O Amor é como letras soltas

O Amor é como letras soltas

Tudo poderia ser mais, bem mais leve como letras de músicas soltas. Daquelas que nosso coração compõe e pode narrar a história de qualquer um, a qualquer momento, como alguém que passa distraído na rua, e logo escuta uma música que desvia sua atenção para um lugar desconhecido, indo ao encontro do caldeirão de novos sons, ritmos e histórias incríveis.

Como seria escrever uma música? – tenho me perguntado. Por instinto, vocação, necessidade, ou sei lá mais o quê. O que importa é momento que extravasa essa tal necessidade, que não é tola, é espontânea e nasce por meio das coisas belas.

O líder maior de toda essa exaltação não poderia deixar de ser Ele, o ente que atravessou todas as épocas, e ainda caminha livre, atual, destemido, galanteador como um Don Juan entre todos os seres humanos: É Ele, o Amor!

Quando Renato Russo compôs Monte Castelo – música que também é poema do poeta português Luís Vaz de Camões e faz parte do Coríntios, da Bíblia – o que parecia algo novo, na verdade, foi uma das infinitas formas de cantar o sentimento mais nobre que existe na face da terra: “Ainda que eu falasse a língua dos homens / E falasse a língua dos anjos / Sem amor eu nada seria. ”

Pois bem. Como seria além de escrever e cantar, viver o amor? Cada um tem sua história. Eu tenho a minha. O amor, esse tema tão certo e controverso tem sua existência relatada desde os primeiros registros humanos, através do companheirismo, da defesa dos indivíduos que faziam parte do mesmo grupo, da relação entre os parentes; eram laços que de alguma forma evocavam amor.

Sabemos que dos clássicos romances, novelas, teatros, ficções ou toda trama que envolve relações muitas vezes surreais – querendo uma exclusividade desmedida – nasceram do tumulto interior de se buscar explicar algo que é tão profundo a ponto de ser inexplicável: o amor que entra violentamente com sua força avassaladora e o brilho indizível de uma noite estrelada, como Van Gogh pintou tão bem.

Amor de verdade também acaba

Amor de verdade também acaba

Se preocupe não, moça. Não é você. Sou eu. Não tenho jeito pra esse negócio de amor. Acho lindo, acho lindo nas canções que você e eu amamos juntos. Mas na verdade, assim, no tempo duro de um dia depois do outro, o amor toca desafinado para mim, obrigatório, repetido, música com refrão meloso. Não é você, moça. Sou eu. É que eu não tenho muito que dar. Não rendo, não sei telefonar à noite, não sustento conversas sem assunto, diálogos sem tema. Não é você, linda, doce, cheia de graça. Sou eu. Vazio, triste, estranho.

Você já viu tanta gente tão certa de que o amor mesmo, amor no duro, não acaba? E se acaba é porque não era amor? Dá até inveja, né? Eu invejo mesmo essas pessoas. Queria ter certeza e amor que durassem para sempre. Mas não. Comigo ainda não é assim. Meu amor vem e vai. Começa agora, acaba amanhã, volta mais tarde.

Ser de ninguém é meu único jeito de ser alguém, minha querida. Tomo remédio pros nervos e você não sabia. Sou dessa gente que precisa ser só, mesmo em comunidade, como unidade. Só. E você não queria. O sol que bate agora recende aqui dentro uma saudade dolorida do que já foi e do que sequer aconteceu. Minha cidade perdida, minha casa na infância, uma lambreta alaranjada que me leva a passear no quarteirão, o carro velho e batido do pai, a mãe que custa a voltar do trabalho, a alegria das avós.

Essa saudade, para mim, é o que mais se parece com o que tanta gente chama de amor. É só o que eu tenho, moça. E é tão pouquinho que mal dá pra mim sozinho. É um foguinho de palha que eu tento — ah, como eu tento! — alimentar e espalhar e incendiar o quarteirão. Mas não dá, minha amiga. Não deu. Meu amor anda pequeno. É uma saudadinha que dói mansa, um fio de água, um cheiro distante, um raio morno de luz patética quase apagando. É muito pouco. Não dá pra dois.

Você merece mais. Muito mais do que isso. Merece amor inteiro, forte, amor de casa grande, segura, quintal na frente, jardins e flores, pés de jabuticaba, caqui, laranja lima, limão galego. Eu tenho nada além dessa barraca de um só, montada na grama aqui e ali, esperando a hora de mudar e partir.

Foi bom, moça. Foi lindo. Você fica além de toda expectativa. Mas eu não dou conta. Preciso ir adiante, abrir o portão e liberar os cachorros que vivem cá dentro de mim. Se os deixo por aqui, trancados em casa, uma hora eles terão destruído tudo. Preciso conduzi-los à rua, deixá-los mijar nos postes, tombar as latas, rasgar os sacos, revirar o lixo alheio. E para isso eu tenho de ser só. Não por nada. Não é você, lembra? Sou eu. Para dar amor a alguém aí fora, eu antes preciso encontrá-lo aqui dentro. E aqui dentro ele se esconde tão bem, tão pequeno, que eu custo a achar. Vez ou outra eu encontro, mas ele logo se perde de novo, como bolinha de gude debaixo do sofá da sala. Como agora.

