Conheça a história que deu origem à animação “O conto da princesa Kaguya”

Conheça a história que deu origem à animação “O conto da princesa Kaguya”

Conheça a história que deu origem à animação japonesa “O conto da princesa Kaguya”, dirigida por Isao Takahata, e que estreou no Brasil no último dia 16 de julho:

“Um dia, enquanto caminhava pela floresta de bambu, um velho, sem filhos chamado Taketori no Okina (竹取翁? “O Velho que colhe Bambu”) se deparou com um misterioso e brilhante talo de bambu. Depois de cortá-lo, ele encontrou dentro dele uma criança do tamanho de seu polegar. Ele alegrou-se por ter encontrado uma menina tão bonita e a levou para casa. Ele e sua esposa criaram-na como sua própria filha e a chamaram de Kaguya-hime (かぐや姫 precisamente, Nayotake-no-Kaguya-hime “princesa de bambus flexíveis espalhando luz”). Depois disso, Taketori no Okina descobriu que sempre que ele cortava um talo de bambu, dentro encontrava uma pequena pepita de ouro. Logo ele ficou rico.

Kaguya-hime cresceu e se tornou uma mulher de tamanho normal e de beleza extraordinária. No começo, Taketori no Okina tentou mantê-la longe de pessoas de fora, mas, com o tempo, a notícia de sua beleza se espalhou. Eventualmente, cinco príncipes apareceram à casa de Taketori no Okina para pedir a mão de Kaguya-hime em casamento. Os príncipes persuadiram Taketori no Okina para que Kaguya-hime escolhesse um deles. Kaguya-hime inventou tarefas impossíveis para os príncipes, concordando em se casar com a pessoa que conseguir trazer um item específico.

Naquela noite, Taketori no Okina disse aos cinco príncipes o que cada um devia trazer. Ao primeiro foi dito para trazer a bacia de pedra de Buda na Índia, ao segundo um ramo de jóias da ilha de Horai, ao terceiro o manto lendário do rato de fogo da China, ao quarto, uma joia colorida do pescoço de um dragão, e, ao príncipe último, o búzio que nasceu de uma andorinha. Percebendo que era uma tarefa impossível, o primeiro príncipe voltou com uma tigela , mas depois de perceber que a tigela não brilhava com a luz sagrada, Kaguya-hime percebeu a farsa. Da mesma forma, outros dois príncipes tentaram enganá-la com falsificações, mas também foram descobertos. O quarto desistiu depois de cruzar o caminho de uma tempestade, enquanto o último príncipe perdeu a vida (gravemente ferido em algumas versões) em sua tentativa.

Depois disso, o Imperador do Japão, Mikado, veio ver a bela Kaguya-hime e, ao apaixonar-se, pediu-lhe para casar com ele. Embora ele não tenha sido submetido aos testes impossíveis que haviam frustrado os príncipes, Kaguya-hime também rejeitou o seu pedido de casamento, dizendo-lhe que ela não era de seu país e, portanto, não poderia morar no palácio com ele. Ela ficou em contato com o Imperador, mas continuou a repelir seus pedidos e propostas de casamento.

Naquele verão, sempre que via a lua cheia, Kaguya-hime ficava com os olhos cheios de lágrimas. Apesar de seus pais adotivos terem ficado muito preocupados e a terem questionado, ela não foi capaz de dizer-lhes o que estava havendo de errado. Seu comportamento tornou-se cada vez mais errático até que ela revelou que ela não era deste mundo e que deveria retornar ao seu povo na lua. Em algumas versões deste conto, diz-se que ela foi enviada para a Terra devido a uma punição temporária por algum crime, enquanto em outras, ela foi enviada à Terra para sua própria segurança durante uma guerra celestial. O ouro que Taketori no Okina tinha encontrado era de fato um salário do povo da Lua, enviado para pagar pela estadia de Kaguya-hime.na terra

Kaguya volta à Lua, feita por Tosa Horomichi.
À medida que o dia de seu retorno se aproximava, o Imperador pôs muitos guardas ao redor de sua casa para protegê-la do povo da lua, mas quando uma embaixada de “seres celestiais” chegou à porta da casa de Taketori no Okina, os guardas foram cegados por uma estranha luz. Kaguya-hime disse que, embora ela amasse seus muitos amigos na Terra, ela devia retornar com o povo da Lua para a sua verdadeira casa. Ela escreveu as cartas de despedida para seus pais e para o Imperador, em seguida, deu aos seus pais a sua própria túnica como uma lembrança. Ela então pegou uma pequena amostra do elixir da vida, junto à carta ao imperador, e deu-o a um oficial de guarda. Quando ela entregou a ele, o manto de penas foi colocado sobre os ombros, e toda a sua tristeza e compaixão pelas pessoas da Terra foram esquecidos. A comitiva celeste levou Kaguya-hime de volta à Tsuki-no-Miyako (literalmente “A Capital da Lua”), deixando seus pais adotivos da terra em lágrimas.

Seus pais adotivos ficaram muito tristes e logo ficaram doentes e de cama. O oficial voltou ao Imperador com os itens que Kaguya-hime lhe tinha dado no seu último ato mortal, e relatou o que havia acontecido. O Imperador leu sua carta e foi tomado pela tristeza. Ele perguntou a seus servos: “Qual lugar da montanha é mais próximo ao céu?”, Ao que responderam que era a grande montanha de província de Suruga. O imperador ordenou a seus homens para levar a carta até o cume da montanha e queimá-la, na esperança de que a sua mensagem chegaria a princesa distante. Os homens também foram ordenados a queimar o elixir da imortalidade, pois o imperador não queria viver para sempre sem ser capaz de vê-la. A lenda diz que a palavra imortalidade ( 不死 fushi ou fuji’) tornou-se o nome da montanha, Monte Fuji. Diz-se também que o kanji para a montanha, 富士山 (literalmente “Montanha Abundante em guerreiros”), é devido ao fato de o exército do Imperador ter subido as encostas da montanha para realizar o seu objetivo. Diz-se que a fumaça da queima ainda sobe até hoje. (No passado, o Monte Fuji tinha muito mais atividade vulcânica).”

Fonte indicada: Wikipédia

Assista ao trailer do filme:

Eu, Jesus e o Magistério

Eu, Jesus e o Magistério

Por Elika Takimoto

É comum na minha profissão – que é ser professora – encontrar colegas desanimados. O pior dessa apatia é a (ilusória) nostalgia. Ficam lamentando dos alunos que não temos mais e vivem dizendo: “no meu tempo…” Aff.  O próprio professor se deprime apoiado em uma nebulosa memória do aluno perfeito que foi no passado. Tratemos do que temos na nossa frente e entendamos e aceitemos essa nova realidade de braços abertos. Se ele não sabe as operações básicas da matemática, reclamar disso não vai fazer com que ele aprenda. Se ele acha que ao ler Cinquenta Tons de Cinza, Paulo Coelho e similares está se aproximando do mundo da literatura cabe a você alfabetizá-lo. Se ficar no terreno do imaginação sonhando com o perfeito e apegado ao passado não vai produzir nada.

O desânimo reina e o discurso de que os alunos estão cada vez piores prevalece. Mas pensemos em um figura conhecida por todos: Jesus. Quer você seja cristão, ateu, budista, hare chrishna, não importa. Se mora no Brasil, sabe de quem estou falando e um pouco de sua história (ou lenda). Recordemos.

Jesus, dizem, teve 12 alunos que foram todos escolhidos por ele. Nós temos, em cada turma, em torno de 40 cujo fato de estarem sentados na sua frente nada tem a ver com a nossa vontade e o nosso conhecimento em relação a eles.

Os 12 alunos de Jesus tinham aula dia e noite. Foi tempo integral se não me engano por três anos. Os nossos alunos nos veem duas vezes na semana ou nem isso.

Os 12 alunos de Jesus largaram tudo para segui-lo. Os nossos sequer largam do celular e não querem acompanhar nem por cinco minutos nossos pensamentos.

Jesus fazia milagres. Diriam alguns colegas, nós também. Concordo, mas Jesus falava levanta-te e anda para um paraplégico que saía correndo pelas ruas de Israel ou algo que o valha. Ou seja, o que estou querendo dizer é que Jesus não dava somente aulas teóricas, mostrava na prática o que a sua ciência era capaz. Melhor ainda: as aulas eram ao ar livre. No mais, Jesus andou sobre as águas enquanto nós temos que tomar cuidado para não tropeçar no tablado. Ele transformava água em vinho. Nossos alunos sequer frequentam laboratórios ou têm aulas práticas e quando as têm é manca, pois carece de uma certa magia.

Ainda assim, após 3 anos o que aconteceu justamente na última prova do quarto bimestre? Os seus três melhores alunos caíram no sono enquanto Jesus chorava sangue. O tesoureiro do grêmio delatou o mestre ao diretor por trinta pontos na média final. Pedro, o líder da turma, negou que Jesus havia lhe dado aula três vezes diante do coordenador da disciplina. E os outros nove? Fugiram. E sequer deram as caras no dia que Jesus estava sendo crucificado pelos pais dos alunos e por toda a sociedade.

Ah sim. Tem João. Ele foi até lá mas o que fez ele para impedir o linchamento? Pois é. Nada. Ainda que consideremos João como o aluno que deu certo teremos um sucesso de menos de 10% dessa empreitada, considerada baixíssima, diga-se de passagem, pelos padrões do MEC.

Jesus estava morto. Mas o carinha entregou os pontos, chutou o balde ou desanimou? Não. Acreditem. Apesar de toda essa história, ele voltou três dias depois para dar aula de recuperação nas férias. Reuniu todos que não tiveram média para passar de ano e disse: eu em verdade vos digo que vos darei mais uma chance. Jesus, como sabem, gostava usar a segunda pessoa do plural.

