Há três anos, uma amiga deixou a cidade grande com a família em busca de uma vida mais saudável e economicamente mais justa para criar seus filhos. Foi para o interior. Optou por uma cidade com boas escolas onde todos poderiam continuar tendo acesso à cultura e informação.
A família alugou uma bela casa em um bairro super charmoso. Os arredores eram cheios de verde e davam morada a tucanos, canários, sabiás e maritacas.
Ao longo dos anos, entretanto, a realidade mostrou-se mais forte que as expectativas e a família sentiu uma profunda disparidade de valores que ficava mais evidente em ocasiões como reuniões de escola ou até mesmo na convivência com alguns vizinhos.
A princípio eles julgaram que era só uma questão de choque cultural, mas essas diferenças eram superadas facilmente, uma vez que estavam próximos de onde vieram e podiam contar com as visitas frequentes dos amigos e com as idas à cidade que dava continuidade as trocas afetivas que eram tão essenciais para eles, prociando o equilíbrio de que precisavam.
Um ano se passou até que, nas caminhadas que faziam com os cachorros por uma estradinha de terra, antes caminho de pasto da antiga fazenda loteada, começaram a ver a necessidade de sair com um saco de lixo recolhendo garrafas de suco, papéis de bala e picolé, latas e todo tipo de coisa que as pessoas, simplesmente jogavam pelo caminho.
Notaram ainda que, apesar da grande lixeira estar a pouco mais de 200 metros das casas do quarteirão, poucos eram os que se davam ao trabalho de ir até lá deixar os restos do dia ou da semana. O lixo, constantemente atacado por animais, continuaria se espalhando eternamente e de nada adiantaria todo este trabalho.
O tempo seguiu e os vizinhos começaram a espalhar também os restos de suas obras pela pequena estradinha que antes fora tão charmosa e as caminhadas tornaram-se desagradáveis. Ladrilhos, pregos, pedaços de arame farpado, canos e tubulações por toda parte.
Nesse meio tempo, houve tentativas de aproximar os filhos das crianças locais para que tivessem uma infância saudável de brincadeiras na rua. Não funcionou. O linguajar, não raro, lotado de palavrões e hábitos singulares acabou por separá-los.
Tudo isso começou a faze-los pensar na necessidade de uma nova mudança, mas, devido à dificuldade de se encontrar uma boa casa, resolveram procurar com calma, até que, há algumas semanas, uma vizinha próxima foi até eles aos berros e palavrões de quinta, ameaçando e reclamando das “fezes” dos cães na porta de sua casa.
Como vários cachorros, assim como vacas e cavalos, passeiam livremente a noite, isto não queria dizer que seriam cães deles. Mesmo assim, o que a vizinha chamava de “porta da sua casa” é, na verdade, um canto da estrada com pequenos arbustos adorados pelos cães. Mas não existem argumentos possíveis diante da ignorância. Ela continuou a atacá-los de maneira veemente.
Claro que, durante os anos em que viveram nessa região, a família já conheceu exceções, porém, em se tratando de Brasil, infelizmente esse tipo de comportamento vem se tornando uma regra.
Espero que encontrem um lugar melhor para viver.
Toda esta história me fez pensar. Tenho me dado conta de que, o que de fato separa as pessoas não é a religião, o gênero, orientação sexual, raça ou nacionalidade. O que separa as pessoas é a educação, ou a falta dela. O resto parece ser consequência.
A educação real nos mostra os limites de até onde podemos ir sem prejudicar quem esta ao lado. É a compaixão. Nos da o senso comum, ético e moral, e sem eles não podemos viver em sociedade. A falta dela, nos torna intolerantes, desagradáveis, mesquinhos, verdadeiros parasitas da sociedade. Um cardume nadando contra a maré, ou será a favor? Nem sei mais. Os valores andam tão equivocados que já ando meio perdida.
Partindo deste princípio, podemos encontrar o porquê de tantas discrepâncias do mundo atual, entender as guerras e os preconceitos: frutos da ignorância (ausência de informação) e da falta de educação.
O que nos diferencia dos países chamados do primeiro mundo, não é o poder econômico, mas a porcentagem de pessoas com direito à educação.
Ao contrário do que muitos pensam, a educação nos liberta e nos unifica. Quando privilegiamos a educação, respeitamos as diferenças e tiramos proveito delas para crescer e nos fortalecemos como país.
A história que acabo de narrar é triste. Ao longo da minha vida, vivi em diferentes países e, em cada um, meu nome ou condição social de origem de nada me atrapalharam. Em todos me foi dada a chance de aprender a cultura local, mostrar meus talentos, desenvolver meu trabalho com seriedade e mostrar que eu valia a pena. Dessas experiência, guardo alegrias e amigos preciosos. Pude ainda participar de movimentos importantes em prol de interesses locais, como ajudar a salvar uma árvore centenária do corte em uma pequena comunidade.
Temos que entender de uma vez por todas que não adianta lamentarmos. Quem faz um país é o povo e não meia dúzia de pessoas que porventura estejam no poder. Se vivemos no meio do lixo, é nossa responsabilidade limpar a casa.
Esses dias duas amigas que iam viajar viveram um dilema, uma delas por motivos pessoais teve que cancelar a viagem de última hora, a outra seguiu viagem sozinha. Uma das coisas que disse para a que foi é que viajar sozinha pode ser maravilhoso, porque nós nos permitimos muito mais e nos abrimos para encontros inusitados que surgem em qualquer momento da jornada. Quando viajamos sozinhos, ter um pouco de companhia vira necessidade básica e é por isso que nos abrimos. Eu já viajei sozinha algumas vezes, nunca me senti inteiramente só. Com certeza foram as viagens em que mais conheci pessoas diferentes e com elas vivi momentos muito especiais.
Eu conto isso porque hoje vivo algo parecido já que não tenho família perto. Eu tive um “timing” diferente dos meus irmãos, logo que me formei coloquei o pé na estrada, de turismóloga virei turista, entre idas e vindas, passei muitos anos longe. Quando decidi voltar para ficar, minha irmã havia casado e iniciava com sua família uma peregrinação pelo país, atualmente eles moram em Manaus, mas já moraram em outras cidades. Meu irmão também resolveu se aventurar e fez da terra do Tio Sam sua morada. E, por diversos motivos, eu fiquei. Hoje, meu pai se foi desse plano físico, minha mãe está sob os cuidados da minha irmã em Manaus. E eu escolhi ficar.
Ainda tenho parentes aqui, tios e poucos primos, tenho também minha madrasta e seus filhos que são como uma família para mim, tenho amigos de longa data, mas família de primeiro grau e sangue mesmo, da maneira como conheci, pai, mãe, irmãos, esses por perto não tenho mais. Esse poderia ser um texto triste e pedante, mas eu sinto o contrário. O que sinto hoje é o mesmo que disse para minha amiga antes dela viajar sozinha, a solidão nos força a abrir o coração para o mundo de uma maneira que nunca antes imaginamos, porque nos tira totalmente da zona de conforto, porque nos faz precisar do outro. Saber que você precisa do outro é um grande antídoto para o processo de anestesiamento espiritual. O outro te convida a abrir o coração, a ser melhor e a estar presente.