Se preocupe não, menina linda. Não é você. Sou eu. E isso é tudo. Agora vai, minha querida. Vai em frente. Vai ser feliz. Vai porque o mundo é seu. Eu, não. Eu ainda preciso ser de mim mesmo.

Sensibilidade crônica – vida e carreira de Nina Simone

Sensibilidade crônica – vida e carreira de Nina Simone

Há alguns dias, assisti o documentário “What Happened, Miss Simone?“, produzido pela Netflix e dirigido pela cineasta Liz Garbus, sobre a carreira da cantora americana Nina Simone e, como tudo o que realmente nos marca e emociona, continuo pensando sobre tudo o que eu vi, ouvi e senti.

Em pouco mais de uma hora e meia, nossas emoções são bombardeadas ao conhecermos a história da menina de pele cor de ébano que cresceu em meio à segregação racial sem entender exatamente do que se tratava, que estudou com afinco para se tornar a primeira pianista de música clássica negra dos EUA e que caminhou para uma juventude, em que sua cor fecharia mais portas do que o seu talento, na época, seria capaz de abrir.

Em bares noturnos e adotando o nome de Nina Simone, conseguiu o sustento da família na cidade grande. Após a fama e já casada com um marido abusivo que se tornou seu agente, Nina se sentia escravizada pelo trabalho e pela agenda sempre excessivamente lotada. Havia uma relação controversa com a fama e com o preço a pagar por tanta exposição, tais como o cansaço constante, a impessoalidade da vida em hotéis e camarins, e a distância da família.

Durante anos, os amigos acompanharam suas oscilações de humor. Nina, onde quer que estivesse, era capaz de parar um show para pedir que alguém da plateia ficasse em silêncio ou se sentasse. Esse humor volátil, com o passar dos anos e o acúmulo de estresse, teria ficado cada vez mais imprevisível, principalmente, depois de sua forte militância política a favor da igualdade entre brancos e negros. Nina esteve presente em todo o movimento que marcou a década de 60 nos Estados Unidos. Esteve lado a lado com Martin Luther King, embora acreditasse em uma abordagem que usasse da força para conseguir mudanças. E, devido a isso e ao direcionamento de suas canções para temáticas da causa, sua carreira foi afetada.

Em um momento de sua carreira, abandonou tudo, inclusive sua filha, e foi morar na África. Tempos depois, mandou buscar sua filha, mas, a menina não encontrou mais a mesma mãe e sim uma mulher mais violenta e que a espanca frente a qualquer adversidade. Nina, sem renda e após dissipar todos os bens, volta para tentar reconstruir a carreira. Dessa vez, na Europa. Em Paris, trabalha em um local tão ruim, que nem é reconhecida… as pessoas pensam que não é ela. Tempos depois, alguns de seus amigos a ajudam a reconstruir sua carreira. É feito o diagnóstico de transtorno maníaco-depressivo (atual Transtorno Bipolar) e ela passa a ser tratada e se mantém mais estável até o fim de sua vida.

Quais seriam os limites humanos que nos permitem manter ou perder a nossa sanidade? Racismo, um casamento abusivo, envolvimento político fortemente militante em uma época de profunda repressão, feridas de uma infância, em que passava cerca de 7 horas por dia estudando piano, agendas lotadas e quase nenhum descanso? Solidão… como uma alma tão sensível como a de uma artista com a intensidade de Nina Simone poderia sobreviver intacta a tantas agressões e provas de realidade?

Enquanto a arte era um contraponto ela pode continuar, mas, quando a música se tornou também um peso, o que lhe restaria?

O documentário enfoca a carreira da atriz dando diversos destaques para suas oscilações de humor e, mesmo no final de sua vida, eles enfatizam o diagnóstico de bipolaridade e a cronicidade da doença para justificar as mudanças bruscas de comportamento.

A questão é, dentro de sua profunda humanidade, teria Nina Simone se perdido em uma patologia ou em sua própria sensibilidade que, contraditoriamente ao que pensaríamos de uma cantora, terai ela perdido sua voz?

Nina foi uma vitoriosa em todos os sentidos e, mesmo quando talvez não tenha feito suas melhores escolhas (não cabe a nós julgar), acertou tentando ser fiel a si mesma e aos seus sentimentos. Tentou a todo custo libertar-se do racismo e ajudar seus semelhantes, lutou para libertar-se do marido abusivo, lutou para libertar-se até de si mesma, mesmo quando mal conseguia sobreviver à convivência com a pessoa que se tornou.

Sua filha fala dela com lágrimas e amor, o amor de quem entendeu o que a mãe sofreu para deixar de ser Eunice Kathleen Waymon, a filha da ministra metodista que tocava piano na igreja e tornar-se o ícone Nina Simone.

Nina se faz em nós e é eterna lembrança não somente porque foi pianista, cantora, compositora ou mesmo ativista pelos direitos civis norteamericanos. Nina rasga nossa compreensão e penetra nossa alma porque, mais do que tudo isso, mais do que alguém que sofreu com um transtorno bipolar e um marido abusivo, mais do que aquela que cantou porque precisava do dinheiro ou trocou de nome, mais do que o temor de envergonhar a família religiosa, ela deu voz à mais elevada forma de expressão humana: ela foi sensibilidade extrema em forma de música e de ideias.