Qual foi a surpresa de Jesus quando Pedro, considerado um de seus melhores alunos, presidente do grêmio perguntou: “Senhor, é agora que vais restaurar o reino de Israel?” . Mas gente…  Um de seus alunos mais inteligentes não havia aprendido patavinas!

Rendimento de todo o esforço de Jesus ao final: 0%. Jesus padeceu? Não. Dá-lhe novos milagres, exercícios, aulas práticas explicadas com muitas parábolas para os alunos entenderem, vinho, pão, trilhas ao ar livre… nada. Ao final, Jesus sobe aos céus no meio do clarão das nuvens, um espetáculo que se compara aos fogos de Copacabana na virada do ano, e babau. Nunca mais voltou mas, bem ou mal, todos se lembram do que ele disse (até mesmo quem nunca teve aula com ele diretamente) quando a porca torce o rabo porque os que o ouviram perceberam que Ele acreditava no que dizia e tinha amor verdadeiro pelo o que fazia.

Então, meu caro colega de trabalho, se com Jesus que foi Jesus assim contam que aconteceu, por que tem se descabelado? Primeiro de tudo lembremos de como a auto estima e a confiança de Jesus era enorme: o cara simplesmente dizia que era o Filho de Deus e mandava ver. Nós estamos enriquecendo psicólogos, psiquiatras e a indústria de fármacos. Qual professor já não teve o pesadelo de perder o controle total de uma sala, especialmente na noite mal dormida que antecede o primeiro dia de aula? Segundo: como melhorar? Oras, eu não sei ao certo, mas tenho alguma ideia inspirada nessa lenda (assim considero) de Jesus.

A história conta que o Mestre disse: Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo. Quem quiser ser líder deve ser servidor. Se você quiser liderar, deve servir. Então, meu amigo, pergunte-se qual o motivo de ensinar tal coisa, qual a relevância, qual a utilidade de tal leitura. O professor é o primeiro que deve saber como tal conhecimento transformou a sua vida. Você acha que já está formado e preparado para esses novos alunos dando a mesma aula que lhe deram há 20 anos atrás? Que tal vencer a si mesmo para começar?

Os artistas de hoje foram aqueles que foram rebeldes na época de escola ou os que tinham o nome entre os dez primeiros melhores alunos em nota? Será que a sua irritação com a turma indisciplinada não é uma espécie de raiva por saber que eles estão querendo aprender algo que lhes seja de fato útil?

Enfim, inspiremo-nos em Jesus e parafraseemo-lo: Ame o seu aluno como a si mesmo e não faça com ele o que você não quer que façam com você.

Tiques e a Síndrome de Tourette

Tiques e a Síndrome de Tourette

Por Ana Gabriela Hounie

O que são Tiques?

De acordo com o DSM-IV, tiques são movimentos involuntários, súbitos, rápidos, recorrentes, não rítmicos e estereotipados. Aparecem também na forma de vocalizações (barulhos). Ocorrem de forma contínua ou em acessos. Às vezes são precedidos por uma sensação desconfortável, chamada de sensação premonitória e frequentemente seguidos por uma sensação de alívio. Geralmente desaparecem durante o sono e diminuem quando da ingestão de álcool e durante atividades que exijam concentração. Ao contrário, são exacerbados pelo estresse, fadiga, ansiedade e excitação. Podem ser suprimidos pela vontade, mas ao custo de elevada tensão emocional.

Os tiques complexos podem organizar-se e serem ritualizados, o que os torna, às vezes, difíceis de diferenciar das compulsões, que seriam precedidas de fenômenos cognitivos (idéias) e acompanhados de sinais autonômicos (ansiedade, palpitações, tremores, sudorese), enquanto que os tiques são geralmente precedidos de fenômenos sensoriais (sensações premonitórias) sendo seguidos de alívio.

O que é a Síndrome de Tourette?

É uma síndrome em que aparecem tanto tiques motores como vocais, não necessariamente ao mesmo tempo. Os tiques geralmente aparecem por volta dos sete anos, variando dos 2 aos 15 anos. Em geral, apresentam-se na forma de tiques motores simples, como piscadelas dos olhos. O início das vocalizações ocorre posteriormente ao dos tiques motores, na idade média de 11 anos, frequentemente na forma de pigarro, fungadelas, tosse, exclamações coloquiais entre outras. Em alguns casos os tiques vocais são os primeiros sintomas a surgir.

A coprolalia, emissão involuntária de palavras obscenas (palavrões) é encontrada em menos de um terço dos casos. Talvez haja alguma influência cultural, já que é encontrada seis vezes mais na Dinamarca do que no Japão. A copropraxia (gestos obscenos involuntários) é encontrada entre 1 e 21% dos casos. A ecolalia (repetir palavras ouvidas) e ecopraxia (repetir gestos vistos) e a palilalia (repetir as próprias palavras) são encontradas em menos da metade dos casos. Estima-se que um terço dos pacientes apresente remissão completa ao final da adolescência, outro apresente melhora dos tiques e o restante continue sintomático durante a vida adulta. Remissões espontâneas foram relatadas em 3 a 5% dos casos.

A intensidade dos tiques é variável, desde quase imperceptíveis, como um leve levantar de ombros, até tiques aparatosos como saltos ou fortes latidos. As vezes são “camuflados” em atitudes corriqueiras como por exemplo, afastar o cabelo do rosto, ajeitar a roupa e são reconhecidos pelo seu caráter repetitivo. Após a instalação do quadro, os sintomas passam a apresentar flutuação na intensidade, principalmente na adolescência. Uma série de comportamentos se associam à ST, como o hiperativo, o automutilatório, distúrbios de conduta e de aprendizado, além dos sintomas obsessivo compulsivos (SOC). Alguns autores observaram que mais de 40% dos pacientes com a ST apresentavam TOC. Aproximadamente 90% dos portadores da ST tem sintomas obsessivos.

O que causa a Síndrome?

A causa da ST permanece desconhecida. Sabemos da influência de fatores genéticos, neurobiológicos entre outros. Diversas linhas de pesquisa sobre o tema. Abaixo estão listados uma série de achados sobre o tema:

Os estudos com gêmeos e famílias tem fornecido evidências de que há uma transmissão genética da vulnerabilidade à ST. A taxa de concordância para a ST entre gêmeos monozigóticos é maior que 50%, enquanto que, para os dizigóticos, é cerca de 10%.

Os resultados dos estudos que tentam estabelecer uma relação entre eventos perinatais (relacionados ao parto e nascimento) adversos e a ST são conflitantes. Dois estudos não conseguiram verificar essa associação, enquanto outros encontraram 1,5 vezes mais complicações durante a gestação de mães de crianças com tiques quando comparadas a controles normais.

Os tiques apresentam piora diante de eventos estressantes, não necessariamente desagradáveis. Há associação entre o conteúdo dos tiques, seu início e os eventos marcantes na vida das crianças portadoras de ST. Assim, não se devem negligenciar os fatores psicológicos no curso do transtorno.

Um grupo de pesquisadores encontrou, em estudos com Ressonância Magnética Cerebral, diferenças estruturais nos gânglios da base e no corpo caloso de portadores da ST. Estudos com Tomografias de emissão (PET e SPECT) revelam, em geral, hipometabolismo e hipoperfusão em regiões do córtex frontal e temporal, no cíngulo estriado e tálamo. Tais achados sugerem alterações no circuito córtico-estriado-talâmico.

Os estudos sobre um possível substrato neuroquímico na ST são também conflitantes. A principal hipótese estudada envolve uma hiperatividade dopaminérgica, visto que os neurolépticos, antagonistas da dopamina, geralmente promovem uma grande redução dos tiques. Na mesma linha de raciocínio, os estimulantes como o metilfenidato, a cocaína, a pemolina e a L-dopa causam exacerbação dos tiques.
A elevada incidência de ST e tiques no sexo masculino levanta a hipótese de que estejam relacionados à exposição do Sistema Nervoso Central a altos níveis de testosterona e/ou outros hormônios masculinos. Há relatos de casos que envolvem esteróides androgênicos na exacerbação de sintomas da ST entre fisiculturistas que abusam destas substâncias. Há um relato de flutuações dos tiques na ST relacionadas ao ciclo menstrual, com exacerbação na fase pré-menstrual.

A presença de anormalidades no Eletroencefalograma (EEG) de pacientes com ST é controvertida. Os achados são insignificantes, não se justificando o uso do EEG na investigação rotineira da ST. As anormalidades encontradas são inespecíficas e não há evidências de atividade paroxística diretamente relacionada aos tiques.

Alguns autores sugerem a possibilidade de que tiques, alguns transtornos do movimento, sintomas obsessivo-compulsivos e hiperatividade, possam estar relacionados à presença de anticorpos antineurais (contra o cérebro) decorrentes de infecções estreptocócicas. De fato, algumas pessoas começam a apresentar ou pioram de seus tiques depois de terem infecções de garganta. Entretanto, ainda não é rotina tratar os tiques com antibióticos, seja de forma curativa, seja de forma profilática.


Como são tratados os Tiques e a Síndrome de Tourette?

O tratamento da ST consiste em duas abordagens associadas: o tratamento psicossocial e o farmacológico. Antes de inicia-lo, deve-se fazer uma avaliação dos tiques quanto à localização, freqüência, intensidade, complexidade, e interferência na vida diária. O ambiente escolar, familiar, os relacionamentos, os fenômenos associados devem ser investigados e analisados. Faz-se necessário um julgamento criterioso quanto à necessidade de medicação.

Até o presente momento, não há tratamento curativo, sendo o medicamento útil no alívio dos sintomas. A filosofia do tratamento é conservadora para evitar a medicação desnecessária, utilizando-a sempre nas menores doses possíveis. Apenas 60% dos portadores requerem medicação supressiva de tiques. O tratamento psicológico inclui orientação aos pais e familiares, àqueles que convivem com a criança, como seus educadores. É importante fornecer informações a respeito da doença, suas características e o modo de lidar com o doente. Deve-se cuidar para que ocorra o mínimo de estigmatização. Evitar atitudes superprotetoras que favoreçam a manipulação da doença por parte da criança.

