e só vê a si mesma, dificilmente perceberá as nuanças da relação. Os detalhes da fala, dos lapsos, da postura corporal, da mudança no tom de voz – que pode ser para mais sincera declaração de amor ou para a mais sagaz ironia, e, principalmente, do momento do outro que pode, no mínimo, merecer o respeito que a vivência em sociedade determina.

Para tentar ver o outro na maior completude possível, é necessário desligar-se um pouco de si, de suas convicções. Não é preciso olhar muito para perceber que a maioria das pessoas supervaloriza as suas próprias opiniões e gostos. É necessário sair da arrogância para ler um texto que vai além de um erro de digitação ou grafia. Quem lê um texto é só enxerga o “s” onde deveria haver o “z” me lembra aquelas pessoas que olham para alguém que carrega uma deficiência e só veem um “defeito”, não um ser humano. Será que não se pode corrigir sem o véu da superioridade?

É necessário o exercício da sensibilidade para enxergar o contexto,  a mensagem maior, a realidade que vai além do espelho. Por mais lindo que seja o nosso próprio reflexo, sempre haverá mais beleza e verdade em uma paisagem completa.

Poema em linha reta, de Fernando Pessoa

Poema em linha reta, de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

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As metáforas de Rubem Alves

As metáforas de Rubem Alves

“A metáfora é uma das mais poderosas formas de comunicação,pelo seu poder de quebrar resistências com histórias que levam as mensagens que você quer comunicar.”  Mundo das metáforas

Os contadores de histórias são exímios inventores de metáforas, pois necessitam sensibilizar por meio das mais belas comparações.

Abaixo, um apanhado de algumas das mais belas e inteligentes metáforas de Rubem Alves.

Juntar ou jogar fora, por Marina Colasanti

Juntar ou jogar fora, por Marina Colasanti

Todo dia aparece alguém querendo nos ensinar a viver. E como crianças bem educadas nos debruçamos sobre esses ensinamentos esperando aprender algo novo e útil capaz de renovar o brilho do nosso cotidiano.

Chega até nós agora o manual de arrumação da japonesa Marie Kondo, “A mágica da arrumação: a arte japonesa de colocar ordem na sua casa e na sua vida”. O título, quase tão longo e explicativo quanto um livro, seduziu milhões de pessoas no mundo inteiro ansiosas por transformar lares e vidas modestamente bagunçados em peças de design oriental.

E boa parte dos leitores já havia jogado no lixo mais da metade dos seus pertences, quando outra voz ergueu-se contestando o desapego. “Por que na vida deveríamos nos livrar de nossas coisas maravilhosas?” gritou Dominique Browning nas páginas do “The New York Times”.

Marie talvez possa ser considerada maníaca – aos 5 anos, em vez de brincar, arrumava os livros nas prateleiras da sua sala de aula – mas teve a sabedoria de usar a mania – chegou a desmaiar de angústia por não saber, exatamente, o que guardar e o que passar adiante- como ferramenta de afirmação e, por que não, de lucro.

Dominique é igualmente categórica, embora mais maleável: “Está na hora de celebrar a delicada arte da bagunça.”

Nós, colhidos entre as duas, temos direito de reivindicar a pluralidade.

Ordem ou desordem – ou acúmulo e desapego – não são somente uma atitude. São também uma tendência e o resultado de imposições sociais. São ligadas a circunstâncias biográficas e a contas bancárias. Têm a ver com cultura e clima.

Em recente viagem a Belo Horizonte ganhei um livro estupendo, “A arte de colecionar”. Páginas e páginas de conjuntos de objetos de determinado tipo. A coleção, entretanto, é apenas a forma mais sofisticada e artística do acúmulo. Conheço apartamentos submersos em corujas ou pinguins de geladeira, e me extasio na casa de meus amigos colecionadores de arte, onde não há centímetro de parede disponível. Um deles, ao não dispor mais de espaço, prendeu os quadros contra o teto. E nenhum colecionador para de adquirir novas peças.

Gente rica compra muito, e se desfaz de muita coisa. Gente pobre quase não compra, e não joga nada fora porque tudo pode vir a servir. Os novos ricos precisam exibir, e estão sempre em busca de elementos que testemunhem sua nova condição. A sociedade de consumo estimula o acúmulo e não o desapego, mas basta bater crise econômica para que pensemos mais antes de nos desfazer de qualquer coisa, e calculemos mais antes de comprá-la.

Marie nasceu para arrumar, assim como Dominique se sente mais à vontade em alguma “bagunça”. A ciência não garante, mas a observação nos diz que arrumação ou desordem vêm também no DNA. A educação conta, como em tudo, mas não é tão definitiva como as mães gostariam; vi crescer um casal de irmãos, ele desde sempre grande arrumador de suas gavetas e roupas, enquanto para ela bastava qualquer coisa em qualquer cabide.