Sim é certo, a orfandade não é algo tão fácil, às vezes pode ser profundamente amedrontador. É mais do que não ter onde almoçar aos domingos, é mais do que não ter um colo para chorar. É muito mais que não ter com quem trocar presentes no Natal. Não ter família presente e perto é coisa séria que exige muita força, é aprender a viver sem nossos maiores conselheiros e incentivadores, é aprender a tomar decisões importantes na vida sozinha. Ser órfã requer um tipo de coragem que preciso reconstruir e revisitar todos os dias. E que todos os dias me faz lembrar que preciso ter mais valia para o mundo.
Com tudo que vivi aprendi muito sobre o valor do tempo. Tempo é algo muito precioso, a vida é mesmo impermanente. A melhor maneira que existe de colecionar boas recordações sem arrependimentos é estando presente naquele momento por inteiro. Eu tive tempo de qualidade com meu pai e meus irmãos. Eu me dediquei para minha mãe. Por isso sei o que é ter uma família, sei a importância que existe nesse sentimento de pertencimento. Esses valores são muito fortes em mim e só porque tive tudo isso hoje não me sinto carente ou sozinha.
Além disso, desde que fiquei órfã de pai e mãe como os conheci aprendi a cuidar melhor de mim, porque ninguém vai me dar colo. Aprendi que caminhar em boa companhia é melhor do que estar sozinha, mas que é melhor estar só do que em má companhia. Hoje tenho uma grande família, uma família estendida feita de muitos bons amigos e parentes que me acolhem e estranhos que rapidamente se tornam grandes amigos. Uma família feita de pequenos gestos de gentileza e fragmentos de tempo e momentos vividos com qualidade.
Depender assim dos outros é um processo bem vulnerável e complexo, ao mesmo tempo que é belo. E de maneira saudável e equilibrada sei que quero e preciso de companhia. Precisar dos outros é aprender todos os dias sobre a força do coletivo, é desejar fazer parte de algo muito maior, é abrir mão do processo extremo de individuação e de egoísmo. Eu quero ser uma companhia mais agradável para mim e para os outros.
Família é puro conforto espiritual, é aquele seleto grupo de pessoas que não escolheram estar ao seu lado (pelo menos não conscientemente) e que te aguentam, independente de quem você seja ou quão diferente e irritante você é. Isso é bom, mas pode ser também muito cômodo. Esse amor tão incondicional e “de graça” nos fortalece e é vital durante a nossa infância, mas como adultos nem sempre nos convida a sermos melhores para o mundo. O mundo em si não tolera suas faltas com a mesma facilidade, então é importante fazer bem o “dever de casa”.
E hoje, sem os eventos e reuniões familiares na agenda, sobra tempo de qualidade para dedicar à mim e aos outros e faço questão de preenchê-lo com bons momentos e companhia; procuro ambientes acolhedores e estar com aqueles que fazem questão de ter minha companhia e que me acolhem de peito aberto; amigos de quem a companhia eu faço questão de ter e quem acolho inteiramente.
E assim a vida tem me proporcionado muitos encontros maravilhosos e inesperados que se tornam atemporais por serem feitos de pessoas presentes e inteiras. É como se eu sentisse em todos que encontro uma pequena amostra de família. Porque no fundo, agora sei, que é isso mesmo: somos todos parte de uma grande e diversa família. Minha família é o mundo.
Em seu livro clássico “Coerção e suas implicações”, Sidman fala sobre como a punição pode ser ineficiente para mudar comportamentos – primeiro porque punir não ensina como se comportar, mas apenas como não se comportar – e segundo que as pessoas podem manter o comportamento punido, mas agora de forma encoberta. É como um filho que é ameaçado pelo pai se tirar notas vermelhas e, ao receber o boletim, esconde-o para não ser pego. Ou o namorado que já foi pego traindo a namorada e quase a perdeu e agora exclui seus rastros digitais apagando conversas no Facebook e no Whatsapp para que não seja punido com a perda do relacionamento.
O comportamento de mentir, dentro desse contexto, pode ser extremamente importante para esconder comportamentos que possuem grande possibilidade de serem punidos. Vejamos um caso que ocorreu comigo:
Faz alguns anos que conheci uma menina. Ela gostava de inventar histórias absurdamente desnecessárias. Criava todo tipo de mentira para as coisas mais simples: se estivesse comendo um bolo de chocolate e alguém lhe perguntasse o sabor do bolo, diria baunilha.
Nem sempre, no entanto, suas mentiras eram inofensivas. Muitas vezes ela inventava histórias sobre as pessoas, criando confusões entre seus amigos. Chegou a dizer para o namorado de uma moça que sua namorada estava dando em cima dela e que elas tinham um caso. Contava também histórias de viagens para diversos países e fantasiava com praticamente qualquer assunto banal.
Aquela história me deixou intrigado, mas, ao mesmo tempo, me fez pensar que eu já conhecera várias pessoas que eram daquele jeito. Por que alguém mentiria tanto de forma aparentemente desnecessária? Fiquei imaginando que, segundo a Análise do Comportamento, um comportamento se mantém frequente se for reforçado, ou seja, o ambiente precisa oferecer algo agradável para que ela se mantenha mentindo tanto. Mas, o que seria? A mentira parecia sempre lhe trazer desvantagens: afastou-se da maioria dos amigos, era extremamente criticada por todos e muitas vezes chegava a ser xingada de mentirosa, falsa etc.
Se o presente não explicava muito bem aquele comportamento de mentir compulsivamente, então o passado explicaria. Fui atrás de sua história de vida.
Contaram-me que ela teve uma infância muito difícil, principalmente por conta da agressividade excessiva do pai. Este, um policial militar estressado, batia tanto nela quanto nos irmãos por qualquer motivo – parece que também era violento com a esposa, transformando o clima na casa em um inferno para todos.
Imaginemos o comportamento de mentir dentro de uma casa em que um homem muito violento convive. Mentir pode salvar a pele de muitas situações. Fiquei imaginando essa menina que mentia demais quebrando um vaso e o pai perguntando quem quebrou. Mentir a salvaria de uma surra. Diversas situações podem ter ocorrido para que inventar histórias absurdas lhe trouxesse a oportunidade de não apanhar.
Outra consideração importante para se lembrar é que nenhum comportamento se mantém sem uma função – se ele perde sua função, deixa de existir (é extinto).
A menina cresceu. O comportamento de mentir perdeu a função inicial de livrá-la das surras do pai e, ao mentir como adulta, era muito mais fácil de ser descoberta – seus amigos percebiam as incoerências em seus discursos, ela era mais facilmente “desmascarada”. A complexidade de sua vida social (diferente da simplicidade da vida de uma criança) também tornava o comportamento de mentir muito mais difícil e a punição mais provável. Portanto, o comportamento dela de mentir diminuiu progressivamente.
Mentir, entretanto, ainda poderia ter suas utilidades. Um mesmo comportamento pode mudar de função e manter-se na mesma pessoa. Essa garota, então, encontrou uma forma de mentir que lhe seria útil, aceita e reforçada social e economicamente: ela se tornou uma grande atriz.
SIDMAN, Murray. Coerção e suas implicações. Editora Livro Pleno, 2009.
Fonte indicada: Comportese
Quando se ama, o pior inimigo não é, como dizem por aí, o costume. Ele pode ser traduzido em intimidade, à guisa de elogio. A rotina pode ser deliciosa, porto seguro da alma. A mesmice do outro não é chatice, é repouso. A repetição de seu ser nos acolhe como o café fumegante depois do almoço.