Quando necessário deve-se indicar psicoterapia. Há relatos de casos tratados com psicoterapia comportamental, embora, em geral, tenha valor limitado. A psicoterapia dirigida ao insight tem sua importância na medida em que estabelece conexões entre os sintomas e os conflitos psíquicos subjacentes, facilitando o seu entendimento e manejo.

Uma técnica dentro da Terapia Comportamental, chamada Reversão de Hábito, tem sido utilizada com sucesso no controle dos tiques. A técnica consiste basicamente em aprender a perceber quando os tiques vão ocorrer para então tentar suprimi-los ou modifica-los. Por exemplo, um tique desagradável e que cause embaraço como acenar para pessoas desconhecidas, pode ir sendo modelado, com esforço e treino, para um comportamento mais aceitável ou imperceptível como passar a mão no cabelo ou no corpo.

Onde Procurar Assistência

Em maio de 1996 foi criada a ASTOC – Associação Brasileira de Síndrome de Tourette, Tiques e Transtorno Obsessivo Compulsivo. Trata-se de uma organização voluntária nacional, que oferece orientação quanto ao diagnóstico e tratamento do TOC e da ST, além de desenvolver várias atividades dirigidas aos seus associados, como palestras, grupos de ajuda, distribuição de material educativo e cadastramento de profissionais interessados em atender pacientes com este tipo de patologia. Para um primeiro contato com a ASTOC, os interessados podem ligar para (11) 3541-2294 ou pelo e-mail : [email protected].


Ana Gabriela Hounie

Psiquiatra
Pós Graduada da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Fonte: Associação Brasileira de Síndrome de Tourette, Tiques e Transtorno Obsessivo Compulsivo

A companhia do outro

A companhia do outro

Por Patrícia Dantas

Estava olhando na direção de si. De si? Como poderia? Teria permissão? Entre um olhar e outro perdido, descobria-se num invólucro ainda por conhecer.

Não se conhecia, não podia, não tivera afetos na vida para tanto. Mas tinha uma pureza estranha como a de quem finca os pés no chão pela primeira vez – a inocência de quem conhece a sensação de um momento único.

“Meu espetáculo é minha forma de viver das próprias entranhas. Do ato.” – Refletia, estupefato. Era tudo o que queria ouvir da sua consciência, como se não necessitasse de mais nada para sobreviver, apenas de suas palavras breves soprando no íntimo.

Por um instante, pausado, atônito como um velho sábio a contemplar o infinito, reparara a sombra de outro homem rondando atrás de si. Era um intruso, tinha certeza. Ali só tinha espaço para ele. “Quem ousaria me deter agora que estou prestes a convocar meus demônios interiores para prestar contas já quase esquecidas? ” – Murmurava, ofegante.

A luta dele era intocável e desconhecida. Só ele seria atingido e teria que sair ileso para continuar sua vida de poucos acontecimentos.

Trazia um hóspede dentro de si como uma segunda pessoa a lhe habitar, um segundo ser que sabia tomar decisões em horas impróprias, e sentia todo o seu inconsciente como um hospedeiro terrível, provocando-o, tecendo pensamentos vergonhosos que lhe manchariam a existência.

Lembrou-se do pacto, da negociação com ele mesmo. Teria ele esquecido àquela manhã nublada, numa rua estreita onde ficava sua pequena casa, que entregara todos os seus planos e pensamentos para seu novo amigo? Momento de solidão e desespero. A cura por uma amizade boba, pela companhia inventada.

Não podia se arrepender agora. Sentia como se tivesse trocado de corpo e se despido. Era o puro toque de um novo ser. Ele não continuava o mesmo, teria mudado e muito, mas ainda lhe restara a mínima consciência de quem era e por que continuava naquela condição de usurpador de si mesmo.

Quem o teria levado assim, tão levianamente? Ele era outro, assim como às vezes acontece conosco e não sabemos se realmente fizemos algum acordo dentro de nós, em momento de entrega e confissão. Seremos outros tão rapidamente, o que não é possível dar conta a um só tempo.

Respirou profundo, quase morrendo em si. Decidira experimentar ser tudo que lhe aguardava – como desejara – e passar para sua nova existência. Ninguém precisava saber sobre sua escolha. Havia o cuidado em mostrar as nesgas do outro ser que planava sobre sua vida.

Até onde poderia ir? O que poderia fazer com tamanha possessão em si? Ser outro. Poder agir como duas pessoas. Provar de circunstâncias diferentes com atuações diversas. E jamais confessar que fora induzido por suas forças desconhecidas.

Lembrou que já estivera fora de si em outros momentos –inescapável -, mas soubera voltar sempre, sem medos ou culpas por aceitar tal companhia. Tivera pares e acompanhantes em cada etapa da vida, como ciclos em constante movimento.

Gostava de se deixar ver e perceber como era: por completo, desnudo, imprevisível. Outros.

O atendimento psicológico ao idoso: benefícios e resultados

O atendimento psicológico ao idoso: benefícios e resultados

É vísivel na clínica psicológica o aumento no número de idosos que vem procurando processos psicoterápicos como forma de ajuda na superação de problemas. Tal fato, por si só já reflete uma mudança na forma como a velhice vem sendo percebida e das possibilidades vivenciais dessa fase.

Na minha experiência no atendimento aos idosos, os motivos que trazem o idoso para o consultório são os mais variados: problemas de relacionamento, episódios depressivos, ansiedade, processos de luto, relacionamento familiar, necessidade  de adaptação ou reabilitação diante de uma doença ou condição de dependência, anorexia, dificuldade para perder peso, sexualidade, perdas cognitivas, alcoolismo, aposentadoria, entre muitas outras.

Como qualquer outra fase do desenvolvimento humano, a velhice é um momento que exige mudanças e adaptações, nas quais estão presentes ganhos, perdas, potencialidades e limitações.

Fase que produz no imaginário humano uma série de concepções, fantasias, crenças, imagens, idéias, sentimentos, etc.

De acordo com nosso contexto sócio-histórico, nossas experiências e histórias de vida e das informações que recebemos das mais diversas mídias, vamos construindo nosso imaginário, lidando com o envelhecimento e com a velhice, seja a nossa ou a do outro.

Mas, afinal, como percebemos a velhice e o processo de envelhecimento?

Será que podemos caracterizar essa população de uma maneira única e geral? Ou temos que pensar numa multiplicidade de condições em que os idosos possam estar vivenciando e que ajudam a definir características mais específicas?

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Penso que a segunda possibilidade seja mais tangível que a primeira. Isso porque, dependendo das condições biopsicossociais de um idoso, de sua história de vida, etc, muita coisa pode mudar em relação a forma como ele vive, como é visto em nossa sociedade e quais suas necessidades de ajuda e suporte.

Nesse sentido, a ciência destaca duas condições essenciais: a senescência e a senilidade.

A primeira, caracteriza-se pelo curso natural do envelhecimento, sem a presença de condições patológicas que possam interferir significativamente na qualidade de vida do idoso.

Já a senilidade, manifesta-se pela presença de patologias que alteram o curso normal do processo de envelhecimento, como é o caso das doenças crônico-degenerativas e das demências, por exemplo.

Mas como é feita essa distinção em nossa sociedade?

Para além das definições presentes na área da saúde, essa divisão também é realizada pelo imaginário social, por meio das crenças e concepções acerca da velhice.

Acredito que hoje temos algumas visões bastante opostas. Por um lado há os que veem a velhice como a “melhor idade”, construindo uma imagem positiva, na qual o idoso, afinal, pode desfrutar da vida e do tempo, com saúde e vitalidade. Por outro, existem os que veem essa fase como uma fase de decrepitude, marcada pela solidão, pelas limitações e pela dependência.

Qualquer visão unilateralizada tem seus perigos, uma vez que não permite que também vejamos o outro lado da moeda!

Uma visão estereotipada e negativa em relação ao próprio envelhecimento pode afetar negativamente o autoconceito e a autoestima do idoso, influenciando a forma como lida com situações da vida, suas perspectivas futuras, seu envolvimento social, em atividades prazerosas e seus relacionamentos interpessoais.

Além disso, pode aumentar a probabilidade de conformidade com condições precárias de saúde, diminuindo adesão a tratamentos.

Pode fazer com que o idoso e suas necessidades sejam negligenciadas ou então supervalorizadas e superprotegidas, seja pela família, pelos profissionais da saúde ou pela própria sociedade.

Ao mesmo tempo, uma visão idealizada e extremamente positiva, pode dificultar a elaboração de momentos de dificuldades e perdas, tanto por parte dos próprios idosos, mas também dos que com eles convivem.

Por isso, “envelhecer bem” depende de um delicado equilíbrio entre as perdas e os ganhos vindo com o envelhecimento. É preciso compreender que cada fase da vida tem seus desafios e objetivos a serem cumpridos e isso não é diferente na velhice.

O problema é quando queremos negar essa fase e ficamos apegados a uma imagem de juventude que o próprio corpo físico não suporta mais e então sofremos por não querer seguir adiante. Ou então acreditamos que não existe qualquer desafio e realização pessoal nesta fase e nos entregamos ao tempo e à espera da finitude, sem planos e metas para o futuro.

No atendimento aos idosos no consultório, percebo que nesta fase as pessoas são capazes de fazer um reexame da própria vida; com reorganização e reorientação da personalidade, agora de uma maneira mais realista que em outras fases da vida. Conseguem deixar pra trás as bagagens extras e sem importância e podem recuperar tesouros que foram deixados para trás.

Assim, quando passam a viver de forma mais verdadeira e vinculadas com quem realmente são, assumem maior responsabilidade pelo seu bem estar pessoal, vivendo com mais qualidade.