Os povos nômades não poderiam juntar muitas coisas, mas juntam. Quem mora em espaço pequeno não deveria ter mais do que o essencial, mas tem. O despojamento – mais do que apenas a ordem – é um requinte que se alcança ou através da arte ou através da espiritualização. Ou mesmo através da mania.

Fonte: Blog pessoal de Marina Colasanti

Um berço para uma borboleta

Um berço para uma borboleta

Por Lúcia Costa

O menino de seis anos encontra uma borboleta morta no para-choque  do carro do pai e pergunta:

_ Pai, por que essa borboleta morreu?

_ Ah, filho, ela foi atraída pela luz do carro, durante à noite, quando voltávamos da casa da vovó e chocou-se com o para-choque.

_ E elas não dormem durante à noite, pai?

_ Borboletas não dormem,  Miguel.

_ Então por que a gente não dá o bercinho de Giovana a ela? É só colocar ali no quintal e desligar a luz, pronto. Elas dormem e não morrem.

_ Borboletas não precisam de berço para dormir, filho. Elas são bichos, entende, BICHOS?!

_ Como sabe que não precisam, pai? O senhor já fez algum bercinho para uma borboleta? Por acaso conhece alguém que faça esse serviço?

O pai calou-se enquanto o filho o olhava fixamente. Esperava uma resposta…  O menino começou a pensar em como seria o bercinho, quem embalaria o sono da borboleta. Chegou a ver uma libélula cantarolando uma música feliz. Um véu azul poderia proteger a borboletinha de insetos enquanto dormia, pensava.

O homem estava imóvel. As palavras sumiram. Deu a volta por trás do veículo e entrou em casa. Sentou-se e também ficou a imaginar como seria um berço para borboletas.

Miguel continuava a pensar e até já imaginava pijaminhas para borboletas. Deteve-se em seus pensamentos enquanto continuava a recolher, com todo cuidado, as borboletas mortas no para-choque.

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A crônica de Zeca Camargo e o desrespeito aos lutos possíveis

A crônica de Zeca Camargo e o desrespeito aos lutos possíveis

Por Josie Conti

Depois da morte de Cristiano Araújo e do desrespeito com seu corpo, da liberação do casamento gay e das bandeiras coloridas no Facebook, a sequência de polêmicas que dividem seriamente opiniões segue agora com a reação pública à crônica de Zeca Camargo (final da matéria) que retoma a morte do cantor de forma irônica e desrespeitosa, ao comparar a comoção pública que mobilizou a população e a mídia nacional com o fenômeno dos livros para colorir ocorrido há alguns meses.

Ele inicia sua crítica de maneira interessante ao identificar a necessidade de catarse que as pessoas carregam em si. A catarse seria aquele momento em que sentimentos reprimidos encontram vazão. Seria aquele momento em que, no luto de um conhecido, choramos os nossos mortos, as nossas próprias perdas. Por outro lado, também seria possível identificar a catarse quando nos orgulhamos de nossos ídolos que conquistam grandes vitórias nacionais, são campeões pelo Brasil e nós, como brasileiros, também nos sentimos um pouco vitoriosos. Explode em nós, nesses momentos, também sentimentos de vitória e, naquele dia, apesar de todas as mazelas da vida, nós somos os campeões.

Zeca Camargo questiona a qualidade dos ídolos atuais, o que também não seria exatamente um problema se, ao fazê-lo, não tivesse usado do momento mais inoportuno que se poderia imaginar: a morte do ídolo de alguém, o espaço do luto de milhares. Se não tivesse comparado com desrespeito um jovem que teve a vida abreviada por uma catástrofe e que, além de morto, teve as imagens de seu corpo divulgadas nas mídias.

Zeca Camargo não percebeu que, no tempo inadequado de sua fala, mais uma vez, o jovem cantor teve sua memória profanada. Não teve a sensibilidade de ouvir o choro da população que queria chorar a morte dos jovens e, mais do que isso, a morte de um jovem do interior que deu certo e fazia sucesso, que ganhava dinheiro e tinha centenas de milhares de fãs – sonho de um povo que, no fundo, também quer ser reconhecido.

Comparar uma morte recente, seja de quem for, a um livro de colorir, foi uma atitude fria e desumana. A crítica racional do jornalista desconsiderou o sentimento de uma nação que escolheu seu ídolo naquele momento e que, bom ou mau (isso não cabe a ele julgar), foi o luto que deu vazão aos sentimentos que precisavam ser expressos, foi o luto possível.

Penso que, se o jornalista quer ver a melhora da educação de um povo e de seus ídolos, talvez pudesse começar por respeitar os sentimentos daqueles que choram.

Abaixo a crônica para quem ainda não viu.