A duração de um amor não esbarra nisso. É a idealização das escolhas que a abala. Somos tolos como insetos em volta da lâmpada. Ficamos trocando de parceiro, renovando a expectativa de algo maior, relançando as apostas num encontro absoluto. Balela, amar é combater o desencontro a cada dia. Escute Clarice Lispector: “pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente”.
O convívio não destrói o mistério, pelo contrário. Viver uma vida inteira ao lado de alguém é resignar-se a jamais decifrá-lo. Não nos saciaremos um no outro. Ele nunca chegará a nos pertencer definitivamente. Um rio separa os amantes, travessias são possíveis, mas as margens não se fundirão. Gulosos, consideramos que a felicidade seria fazer-se um: queremos mais do que encaixe, o objetivo é zerar a distância, anular a diferença.
Nesse caso, melhor casar com o espelho ou seguir em busca desse par perfeito, pulando de promessa em promessa, procurando no amor o tesouro escondido da felicidade. O problema é que amor e felicidade sofrem da mesma sina.
São inflacionados, acima de tudo incompreendidos e costumam não ser reconhecidos quando estão presentes. Por natureza, eles são discretos, deixam-se estar, suaves, dispostos a um bom papo. Mas em geral são ignorados. Depois de um tempo, partem incógnitos. Os que não souberam reconhecê-los sequer têm motivo para lamentar por isso, a ignorância protege.
Já a paixão e a euforia nunca passam despercebidas, causam furor quando chegam e todos querem ser vistos a seu lado. São barulhentas e somem sem que se saiba quando foi que a ressaca tomou seu lugar. Os amantes ingênuos são mais afeitos ao estilo dessas últimas. Como num parque de diversões, ficam em longas filas, por meses, anos, na chatice da espera, para viver instantes de vertigem.
Prefiro gastar meu prazo tomando um vinho com a intimidade. Essa, vos asseguro, é mais próxima da felicidade. Acho que nunca terminarei de comemorar a permanência do amor como um presente diário. Um pacote que nunca abro. O mistério de seu conteúdo faz parte da felicidade de tê-lo em mãos.
Diana Corso é psicanalista e autora do livro Fadas no Divã. Escreve há dois anos para Vida Simples.
Fonte indicada: para conhecer mais o pensamento da escritora, recomendamos o site Vida Simples
Métodos do século 19, mais professores do século 20 e alunos do século 21. Desta forma, a conta da educação não fecha. É assim que o educador e filósofo Mario Sérgio Cortella analisa o dia a dia das salas de aula no País. A solução, porém, não é apenas empurrar a tecnologia para dentro da escola. Para Cortella e especialistas, é fundamental entender o papel do professor e levar em consideração o mundo dos alunos.
“Muitos professores falam: ‘os alunos não são mais os mesmos’.Então eu me pergunto:por que eles dão aula do mesmo jeito?”, questiona Cortella, provocador. Segundo ele, para conseguir minimizar os conflitos,o professor precisa ficar atento ao que é arcaico – do passado e que lá deve ficar – e ao que é tradicional e deve ser levado para sempre. Já sobre o novo, tecnologia, por exemplo, ele garante que é preciso entender o papel que ela deve ter.
“Tecnologia é ferramenta. O principal é entender o que emociona nossos alunos e trabalhara partir disso, usando a tecnologia como ponte”. Em sua opinião, a internet proporciona informação. Mas informação é apenas o caminho para se alcançar o conhecimento.E é do professor a tarefa de conduzir isso.
A consultora de Educação da Bett Brasill, Vera Cabral Costa, pensa semelhante. Segundo ela, professor não é a fonte única do conhecimento e o Google está aí para provar isso. O que aprender também mudou e datas e “decorebas” hoje não fazem diferença, já que a informação está disponível em todo lugar.”O que vale é a capacidade de usar a informação e transformá-la em conhecimento. A tecnologia não desvaloriza a profissão docente. Ao contrário. De transmissor do conhecimento, o professor passa a ser o maestro da transformação do aluno em cidadão autônomo”.
Barreiras
Andrea Guedes tem 35 anos e é professora orientadora de informática educacional (poie). Ela concorda que as aulas devem ser mais atrativas para que a aprendizagem dos alunos possa ser mais efetiva. No entanto, há barreiras a vencer, para que a teoria de aulas dinâmicas para atender essa nova geração de alunos vire prática. “Hoje a informática, que é como que trabalho, por si só não é uma novidade para os alunos. O papel dela é contribuir como ensino em todas as outras matérias. Mas isso ainda acontece de diferentes formas”.
Para Andrea, a rede particular consegue integrar melhor a tecnologia às disciplinas. Já na rede pública, a questão esbarra na demora burocrática para que os equipamentos cheguem às salas de aulas.”Há também a resistênciade alguns professoresa ferramentas tecnológicas.Por outro lado, muitos educadores trabalham mais de um período e falta tempo para que eles se qualifiquem”. Na opinião dela,pensar na educação do século 21 é equacionar esses problemas.
Indisciplina
Porém, nada assusta mais no dia a dia escolar do que a indisciplina, diz Cortella. E isso, afirma, vem de casa. ” Os pais de agora tiveram um descuido:acharam que seus filhos eram seus pares e não seus subordinados”. Assim, para ele, as crianças crescem confundindo desejo com direito e um exercício na escola é uma afronta.
Além disso, o cotidiano que deixa os pais mais ausentes também impacta. “Às vezes, o primeiro adulto que o aluno vê no dia é o professor perguntando da lição e exigindo disciplina. Aí ele vai para cima mesmo”. Por isso, Cortella defende que trabalhar a indisciplina não deve ser uma ação isolada entre professores; precisa fazer parte de um projeto político pedagógico e que, necessariamente, precisa do apoio da família.
Fonte indicada: A Tribuna (site altamente recomendado pela contundência e a coerência de suas abordagens temáticas)
Sigo por caminhos, atalhos e matas inexploradas. Meus guias são a intuição e a brisa do (a)mar.
Paro e me demoro quando encontro no meio do caminho picos de visão ampla e clara.
Sigo a borboleta amarela que se perde no meio da mata fechada, vou atrás dela sem medo de me perder e continuo seguindo-a por um bom tempo, mesmo depois de tê-la perdido de vista. Pelos sentidos continuo sentindo o rastro dela dentro de mim. E eu sigo neste caminho até que se esgotem presença e lembrança.
Quando a beleza acaba, eu paro, respiro, medito. E quando estou pronta novamente, ouso espiar novas vidas renascendo.
Então eu sigo as pegadas de bicho grande e desconhecido só para, com o coração descompassado outra vez, encontrar olhares selvagens e misteriosos que me fazem me perder num mar de encantamento.
Sigo com o pensamento as curvas dos tantos galhos da árvore idosa, retorcidos e altos, tentando alcançar o céu. Eu vou com eles.
Sigo a dança das nuvens que criam histórias para depois desmancha-las no tempo. As formas sendo desfiguradas pelo vento. A vida em movimentos constantes, formando outras imagens, paisagens e sentimentos. Para depois desmanchar tudo outra vez.
Sigo o barulho do mar, mesmo sem vê-lo. Será que existe? Será que eu o encontrarei? Sigo o seu cheiro que vem e vai como o balanço das marés.