Quando as perdas são inevitáveis, o atendimento psicológico, seja no consultório, no hospital ou na própria casa do paciente (home care), torna-se um espaço valioso para que possam resgatar os recursos necessários para enfrentar a situação. Além de todo o acolhimento, escuta e cuidado que podem receber nestes momentos tão delicados, imprescindíveis para uma boa recuperação.

Assim, a psicoterapia voltada para a terceira idade se transforma em uma ferramenta preciosa para que os idosos possam enfrentar satisfatoriamente os desafios trazidos por essa nova fase da vida.

Cada passo é uma conquista e acrescentar “vida aos anos” traz maior significado para os anos de vida!

contioutra.com - O atendimento psicológico ao idoso: benefícios e resultadosMarcela Alice Bianco – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana formada pela UFSCar. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Sedes Sapientiae. CRP: 06/77338

A Cegueira Humana

A Cegueira Humana

Por Monaliza Montinegro

Um Brasil diferente. É isso que todos desejam. Opinam, discutem, brigam, gritam, compartilham informações na “era da reprodutividade técnica”[1]. Estamos “vivendo em um país sedento, um momento de embriaguez”[2]. E nos intervalos de sobriedades, há uma realidade que precisa ser discutida. Uma realidade social dura, escancarada aos olhos de todos e uma realidade política que não mais se sustenta.

O legislativo parece ter perdido o sentido da norma. Políticos esquecem o fim social e pacificador da legislação e passam a coordenar suas ações sempre agindo contra a oposição. Eleitores apoiam suas escolhas no lado puramente partidário, como se os partidos e as pessoas que os compõem fossem mais importantes do que o próprio tema que está sendo votado ou discutido.  Com isso, chega-se a um resultado que não agrada nem a pobres, nem a ricos e, tão menos, aos miseráveis.

Um dia me disseram/Quem eram os donos da situação/ Sem querer eles me deram/ As chaves que abrem essa prisão. (Engenheiros do Hawaii)

Não nos tornamos gigantes, como já foi ventilado pela grande mídia. Sequer suportamos o peso de nossas ideias diante do imenso bombardeio de mensagens mascaradas de bondade. Grandes são os que olham para todos os lados, não apenas para uma direção.

A verdade é que nos sentimos pequenos perante tamanhas arbitrariedades. Mas, o que precisamos mesmo é tirar os joelhos do chão e, de pé, começar a dar saltos mais altos. E, às vezes, é preciso muita iniquidade para que isso ocorra, para que as mentes sejam inquietadas.

A história nos mostra que quando somos empurrados para trás da forma mais brusca ganhamos impulso para começar caminhar com mais força e tenacidade. Foi preciso que a ditadura militar atingisse o seu mais alto grau de estupidez para que todos contra ela se rebelassem.

E tem sido assim. Quando o CONAMP tentou suprimir da Defensoria Pública o direito ao manejo de ações coletivas, ela se fortaleceu. Todos passaram também a vestir o verde. O STF ficou verde, o Senado ficou verde. Até o Cristo Redentor ficou verde, da cor da pátria amada, que é também a bandeira da Defensoria Pública. Não só a luta da defensoria fortaleceu, como também fortaleceu aos necessitados que terão cada vez mais seus corações invadidos pelo verde da esperança em um mundo mais próxima da justiça.

Cada vez que tentam impor o cinza, as cores aparecem como resposta. Cada vez que as pedras são atiradas, mais preconceitos são tirados do caminho. Quem imaginou um dia um padre e um pastor unidos em um ato de amor lavando os pés de uma transexual? Quem imaginou evangélicos da Tradicional Igreja Batista levantando a bandeira Deus Cura a Homofobia? Quem imaginou um Papa levantar a bandeira colorida? As cores invadirem as redes sociais? As cores  do respeito à diversidade. As cores que mudam a vida.

Enquanto a vida imita o vídeo, a lucidez quer ter seu lugar. Por isso, mais do que nunca, a atitude é uma necessidade e todo o descaso do Estado e da própria sociedade com os adolescentes e adultos crescem em um mundo que a eles nada oferece, todo esse desejo forçado de colocar na prisão quem já está preso pela desigualdade, fará um virada na história. Quem vier viver, “verá”. É só querer “enxergar”.

Habermas e o processo de comunicação.

Habermas tem razão. A porta de entrada para essa mudança é uma comunicação livre, racional e crítica.  O aspecto da legitimidade da norma só pode ser desenvolvido adequadamente com base no conceito de autonomia e democracia, com base na possibilidade de que os destinatários das normas do direito se vejam também como autores dessas normas.[3]

Para Habermas todas essas “patologias sociais” são  resultados de perturbações na reprodução simbólica do mundo da vida.  Perturbações na reprodução cultural e midiática, as quais, para ele, tem levado a fenômenos de perda de sentido, provocando na integração social estados de anomia, e  nas socializações produzindo psicopatologias[4]. A realidade é que o foco de preocupação social deveria iniciar com uma reforma nos meios de comunicação, uma vez que esses têm se mostrado mais influentes nos últimos tempos do que a própria pena de prisão.

O que acontece é que todo o processo de comunicação tem se voltado a favor do individualismo, da meritocracia, do direito penal máximo, do isolamento daquelas pessoas que são consideradas indesejáveis e do culto ao direito penal do inimigo. Dessa forma, toda a sociedade passa a crer e a coordenar suas ações como se de fato vivêssemos em um estado de guerra e toda a solução para o caos estivesse na ordem penal, na intimidação e na sanção.

Despreza-se a moral, a família, os costumes, a consciência, a mídia, a religião e todos meios de vigilância que exercem mais influência no indivíduo do que o próprio sistema penal. Assim, fica facilmente camuflado o papel da mídia, principalmente na construção da realidade social e no processo de escolha dos inimigos da sociedade.

A produção do lema “país da impunidade”, onde temos um dos mais altos índices de encarceramento do mundo, nos faz esquecer que cultivamos o direito penal mínimo para quem detém o poder e o direito penal máximo para que esteja afastado dele. E essa estrutura é observada desde o processo de fabricação de leis até o processo de aplicação e execução da sanção. E assim seguem de mãos dadas a ignorância, a manipulação e a desigualdade.

Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago x Realidade Atual:

Nesse cenário vem bem a calhar a ideia de José Saramago, no livro Ensaio a Cegueira, onde é criado um ambiente semelhante ao que vivemos hoje. No metáfora de Saramago, aos poucos muitas pessoas vão sendo contagiadas por uma cegueira branca e a responsabilidade daqueles poucos que conseguem ver vai aumentando até que apenas uma única pessoa no livro, a mulher do médico, tenha visão.

O contexto narrativo descreve da forma mais cruel as reações do ser humano ao estado de necessidade, a baixa auto estima, ao abandono etc. Mostra também como é fácil o contágio dessa cegueira através do medo, no momento em que até os Santos da Igreja ficam de olhos vendados. Saramago mostra que um mundo cego é um mundo sem ética, sem moral e cheio de barbárie.

A narração mostrou várias faces da natureza humana e a principal consequência dessa falta de visão pode ser vista na descrição da primeira cegueira ocorrida no livro, quando o personagem ficou cego ao dirigir seu veículo e “de repente, a realidade tornou-se indiferenciada a sua volta”.[5]

E assim segue  o drama, onde o escritor consegue narrar bem três tipos de cegueira do mundo contemporâneo. A primeira é a cegueira daqueles que não possuem qualquer poder de autodeterminação, uma vez despidos de sua individualidade, passam a se identificar como coisa abandonada, desconhecendo a noção de individuo quando são isolados em um antigo hospício e esquecidos pelo Estado; a segunda, a cegueira daqueles que são dominados pelo medo e com isso passam também a cometer atrocidades; e a terceira, e mais cruel, a cegueira dos opressores que se aproveitam do momento em que todos estão cegos para mostrar sua face mais cruel.

Trazendo para a nossa realidade, o mais preocupante é a cegueira ocasionada pelo medo e esse trecho ilustra bem isso: “O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui.”[6]

E o medo cega e segue dominando nações. Essa foi a temática de Mia Couto em uma conferência sobre segurança pública, citando o poeta Eduardo Galeno, enfatizou: os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não tem medo da fome, tem medo da comida. Os motoristas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de ser atropelados. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras… E completou  o escritor moçambicano: há quem tenha medo que o medo acabe.[7]

Nesse momento, em que em o medo reduz o homem à essência humana, quando o egoísmo mostra a sua pior face, vem a pergunta de Agostinho Ramalho Marques Neto para inquietar nossos corações quem nos salvará da bondade dos bons? [8]Quem na democracia nos salvará do medo da maioria? Quem nos salvará daqueles se dizem compadecidos com a situação dos adolescentes renegados e mesmo assim confessam conscientemente que desejam mandá-los pra prisão? Daqueles que afirmam preliminarmente não serem racistas mas são contra cotas para negros? Dos que se dizem não homofóbicos mas são contra casamento homoafetivo?  Dos que criam o cenário para que os que se dizem reis rasguem as leis? Dos que operam as leis e rasgam a justiça?

A cegueira moral de Zygmunt Bauman:

Quem nos salvará da cegueira moral que parece ser mais contagiante em tempos de redes sociais? Quem fará os bons entenderem o que concluiu Bauman que o mal não está restrito às guerras ou às circunstâncias nas quais pessoas atuam sob condições de coerção extrema, que o mal maior está dentro de cada um, na frequência na insensibilidade diária diante do sofrimento do outro, na incapacidade ou recusa de compreendê-lo e no desejo de controlar a privacidade alheia?[9]

 Como fazer as pessoas entenderem que maldade e a miopia ética se ocultam naquilo que consideramos comum e banal na vida cotidiana  e sobretudo na forma que externamos isso. Como conter o botão de “compartilhar” das redes sociais, que dá liberdade ao emissor da mensagem na medida em que aprisiona suas vitimas? Dos que compartilham as notícias sem questionar a sua veracidade? Como explicar as pessoas que nem tudo que está ali é certo, se a maioria sequer consegue distinguir humor de realidade?  Como fazer o olhar se voltar para quem não está nas redes sociais, se essas pessoas estão em algum lugar no mundo em que não podem ser vistas?