Faleceu dormindo, depois de lutar vários anos contra um câncer de mama.
Penso, entretanto, que o que realmente a matou foi a sensibilidade crônica…

Abaixo, o trailer do documentário

Não existe botox para o vazio existencial

Não existe botox para o vazio existencial

Não somos nada nem ninguém sem consumir. Você já parou para pensar nisso? Vivemos numa sociedade de consumo, disso todos nós sabemos. Acontece que a nossa ânsia por obtenção palpável se estendeu até os desejos mais íntimos. Não adquirimos por ímpeto apenas roupas, sapatos, objetos. Nós consumimos sentimento, gente, sexo, prazeres, tempo. Tudo. Parece que sem consumo não existe vida. Nem bem-estar. Nem alegria. Nem amor. Nem nada.

As pessoas estão cada vez mais insatisfeitas com elas mesmas e com o mundo. Querem preencher a qualquer custo os seus buracos. Consomem tudo e todos ao mesmo tempo, na ânsia desesperada de abarrotar os espaços vazios que levam por dentro.

Começam se enchendo de coisas, mas logo o tangível passa a não bastar. Então, encontram nos outros a possibilidade da sensação de plenitude, de prazer e satisfação. É uma perseguição efêmera atrás da saciedade.

Aí vem a primordialidade de ter e sentir, a carestia da posse, que comanda os sentidos e determina as ações. Objetos já não suprem a ausência física de uma companhia, o desamor que maltratou o coração, o desejo carnal irrefreável. É preciso sentir que alguém lhe pertence, nem que seja por algumas horas, até atingir um nível de contentamento. A ideia da posse acalma.

O problema é que depois que o refém é liberado, um rombo maior se abre por dentro, e você vai precisar preenchê-lo outra vez. E mais outra. E assim, sucessivamente. Até que uma sombra equilibre a sua e, juntos, consigam fechar todos os rasgos.

Enquanto isso não acontece a busca pelo prazer e pela companhia entra em um círculo vicioso. É preciso se sentir querida, desejada, amada, reverenciada. Se consome amizade, se consome sexo, se consome o tempo dos outros, a atenção. Aliás, o tempo é uma coisa curiosa.

Tem gente que só se sente vivo, de fato, se estiver abusando de todo e qualquer sopro de segundo. Perder tempo ou sentir que não está fazendo nada com ele é infelicidade na certa, é causa mortis. Abusam do tempo, o tempo todo, a fim de afirmar-se vivo.

A busca por sexo também é uma forma de consumo, porque se associa o prazer ao amor, confunde-se a proximidade com a companhia, a carência com a presença. Depois a solidão chega e toma o seu lugar. É quando o consumista, novamente, persegue quem possa lhe preencher, para suprir o vazio e a necessidade de afirmação.

E assim, o consumo se expande junto das vontades cada vez mais ansiosas e caprichosas. O eu grita mais e mais alto, faz as suas birras, é exigente. Você cede. Até porque a sensação é de que uma vida sem consumo é chata, vazia e sem nenhum propósito. O pensamento é que só é possível ser feliz quando se adquire, seja lá o que for.

As pessoas gastam dinheiro, gastam tempo, investem os seus planos e sonhos, se desgastam em expectativas e frustrações. Tudo em busca de um sentimento de verdade. Não precisa ser imenso, não, mas que seja inteiro.

A verdade é que enquanto faltar amor aqui dentro nós continuaremos procurando lá fora por alguém que nos baste. Miraremos alvos incertos, consumiremos o mundo freneticamente, expostos ao tiroteio dos corações caçadores.

A esperança é que, no meio da artilharia, em lados opostos, nos reconheceremos dentre tantos atiradores; nós e o nosso amor próprio. Só quando nos encontrarmos deixaremos de ser ávidos consumidores de gente.

Por Karen Curi – Jornalista

Publicado originalmente na Revista Bula, Via Sou Psicólogo com muito orgulho

Fronteiras da solidão: os lados bom e ruim

Fronteiras da solidão: os lados bom e ruim

Enquanto você estiver lendo esse texto, o sul-matogrossense Gen Kelsang Togden, de 54 anos, que morou em Curitiba boa parte da vida, estará provavelmente em silêncio e só. Por cerca de dez dias começando nesse fim de junho de 2015, a única companhia de Togden será a dos seus pensamentos, durante o retiro em um mosteiro budista na Inglaterra. Ele sabe bem o que esperar da experiência. A primeira vez que fez essa profunda imersão interior foi durante o inverno em uma cidadezinha no Canadá, quando tinha 32 anos. Durou uma semana e o marcou para sempre.

“Foi impressionante poder ver o meu próprio interior. Tive sonhos cheios de significado simbólico. Vi e senti coisas maravilhosas e assustadoras”, recorda-se. “Posso entender perfeitamente por que as pessoas não gostam da solidão. Elas têm medo do que verão no seu coração, temem ficar com seus pensamentos. Muitas acham isso insuportável. Assim que estejam sós precisam ouvir música ou ver televisão. Mas para alguém que busca uma consciência mais elevada sobre si mesmo e o mundo em que vive, a experiência de introspecção na solidão é imprescindível”.