Nós nos conectamos na vulnerabilidade

Nós nos conectamos na vulnerabilidade

Por Tatiana Nicz

Em algum momento do ano passado entrei em contato com o trabalho da Brené Brown, ela é uma pesquisadora americana que dedicou mais de dez anos de sua vida pesquisando temas como vergonha, vulnerabilidade, criatividade e autenticidade. Enquanto pesquisava ela entrevistou centenas de pessoas tentando entender o que exatamente diferenciava as pessoas que ela intitulou “wholehearted” (que alcançaram plenitude) com pessoas que estão emocionalmente miseráveis. E o que ela descobriu é que uma vida “wholehearted” está ligada à nossa capacidade de sentir empatia e à nossa capacidade de sermos vulneráveis.

Eu devorei o trabalho dela e foi o que me ajudou a entender que eu podia e devia ser vulnerável em uma fase em que precisei de acolhimento. Depois que entendi isso e me vi totalmente vulnerável, todos os tipos de relacionamentos na minha vida mudaram. Não foi um processo fácil, porque a nossa cultura não nos convida a ser vulnerável. Nos dias de hoje erroneamente confundimos vulnerabilidade com fraqueza, então para evitar esse rótulo e muita exposição colocamos máscaras e almejamos perfeição. E assim, estamos todos sempre muito bem, lindos, felizes.

O que não entendemos é que em um ambiente permeado pela “perfeição” não existe espaço para conexão. Certamente as melhores conversas que tive na vida e os relacionamentos mais profundos não começaram com “estou bem”. Quando (fingimos que) tudo está bem, nós evitamos falar de nós mesmos e então falamos sobre as coisas: sobre religião, sobre política, sobre a novela, sobre o tempo, dessa maneira não ficamos expostos sob o refletor.

A minha profissão hoje me faz um convite todos os dias e lança um desafio bem interessante nesse sentido. Na nossa cultura, existe uma tendência muito grande de olhar para o professor como alguém que não pode errar. O que tento trazer para minhas aulas é o contrário disso, um ambiente onde todos possam errar e fiquem bem com isso, inclusive eu. O fato de eu estar lá não tem a ver com eu saber tudo, tem muito mais a ver com as experiências que adquiri na vida e um pouco mais de treino e conhecimento sobre o tema, nada disso me torna perfeita.

Trabalhar com crianças é interessante porque elas nos ensinam sobre coisas que são naturais de nós seres humanos e que de alguma maneira esquecemos, saber ser vulnerável e sentir empatia são algumas delas. Esses dias um aluno da turma de kids corrigiu a pronúncia da colega, eu pedi para que eles deixassem esse trabalho para mim e completei com “tudo bem errar, todo mundo erra!”, uma delas então disse: “é verdade os adultos erram e erram muito.” e completou com um “até a teacher erra!”. Senti que venci o desafio a que me propus. Na pureza delas, naturalmente elas já sabem que errar é de fato humano, parece que nós adultos andamos meio esquecidos disso.

Acho que nesse sentido sou parecida com elas, sempre fui péssima em maquiar sentimentos, nunca entendi como as pessoas conseguem esconder o que sentem, fingir que tudo está bem quando não esta, engolir o choro, falar apenas de assuntos amenos. Talvez por ter essa capacidade de expressar minhas vulnerabilidades que eu tenha construído grandes amizades ao longo da vida. E de fato almejo um mundo onde as pessoas possam falar de seus medos, inseguranças, erros, sem que se sintam envergonhadas.

Eu não tenho vergonha de contar minha história, mas o que aprendi com o tempo é que existem pessoas que não merecem escutá-la, é importante que saibamos disso para que possamos nos preservar de julgamentos e comentários pouco acolhedores e que possam nos fazer sentir pior.

Apesar de entender isso, acho um tanto triste que tenhamos que manter tanto controle sob o que queremos expressar. Acho também triste a maneira como tornamos sentimentos tão genuínos em sinal de fraqueza. Nesse sentido, homossexualidade se tornou “anomalia”, homens não podem chorar e mulheres solteiras não devem expressar sua vontade de construir uma família sem que isso seja visto como sinal de desespero, carência ou fraqueza.

Em minha opinião o que não dá para construir mesmo é uma vida plena sem que possamos ser quem somos e expressar nossos sentimentos, desejos, medos e inseguranças para quem quer que seja e sermos amados por isso e não apesar disso e, claro, também acolher isso no outro. Engana-se quem pensa que sentir-se vulnerável é sinal de fraqueza. Estar vulnerável não tem a ver com fraqueza, mas sim com coragem.

Eu quero viver em um mundo cheio de pessoas com essa coragem, que queiram ser vistos e se coloquem sob os holofotes, um mundo onde alguém possa assumir sua opção sexual sem medo de ser condenado, onde os homens chorem sem se sentirem fracos e onde as mulheres possam falar de coisas tão bonitas como maternidade e família sem que sintam vergonha por isso.