Teoria da Cegueira Deliberada:

Encontrei uma explicação para isso na Teoria da Cegueira Deliberada. Aquela criada pela Suprema Corte Americana, também conhecida como Conscious Avoidance Doctrine” (doutrina do ato de ignorância consciente), que deu origem a “Teoria das Instruções da Avestruz”, que os concursos públicos adoram.

A teoria criada para explicar o comportamento criminoso no delito de lavagens de capitais aduz que há um comportamento criminoso quando o agente finge não enxergar a ilicitude da procedência de bens, direitos e valores com o intuito de auferir vantagens dela decorrentes e age como se fossem um avestruz, enterrando a cabeça deliberadamente para não ver.

Fez-me pensar que as bases dessa teoria poderiam ser transportadas para a cegueira humana. A cegueira descrita por Saramago “dos cegos que veem e dos cegos que vendo, não veem.” E por fim, cheguei a conclusão de que muitos de nós somos coautores das atrocidades praticadas todos os dias contra as pessoas que são excluídas da sociedade,  muitos que se colocam deliberadamente no estado de cegueira para dele auferir vantagem.

 Quem ocupa o trono tem culpa/Quem oculta o crime também/Quem duvida da vida tem culpa/Quem evita a dúvida também tem” (Engenheiros do Havaí)

Vejo uma luz na esperança de que as crianças, adolescentes e todos os adultos que estão nessa berlinda, possam a ter consciência de que também do outro lado existe alguém que enxerga um mundo através deles. Todos lutando para que ninguém venha a limitá-las como a música diz no refrão: “somos quem podemos ser/sonhos que podemos ter”

Nesse sentido,  a metáfora do escritor português deixou sobre os nossos ombros o peso que carregou no livro uma única mulher. Isso me faz crer em um mundo real no qual seja  possível a sabedoria vencer a falta de percepção. Talvez, a claridade ocasionada por essa “cegueira branca” provoque um intervalo na escuridão, assim como na composição musical.

Nesse ponto, em que convergem a literatura, a música e a realidade, José Saramago, Bauman e Gessinger  tem nos passar uma mensagem: quando muitos estão ficando cegos, devemos incorporar com mais altivez a responsabilidade de termos olhos para ajudar o outro a recuperar a lucidez e a procurar dentro de si algo que está se perdendo a cada dia: “uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”.  Esse talvez seja um dos caminhos para salvação.

Esse artigo foi publicado originalmente em nossa página parceira:

contioutra.com - A Cegueira Humana

[1] Disponível em http://ideafixa.com/wp-content/uploads/2008/10/texto_wbenjamim_a_arte_na_era_da_reprodutibilidade_tecnica.pdf (acesso em 04.07.2015)

[2] Disponível em http://letras.mus.br/engenheiros-do-hawaii/12899/ Somos Quem Podemos Ser (acesso em 04.07.2015)

[3] NOBRE, Marcos e TERRA, Ricardo. Um Guia de Leitura de Habermas. Direito e Democracia. Malheiros Editores LTDA. São Paulo. 2008.

[4] HABERMAS, Jurgen. Uma conversa sobre questões da toeria política. Novos Estudos. Cebrap: São Paulo.1997.

[5] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Companhia das Letras. 24º reimpressão, 2002.

[6] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Companhia das Letras. 24º reimpressão, 2002

[7] Disponível em http://www.revistaforum.com.br/mariafro/2013/05/31/mia-couto-ha-quem-tenha-medo-que-o-medo-acabe/(acesso em 04.07.2015)

[8] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática: O Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA. São Paulo, n. 21, p. 30-50, 1994

[9] BAUMAN, Zygmunt. LEONIDAS, Donskis. Cegueira Moral: A perda da sensibilidade na modernidade líquida.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

Sobre a autora:

Monaliza Maelly Fernandes Montinegro. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte; Analista do Seguro Social com formação em Direito; Aprovada no concurso da Defensoria Publica do Estado da Paraíba.

Email: [email protected]

Expectativas x Realidade

Expectativas x Realidade

Por Adriana Vitória

Há três anos, uma amiga deixou a cidade grande com a família em busca de uma vida mais saudável e economicamente mais justa para criar seus filhos. Foi para o interior. Optou por uma cidade com boas escolas onde todos poderiam continuar tendo acesso à cultura e informação.

A família alugou uma bela casa em um bairro super charmoso. Os arredores eram cheios de verde e davam morada a tucanos, canários, sabiás e maritacas.

Ao longo dos anos, entretanto, a realidade mostrou-se mais forte que as expectativas e a família sentiu uma profunda disparidade de valores que ficava mais evidente em ocasiões como reuniões de escola ou até mesmo na convivência com alguns vizinhos.

A princípio eles julgaram que era só uma questão de choque cultural, mas essas diferenças eram superadas facilmente, uma vez que estavam próximos de onde vieram e podiam contar com as visitas frequentes dos amigos e com as idas à cidade que dava  continuidade as trocas afetivas que eram tão essenciais para eles, prociando o equilíbrio de que precisavam.

Um ano se passou até que, nas caminhadas que faziam com os cachorros por uma estradinha de terra, antes caminho de pasto da antiga fazenda loteada, começaram a ver a necessidade de sair com um saco de lixo recolhendo garrafas de suco, papéis de bala e picolé, latas e todo tipo de coisa que as pessoas, simplesmente jogavam pelo caminho.

Notaram ainda que, apesar da grande lixeira estar a pouco mais de 200 metros das casas do quarteirão, poucos eram os que se davam ao trabalho de ir até lá deixar os restos do dia ou da semana. O lixo, constantemente atacado por animais, continuaria se espalhando eternamente e de nada adiantaria todo este trabalho.

O tempo seguiu e os vizinhos começaram a espalhar também os restos de suas obras pela pequena estradinha que antes fora tão charmosa e as caminhadas tornaram-se desagradáveis. Ladrilhos, pregos, pedaços de arame farpado, canos e tubulações por toda parte.

Nesse meio tempo, houve tentativas de aproximar os filhos das crianças locais para que tivessem uma infância saudável de brincadeiras na rua. Não funcionou. O linguajar, não raro, lotado de palavrões e hábitos singulares acabou por separá-los.

Tudo isso começou a faze-los pensar na necessidade de uma nova mudança, mas, devido à dificuldade de se encontrar uma boa casa, resolveram procurar com calma, até que, há algumas semanas, uma vizinha próxima foi até eles aos berros e palavrões de quinta, ameaçando e reclamando das “fezes” dos cães na porta de sua casa.

Como vários cachorros, assim como vacas e cavalos, passeiam livremente a noite, isto não queria dizer que seriam cães deles. Mesmo assim, o que a vizinha chamava de “porta da sua casa” é, na verdade, um canto da estrada com pequenos arbustos adorados pelos cães. Mas não existem argumentos possíveis diante da ignorância. Ela continuou a atacá-los de maneira veemente.

Claro que, durante os anos em que viveram nessa região, a família já conheceu exceções, porém, em se tratando de Brasil, infelizmente esse tipo de comportamento vem se tornando uma regra.
Espero que encontrem um lugar melhor para viver.
Toda esta história me fez pensar. Tenho me dado conta de que, o que de fato separa as pessoas não é a religião, o gênero, orientação sexual, raça ou nacionalidade. O que separa as pessoas é a educação, ou a falta dela. O resto parece ser consequência.

A educação real nos mostra os limites de até onde podemos ir sem prejudicar quem esta ao lado. É a compaixão. Nos da o senso comum, ético e moral, e sem eles não podemos viver em sociedade. A falta dela, nos torna intolerantes, desagradáveis, mesquinhos, verdadeiros parasitas da sociedade. Um cardume nadando contra a maré, ou será a favor? Nem sei mais. Os valores andam tão equivocados que já ando meio perdida.

Partindo deste princípio, podemos encontrar o porquê de tantas discrepâncias do mundo atual, entender as guerras e os preconceitos: frutos da ignorância (ausência de informação) e da falta de educação.

O que nos diferencia dos países chamados do primeiro mundo, não é o poder econômico, mas a porcentagem de pessoas com direito à educação.

Ao contrário do que muitos pensam, a educação nos liberta e nos unifica. Quando privilegiamos a educação, respeitamos as diferenças e tiramos proveito delas para crescer e nos fortalecemos como país.

A história que acabo de narrar é triste. Ao longo da minha vida, vivi em diferentes países e, em cada um, meu nome ou condição social de origem de nada me atrapalharam. Em todos me foi dada a chance de aprender a cultura local, mostrar meus talentos, desenvolver meu trabalho com seriedade e mostrar que eu valia a pena. Dessas experiência, guardo alegrias e amigos preciosos. Pude ainda participar de movimentos importantes em prol de interesses locais, como ajudar a salvar uma árvore centenária do corte em uma pequena comunidade.

Temos que entender de uma vez por todas que não adianta lamentarmos. Quem faz um país é o povo e não meia dúzia de pessoas que porventura estejam no poder. Se vivemos no meio do lixo, é nossa responsabilidade limpar a casa.

Minha família é o mundo

Minha família é o mundo

Por Tatiana Nicz

Esses dias duas amigas que iam viajar viveram um dilema, uma delas por motivos pessoais teve que cancelar a viagem de última hora, a outra seguiu viagem sozinha. Uma das coisas que disse para a que foi é que viajar sozinha pode ser maravilhoso, porque nós nos permitimos muito mais e nos abrimos para encontros inusitados que surgem em qualquer momento da jornada. Quando viajamos sozinhos, ter um pouco de companhia vira necessidade básica e é por isso que nos abrimos. Eu já viajei sozinha algumas vezes, nunca me senti inteiramente só. Com certeza foram as viagens em que mais conheci pessoas diferentes e com elas vivi momentos muito especiais.