Ninguém está só ao se reconhecer na fala do monge Togden – cujo nome de nascimento é Marcos Bittencourt do Amaral. Evitar estar (e parecer) solitário talvez seja a maior preocupação das pessoas ao nosso redor atualmente. E no mundo todo.

Na Coréia do Sul, atores são pagos para comer em frente a uma webcam, proporcionando aos assinantes do serviço a sensação de ter companhia durante as refeições. Chama-se “mukbang” – ou “comer e transmitir”. Há quem pague R$ 49,90 por uma semana do serviço de uma empresa brasileira que forja namoros virtuais. E sim, existem os que ligam a tevê ou o computador para “abafar” os próprios pensamentos – eu e certamente você. O fato (e conflito) é que momentos de solidão não trazem apenas dor, mas autoconhecimento. Para muitas pessoas, estar só é poder se planejar, ou arrumar os sentimentos nas “gavetas” – como mostram as histórias ao longo dessa reportagem.

Saúde pública

Em nossa defesa, podemos argumentar que a solidão mata. É o que apontam estudos como o do Instituto de Epidemiologia e Saúde da University College London. Há 15 anos o professor de Psicologia Andrew Steptoe pesquisa a maior probabilidade de idosos solitários desenvolverem doenças cardíacas e degenerativas. A equipe de Steptoe determinou uma escala de solidão, em que contam aspectos como coabitar ou não com alguém, manter contato (vale até por rede social) pelo menos uma vez por mês com familiares e amigos, e participar de grupos.

“É um problema porque estamos vendo mudanças na forma em que vivemos”, disse o pesquisador ao Viver Bem. Ele cita que, no Reino Unido, um terço das pessoas com mais de 65 anos vivem sozinhas. “Cada vez mais pessoas de meia idade vivem sós porque os laços de casamento não são tão fortes e o divórcio é mais socialmente aceito. E existe uma crescente mobilidade da população, em especial jovens mudando de cidade e de país, e isso é receita para se ‘fazerem’ mais solitários”. Nem tudo é individual, porém. A tudo isso soma-se um problema social a ser combatido por governos e sociedade, que é o isolamento de grupos marginalizados – caso mesmo dos idosos.

Steptoe ressaltou, no entanto, que é determinante para essas pesquisas considerar a forma com que cada indivíduo encara o hábito de estar só. É a dor em estar sozinho que leva pessoas a adoecerem, afirma o estudioso. “Definitivamente algumas pessoas parecem socialmente isoladas – têm poucos amigos e contato com familiares –, mas não se descrevem como solitários. Nesses casos, não esperamos que os aspectos negativos se manifestem”.

Peso

Mas isso não parece ser o mais comum. Dos cerca de 900 atendimentos mensais feitos pelo Centro de Valorização da Vida (CVV) em Curitiba, a esmagadora maioria trata de pessoas infelizes por causa da solidão. E essa sensação não necessariamente está ligada a isolamento físico. “Notamos que, ao mesmo tempo em que vivemos uma era de comunicação, as pessoas estão se distanciando”, afirma Claudiane Araújo, coordenadora e voluntária do centro curitibano. “Isso aumenta a sensação de solidão. Às vezes as pessoas não estão sós, têm família e amigos, mas falta acolhimento, falta ouvir”.

O CVV, que atua há cerca de 30 anos na capital do Paraná, não oferece conselhos, mas tenta fazer o usuário do serviço ter percepções próprias. É com essa tática que, às vezes, voluntários conseguem fazer uma pessoa que sofre com a solidão mudar de perspectiva. “Tudo depende de como você aceita a situação. Às vezes a pessoa só enxerga que o quadro é positivo depois que passou por aquilo. Creio que é a maturidade emocional que faz com que momentos solitários sejam bons ou não”, diz Claudiane, que é especialista em gestão. “O fato é que pode ser uma desgraça ou um aprendizado, mas é preciso passar para realmente entender”.

Hoje em dia

Então, ainda que a palavra em português que dá sentido positivo ao estar só – a solitude – seja bem menos usada do que a sua irmã pejorativa – a solidão –, estar só e se sentir solitário não são sinônimos. Então, de onde vem esse pavor de que a falta de companhia traga dor, doenças, desesperança? Para o psicanalista Mauro Mendes Dias, a base de tudo isso está na “elevada exigência” que as pessoas se forçam para corresponder a expectativas imaginárias, e mais e mais altas.

Dias lembra que o solitário “infeliz” é alguém que se afasta das pessoas por achar que não corresponde a ideais físicos e psíquicos – tem alguma doença, por exemplo. O problema é que essa sensação é cada vez mais típica de pessoas saudáveis, que a princípio não teriam por que se sentir mal. “Há uma tendência a tratar a solidão como uma doença, principalmente em nosso momento histórico marcado pela dominância das imagens e dos ideais estéticos”, reflete. “Tais ideais fazem das vidas um parecer ser, mostrando o que não se é de fato. Por isso mesmo estamos habitados por uma profunda fuga da verdade em nosso cotidiano”.