Sei que não posso mudar como o outro vai receber minha história e fazer com que ele entenda que ser vulnerável é ser humano, mas posso escolher me permitir estar vulnerável independente do que ele pense e, principalmente, cada dia mais me cercar apenas de pessoas que mereçam escutar minha história e que queiram compartilhar as suas. E enquanto professora também posso escolher construir um ambiente em sala de aula onde meus alunos se sintam seguros em suas inseguranças e que possamos acolher todos os erros com carinho, inclusive os meus.

Eu termino esse (longo) texto da mesma maneira que a Brené Brown termina uma de suas palestras que tanto me tocou: “Se queremos encontrar o caminho de volta uns para os outros, vulnerabilidade é o caminho.”

Sou cristão e estou triste com o cristianismo popular, por Alan Lima

Sou cristão e estou triste com o cristianismo popular, por Alan Lima

Por Alan Lima

Ao que me parece ser cristão é ir contra o casamento civil igualitário. Ser contra a adoção de crianças por casais homoafetivos e combatê-los em sua “proliferação.” Também é brigar se eles resolvem beijar em público. Ou seja, atrapalhar suas vidas ao máximo possível.

Sou cristão e estou triste com o cristianismo popular.

Vocês me perdoem, eu não posso achar esse sentimento divino; a vontade de impor ao mundo uma crença na base do “penso isso, pense também”. Fazer da fé mero combate de ideologia é o oposto da essência do cristianismo; Deus encarnado num filho de carpinteiro, não no imperador.

Se dois adultos se conhecem e por algum motivo resolvem casar, e nenhum deles sou eu, a coisa mais irrelevante neste caso é minha opinião ou a do Estado. Atrapalhar um casamento que não estamos envolvidos é o cúmulo da invasão da vida alheia.

A família “tradicional” brasileira morre de fome nas favelas, nas secas, passa mal nos hospitais públicos e tem uma escola péssima com professores mal pagos. Se você é a favor da família “tradicional” brasileira mesmo, deveria rever as causas de sua destruição. Nenhuma delas é o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Pode ser que você pense o contrário e eu seja só mais um “herege” falando sobre esse assunto. Tudo bem, eu não quero te convencer de nada. Mas se ser cristão autêntico é querer fazer engolir, o que só se desce mastigando, eu sou uma heresia cantando um sambinha na praça.

Conheça 6 transtornos com nomes inspirados em personagens da literatura

Conheça 6 transtornos com nomes inspirados em personagens da literatura

Por Jessica Soares

Caso personagens da literatura fossem parar no divã, suas histórias certamente intrigariam qualquer psiquiatra. Para além de aventuras e desventuras vividas nas páginas, estas personas literárias estão cheias de entrelinhas, conflitos, nuances e contradições. Não por acaso, o mundo literário se confunde com o mundo real no momento do diagnóstico: conheça 6 transtornos com nomes inspirados em personagens da literatura:

1. Síndrome de Alice no País das Maravilhas

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Não é preciso seguir o coelho branco para visitar o estranho País das Maravilhas – para algumas pessoas, essa ~viagem~ faz parte do dia a dia. Em 1955, o psiquiatra J. Todd descreveu esta condição neurológica que compromete os sentidos e a percepção, e tem efeitos que muito se assemelham às experiências da personagem do escritor Lewis Carroll. No livro, de 1865, Alice cresce e encolhe com ajuda de alguns cogumelos alimentos e bebidas que encontra pelo seu caminho. É assim que os afetados pela síndrome se sentem: o doente fica confuso em relação ao tamanho e forma do próprio corpo, sentindo que está aumentando ou diminuindo de tamanho, por exemplo. A confusão também se dá quanto aos formatos e dimensões dos objetos ao seu redor. A condição teria ligação com enxaquecas e com epilepsia, mas estudos que determinam suas causas ainda estão sendo conduzidos.

2. Síndrome de Peter Pan

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Em 1911, J.M. Barrie nos levou em um passeio pela Terra do Nunca, lar encantado de Capitão Gancho, de Sininho, dos Garotos Perdidos e, claro, de Peter Pan, o menino que não queria crescer. Não por acaso, é deste garoto levado que a psicologia pegou emprestado o nome para a condição descrita e popularizada pelo escritor Dr. Dan Kiley. A Síndrome de Peter Pan descreve adultos que nunca conseguiram dar adeus à infância. “Ele é um homem devido a sua idade e um garoto por seus atos”, descreve Kiley em livro publicado em 1983. Considerada uma psicopatologia, a condição ainda não foi incluída na lista de distúrbios da Organização Mundial da Saúde.