Sigo a beleza de uma mão estendida e de um sorriso vivo que me trazem momentos de certeza e alegria por poderem me mostrar um percurso que eu não conhecia. Sigo de mãos dadas por um tempo.
Sigo os encantos, os instantes que me tocam, por isso não posso te contar qual é a fórmula do meu caminho, não sei dar as coordenadas, não sei dizer se é calmo ou labiríntico, não sei dizer se é seguro. Não sei dizer se me encontro ou se me perco.
Só posso dizer que eu sigo o que me amplia a visão, o que me desperta e instiga e mesmo que por vezes eu morra, renasço ainda mais viva.
A cidade de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, recebeu uma série de formações em gênero e saúde mental promovidas pelo projeto Girassóis. Os cursos foram iniciados em março de 2014 e divididos em três datas, que capacitaram profissionais da saúde, da rede de enfrentamento à violência contra a mulher e lideranças comunitárias. Uma das pessoas que tornou essa medida possível foi a médica baiana Maria José Araújo, que esteve na cidade na última terça-feira (7) para participar do Seminário Gênero, componente essencial na atenção à saúde mental das mulheres. Ela trabalhou como consultora para o projeto, desenvolvido pelo Coletivo Feminino Plural.
Maria José formou-se inicialmente em Pediatria, carreira que ela logo abandonou para fazer mestrado em Saúde Mental Materna e Infantil na França, seguido de uma formação em Ginecologia de Atenção Primária na Suíça. Paralelamente, é ativista pelos direitos das mulheres e uma das fundadoras da Rede Feminista de Saúde, além de coordenadora da área técnica de Saúde da Mulher no Ministério da Saúde, no primeiro mandato do presidente Lula, e coordenadora, no Brasil, da instituição internacional “Médicos pelo direito a decidir”. Em 2005, Maria José foi uma das 52 brasileiras indicadas pelo projeto 1000 Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz. A iniciativa selecionou mil mulheres ao redor do mundo todo indicadas para o prêmio como forma de criticar o fato de apenas 11 mulheres o terem recebido durante seus 113 anos.
Ela critica as desigualdades e violências que afetam as mulheres, causando problemas psiquiátricos
Nesta entrevista ao Sul21, ela analisa as questões que relacionam gênero e saúde mental, defendendo que as mulheres têm mais problemas psiquiátricos (elas são 74% da população que toma remédios para estas doenças) devido às desigualdades, violências e pressões sociais sofridas. As políticas públicas voltadas à saúde mental, porém, não fazem esse recorte, critica ela. “Não tem nenhuma base no sentido de mudar um pouco a autoestima das mulheres, de tentar interferir na questão da violência, no auto-conhecimento, na tripla jornada, na discriminação que as mulheres sofrem”, aponta.
Essa violência que as mulheres sofrem na sociedade pode ser tanto física quanto psicológica. “É real a violência psicológica. Tanto é real que está categorizada na lei Maria da Penha, mas as mulheres às vezes nem percebem que estão sofrendo com essa violência que não deixa marca física, mas deixa marca emocional”, avalia a médica. Isso passa por questões de autoestima, determinada sempre pelo “olhar masculino”, segundo ela, que faz com que as mulheres tenham cada vez mais problemas de saúde. Confira a entrevista completa:
07/07/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Maria José de Oliveira Araújo, especialista em saúde da mulher pela Sorbonne participa do encontro de entidades da saúde de Canoas que discute nova abordagem para a saúde mental das mulheres. | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Sul21 – Como começou o seu envolvimento com o Projeto Girassóis?
Maria José – A gente [ela e o Coletivo Feminino Plural] faz parte da mesma rede, a Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos, já trabalho com o coletivo há muitos anos. E com o começo desse projeto, elas precisavam de uma pessoa que tivesse uma visão de saúde mental distinta, que contemplasse as questões de direitos humanos, gênero e vulnerabilidade, com outro olhar sobre a saúde mental das mulheres. E eu venho trabalhando com isso há bastante tempo, por isso me convidaram para ser consultora do projeto e fiquei muito feliz.
“Têm questões relacionadas à biologia e à socialização que exigem políticas diferentes”
Sul21 – Muitos profissionais da área parecem ainda não ter formação nesse sentido, nem a percepção da relação entre gênero e saúde mental. Como a senhora percebe essa questão? Maria José – É, na verdade as políticas públicas homogenizam todo mundo. Fora as políticas de pré-natal, parto e aborto, as políticas públicas de saúde são políticas globais, que não contemplam essa questão. Não são elaboradas a partir de uma percepção de que as mulheres têm determinantes da saúde diferentes dos homens. Têm questões relacionadas à biologia e à socialização que exigem políticas diferentes, com outros olhares, outras abordagens, outras percepções. Quando sai uma política de saúde mental, ela sai para todo mundo. Não tem nenhuma base no sentido de mudar um pouco a autoestima das mulheres, tentar interferir na questão da violência, no auto-conhecimento, na tripla jornada, na discriminação que as mulheres sofrem. [Essas políticas] homogenizam o que é desigual, Muitas vezes são inadequadas, a visão e a abordagem.
Então a mulher com sofrimento psíquico vai permanentemente no serviço de saúde e não consegue ter suas questões resolvidas justamente por isso. Enquanto as políticas públicas não conseguirem ter essa abordagem, mulheres vão continuar sem ter suas questões resolvidas.
Sul21 – Isso tem também a ver com toda a questão da autoimagem da mulher, da pressão da mídia e da sociedade sobre os corpos das mulheres? Maria José – Exatamente. O Brasil é um dos países do mundo em que mulheres mais fazem cirurgias plásticas. A autoestima das mulheres é sempre baseada no olhar masculino, são os homens que determinam o valor das mulheres e dão status. Não é por acaso que é um dos países onde elas mais são considerada como objetos. Pelo comportamento, tipo de roupa, por essa questão da cirurgia plástica. Eu estava em um debate onde uma das debatedoras disse que fizeram uma pesquisa com as meninas de 15 anos e o presente que elas pedem nos aniversários é botar silicone nos seios. Com 15 anos! É tão complicado isso, essa questão da mulher como objeto. Eu achava até que isso tinha melhorado, mas nos últimos dois anos acho que regrediu.
“A [violência] psicológica, às vezes, a mulher nem percebe, são as micro violências cotidianas”
Sul21 – Tem a questão da violência que é perpetuada em casa, não apenas física, mas também psicológica.
Maria José – E a violência psicológica não é nunca relatada. A física e sexual, embora muitas mulheres não denunciem, outras o fazem. Enquanto a [violência] psicológica, às vezes, a mulher nem percebe, são as micro violências cotidianas: “Você é feia, burra, tem o peito caído, está gorda, não entende nada, você é incapaz, não presta para nada”. Esse tipo de violência, que é sutil, vai minando a autoestima das pessoas o tempo inteiro. Toda mulher que sofre violência tem muito baixa autoestima, ou porque sofre violência há muito tempo, ou porque a mãe já sofria violência e cresceu vendo aquilo. É real a violência, tanto é real que está categorizada na lei Maria da Penha, mas as mulheres, às vezes, nem percebem que estão sofrendo com essa violência que não deixa marca física, mas deixa marca emocional.