Eu conto isso porque hoje vivo algo parecido já que não tenho família perto. Eu tive um “timing” diferente dos meus irmãos, logo que me formei coloquei o pé na estrada, de turismóloga virei turista, entre idas e vindas, passei muitos anos longe. Quando decidi voltar para ficar, minha irmã havia casado e iniciava com sua família uma peregrinação pelo país, atualmente eles moram em Manaus, mas já moraram em outras cidades. Meu irmão também resolveu se aventurar e fez da terra do Tio Sam sua morada. E, por diversos motivos, eu fiquei. Hoje, meu pai se foi desse plano físico, minha mãe está sob os cuidados da minha irmã em Manaus. E eu escolhi ficar.

Ainda tenho parentes aqui, tios e poucos primos, tenho também minha madrasta e seus filhos que são como uma família para mim, tenho amigos de longa data, mas família de primeiro grau e sangue mesmo, da maneira como conheci, pai, mãe, irmãos, esses por perto não tenho mais. Esse poderia ser um texto triste e pedante, mas eu sinto o contrário. O que sinto hoje é o mesmo que disse para minha amiga antes dela viajar sozinha, a solidão nos força a abrir o coração para o mundo de uma maneira que nunca antes imaginamos, porque nos tira totalmente da zona de conforto, porque nos faz precisar do outro. Saber que você precisa do outro é um grande antídoto para o processo de anestesiamento espiritual. O outro te convida a abrir o coração, a ser melhor e a estar presente.

Sim é certo, a orfandade não é algo tão fácil, às vezes pode ser profundamente amedrontador. É mais do que não ter onde almoçar aos domingos, é mais do que não ter um colo para chorar. É muito mais que não ter com quem trocar presentes no Natal. Não ter família presente e perto é coisa séria que exige muita força, é aprender a viver sem nossos maiores conselheiros e incentivadores, é aprender a tomar decisões importantes na vida sozinha. Ser órfã requer um tipo de coragem que preciso reconstruir e revisitar todos os dias. E que todos os dias me faz lembrar que preciso ter mais valia para o mundo.

Com tudo que vivi aprendi muito sobre o valor do tempo. Tempo é algo muito precioso, a vida é mesmo impermanente. A melhor maneira que existe de colecionar boas recordações sem arrependimentos é estando presente naquele momento por inteiro. Eu tive tempo de qualidade com meu pai e meus irmãos. Eu me dediquei para minha mãe. Por isso sei o que é ter uma família, sei a importância que existe nesse sentimento de pertencimento. Esses valores são muito fortes em mim e só porque tive tudo isso hoje não me sinto carente ou sozinha.

Além disso, desde que fiquei órfã de pai e mãe como os conheci aprendi a cuidar melhor de mim, porque ninguém vai me dar colo. Aprendi que caminhar em boa companhia é melhor do que estar sozinha, mas que é melhor estar só do que em má companhia. Hoje tenho uma grande família, uma família estendida feita de muitos bons amigos e parentes que me acolhem e estranhos que rapidamente se tornam grandes amigos. Uma família feita de pequenos gestos de gentileza e fragmentos de tempo e momentos vividos com qualidade.

Depender assim dos outros é um processo bem vulnerável e complexo, ao mesmo tempo que é belo. E de maneira saudável e equilibrada sei que quero e preciso de companhia. Precisar dos outros é aprender todos os dias sobre a força do coletivo, é desejar fazer parte de algo muito maior, é abrir mão do processo extremo de individuação e de egoísmo. Eu quero ser uma companhia mais agradável para mim e para os outros.

Família é puro conforto espiritual, é aquele seleto grupo de pessoas que não escolheram estar ao seu lado (pelo menos não conscientemente) e que te aguentam, independente de quem você seja ou quão diferente e irritante você é. Isso é bom, mas pode ser também muito cômodo. Esse amor tão incondicional e “de graça” nos fortalece e é vital durante a nossa infância, mas como adultos nem sempre nos convida a sermos melhores para o mundo. O mundo em si não tolera suas faltas com a mesma facilidade, então é importante fazer bem o “dever de casa”.

E hoje, sem os eventos e reuniões familiares na agenda, sobra tempo de qualidade para dedicar à mim e aos outros e faço questão de preenchê-lo com bons momentos e companhia; procuro ambientes acolhedores e estar com aqueles que fazem questão de ter minha companhia e que me acolhem de peito aberto; amigos de quem a companhia eu faço questão de ter e quem acolho inteiramente.

E assim a vida tem me proporcionado muitos encontros maravilhosos e inesperados que se tornam atemporais por serem feitos de pessoas presentes e inteiras. É como se eu sentisse em todos que encontro uma pequena amostra de família. Porque no fundo, agora sei, que é isso mesmo: somos todos parte de uma grande e diversa família. Minha família é o mundo.

A menina que mentia demais

A menina que mentia demais

Em seu livro clássico “Coerção e suas implicações”, Sidman fala sobre como a punição pode ser ineficiente para mudar comportamentos – primeiro porque punir não ensina como se comportar, mas apenas como não se comportar – e segundo que as pessoas podem manter o comportamento punido, mas agora de forma encoberta. É como um filho que é ameaçado pelo pai se tirar notas vermelhas e, ao receber o boletim, esconde-o para não ser pego. Ou o namorado que já foi pego traindo a namorada e quase a perdeu e agora exclui seus rastros digitais apagando conversas no Facebook e no Whatsapp para que não seja punido com a perda do relacionamento.

O comportamento de mentir, dentro desse contexto, pode ser extremamente importante para esconder comportamentos que possuem grande possibilidade de serem punidos. Vejamos um caso que ocorreu comigo:

Faz alguns anos que conheci uma menina. Ela gostava de inventar histórias absurdamente desnecessárias. Criava todo tipo de mentira para as coisas mais simples: se estivesse comendo um bolo de chocolate e alguém lhe perguntasse o sabor do bolo, diria baunilha.

Nem sempre, no entanto, suas mentiras eram inofensivas. Muitas vezes ela inventava histórias sobre as pessoas, criando confusões entre seus amigos. Chegou a dizer para o namorado de uma moça que sua namorada estava dando em cima dela e que elas tinham um caso. Contava também histórias de viagens para diversos países e fantasiava com praticamente qualquer assunto banal.

Aquela história me deixou intrigado, mas, ao mesmo tempo, me fez pensar que eu já conhecera várias pessoas que eram daquele jeito. Por que alguém mentiria tanto de forma aparentemente desnecessária? Fiquei imaginando que, segundo a Análise do Comportamento, um comportamento se mantém frequente se for reforçado, ou seja, o ambiente precisa oferecer algo agradável para que ela se mantenha mentindo tanto. Mas, o que seria? A mentira parecia sempre lhe trazer desvantagens: afastou-se da maioria dos amigos, era extremamente criticada por todos e muitas vezes chegava a ser xingada de mentirosa, falsa etc.

Se o presente não explicava muito bem aquele comportamento de mentir compulsivamente, então o passado explicaria. Fui atrás de sua história de vida.

Contaram-me que ela teve uma infância muito difícil, principalmente por conta da agressividade excessiva do pai. Este, um policial militar estressado, batia tanto nela quanto nos irmãos por qualquer motivo – parece que também era violento com a esposa, transformando o clima na casa em um inferno para todos.

Imaginemos o comportamento de mentir dentro de uma casa em que um homem muito violento convive. Mentir pode salvar a pele de muitas situações. Fiquei imaginando essa menina que mentia demais quebrando um vaso e o pai perguntando quem quebrou. Mentir a salvaria de uma surra. Diversas situações podem ter ocorrido para que inventar histórias absurdas lhe trouxesse a oportunidade de não apanhar.

Outra consideração importante para se lembrar é que nenhum comportamento se mantém sem uma função – se ele perde sua função, deixa de existir (é extinto).

A menina cresceu. O comportamento de mentir perdeu a função inicial de livrá-la das surras do pai e, ao mentir como adulta, era muito mais fácil de ser descoberta – seus amigos percebiam as incoerências em seus discursos, ela era mais facilmente “desmascarada”. A complexidade de sua vida social (diferente da simplicidade da vida de uma criança) também tornava o comportamento de mentir muito mais difícil e a punição mais provável. Portanto, o comportamento dela de mentir diminuiu progressivamente.

Mentir, entretanto, ainda poderia ter suas utilidades. Um mesmo comportamento pode mudar de função e manter-se na mesma pessoa. Essa garota, então, encontrou uma forma de mentir que lhe seria útil, aceita e reforçada social e economicamente: ela se tornou uma grande atriz.

SIDMAN, Murray. Coerção e suas implicações. Editora Livro Pleno, 2009.
Fonte indicada: Comportese

Amor é incompreensão

Amor é incompreensão

Quando se ama, o pior inimigo não é, como dizem por aí, o costume. Ele pode ser traduzido em intimidade, à guisa de elogio. A rotina pode ser deliciosa, porto seguro da alma. A mesmice do outro não é chatice, é repouso. A repetição de seu ser nos acolhe como o café fumegante depois do almoço.

A duração de um amor não esbarra nisso. É a idealização das escolhas que a abala. Somos tolos como insetos em volta da lâmpada. Ficamos trocando de parceiro, renovando a expectativa de algo maior, relançando as apostas num encontro absoluto. Balela, amar é combater o desencontro a cada dia. Escute Clarice Lispector: “pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente”.

O convívio não destrói o mistério, pelo contrário. Viver uma vida inteira ao lado de alguém é resignar-se a jamais decifrá-lo. Não nos saciaremos um no outro. Ele nunca chegará a nos pertencer definitivamente. Um rio separa os amantes, travessias são possíveis, mas as margens não se fundirão. Gulosos, consideramos que a felicidade seria fazer-se um: queremos mais do que encaixe, o objetivo é zerar a distância, anular a diferença.