3. Síndrome de Rapunzel

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Você com certeza se lembra dela: Rapunzel é a heroína do conto escrito pelos Irmãos Grimm e publicado em 1812. Inconfundível, a jovem princesa, aprisionada em uma torre sem portas ou escadas, possui loooongos e belos cabelos dourados. Como você pode imaginar, as madeixas também são uma parte importante da rara síndrome de mesmo nome, descrita em 1968. A Síndrome de Rapunzel está ligada à tricotilomania, transtorno que torna irresistível a vontade de arrancar os próprios cabelos e muitas vezes está associado também à tricofagia: a compulsão pela ingestão destes fios. O problema se agrava porque o corpo humano não é capaz de digerir o cabelo, que pode acabar se acumulando entre o estômago e o intestino delgado. Aí, já viu: caso essa grande massa (chamada tricobezoar, em “cientifiquês”) vá crescendo até chegar até o intestino delgado, acaba o obstruindo, tornando necessária sua remoção cirúrgica.

4. Síndrome de Dorian Gray

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Obcecado com sua aparência, Dorian Gray, o perturbado e narcisista personagem criado por Oscar Wilde, faz escolhas impensáveis para manter sua juventude eterna. O Retrato de Dorian Gray, publicado em 1890, inspirou a descrição da condição que aflige àqueles que também não lidam nada bem com a ideia do envelhecimento. Ainda não incluída no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (a bíblia dos psiquiatras), a síndrome descrita no International Journal of Clinical Pharmacology and Therapeutics, em 2001, aponta uma das mais comuns “fontes da juventude eterna” procuradas pelos afligidos pela condição: cirurgias plásticas e drogas milagrosas que prometem esconder a passagem dos anos.

5. Síndrome de Huckleberry Finn

contioutra.com - Conheça 6 transtornos com nomes inspirados em personagens da literaturaHuck não teve uma infância feliz. O garoto, personagem de As Aventuras de Huckleberry Finn, livro escrito por Mark Twain em 1884, nunca conheceu sua mãe e era constantemente abandonado por seu pai.

Ao invés de ir para escola, Huck cabulava aulas e fugia de qualquer obrigação. E, segundo estudos, este tipo de comportamento na infância pode ter impactos ao longo da vida. Vem daí o nome da Síndrome de Huckleberry Finn, que faz uma ligação entre a infância problemática e atitudes erráticas na vida adulta – como a instabilidade profissional, por exemplo.

Segundo o Steadman’s Medical Eponyms, a condição seria despertada por sentimentos de rejeição.

6. Síndrome de Otelo

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É verdade o que você ouviu por aí: o ciúme pode mesmo ser uma doença. O sentimento angustiante tem uma explicação clínica – é causado pelo medo da perda de um objeto amado. Até aí, tudo bem. Mas, quando o ciúme passa a gerar perturbações e sofrimentos sérios, deixa de ser considerado normal. Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, quem sofre do Transtorno Delirante Paranóico do tipo ciumento tem convicção, sem motivo justo ou evidente, de que está sendo traído pelo cônjuge ou parceiro. O ciúme patológico e delirante se enquadra na Síndrome de Otelo, cujo nome remete à obra escrita por William Shakespeare em 1603. Em Otelo, o Mouro de Veneza, o personagem-título é devorado pelas suspeitas infundadas de que sua esposa, Desdêmona, estaria o traindo. Se você não sabe como termina a história, uma dica: ninguém vive feliz para sempre neste conto.

Nota da página: Matéria publicada em 2013 nas revista Superinteressante e republicada em várias outras, inclusive RFIDBrasil

Um nó no lençol

Um nó no lençol

Considerava que, embora a maioria dos pais e mães daquela comunidade trabalhassem fora, deviam encontrar tempo para se dedicarem e compreenderem os filhos.

A diretora ficou muito surpreendida quando um pai se levantou e explicou, de forma humilde, que não tinha tempo de falar nem de ver o filho durante a semana pois, quando ele saía para trabalhar, o filho ainda estava a dormir e, quando voltava do trabalho, o garoto já não estava acordado.

Explicou, ainda, que tinha de trabalhar assim para sustentar a família, mas que ficava angustiado por não ter tempo para o filho e que tentava redimir-se indo beijá-lo todas as noites quando chegava a casa.

E, para que o filho soubesse da sua presença, dava um nó na ponta do lençol que o cobria.

Fazia isto religiosamente todas as noites quando o beijava.

Quando o filho acordava e via o nó, sabia assim que o pai tinha lá estado e o tinha beijado.

O nó era o meio de comunicação entre eles.

A diretora emocionou-se com a história e ficou surpreendida quando constatou que o filho deste pai era um dos melhores alunos da escola!

O fato faz-nos refletir sobre as muitas maneiras de as pessoas estarem presentes e de se comunicarem umas com as outras

Este pai encontrou a sua, simples mas eficiente.

E o mais importante é que o filho percebia, através do nó afetivo, o que o pai lhe queria dizer.

Gestos simples, como um beijo e um nó na ponta do lençol, valiam para aquele filho muito mais do que os presentes ou as desculpas vazias.