“A promessa [dos dias de hoje] é de que ninguém estará sozinho se ficar conectado. Nesse sentido é esperado que a solidão seja catalogada como doença e condição a ser evitada, já que pelo princípio das imagens e das conexões ininterruptas, ninguém deve ficar de fora.”
Mauro Dias, psicanalista.
“Quem não consegue ficar bem a sós depende demais dos outros e vai projetar suas carências nas pessoas ao seu redor: na família, no trabalho, etc. Isso normalmente cria muitos problemas de relacionamento.”
Gen Togden, 54 anos, monge.

Momento de criação para a artista

Autora de uma canção chamada “O Lado Bom [da solidão]”, Zélia Duncan aprendeu na adolescência o gosto por estar só. “Foi quando comecei a ouvir música”, conta. “Esperava todos saírem para ter a vitrola só para mim, coisa rara numa casa de quatro irmãos. Apagava a luz e mergulhava nas vozes, instrumentos e arranjos. Assim comecei a sonhar em ser artista”.

A letra da música (“Sento no meio-fio dos meus pensamentos / na beira do que eu invento / e aproveito o lado bom da solidão”) trata da “percepção de cores e sentimentos que só a solidão proporciona”, diz a cantora. “Mas também um poema do (Fernando) Pessoa, um verso que diz: ‘sentir é estar distraído’… Achei que tinha a ver com essa solidão boa, de estar livre para sentir tudo. E fiz a letra”.

Momentos de solidão são essenciais, diz Zélia. Para descansar olhos ou ouvidos ou para criar, no caso dos artistas. “A solidão escolhida não tem sofrimento, não te vitimiza. Devemos nos orgulhar dela. Não saber ficar sozinho é muito triste, creio eu. É mal conseguir ler um livro”, afirma. Para ela, essa impaciência é fruto de um mundo cheio de “chamados, ruídos, vaidade e necessidade de se mostrar”. “Vivemos nesse mundo de estímulos externos, de depositar na mão do outro a sua vida, o seu divertimento. Parte grande do público entra no teatro, cruza os braços e diz: ‘divirta-me’. Mas e você, o que trouxe?”

“É preciso saber estar só para poder estar com alguém. Não esperar que o outro supra esse vazio de sermos únicos, pois afinal, esse vazio é comum a todos e nos une também.”
Zélia Duncan, cantora e compositora de “O Lado Bom (da Solidão)”.

Tempo para pensar durante o luto

O senso comum diz que é preciso “chegar ao fundo do poço” para enxergar luz. Assim Rosangela Cassiano, de 49 anos, vê um momento solitário da sua vida, uma época em que ela se isolou e não quis ver ninguém. Foi pouco depois da morte do filho, em 2004, em um acidente de trânsito. Era a primeira vez que lidava com o luto, e ela sentia que as pessoas não tinham nada a dizer.

“Tudo o que elas falavam era para me calar. E eu queria chorar”, lembra-se. Hoje Rosangela vê esse período a sós com os próprios pensamentos como um mergulho difícil, mas essencial para enfrentar a situação. O que é surpreendente, visto que todos os pensamentos eram negativos. “Eu ruminava e só vinham coisas ruins. Era autodestrutivo”.

Até que ela começou a organizar as ideias. Sozinha, passou a conversar consigo mesma. “Uma coisa que aprendi é a escrever, fazer listas do que faz bem e do que poderia me deixar melhor”, diz. “A princípio veem mil coisas ruins para duas, três boas. Aprendi a focar nas boas, mesmo sendo poucas. Começava a construir, a viajar”.

Hoje coach de pessoas enlutadas em São Paulo, ela está acostumada a mostrar os dois lados da moeda para quem a procura. Foi o caso da mulher que contou ter medo de ficar sozinha em casa depois que o filho mudasse de país. “Perguntei a ela o que faria sozinha em casa. Ela começou a pensar em coisas como viajar, em hobbies que a interessavam e que não fazia porque estava sempre centrada no filho”.

Por CAMILLE BROPP CARDOSO
Fonte: Gazeta do Povo

A magia de conversar

A magia de conversar

Desde o surgimento das redes sociais e das mensagens por celular, realizar uma conversa cara a cara tornou-se algo quase exótico. Estamos em contato de forma breve e superficial com um número cada vez maior de pessoas, mas cada vez nos sentimos mais sozinhos.

Para melhorar nossas relações com os outros, compreendê-los e sermos compreendido, é essencial recuperar o bom hábito de conversar com tempo e verdadeira atenção.

Parece demonstrado que um déficit de conversação faz com que o sujeito fique mais propenso a sofrer de transtornos psicológicos. A falta de comunicação, direta e interativa, com outras pessoas que podem dar a sua opinião e relativizar os acontecimentos faz com que estes fiquem presos na mente.

Quando uma experiência fica estancada no circuito fechado de um único indivíduo, as emoções são amplificadas e os próprios fatos acabam distorcidos, algo que poderia ter sido evitado com uma conversa em boa companhia.