Sul21 – Em comparação com outros países, se a sociedade for menos machista, percebe-se uma diferença na saúde mental das mulheres? Maria José – Eu acho que sim. Quanto mais as mulheres têm autoestima, são menos discriminadas, se valem por elas mesmas, a saúde mental melhora demais. As mulheres casadas que têm mais de três filhos, isso é um risco para a saúde mental. Porque são elas que fazem tudo, cuidam da casa, criam as crianças sozinhas, são elas que abortam, elas que gerenciam a casa. Quando chegam do trabalho, se forem pobres, vão ter que fazer de novo tudo que fizeram na casa da patroa; se não forem pobres, de qualquer forma têm que cuidar das crianças, ajudar nos deveres da escola. É uma sobrecarga que não termina nunca. Então, o casamento é um risco para a vida das mulheres. Infelizmente, essa é a realidade. Porque aumenta demais a sobrecarga de trabalho.
Eu tenho uma reflexão, acho que no Brasil a maioria das mulheres de classe média e alta só está junto com os homens porque têm empregada doméstica. É um amortecedor da falta de apoio, da falta de divisão sexual do trabalho, porque os homens e os filhos não fazem nada. Tem um círculo vicioso que as mulheres não conseguem sair, e aí é uma sobrecarga de saúde mental. Por isso que elas são 74% dos consumidores de remédios psiquiátricos, porque tem que ter alguma válvula de escape.
“Não tem uma reflexão de que é a vida dela que provoca aquele mal estar”
Sul21 – E ao mesmo tempo, parece que muitas vezes os problemas das mulheres não são levados a sério, e elas mesmas não percebem. Maria José – Elas muitas vezes não percebem o círculo vicioso em que entram. Sabem que se sentem mal, mas não sabem o porquê. Não tem uma reflexão de que é a vida dela que provoca aquele mal estar: a infelicidade, sobrecarga de trabalho, violência. Há muitas mulheres hoje que conseguem perceber, mas é lento o processo.
“Transformam o que é do cotidiano do ser humano em doença, e assim o primeiro passo é a medicalização”
Sul21 – Atualmente, os cuidados de saúde mental são muito voltados para a medicalização. Quais os efeitos disso? Maria José – Olha, eu sou médica, acho que alguns casos precisam de medicamento. Uma depressão grave, severa, provavelmente tanto homens quanto mulheres precisam de medicamentos, além de apoio de uma terapia, de um profissional. Mas só pelo número já dá para ver que existe um abuso de medicação. Todas as queixas das mulheres para ginecologistas, obstetras e psiquiatras, são imediatamente medicalizadas. Uma pessoa que perdeu a mãe, por exemplo, tanto homens quanto mulheres, é normal que a pessoa chore, sinta tristeza, sinta seu luto. Mas o próprio manual de Doenças Mentais, o DSM, traz que 15 dias de luto já é uma doença mental. Ou seja, transformam o que é do cotidiano do ser humano em doença, e assim o primeiro passo é a medicalização. Nessa sociedade capitalista, pós-moderna, individualista, as pessoas não podem mais fazer seu luto, de todos os tipos. Como é uma sociedade de supérfluos, de consumismo, que tudo é temporário e descartável, os afetos também viraram descartáveis. Se seu pai, mãe, companheiro ou companheira morre, você tem que, 15 dias depois, já estar numa boa. É todo um conjunto de sintomas da sociedade atual, da contemporaneidade.
Sul21 – E essas questões de saúde mental afetam de forma diferente em função da raça ou da classe social? Maria José – Que eu saiba, não tem nenhum estudo no Brasil por exemplo que digam se as mulheres negras tomam mais medicamentos psiquiátricos ou não. Na minha cidade, Salvador, 70% das mulheres são negras, então… eu não tenho dados científicos, mas pode ser que sejam mais medicalizadas, porque têm acesso a serviços de saúde que não são de boa qualidade, estão nas camadas mais pobres, são mais discriminadas. É só ver o que aconteceu com a Maju, a mulher do tempo no Jornal Nacional, que foi alvo de piadas discriminatórias*. Tinha um comentário que dizia: “onde eu posso comprar essa escrava?”, ou seja, estamos num país totalmente machista e racista. Então, isso acontece com uma mulher que está no Jornal Nacional, que é uma mulher culta, que todo mundo elogia o trabalho dela, e mesmo assim os comentários nas redes sociais são terríveis. Eu fiquei chocada, eu imagino que podemos inferir que as mulheres negras tomam mais medicamentos psiquiátricos, até porque as mulheres brancas são discriminadas por serem mulheres, mas não por sua cor.
*A apresentadora da Rede Globo Maria Júlia Coutinho foi alvo de diversos comentários racistas pela internet, na semana passada. As mensagens foram enviadas após a emissora publicar no Facebook uma foto da apresentadora.
Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia, eu que já amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado, onde tem o desenho cômico de um peixe — os lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer te amo.
Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba.
Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
“Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo, o que não queria dizer amo também, o piolho.
Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.
Da vida quero o que é simples, mas de boa qualidade.
Troco um jantar requintado por um arroz-feijão feito em casa refogado com muita cebola, alho e papo furado.
Gosto dos sentimentos simples, mas bem temperados. Do sorriso caseiro com uma pitada de pimenta. Das receitas simples de felicidade, fáceis de decorar, de seguir e de ensinar. Gosto de um canteiro de afeto cultivado no aparador da janela. Do cheiro acolhedor invadindo a casa e os corações. Das falas fáceis, da risada solta, dos medos guardados do lado de fora da porta de entrada.
Gosto de comer me reconhecendo nos sabores. De lembrar a riqueza que é apreciar sentimentos familiares. Gosto de me sentir em casa dentro de mim quando estou perto do outro.
O meu castelo é de fantasia, construído dentro da casinha simples do interior. Nele, as paredes não possuem muitos quadros, a cozinha não precisa de muitos apetrechos, os armários não guardam grandes segredos. Mas as janelas são amplas, boas de se perder a vista.
No meu lar não sei receber visitas ilustres, cheias de etiquetas, de pompas e de mistérios. Este lar é ‘pobre’, porém limpinho. Quem chega descalçando os sapatos é bem vindo. E também são bem vindos aqueles que se deixam invadir sem medo, daquele jeito ingênuo de quem nunca percebeu as segundas intenções do mundo. Aqueles que tratam até os estranhos como ‘de casa’. E eu, se preciso, jogo mais água no feijão para fazer render a amizade e a boa companhia.
É que aqui, os sentimentos são antigos, talvez até antiquados, cozidos em panela velha, devem ser resultado de receita de avó.
As tarefas da casa são simples, mas há de executa-las com carinho. Qualquer frescura pode ser substituída por uma boa dose de afeto. E no final do dia, uma mão lava a outra.
Às vezes as roupas sujas se acumulam num canto da casa, mas a gente perde um tempo e lava tudo aqui dentro mesmo, no dia seguinte fica tudo às claras outra vez. As mágoas vão para o ralo junto com a espuma do sabão de coco.
Da vida quero o que é simples mas de boa qualidade. Quero pessoas que trazem o que podem, mas se compartilham por inteiro e quando se afastam, carregam lembranças bem nutridas e corações satisfeitos.
Estava aqui lendo Proust (fala sério, gente, eu sou mega burguesia cultural insuportável), quando recebo o telefonema da Nara, minha filha adolescente, que acabava de sair de um ensaio.