É por esta razão que um beijo cura a dor de cabeça, o arranhão no joelho, o medo do escuro.

As pessoas podem não entender o significado de muitas palavras, mas SABEM registar um gesto de amor.
Mesmo que esse gesto seja apenas um nó num lençol…

Autor desconhecido

contioutra.com - Um nó no lençol

Fonte indicada Coisas para crianças 

A “Ilha das flores” e o casamento gay nos Estados Unidos

A “Ilha das flores” e o casamento gay nos Estados Unidos

Quando menina, eu vi um documentário de que jamais me esquecerei: “A ilha das flores”. Era a história de um tomate. O tal tomate possuía algum defeito que o fez ser jogado no lixo. Fora encontrado por um cuidador de porcos e novamente rejeitado, voltando a ser jogado no lixo. O tomate é, então,  encontrado por uma criança, em um lixão a céu aberto. E assim, o tomate que foi jogado fora por ser imprestável, que foi rejeitado como inservível aos porcos passa a ser a sagrada refeição daquela criança.

Eu sempre fui uma pessoa inconformada. Minha face serena e meus olhos doces camuflam tempestades interiores. Mares revoltos, gritos silenciados, dores petrificadas desde os primórdios da minha existência. Ver um vídeo como esse, aos 10 anos, causou-me e ainda causa intenso sofrimento.

Doía-me mais porque eu bem sabia que aquela história não era fruto da mente criativa do produtor do filme. Na escola em que eu estudava, pública e da periferia de uma cidade interiorana deste nosso Brasil, a merenda escolar não servia apenas aos alunos. Após o nosso lanche, entrávamos para a sala de aula e, no portão, forma-se uma longa fila. Eram os irmãozinhos, crianças abaixo da idade escolar, que aguardavam para, caso sobrasse lanche, também comerem.

Hoje contemplei algo que me fez recordar de todas essas histórias. Pessoas de todo o mundo celebraram o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos. Cada qual celebrou a seu modo e, no Facebook, colocando as cores do arco-íris na foto de perfil. Alguns, discordando da referida celebração, utilizaram a foto de uma criança africana esfomeada, também nas cores do arco-íris, com o seguinte dizer: “O dia que a nação se unir por essa causa, me chama que eu quero participar”.

Por vezes acho que a hipocrisia e a vileza humana são imensuráveis. Esses indivíduos que, em sua maioria, se autoproclamam “cristãos”, expõem a nudez cadavérica de uma criança como disfarce da homofobia de que são porta-vozes, sem pensar na dor e na fome que vitimam essa criança. Sem pensar na morte que lhe bate à porta, sem se colocar em seu lugar, sem ver a pequenez do seu próprio coração diante daquela cena e diz: “me chama que eu quero participar”. Como assim: “Me chama”?

São centenas e centenas de campanhas mundiais contra a fome, contra a desnutrição e de prevenção à mortalidade infantil. São milhares de ONGs que se dedicam a esse propósito. São inúmeras as instituições religiosas que se dedicam a isso. Há programas governamentais que visam exatamente à erradicação da miséria e da fome e a pessoa vem dizer que quando houver essa mobilização devemos chamá-la?

Eu faço aqui um desafio. Aposto que a maioria desses que postaram a foto da criança esfomeada é contra os programas governamentais de combate à fome. Afinal, a hipocrisia pseudo cristã é de grandeza infinita.

Num mundo onde porcos, não raro, são melhor alimentados que muitos humanos, ainda há religiosos que asseveram que a divindade se ocupa de orifícios penetráveis e não penetráveis, de amores abençoados e abomináveis, da existência de filhos e de meras criaturas. Talvez esse deus tenha mandado aos seus que estes amassem o próximo, mas não muito. Mas não sempre. Que amassem apenas quando lhes conviessem, como, por exemplo, quando estivessem despeitados pela alegria dos “hereges e abomináveis gays”.

Você tem uma religião? Tenho Deus, serve?

Você tem uma religião? Tenho Deus, serve?

Por Adriana Vitória

Outro dia, depois de 6 horas de trabalho intenso no Rio, deixei minha filha por um momento na casa da tia enquanto finalizava minha última reunião.

Quando sai, marquei com ela em frente ao carro onde estacionamos, perto de onde a deixei.

Nesse meio tempo fui à farmácia logo em frente.

Quando entrava, vi um menino de rua sentado. Ele se levantou e tinha cerca de 1,80. Veio em minha direção e me pediu dez reais  para comprar bala pra vender.

Naquele momento, de fato eu não tinha, mas disse a ele que quando trocasse o dinheiro lhe ajudaria.

A farmácia não tinha o que queria, então sai e ele estava bem ali, me esperando. Disse que tinha mais uma na outra esquina e me pediu para que o acompanhasse. Me senti um tanto acuada, talvez mais pelo seu tamanho. Apesar disso, ele tinha uma aparência frágil e desprotegida e estávamos no “baixo” Botafogo. Um bar atrás do outro, cinemas, livraria, gente pra todo lado. O máximo que poderia acontecer era, de fato, ele me roubar, mas mesmo assim resolvi  confiar e lá fomos nós.