Deborah Tannen, professora de linguística da Universidade de Georgetown, explica que “uma conversa bem realizada é uma visão de sensatez, uma confirmação do nosso próprio modo de ser humano e do nosso próprio lugar no mundo”. No entanto, essa atividade tão humana pode se virar contra nós quando não é realizada de forma saudável ou com as pessoas certas. “Não há nada mais profundamente inquietante que uma conversa que não funciona (…) Se isso acontece com frequência, também pode desequilibrar nossa sensação de bem-estar psicológico”.

A autora diz em seu ensaio “Hablando se entiende la gente” (Conversando entendemos as pessoas) que muitas das disputas que ocorrem em casais heterossexuais têm sua origem em nossa formação social, durante a infância e a adolescência, com amigos do mesmo sexo. Isso faz com que, em muitos casos, sejam criados estilos de conversação separados por falta de interação entre gêneros.

A partir daqui são gerados mitos como que “os homens não sabem ouvir” ou “as mulheres falam sobre os seus problemas sem parar”, o que são claros preconceitos de gênero. Como acontece em qualquer outra atividade humana, existem diferentes graus de implicação e domínio na comunicação oral com os outros. No lado mais leve desta arte estaria a conversa informal que, de acordo com Debra Fine, é injustamente pouca valorizada:

“O bate-papo tem o estigma de ser considerado o enteado pobre da verdadeira conversação, mesmo quando cumpre uma função extremamente importante. Sem ela é muito difícil realizar um verdadeiro debate. Quem domina a conversa informal é especialista em conseguir que os outros se sintam envolvidos, valorizados e cômodos, e isso ajuda a reforçar uma relação de trabalho, fechar um negócio, deixar a porta aberta para um novo relacionamento amoroso ou começar uma amizade”.

De acordo com essa especialista em oratória, a conversa informal é o primeiro passo para que possa surgir a empatia entre duas pessoas. Embora a conversa seja sobre algum assunto pouco importante, nesse primeiro contato na verdade estamos falando muito, porque começamos a criar um vínculo que já transmite proximidade ou distância, confiança ou reservas para o outro.

Nas palavras de Debra Fine: “A conversa intranscedente é o equivalente verbal à primeira peça do dominó: desencadeia uma reação em cadeia, com todo tipo de consequência”. Contra o preconceito de que um desconhecido não terá nada em comum conosco, ao nos arriscarmos podemos terminar com uma surpresa agradável.

Quantos casais, bons negócios ou amizades têm sua origem em uma conversa casual? Provavelmente, a maioria. Além das habilidades de comunicação de cada um, a arte da conversação pode ser aprendida e reforçada. Os antigos gregos davam grande importância ao exercício da oratória e, nos tempos modernos, em 1875 Cecil B. Hartley mencionava em seu “Guia de um Cavalheiro de Etiqueta”, um conjunto de códigos que ainda são válidos, apesar de que, ainda hoje negligenciamos muitos deles.

Podemos resumir nestes 10 pontos:

1. Apesar de estar convencido de que o outro está totalmente errado, em vez de argumentar é aconselhável mudar habilmente de conversa. É absurdo pretender que os outros concordem com você.

2. Nunca interrompa ou antecipe a história do interlocutor. Saber ouvir é a regra de ouro do bom conversador.

3. Evite fazer cara de cansaço durante o discurso da outra pessoa, assim como se distrair com outra coisa enquanto está falando. Hartley mencionava como entretenimento “olhar o relógio, ler uma carta ou folhear um livro”. O equivalente atual seria o hábito irritante de olhar o celular.

4. A modéstia vai evitar muitas antipatias. Não se deve ficar exibindo conhecimentos, méritos ou posses para fazer com que os outros se sintam em desvantagem.

5. Não é necessário falar de si mesmo, a menos que seja perguntado. Os interlocutores vão ficar sabendo sobre suas virtudes sem necessidade de ficar contando.

6. A brevidade criativa é sempre mais eficaz que os discursos longos ou as histórias chatas.

7. Criticar ou comparar umas pessoas com outras, além de atacar alguém ausente, pode parecer divertido, mas vai acabar causando uma má impressão.

8. Nunca se deve apontar ou corrigir os erros na linguagem dos outros, mesmo que sejam estrangeiros, já que vão se sentir humilhados pela observação.

9. Não se deve oferecer assistência ou aconselhamento a menos que o conselho seja pedido expressamente.

10. O elogio excessivo cria desconfiança, porque o interlocutor pode pensar que você tem intenções ocultas.

No final, a essência do bom diálogo é a nossa capacidade de nos entregarmos ao intercâmbio com o outro, como se fosse uma coreografia. Os participantes fazem suas ideias dançarem juntas, se encontrarem e se separarem –para expandir seu horizonte de opiniões– e voltam a se unir para criar novos significados.

É por isso que depois de uma conversa profunda nos sentimos transformados. Terminamos alimentados por novas ideias e submetemos nossa visão a uma abordagem diferente que expande nossa compreensão sobre o mundo e sobre nós mesmos.

Em seu livro “Conversação”, o pensador Theodore Zeldin afirma que “dois indivíduos, conversando honestamente, podem se sentir inspirados pelo sentimento de que estão unidos em um empreendimento comum com o objetivo de inventar uma arte de viver juntos que não foi tentada antes”.