– Mãe! Encontrei o homem da minha vida!
Nara faz cursos de teatro, dança, canto e bababá bububú lá em Copacabana. Num desses ambientes, apareceu um rapaz bonito, mais experiente que ela na carreira artística e que lhe ajudou em um ensaio lá pelas tantas. Ele explicava, ela ficava olhando com aquela cara de quem olha para um pote de nutella munido com uma colher. Entendeu, Nara?
– Ai, mãe!, eu nem havia prestado atenção!, acredita? Ele me perguntou quanto tempo eu estava estudando canto e o que mais eu fazia! Disse que sou afinada! Mãe! É o homem da minha vida! Tem que ver que fofo ele me ensinando as coisas! Quero me casar com ele, mãe! – Falava ela como se houvesse encontrado um vestido que lhe vestisse muito bem.
Nessas horas, eu tenho que fazer o meu papel de mãe e ponderar algumas coisas mega válidas.
– Ele é neoliberal? – Perguntei.
– Ai, mãe, mora na zona sul, já trabalhou para a um empresa americana… será?
– Ele é vegetariano?
– Não sei, mãe…, pode ser que sim.
– Ele tem cara de quem adotaria uma vira-lata?
– Tem super cara disso, mãe.
– Tem nada! Você não o conhece, minha filha!
Resolvi dar meu cheque-mate na conversa:
-Qual o signo dele?
(Não que isso importa para mim, mas sei que Nara é desse tipo que sabe se um relacionamento vai dar certo ou não olhando a data de nascimento dos namorados.)
– Não sei, mãe! Mãe! Ele NÃO pode ser de libra! Mãe! Se for de libra… eu teria que ver o ascendente… Eu super dou errado com librianos…
– Você não sabe nada desse rapaz e diz que ele é o homem da sua vida? E se for gay?
– Mãe! Não importa! Isso tudo que você falou são detalhes! Não dá pra ficar se pegando nessas pequenas coisas e, depois, agora ele me conheceu, né? Eu estou aqui para mudá-lo! Ele vai super ser desses que adotam vira-lata e se orgulham disso, vamos conhecer Cuba, comer só coisas que não têm cabeça, vamos andar de mãos dadas pelas ruas do Rio, ver filmes com o Johnny Depp e Helena Bonham Carter, ele vai aprender a cozinhar e vamos ser ricos cantando juntos! Não é lindo, mãe?
Nara estava com a Primavera no estômago. Que máximo…
O rapaz apareceu na aula como assistente do professor, resolveu ajudar a Nara e ela assimilou isso tal como aquelas cenas de filme onde o cara aparece no aeroporto no último segundo só pra pedir pra mocinha ficar. Nem acreditei… Incrível como Nara cresceu e está pronta para viver em sociedade. Viver a vida intensamente. Ter um relacionamento sério. Orgulho de ver minha filha iniciando o ciclo: apaixonar-se loucamente, viver o amor, desiludir-se, tomar rivotril fazer terapia engordar emagrecer e querer virar um monge budista desapegado. Se ela der sorte, o ciclo se passará ou muito lentamente, a ponto de não dar tempo de passar para a fase 3, ou terminar rápido demais e deixá-la pronta para iniciá-lo novamente.
Nara me disse que iria desligar e fazer algumas coisas importantes antes de pegar o metrô e depois o trem para Madureira. Mais tarde, a gente veria juntas o que era preciso para a cerimônia. Ok. Beijo, filha. Beijo, mãe!
– Mãe! – Ela, em menos de um minuto – Descobri! Ele pode ser de esquerda! Ele estuda na UFRJ. É de gêmeos! Hétero e compartilhou vídeos de animais! Agora estou indo para casa! Beijo de novo, mãe!
Nara stalkeou o príncipe todinho, gente.
Cá para nós… Ainda que ele tenha votado em Aécio, goste de bife mal passado e tenha um gato persa, eu sei, Nara sabe e todo mundo sabe que o amor entre o futuro-marido-da-Nara-do-momento e ela pode acontecer de verdade, pois, o amor debocha da nossa razão. Referenciais não nos enchem de desejo. Buscamos um parceiro tal como os animais: pelo cheiro. Talvez um pouco mais do que isso: pelo mistério, pela paz que a pessoa nos traz ou pelo tormento que ela nos provoca. Ama-se por aquilo que o beijo nos oferece. Pelo o que sentimos quando tocam a nossa nuca ou quando nos explicam o que não entendemos com um jeito suave, ainda que não prestemos atenção em nenhuma palavra dita.
O amor, cuja fórmula matemática é: eu fofa + você fofo = casamento eterno, não requer consulta prévia, não se dá a stalkeamentos.
O amor da nossa vida gosta de clichês, portanto, o amor da nossa vida não é aquele que nos leva a Paris e sim traz Paris para dentro da gente. Não nos faz querer a chegada da Primavera; o amor da nossa vida é a nossa Primavera.
É isso. Cá estou pesquisando na internet umas casas de campo bem bonitinhas para sugerir a eles como moradia.
Via, todas os dias, aquele homem perambular pelas avenidas quentes da minha cidade. Bêbado, cantava uma música de Altemar Dutra enquanto mendigava por centavos para trocar por cachaça em um boteco frequentado por prostitutas e outros bêbados amigos.
Seu corpo, há tanto sem água e sabão, era um fedentina andante. Alguns dentes haviam caído e os que lhe restavam doíam durante à noite, obrigando-lhe a uivar junto aos cães, naquela antiga estação de trem, onde dormia embrulhado com meia dúzia de jornais velhos.
Em uma manhã de sábado, acordou diferente. Estava sóbrio e queria visitar a mãe que morava em uma cidade próxima. Enquanto seguia para a rodoviária velha, bem na faixa de pedestre, foi atropelado por um veículo dirigido por um bêbado. Caído, olhou o céu, reparou as nuvens uma a uma, observou os pés que se aproximavam, sentiu o calor do próprio sangue lhe aquecer as costas. Seus olhos teimavam em fechar e ele teimava em continuar a olhar o céu. Foi vencido por uma força desconhecida que lhe cerrou as janelas pelas quais espiava o mundo.
Os cães se aproximaram, lamberam-lhe a boca, fuçaram-lhe os pés e uivaram alto. Em pleno dia, os cães emitiram aquela melodia triste, e os bêbados e as prostitutas choravam.
Naquele noite, na velha estação de trem, todos beberam a morte do bêbado e os cães se aqueceram no único bem restado por ele: meia dúzia de jornais velhos.
‘O sentido da vida é aprender a lembrar que hoje pode ser o último dia’, diz jornalista que largou direção no Yahoo! para se dedicar a sebo de livros
No final de 2014, o jornalista Ricardo Lombardi, de 44 anos, largou o cargo que tinha de diretor de conteúdo do Yahoo! para se dedicar à venda de livros usados em um sebo montado na garagem da casa de sua mãe. A corajosa decisão dele, que inclui a redução dos gastos mensais em 70%, me fez ir até lá para entrevistá-lo, curiosa para saber o que ele responderia sobre o sentido da vida.