Fomos conversando e perguntei a ele se estudava. Me disse que não, tinha abandonado os estudos. Perguntei onde morava. Na favela do Alemão, uma das mais perigosas do Rio.

Que droga! Não sabia mais o que pensar. Chegamos na farmácia e ele correu pra fila pra segurar um lugar pra mim: Vem, tia! A fila é aqui !

O lugar estava cheio e todos olharam para o menino alto e maltrapilho. Uns com receio, outros com desdém.

Aquilo me incomodou profundamente e foi o que bastou. Peguei-o pelo braço e decidi sair pra trocar o dinheiro. Ele não entendeu nada. Troquei o dinheiro no primeiro bar e sai.

Olhei bem pra ele. Era um rapaz magrinho e bonito com uns 17 anos, mas mesmo com a vida toda pela frente, já carregava no rosto um olhar vazio.

Não resisti e perguntei porque alguém tão jovem como ele vendia bala. Ele me respondeu que mal sabia ler e escrever.

Fiz um discurso gigante tentando fazer com que ele entendesse que seu destino só dependia dele e da sua força de vontade (certamente um discurso mais para mim mesma do que para ele).

Na verdade, nem sei se acreditava no que falava enquanto me esforçava tentando mudar o destino daquele menino, ao mesmo tempo me via em seu lugar.

Me via vivendo em um barraco frio, com fome, medo, sem ter o que vestir, sem dinheiro pra nada, sem escola, sem uma família acolhedora, sem um governo que se interesse, sem saber porque nasci, sem nada.
Quanto mais imaginava, mais engasgada ia ficando.

Que sensação horrível!

Até que, subitamente, sem conseguir ver uma saída, perguntei:

Você tem uma religião? E ele olhou bem pra mim e respondeu:

Tenho Deus, serve? Então nós rimos.

Apertei sua mão, lhe dei o dinheiro e falei:

Então confia nele e acredite. Você pode mudar tudo e é o único que pode acreditar em você. Não desista! Ele me agradeceu e nos despedimos.

A esta altura, minha amiga estava me ligando enlouquecida porque minha filha não tinha me encontrado e eu não atendia o celular.

Voltei correndo pra buscá-la enquanto pensava…. Quantos Tiagos conseguirão chegar à maioridade? Eu não sei se o Tiago que cruzou o meu caminho conseguirá, mas prefiro acreditar que sim.

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Para rapaz que conta piadas de graça na rua, sentido da vida é se motivar: ‘tento estar aqui e dar o meu melhor’

Para rapaz que conta piadas de graça na rua, sentido da vida é se motivar: ‘tento estar aqui e dar o meu melhor’

Por Gabriela Gasparin

Naquele começo de tarde, eu caminhava apressada pela Avenida Paulista em direção ao metrô Trianon quando li a seguinte frase: “Eu sou o Gabe. Conto piadas.” O cartaz estava colado numa mesinha na calçada. Sentado nela, um rapaz fazia anotações num caderno.

Foram poucos os segundos entre eu ler a frase, passar direto e decidir dar meia volta para conversar com o Gabe. Mesmo atrasada para um almoço, pensei que valeria a pena perder alguns minutinhos para perguntar o sentido da vida ao rapaz– no mínimo, eu poderia sair de lá dando risada.

Gabe é o apelido que Gabriel Cielici, de 28 anos, sempre teve. “Minha mãe me chama de Gabiroba, que é uma fruta da terra dela. Ela não me chama de Gabriel nem quando é sério. Quando é sério ela fala Gabe. Ninguém me chama de Gabriel. É Gabe.”

(aliás, aprendi com o meu xará que Gabiroba, palavra que muitas pessoas também usam para me chamar, é o nome de uma fruta. Eu achava que eram apenas sílabas que, juntas, formassem sons divertidos, mas sem significado)

Após a introdução sobre o apelido, eu quis entender o que levava Gabe a ficar sentado na calçada para contar piadas. E não era dinheiro. Eu cheguei a achar que o intuito seria ganhar alguns trocados, mas logo em seguida ele mostrou a outra cartolina que estava colada ao lado da primeira: “piadas de graça.”

Foi quando Gabe me explicou que é comediante de “stand up comedy”. Ele mora numa kitnet apertada no Centro de São Paulo. Para não ficar enclausurado trabalhando nos textos sozinho dentro de casa, foi para um lugar onde há alto fluxo de pessoas: pegou uma mesinha e foi escrever seus roteiros na rua. “As pessoas me viam e perguntavam o que eu estava fazendo. Eu sempre chegava e explicava a mesma história, dizia que conto piadas. As pessoas falavam, então conta uma piada!”