Já que é um dos poucos prazeres que não exige outro investimento além do tempo, vale a pena recuperar esta velha arte para que possamos voltar a nos sentir humanos.

Se o tempo gasto em enviar ou responder centenas de mensagens fosse dedicado a compartilhar nosso universo com pessoas que possam enriquecê-lo, viveríamos com uma “largura de banda” maior e poderíamos enfrentar os problemas que a vida trouxesse de forma mais inteligente e serena.

Por FRANCESC MIRALLES
Fonte: El País

Não julgue a cultura alheia com teus olhos, diz muçulmana

Não julgue a cultura alheia com teus olhos, diz muçulmana

“A questão de orar ou de rezar nunca foi motivo de briga. A gente estuda o passado para entender o presente. Ninguém nunca matou o vizinho por causa de Deus, é só um pretexto”, avaliou a muçulmana Paloma Awada, de 32 anos, sobre possíveis conflitos que diferenças entre religiões podem causar nas relações humanas. Filha de um imigrante libanês muçulmano em São Paulo com uma brasileira católica, ela segue o islamismo desde criança.

Eu fiquei interessada em conversar com algum muçulmano sobre o sentido da vida por conta do atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo na França no começo de janeiro, que ampliou os debates sobre conflitos entre diferentes crenças no mundo. Encontrei Paloma pela internet e ela me recebeu para uma conversa em seu local de trabalho, no Centro de São Paulo.

Apesar de a família materna dela não seguir o Islã, a economista me disse que sempre conviveu com a colônia árabe na cidade de São Paulo por causa da família paterna, o que a aproximou da religião. Afirmou que as diferentes crenças nunca foram motivos de intrigas entre seus pais (que acabaram se separando, mas por outras razões).

“O quesito religião nunca atrapalhou. Religião nenhuma nunca atrapalha. São sempre outros interesses. Se você reza de um jeito e eu de outro normalmente isso não vai afetar minha relação com você, normalmente não é isso. O que tem por trás nunca é isso. Sempre é um cunho político ou financeiro. Na verdade, sempre é financeiro. A política dá poder e dá finanças.”

Sobre a questão do atentado na França, cravou acreditar ser errado matar em qualquer contexto. “Qualquer ato de morte é absurdo em qualquer lugar do mundo, mas é uma forma que esses povos têm de reivindicar algum direito que alguém algum dia tirou deles.”

Avaliou que essa violência é originada por outra violência anterior, citando toda a questão histórica que envolve desde colonização por países Europeus, guerras e até mesmo a soberania dos Estados Unidos no mundo. “Você ataca o país, você tira seus líderes, você mata, você denigre a imagem daquela cultura, daquele povo. Você vende para o mundo que aquele povo é terrorista.”

Na opinião dela, tudo isso faz com que o resto do mundo enxergue os países árabes como um lugar onde só tem bombas, terrorismo e mulheres apedrejadas. “Tem isso, mas não só isso. Tem uma cultura por trás disso. Quem vê de fora não adianta julgar, não julgue a cultura alheia com teus olhos, não faça isso, porque se eles estão assim há 1,4 mil anos é porque eles gostam, e quem não gosta, saia.”

Sentido da vida

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‘O quesito religião nunca atrapalhou. Religião nenhuma nunca atrapalha. São sempre outros interesses’, disse Paloma (Foto: Arquivo Pessoal)

Para Paloma, a vida é uma ponte, um aprendizado. “Você vem para fazer algumas coisas, para aprender e ensinar outras. E o mais importante, na minha opinião, é que a pessoa tem sempre se esforçar para viver da melhor forma possível.”

Avaliou que Deus concedeu ao ser humano a inteligência. “Com a sua inteligência você pode fazer milagres, você pode trabalhar, gerar, cair e levantar muitas vezes e procurar sempre, sempre fazer aquilo que faz você feliz, o que te traz felicidade, e o que te traz felicidade não pode ser alguma coisa que traga infelicidade aos outros. Se você quer ser feliz e está fazendo infeliz todo mundo ao seu redor, tem alguma coisa errada.”

Islamismo

Paloma afirmou que sempre gostou muito de estudar as diferenças entre as crenças e, quando pequena, chegou a frequentar outros templos religiosos. “Eu sigo o Islã porque minha família segue, e lógico que eu estudei isso, eu não sou muçulmana só porque me disseram ‘você é muçulmana’. A gente acredita em Deus, assim como outras religiões também.”

Afirmou que o Islã nada mais é do que uma continuação do cristianismo, do judaísmo, e que, para ela, Deus é um só. “Existe um criador de tudo isso. Ele se chama Deus. Em português é Deus, em árabe é Alá, em inglês é God. Deus que é uma luz suprema, uma energia suprema.”

Crê, ainda, que os profetas são mensageiros. “Na verdade, o profeta Muhhamad é uma continuação, ele não falou nada de diferente de Moisés, nada de diferente de Abraão, nada de diferente de Jesus Cristo. Nada.”

Véu

Já foi ao Líbano muitas vezes e disse que é bastante envolvida com as ações da colônia islâmica em São Paulo – em algumas épocas da vida mais, outras menos. Optou por usar o véu aos 14 anos. Revelou que sempre se sentiu mais protegida com o acessório, principalmente com relação ao assédio frequente de homens pelas ruas de São Paulo, que não mexem com a mulher quando está com véu, disse.