Nesse caso, melhor casar com o espelho ou seguir em busca desse par perfeito, pulando de promessa em promessa, procurando no amor o tesouro escondido da felicidade. O problema é que amor e felicidade sofrem da mesma sina.

São inflacionados, acima de tudo incompreendidos e costumam não ser reconhecidos quando estão presentes. Por natureza, eles são discretos, deixam-se estar, suaves, dispostos a um bom papo. Mas em geral são ignorados. Depois de um tempo, partem incógnitos. Os que não souberam reconhecê-los sequer têm motivo para lamentar por isso, a ignorância protege.

Já a paixão e a euforia nunca passam despercebidas, causam furor quando chegam e todos querem ser vistos a seu lado. São barulhentas e somem sem que se saiba quando foi que a ressaca tomou seu lugar. Os amantes ingênuos são mais afeitos ao estilo dessas últimas. Como num parque de diversões, ficam em longas filas, por meses, anos, na chatice da espera, para viver instantes de vertigem.

Prefiro gastar meu prazo tomando um vinho com a intimidade. Essa, vos asseguro, é mais próxima da felicidade. Acho que nunca terminarei de comemorar a permanência do amor como um presente diário. Um pacote que nunca abro. O mistério de seu conteúdo faz parte da felicidade de tê-lo em mãos.

Diana Corso é psicanalista e autora do livro Fadas no Divã. Escreve há dois anos para Vida Simples.

Fonte indicada: para conhecer mais o pensamento da escritora, recomendamos o site Vida Simples

Aproximar a escola do aluno, o maior desafio do século 21

Aproximar a escola do aluno, o maior desafio do século 21

Matéria de TATIANE CALIXTO

Métodos do século 19, mais professores do século 20 e alunos do século 21. Desta forma, a conta da educação não fecha. É assim que o educador e filósofo Mario Sérgio Cortella analisa o dia a dia das salas de aula no País. A solução, porém, não é apenas empurrar a tecnologia para dentro da escola. Para Cortella e especialistas, é fundamental entender o papel do professor e levar em consideração o mundo dos alunos.

“Muitos professores falam: ‘os alunos não são mais os mesmos’.Então eu me pergunto:por que eles dão aula do mesmo jeito?”, questiona Cortella, provocador. Segundo ele, para conseguir minimizar os conflitos,o professor precisa ficar atento ao que é arcaico – do passado e que lá deve ficar – e ao que é tradicional e deve ser levado para sempre. Já sobre o novo, tecnologia, por exemplo, ele garante que é preciso entender o papel que ela deve ter.

“Tecnologia é ferramenta. O principal é entender o que emociona nossos alunos e trabalhara partir disso, usando a tecnologia como ponte”. Em sua opinião, a internet proporciona informação. Mas informação é apenas o caminho para se alcançar o conhecimento.E é do professor a tarefa de conduzir isso.

A consultora de Educação da Bett Brasill, Vera Cabral Costa, pensa semelhante. Segundo ela, professor não é a fonte única do conhecimento e o Google está aí para provar isso. O que aprender também mudou e datas e “decorebas” hoje não fazem diferença, já que a informação está disponível em todo lugar.”O que vale é a capacidade de usar a informação e transformá-la em conhecimento. A tecnologia não desvaloriza a profissão docente. Ao contrário. De transmissor do conhecimento, o professor passa a ser o maestro da transformação do aluno em cidadão autônomo”.

Barreiras

Andrea Guedes tem 35 anos e é professora orientadora de informática educacional (poie). Ela concorda que as aulas devem ser mais atrativas para que a aprendizagem dos alunos possa ser mais efetiva. No entanto, há barreiras a vencer, para que a teoria de aulas dinâmicas para atender essa nova geração de alunos vire prática. “Hoje a informática, que é como que trabalho, por si só não é uma novidade para os alunos. O papel dela é contribuir como ensino em todas as outras matérias. Mas isso ainda acontece de diferentes formas”.

Para Andrea, a rede particular consegue integrar melhor a tecnologia às disciplinas. Já na rede pública, a questão esbarra na demora burocrática para que os equipamentos cheguem às salas de aulas.”Há também a resistênciade alguns professoresa ferramentas tecnológicas.Por outro lado, muitos educadores trabalham mais de um período e falta tempo para que eles se qualifiquem”. Na opinião dela,pensar na educação do século 21 é equacionar esses problemas.

Indisciplina

Porém, nada assusta mais no dia a dia escolar do que a indisciplina, diz Cortella. E isso, afirma, vem de casa. ” Os pais de agora tiveram um descuido:acharam que seus filhos eram seus pares e não seus subordinados”. Assim, para ele, as crianças crescem confundindo desejo com direito e um exercício na escola é uma afronta.

Além disso, o cotidiano que deixa os pais mais ausentes também impacta. “Às vezes, o primeiro adulto que o aluno vê no dia é o professor perguntando da lição e exigindo disciplina. Aí ele vai para cima mesmo”. Por isso, Cortella defende que trabalhar a indisciplina não deve ser uma ação isolada entre professores; precisa fazer parte de um projeto político pedagógico e que, necessariamente, precisa do apoio da família.

Fonte indicada: A Tribuna (site altamente recomendado pela contundência e a coerência de suas abordagens temáticas)

A inspiração como guia

A inspiração como guia

Por Clara Baccarin

Sigo por caminhos, atalhos e matas inexploradas. Meus guias são a intuição e a brisa do (a)mar.

Paro e me demoro quando encontro no meio do caminho picos de visão ampla e clara.

Sigo a borboleta amarela que se perde no meio da mata fechada, vou atrás dela sem medo de me perder e continuo seguindo-a por um bom tempo, mesmo depois de tê-la perdido de vista. Pelos sentidos continuo sentindo o rastro dela dentro de mim. E eu sigo neste caminho até que se esgotem presença e lembrança.

Quando a beleza acaba, eu paro, respiro, medito. E quando estou pronta novamente, ouso espiar novas vidas renascendo.

Então eu sigo as pegadas de bicho grande e desconhecido só para, com o coração descompassado outra vez, encontrar olhares selvagens e misteriosos que me fazem me perder num mar de encantamento.

Sigo com o pensamento as curvas dos tantos galhos da árvore idosa, retorcidos e altos, tentando alcançar o céu. Eu vou com eles.

Sigo a dança das nuvens que criam histórias para depois desmancha-las no tempo. As formas sendo desfiguradas pelo vento. A vida em movimentos constantes, formando outras imagens, paisagens e sentimentos. Para depois desmanchar tudo outra vez.

Sigo o barulho do mar, mesmo sem vê-lo. Será que existe? Será que eu o encontrarei? Sigo o seu cheiro que vem e vai como o balanço das marés.

Sigo a beleza de uma mão estendida e de um sorriso vivo que me trazem momentos de certeza e alegria por poderem me mostrar um percurso que eu não conhecia. Sigo de mãos dadas por um tempo.

Sigo os encantos, os instantes que me tocam, por isso não posso te contar qual é a fórmula do meu caminho, não sei dar as coordenadas, não sei dizer se é calmo ou labiríntico, não sei dizer se é seguro. Não sei dizer se me encontro ou se me perco.

Só posso dizer que eu sigo o que me amplia a visão, o que me desperta e instiga e mesmo que por vezes eu morra, renasço ainda mais viva.

Eu sigo apenas o que me inspira.

“O casamento é um risco para a vida das mulheres”, diz médica especialista em saúde mental feminina

“O casamento é um risco para a vida das mulheres”, diz médica especialista em saúde mental feminina

Por Débora Fogliatto

A cidade de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, recebeu uma série de formações em gênero e saúde mental promovidas pelo projeto Girassóis. Os cursos foram iniciados em março de 2014 e divididos em três datas, que capacitaram profissionais da saúde, da rede de enfrentamento à violência contra a mulher e lideranças comunitárias. Uma das pessoas que tornou essa medida possível foi a médica baiana Maria José Araújo, que esteve na cidade na última terça-feira (7) para participar do Seminário Gênero, componente essencial na atenção à saúde mental das mulheres. Ela trabalhou como consultora para o projeto, desenvolvido pelo Coletivo Feminino Plural.

Maria José formou-se inicialmente em Pediatria, carreira que ela logo abandonou para fazer mestrado em Saúde Mental Materna e Infantil na França, seguido de uma formação em Ginecologia de Atenção Primária na Suíça. Paralelamente, é ativista pelos direitos das mulheres e uma das fundadoras da Rede Feminista de Saúde, além de coordenadora da área técnica de Saúde da Mulher no Ministério da Saúde, no primeiro mandato do presidente Lula, e coordenadora, no Brasil, da instituição internacional “Médicos pelo direito a decidir”. Em 2005, Maria José foi uma das 52 brasileiras indicadas pelo projeto 1000 Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz. A iniciativa selecionou mil mulheres ao redor do mundo todo indicadas para o prêmio como forma de criticar o fato de apenas 11 mulheres o terem recebido durante seus 113 anos.