Cheguei no endereço onde fica a simpática loja de livros usados, chamada Desculpe a Poeira, em Pinheiros, no meio da tarde. Ricardo estava sentando numa mesinha na calçada do sebo, tomando um café e escrevendo no notebook. Na mesa, um livro e uma revista. Ao redor dele, duas bicicletas: uma para uso pessoal e outra adaptada com caixas para carregar livros.
A cena denunciou uma intenção que o jornalista em seguida me confirmaria verbalmente: a busca por simplificar a vida.
“Acho que simplificar é uma palavra interessante para mim. O mundo em que a gente vive é de muito consumo, as próprias escolhas são voltadas para o consumo. A gente tem que ter um celular melhor, e a tendência é sempre trocar as coisas por algo melhor ou superior. E acho que falta um pouco aquele momento que você para e pensa, eu preciso disso? Preciso dessas coisas? Eu preciso desse tênis, dessa roupa, desse celular? Se questionar um pouco mais acho que você consegue simplificar a sua vida e sua escolha também.”
‘Acho que quando você tem um projeto em que acredita, você precisa gastar toda a sua energia nele’, diz Ricardo Lombardi
Eu perguntei a ele o que o moveu para apostar na mudança. Ricardo explicou que a escolha tem a ver com uma fase de ter mais tranquilidade na vida. Comentou, ainda, sobre a percepção de que o tempo é finito.
Em 2013, num curto período, a filha dele nasceu e seu pai morreu. Apesar de os dois fatos não terem relação direta com sua decisão de mudar a rotina, a experiência de vivenciar quase no mesmo tempo o nascimento e a morte fez com que ele refletisse mais sobre o sentido de sua existência. “Você começa a perceber que vai envelhecer, que as coisas vão passar, que você não vai poder voltar para fazer coisas que deixou de fazer.”
E foi essa sensação que o motivou a pensar que poderia fazer coisas que dão mais sentido para ele, de forma a passar mais tempo com a família, citando a mãe, a esposa e dois filhos. “Eu acho que a gente vai ficando mais velho e vai percebendo que andar de bicicleta é mais saudável, que andar a pé é mais saudável, que você pode se vestir de forma mais simples, se alimentar de forma mais simples e saudável, aproveitar mais as coisas que não custam nada.”
Para ele, o sentido da vida é “viver plenamente” e saber que as questões de hoje é que precisam ser colocadas na mesa, já que o passado já foi e o futuro ainda não aconteceu.
“Acho que cada um precisa entender a sua participação no mundo. Para mim, o sentido sempre foi viver o presente. É aproveitar o dia e tomar as decisões naquele dia como se fosse o último da sua vida, porque você não sabe o que vai acontecer, você pode escorregar numa casca de banana ou você pode ser diagnosticado com uma doença incurável. É um erro você projetar muito para o futuro. “
E completou: “o sentido da vida, acho que é aprender a lidar com a questão do presente, aprender a sempre lembrar que hoje pode ser o último dia.”
Vida no jornalismo
Ricardo trabalhou em redações de jornais por 25 anos, muitos deles em cargos de editor e diretor. Começou aos 17, como arquivista do Estadão, onde se apaixonou pela profissão e largou o curso de Direito que fazia para estudar jornalismo. Entre os veículos onde trabalhou está o Jornal da Tarde, editora D’Ávila, América Online (AOL), editora Abril e o Yahoo! (onde estava até setembro deste ano).
A mudança de vida não aconteceu de uma hora para outra. Na verdade, o que Ricardo fez foi sair do emprego para poder se dedicar a um projeto pessoal que toca há alguns anos. Desde 2007, ele tem um blog chamado Desculpe a Poeira, hoje hospedado no site do Estadão, onde dá dicas e sugestões de leituras.
Em 2013, numa viagem à Argentina, viu um sebo que despertou nele a ideia de criar, em suas próprias palavras, a “extensão analógica” do blog. “Pensei, e se eu fizesse um sebo com edições que eu gosto ou que alguém gostou, deu para mim e eu posso passar adiante? Eu tive essa ideia e pensei nessa garagem, que é da minha mãe. Falei, vou colocar em prática.”
Na época, o jornalista era diretor da revista VIP e trabalhava de segunda a sexta-feira. Foi nos finais de semana que ele mesmo reformou e transformou a pequena garagem da mãe no simpático sebo, processo que durou um ano e meio. “Primeiro eu pintei, coloquei as luminárias, fiz as prateleiras, o móvel, tudo. Até esse banquinho eu fiz”, disse, me apontando para um pequeno banco de madeira – a reportagem do Draft explica que ele fez cursos de marcenaria.
Desapego!
O desprendimento com relação aos bens materiais começou nessa época, inclusive. Ricardo percebeu que para tornar o sebo realidade precisaria desapegar do próprio acervo pessoal de livros. “Toda a minha biblioteca que eu tenho está aqui. Eu não queria me livrar dela, mas isso aqui só seria possível se eu começasse com ela.”
Em setembro de 2014, a ideia do sebo já estava formatada o suficiente e ele viu que o projeto precisava de mais tempo e dedicação para ganhar força. E foi por isso que resolveu sair do Yahoo!. “Eu acho que quando você tem um projeto em que acredita, você precisa gastar toda a sua energia nele, e não dividir em várias atividades, fracionar seu dia e sua energia, esse é meu modo de pensar.”
Para que a mudança fosse possível, ele vendeu o carro, mudou o estilo de vida e cortou seus gastos em 70%. Eu perguntei a ele se estava fazendo falta: “não, até agora não fez falta.” Ricardo estava vivendo de sua poupança, mas acreditava que dentro de um ano o sebo começaria a dar retorno financeiro.
“A beleza da nossa vida é que a gente pode fazer o que a gente quiser. A gente pode nascer de novo, mudar de profissão, reformular ou reformatar a nossa vida de outro jeito, que faça mais sentido naquela fase especifica. Eu não estou dizendo que é errado gastar dinheiro com roupa ou comer em restaurante caro, eu não acho errado. Você tem que saber que aquilo se encaixa com aquela fase da vida que está vivendo. Na minha fase atual, eu prefiro ter uma vida mais simples, prefiro ganhar menos, e gastar mais tempo com as pessoas que eu gosto, essa é a maneira que eu acho que pretendo gastar meu empo no resto dos dias.”
Hoje me peguei pensando sobre que tipo de amor é esse, o das mães…
Um amor já falado, cantado e contado de tantas formas, na tentativa, diria eu, em vão, de tentar defini-lo. Mas, afinal que tipo de amor será esse?
Talvez seja um amor do tipo inesquecível…
Quando nos tornamos mães, a emoção do parto e a sensação de ter pela primeira vez o nosso bebê nos braços é mesmo avassaladora. Ainda que eu tente, não consigo pensar em outra palavra para melhor descrevê-la. Também pudera, só quem já viveu um tórrido romance sabe
como é angustiante a espera pelo primeiro encontro. As fantasias sobre como será e os inúmeros ensaios sobre as possíveis conversas, ajudam a conferir ao momento do primeiro encontro uma emoção única e torná-lo inesquecível.