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“O comediante é aquele cara que está quieto no canto só observando e guardando a ironia para a cabeça dele”

Gabe acatou a sugestão, colocou o cartaz e passou a praticar na rua as piadas para contar à noite no bar. Faz isso há cerca de cinco meses. “Eu fico escrevendo e contando piada. Testando meu material ao mesmo tempo em que crio.” Além da Avenida Paulista ele costuma ficar também em outros lugares públicos de São Paulo, como o Parque do Ibirapuera ou o Minhocão.

E explicou que não cobra pelas piadas na rua porque não é o intuito final – ele já recebe pelas apresentações que faz à noite. Ele até colocou a plaquinha para dizer que é de graça para não inibir as pessoas de se aproximarem e pedir uma piada. “Eu realmente não quero nada em troca na rua, de dinheiro. Eu já faço meus shows para me sustentar. Aqui é mais para divulgar meu trabalho e ganhar experiência com as piadas que conto. Observo e absorvo bastante coisas à minha volta, eu gosto.”

Rir pra não chorar

Gabe me contou que é comediante autodidata. Chegou a começar várias faculdades, mas não concluiu nenhuma. “O mais próximo que eu cheguei de me formar foi um curso que eu fiz de roteiro na Academia Internacional de Cinema. É o que eu precisava para me dar a diretriz de escrita e conseguir passar os pensamentos melhor da minha cabeça para o papel. O resto a gente vai pegando no palco, vai pegando experiência, vai pegando o timing sozinho.”

Entre as faculdades que começou a fazer está Rádio e TV, Administração e Publicidade. Além disso, sempre trabalhou. Já foi vendedor de portas, professor de inglês e classificador internacional de café por cinco anos em Santos, no litoral de São Paulo, onde vivia.

Aí perdeu o emprego e, no mesmo período, levou um fora de uma namorada com quem estava há cinco anos. “Vendi meu carro pra viajar com ela para a Disney e ela terminou comigo. Tenho até hoje tatuado o M de Maíra.”

Gabe sempre gostou de stand up comedy. Aproveitou o ‘boom’ que ocorria na época no Brasil e começou a frequentar apresentações e a fazer participações rápidas. “Comecei a desenvolver meu próprio material e a falar das minhas coisas, da minha ex-namorada, do meu jeito de ver as coisas, e comecei a fazer piada.”

O comediante avaliou que o período depressivo que passou, com a perda do emprego e da namorada, de certa forma o estimulou a fazer piadas. “Ainda mais com a comédia. Eu sigo muito a linha que a comédia verdadeira vem de um lugar sombrio. O comediante nunca é aquele cara que é o engraçadinho da roda ou da sala, que todo mundo acha graça. O comediante é aquele cara que está quieto no canto só observando e guardando a ironia para a cabeça dele.”

Sentido da vida

Quando perguntei a Gabe qual é o sentido da vida, ele me disse logo de cara: “eu já entrei em depressão várias vezes sobre isso. Eu não sabia qual é a utilidade, a importância de eu estar aqui. Se existem alienígenas ou não, se eu vou deixar um legado ou não. É puro egoísmo meu eu querer deixar um legado, então eu vivo em conflito com isso.”

E a conclusão que chegou é que, se há ou não um sentido maior, tem que fazer o melhor que puder enquanto estiver aqui. “Eu tento estar aqui e dar o meu melhor.”

Revelou que pensava justamente nesse assunto naquele dia, ao olhar para cima. “Eu acho que quando a gente olha para cima com esperança em alguma coisa, ou em Deus, ou como eu, que acredito em alienígena, a gente está olhando meio que no espelho da gente. Sempre que alguém reza para alguma coisa, a pessoa não sabe mas ela está rezando para si mesma.”

Para Gabe, esse rezar para algo funciona como uma força motivacional. “Eu acredito que parte do sentido da vida é você se motivar bastante, porque quando a gente morre, morre e acabou. Pelo menos pelo o que sei. E morre e é frio. E não importa o quanto você seja importante, o mundo vai continuar sem você.”

Disse acreditar em energias que nos influenciam. “Quando eu coloco um pouco mais de fé, quando eu acredito, coloco fé em mim, eu acredito que energias ficam em volta de mim e ajuda. Acredito que quem se aplica nas coisas consegue, porque tem coisas que agem para o nosso bem quando a gente trabalha muito. É meio clichê falar isso, é meio vago, mas funciona.”

(Atualização: esqueci de colocar que saí de lá tão atrasada para o meu almoço (a conversa com Gabe demorou uns 20 minutos, mas isso pra quem está atrasada é muito tempo), que acabei não pedindo nenhuma piada. Tudo bem, fui embora dando risada mesmo assim, porque conheci uma figura e tanto e um sentido da vida a mais para ‘motivar’  meu dia)

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