Ela critica as desigualdades e violências que afetam as mulheres, causando problemas psiquiátricos

Nesta entrevista ao Sul21, ela analisa as questões que relacionam gênero e saúde mental, defendendo que as mulheres têm mais problemas psiquiátricos (elas são 74% da população que toma remédios para estas doenças) devido às desigualdades, violências e pressões sociais sofridas. As políticas públicas voltadas à saúde mental, porém, não fazem esse recorte, critica ela. “Não tem nenhuma base no sentido de mudar um pouco a autoestima das mulheres, de tentar interferir na questão da violência, no auto-conhecimento, na tripla jornada, na discriminação que as mulheres sofrem”, aponta.
Essa violência que as mulheres sofrem na sociedade pode ser tanto física quanto psicológica. “É real a violência psicológica. Tanto é real que está categorizada na lei Maria da Penha, mas as mulheres às vezes nem percebem que estão sofrendo com essa violência que não deixa marca física, mas deixa marca emocional”, avalia a médica. Isso passa por questões de autoestima, determinada sempre pelo “olhar masculino”, segundo ela, que faz com que as mulheres tenham cada vez mais problemas de saúde. Confira a entrevista completa:

contioutra.com - “O casamento é um risco para a vida das mulheres”, diz médica especialista em saúde mental feminina
07/07/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Maria José de Oliveira Araújo, especialista em saúde da mulher pela Sorbonne participa do encontro de entidades da saúde de Canoas que discute nova abordagem para a saúde mental das mulheres. | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Sul21 – Como começou o seu envolvimento com o Projeto Girassóis?

Maria José – A gente [ela e o Coletivo Feminino Plural] faz parte da mesma rede, a Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos, já trabalho com o coletivo há muitos anos. E com o começo desse projeto, elas precisavam de uma pessoa que tivesse uma visão de saúde mental distinta, que contemplasse as questões de direitos humanos, gênero e vulnerabilidade, com outro olhar sobre a saúde mental das mulheres. E eu venho trabalhando com isso há bastante tempo, por isso me convidaram para ser consultora do projeto e fiquei muito feliz.
“Têm questões relacionadas à biologia e à socialização que exigem políticas diferentes”

Sul21 – Muitos profissionais da área parecem ainda não ter formação nesse sentido, nem a percepção da relação entre gênero e saúde mental. Como a senhora percebe essa questão?
Maria José – É, na verdade as políticas públicas homogenizam todo mundo. Fora as políticas de pré-natal, parto e aborto, as políticas públicas de saúde são políticas globais, que não contemplam essa questão. Não são elaboradas a partir de uma percepção de que as mulheres têm determinantes da saúde diferentes dos homens. Têm questões relacionadas à biologia e à socialização que exigem políticas diferentes, com outros olhares, outras abordagens, outras percepções. Quando sai uma política de saúde mental, ela sai para todo mundo. Não tem nenhuma base no sentido de mudar um pouco a autoestima das mulheres, tentar interferir na questão da violência, no auto-conhecimento, na tripla jornada, na discriminação que as mulheres sofrem. [Essas políticas] homogenizam o que é desigual, Muitas vezes são inadequadas, a visão e a abordagem.

Então a mulher com sofrimento psíquico vai permanentemente no serviço de saúde e não consegue ter suas questões resolvidas justamente por isso. Enquanto as políticas públicas não conseguirem ter essa abordagem, mulheres vão continuar sem ter suas questões resolvidas.

Sul21 – Isso tem também a ver com toda a questão da autoimagem da mulher, da pressão da mídia e da sociedade sobre os corpos das mulheres?
Maria José – Exatamente. O Brasil é um dos países do mundo em que mulheres mais fazem cirurgias plásticas. A autoestima das mulheres é sempre baseada no olhar masculino, são os homens que determinam o valor das mulheres e dão status. Não é por acaso que é um dos países onde elas mais são considerada como objetos. Pelo comportamento, tipo de roupa, por essa questão da cirurgia plástica. Eu estava em um debate onde uma das debatedoras disse que fizeram uma pesquisa com as meninas de 15 anos e o presente que elas pedem nos aniversários é botar silicone nos seios. Com 15 anos! É tão complicado isso, essa questão da mulher como objeto. Eu achava até que isso tinha melhorado, mas nos últimos dois anos acho que regrediu.
“A [violência] psicológica, às vezes, a mulher nem percebe, são as micro violências cotidianas”

Sul21 – Tem a questão da violência que é perpetuada em casa, não apenas física, mas também psicológica.

Maria José – E a violência psicológica não é nunca relatada. A física e sexual, embora muitas mulheres não denunciem, outras o fazem. Enquanto a [violência] psicológica, às vezes, a mulher nem percebe, são as micro violências cotidianas: “Você é feia, burra, tem o peito caído, está gorda, não entende nada, você é incapaz, não presta para nada”. Esse tipo de violência, que é sutil, vai minando a autoestima das pessoas o tempo inteiro. Toda mulher que sofre violência tem muito baixa autoestima, ou porque sofre violência há muito tempo, ou porque a mãe já sofria violência e cresceu vendo aquilo. É real a violência, tanto é real que está categorizada na lei Maria da Penha, mas as mulheres, às vezes, nem percebem que estão sofrendo com essa violência que não deixa marca física, mas deixa marca emocional.

Sul21 – Em comparação com outros países, se a sociedade for menos machista, percebe-se uma diferença na saúde mental das mulheres?
Maria José – Eu acho que sim. Quanto mais as mulheres têm autoestima, são menos discriminadas, se valem por elas mesmas, a saúde mental melhora demais. As mulheres casadas que têm mais de três filhos, isso é um risco para a saúde mental. Porque são elas que fazem tudo, cuidam da casa, criam as crianças sozinhas, são elas que abortam, elas que gerenciam a casa. Quando chegam do trabalho, se forem pobres, vão ter que fazer de novo tudo que fizeram na casa da patroa; se não forem pobres, de qualquer forma têm que cuidar das crianças, ajudar nos deveres da escola. É uma sobrecarga que não termina nunca. Então, o casamento é um risco para a vida das mulheres. Infelizmente, essa é a realidade. Porque aumenta demais a sobrecarga de trabalho.

Eu tenho uma reflexão, acho que no Brasil a maioria das mulheres de classe média e alta só está junto com os homens porque têm empregada doméstica. É um amortecedor da falta de apoio, da falta de divisão sexual do trabalho, porque os homens e os filhos não fazem nada. Tem um círculo vicioso que as mulheres não conseguem sair, e aí é uma sobrecarga de saúde mental. Por isso que elas são 74% dos consumidores de remédios psiquiátricos, porque tem que ter alguma válvula de escape.

“Não tem uma reflexão de que é a vida dela que provoca aquele mal estar”

Sul21 – E ao mesmo tempo, parece que muitas vezes os problemas das mulheres não são levados a sério, e elas mesmas não percebem.
Maria José – Elas muitas vezes não percebem o círculo vicioso em que entram. Sabem que se sentem mal, mas não sabem o porquê. Não tem uma reflexão de que é a vida dela que provoca aquele mal estar: a infelicidade, sobrecarga de trabalho, violência. Há muitas mulheres hoje que conseguem perceber, mas é lento o processo.

“Transformam o que é do cotidiano do ser humano em doença, e assim o primeiro passo é a medicalização”

Sul21 – Atualmente, os cuidados de saúde mental são muito voltados para a medicalização. Quais os efeitos disso?
Maria José – Olha, eu sou médica, acho que alguns casos precisam de medicamento. Uma depressão grave, severa, provavelmente tanto homens quanto mulheres precisam de medicamentos, além de apoio de uma terapia, de um profissional. Mas só pelo número já dá para ver que existe um abuso de medicação. Todas as queixas das mulheres para ginecologistas, obstetras e psiquiatras, são imediatamente medicalizadas. Uma pessoa que perdeu a mãe, por exemplo, tanto homens quanto mulheres, é normal que a pessoa chore, sinta tristeza, sinta seu luto. Mas o próprio manual de Doenças Mentais, o DSM, traz que 15 dias de luto já é uma doença mental. Ou seja, transformam o que é do cotidiano do ser humano em doença, e assim o primeiro passo é a medicalização. Nessa sociedade capitalista, pós-moderna, individualista, as pessoas não podem mais fazer seu luto, de todos os tipos. Como é uma sociedade de supérfluos, de consumismo, que tudo é temporário e descartável, os afetos também viraram descartáveis. Se seu pai, mãe, companheiro ou companheira morre, você tem que, 15 dias depois, já estar numa boa. É todo um conjunto de sintomas da sociedade atual, da contemporaneidade.

Sul21 – E essas questões de saúde mental afetam de forma diferente em função da raça ou da classe social?
Maria José – Que eu saiba, não tem nenhum estudo no Brasil por exemplo que digam se as mulheres negras tomam mais medicamentos psiquiátricos ou não. Na minha cidade, Salvador, 70% das mulheres são negras, então… eu não tenho dados científicos, mas pode ser que sejam mais medicalizadas, porque têm acesso a serviços de saúde que não são de boa qualidade, estão nas camadas mais pobres, são mais discriminadas. É só ver o que aconteceu com a Maju, a mulher do tempo no Jornal Nacional, que foi alvo de piadas discriminatórias*. Tinha um comentário que dizia: “onde eu posso comprar essa escrava?”, ou seja, estamos num país totalmente machista e racista. Então, isso acontece com uma mulher que está no Jornal Nacional, que é uma mulher culta, que todo mundo elogia o trabalho dela, e mesmo assim os comentários nas redes sociais são terríveis. Eu fiquei chocada, eu imagino que podemos inferir que as mulheres negras tomam mais medicamentos psiquiátricos, até porque as mulheres brancas são discriminadas por serem mulheres, mas não por sua cor.

*A apresentadora da Rede Globo Maria Júlia Coutinho foi alvo de diversos comentários racistas pela internet, na semana passada. As mensagens foram enviadas após a emissora publicar no Facebook uma foto da apresentadora.

Fonte indicada: Sul 21

“Divago, quando o que quero é dizer que te amo”, conheça esta declaração de amor de Adélia Prado

“Divago, quando o que quero é dizer que te amo”, conheça esta declaração de amor de Adélia Prado

Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia, eu que já amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado, onde tem o desenho cômico de um peixe — os lábios carnudos como os de uma negra.

Divago, quando o que quero é só dizer te amo.

Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba.

Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:

“Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.

Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.

Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos.

Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.

Amo até a barata, quando descubro que assim te amo, o que não queria dizer amo também, o piolho.

Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal.

Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.

Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.

Adélia Prado

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