Não há a menor dúvida que o nascimento de um filho é um grande marco, um verdadeiro divisor de águas na nossa vida. Nada mais será como antes. Não me refiro aqui às noites mal dormidas ou à preocupação constante, que passa a ser, de uma hora para outra, a nossa mais nova amiga de infância. Falo de um sentimento louco, sem tamanho, de um querer bem sem fim, que passa de uma hora pra outra a fazer parte das nossas vidas. Algo que não é passageiro, mas definitivo, algo que veio pra ficar e que muda você para sempre.Talvez seja um amor do tipo que muda você para sempre…
Talvez seja um amor do tipo amor à primeira vista…
Que mãe ao olhar o seu filho pela primeira vez não teve a certeza de que sentiu algo jamais experimentado antes? Algo como um sinal, uma sensação de deja vu, só possível entre aqueles que se reconhecem. Não só as mães biológicas, mas as que escolhem seus filhos também vivem esta mesma sensação. Algo assim como um encontro de almas, escrito nas estrelas e que só pode ser lido com o coração, nos dando a sensação de estar vivendo um verdadeiro amor à primeira vista.
Difícil mesmo definir este amor. Talvez seja uma mistura de todos acima ou ainda de outros mais. Talvez essa definição não seja, nem mesmo, importante ou necessária. Talvez seja só um amor de mãe. Amor de mãe talvez seja a melhor definição para este amor sem limites, que não se explica com palavras, mas que transborda a cada nova conquista, a cada abraço apertado, a cada sorriso sem jeito, a cada dança desengonçada, a cada cara suja de chocolate, a cada sim, a cada não. Um tipo de amor de que só as mães são capazes e que só elas entendem, sem necessidade de maiores explicações.
Tava pensando em escrever essa semana sobre alguma coisa um pouco menos polêmica, como a redução da maioridade penal, mas como a última coluna – Sobre Marietas, Jôs e Rouanet – acabou gerando alguns mal-entendidos, resolvi voltar ao tema. Ou desviar um pouco dele, não sei, vamos ver como esse texto vai ficar. Ainda tô me encontrando por aqui.
Mas vamos lá. É meio chato explicar piada, tira totalmente a graça, mas, dependendo do texto, às vezes é preciso. E o culpado pode ser o autor, o leitor ou um combinado dos dois. Nessa coluna da semana passada, por exemplo, eu começava com alguns comentários retirados de uma página do Facebook, com ofensas dirigidas à Marieta Severo. Quando escrevi, achei que estava claro que aquelas não eram palavras minhas. Depois, vi que mais de um leitor achou que faziam parte do texto e aquelas eram as minhas opiniões sobre a Marieta. Apesar de lá pelo meio eu falar sobre a origem dos comentários, achei que a forma como o começo estava estruturado deixava algumas dúvidas e fiz algumas alterações no primeiro parágrafo, pra deixar tudo mais claro. Acho que resolveu.
Outro ponto comentado, foi que eu não expliquei como a Lei Rouanet funciona. Não era esse o objetivo do texto, que era falar de arremesso de pedras virtuais. Mas aproveitando, vai aqui um breve resumo:
A Lei Rouanet é de dezembro de 1991 e é um mecanismo de renúncia fiscal. Isso quer dizer que o governo abre mão de uma porcentagem dos impostos de uma empresa, para que esse dinheiro seja investido em cultura. A empresa – não o governo – faz isso escolhendo projetos para patrocinar que foram aprovados junto ao Ministério da Cultura, que por esse mecanismo não libera dinheiro diretamente para um artista. Se você ler em algum lugar que um artista recebeu alguns milhões do governo via Rouanet, passe a desconfiar da fonte. É uma tentativa de se construir uma mentira inteira com meias ou poucas verdades. O que o Ministério faz é aprovar o projeto dessas pessoas, no valor que estiver orçado. Depois de aprovado, entra a segunda parte da história, geralmente a mais difícil, que é quando o artista tem que ir bater na porta das empresas e pedir patrocínio.
Essa é a grande reclamação contra a Rouanet, principalmente no próprio meio artístico, já que ela transforma gerentes de marketing em gestores culturais. Eles passam a ter o poder de escolher aqueles que serão patrocinados com dinheiro público. São eles que decidem, não o governo. Colocando de outra forma: o gerente de marketing de um banco ou de uma montadora de veículos é quem vai decidir que show ou que espetáculo é que vai ser patrocinado com dinheiro público. Dinheiro público, relembrando, porque um valor que a empresa pagaria para o governo, na forma de impostos, é usado para o patrocínio.
A insatisfação vem do fato de que isso gera o que alguns chamam de concorrência desleal. Se uma empresa tiver que decidir entre apoiar a peça de um grupo desconhecido de teatro e uma peça do Jô Soares, por exemplo, quem você acha que eles vão escolher? Por outro lado, se não houvesse o incentivo fiscal, a maioria das empresas não abriria a carteira para apoiar peça nenhuma, nem do Jô. Eu disse a maioria, ok? Antes da existência da lei, tinha uma minoria que apoiava, quando achava que um patrocínio poderia reverter em lucro, geralmente institucional. Mesmo com a existência da Lei, proporcionalmente ainda é pequeno o número de empresas que fazem uso desse mecanismo.
Uma opção, defendida por alguns, é que se acabe com a Lei Rouanet e o governo pegue esse dinheiro e monte uma comissão que decida quais projetos apoiar. Aí sim, o dinheiro sairia diretamente do governo para os artistas. O que levantaria outros questionamentos, como os critérios que seriam usados nessas escolhas e aí, sim, abriria essa frente para acusações, de artistas que seriam apoiados para defender o governo. Só lembrando, o MinC já conta com alguns editais que apoiam diretamente os artistas, como o Prêmio Myriam Muniz, por exemplo. Acho que nem Jô nem Marieta já ganharam esse prêmio, mas não pesquisei. Acho que não, porque seria uma forma mais segura de atacá-los, mas como não vi ninguém usando isso, não deve ser o caso.
Como dá pra ver, não existe uma solução ideal. E também dá pra ver que as pessoas que não têm contato direto com a Lei, têm pouca ideia de como ela funciona, o que facilita o seu uso como forma de incitar o ódio contra alguns alvos. É só pesquisar e ver se a pessoa está com um projeto aprovado, ver o valor total e aí sair dizendo que fulano recebeu tantos milhões do governo.
É, acabei ficando mais na Rouanet. Não era a intenção, mas o texto acabou puxando mais pra esse lado e não deixa de ser um bom assunto. Quanto mais se souber desses mecanismos, melhor, tanto para questões de transparência como de manipulação.
E para fechar, não, eu não estou defendendo o governo, outra hipótese que foi levantada a partir da leitura (?) do texto. Nem no da semana passada, nem nesse. Mas estou defendendo Jô e Marieta da acusação ligada à Rouanet. Se você quer acreditar que eles receberam dinheiro, ok, mas não foi por aí. Depois de saber como a Rouanet funciona, não dá mais pra compartilhar um daqueles posts do tipo “ESTÁ PROVADO!!!”. Quer dizer, até dá, mas não sem ter consciência de que se está ajudando a espalhar mais um boato.
P.S. Momento Teoria da Conspiração: Vocês já pararam pra pensar que, se for verdade que a Marieta recebeu dinheiro pra falar bem do governo, o único lugar em que ela falou foi no programa do Faustão? E isso, depois do apresentador ter levantado a bola. Logo, sem a participação direta dele, em um roteiro muito bem elaborado, isso nunca teria acontecido. Logo, o Faustão também está recebendo dinheiro do governo! Putz! Mais um alvo pras pedras virtuais! Ah, melhor avisar: esse texto contém ironia.