Por outro lado, já perdeu vagas de emprego e até mesmo foi impedida de fazer uma prova num concurso público por estar com a cabeça coberta. Sem contar as brincadeiras frequentes que ouve de desconhecidos sobre a vestimenta. “Às vezes tem brincadeiras que pesam. Algum cliente que faz uma graça, como ‘vou te pedir desconto, mas não me explode’. Você até leva na brincadeira, mas tem situações que não é legal.”

Revelou que a maioria das mulheres de véu no Brasil acaba trabalhando com a família ou em entidades árabes. “O mercado de trabalho tem um padrão e ele não absorve, isso é fato.”

Por conta disso, trabalha com comércio no Centro de São Paulo. Afirmou que essa questão profissional é a que mais a coibiu ao usar o véu. “São coisas aqui no Brasil que ainda limitam um pouco, são normas. Eu respeito, quando isso vai acabar? Não sei.”

Difícil não é encontrar o amor da sua vida. É se dar conta de que ele chegou faz tempo.

Difícil não é encontrar o amor da sua vida. É se dar conta de que ele chegou faz tempo.

Você já deve ter ouvido a história do casal perfeito que se encontrou no congestionamento. Cada um em seu carro, seguiam rumos contrários quando suas janelas se emparelharam com perfeição no tráfego lento.

Um buscava uma estação no rádio, o outro caçava uma bala na bolsa, um roía as unhas e o outro pensava na vida, um fazia contas de cabeça, o outro fazia nada. Naquele instante, o universo inteiro se resumiu às duas almas paradas ali, em seu encontro. Não havia mais o resto, nem antes nem depois, hoje, amanhã, passado, futuro, não havia nada além dos dois ali e isso era tudo. Eram só ele e ela, ele e ele, ela e ela. Não importa. Fato é que se olharam e se amaram assim, sem mais, na eternidade de um segundo infinito.

Namoraram, fizeram planos, casaram, criaram filhos e viveram felizes para sempre. Até o trânsito seguir e eles nunca mais se encontrarem na vida. Pelo menos não nesta encarnação.

Penso nessa história sempre que vejo alguém pontificando sobre almas gêmeas, tampas da panela, metades da laranja e essas coisas que quase sempre só aumentam a ansiedade das almas afoitas, à espera. Porque eu tenho a impressão de que todo mundo já achou ou há de achar seu amor perfeito, mas quase ninguém se dá conta de quando ele chega. Não percebe quando ele está por perto. Talvez porque nem sempre o nosso “amor perfeito” seja exatamente assim: perfeito.

Tal como cada um de nós, bichos incompletos, aquele que nos espera também haverá de ser cheio de falhas, confuso como o sentimento amoroso que nasce sempre de nós, por nós, para nós.

Verdade é que o amor chega, sim. Chega para todos. Mas nem todo mundo percebe. Ora fica mais, ora menos. Ora parte, ora volta, começa do nada, acaba com tudo. Ora se reinventa e recomeça e dura até só Deus sabe quando. Imperfeito e inacabado em toda a sua perfeição.

Não, eu não sei bem o que estou dizendo, minha gente, não guardo certeza de nada. Mas me faz bem imaginar que no meu aqui dentro tem um jardinzinho, coisa pouca, umas mudas, duas, três ervas da gente fazer chá. E uma flor, sozinha entre as hortelãs e as cidreiras e os boldos e azedinhas, bem aqui comigo. Essa flor, pequena e bela, transpira da terra um perfume que é a calma impressão de que já encontrei por aí o amor da minha vida. E foi um bocado de vezes.

Cuido do jardinzinho inteiro, mas me demoro em minha flor. Ela me lembra quantas vezes o amor veio, ficou, partiu, voltou e o quanto revirou o melhor e o pior aqui dentro, porque é aqui dentro que o amor verdadeiro espera. Aqui ele nasce, vive, cresce, deita suas raízes com força na terra, espalha suas folhas no quintal e só então, mais tarde, floresce para fora, para o mundo. Para sempre.

Lá, em seu tempo sem hora, há de compartilhar suas cores e seu perfume com outras flores, até só Deus sabe quando. Quem sabe aconteça hoje, agora, amanhã, depois, mais tarde. Quem sabe já ou não mais nesta encarnação. Quem sabe.

Podíamos ser todos urubus

Podíamos ser todos urubus

É melhor ser urubu ou beija-flor? Assim, fazendo a pergunta à queima-roupa, acho que tem chance dessa pesquisa dar 100% de votos a favor do beija-flor. Mas eu vou tentar fazer a defesa do urubu.

Há muito tempo, li em algum lugar que os urubus têm o voo que é considerado o mais bonito de todos os pássaros. Essas coisas que a gente lê e depois não se lembra de onde leu, mas a informação fica estocada em algum lugar do cérebro. E vendo os urubus voarem, eu tive que concordar. Eles planam pelas correntes de ar quente, quase sem esforço. Olhando pra eles, parece que estão sempre voando só pelo gosto de voar, não pela necessidade de fazer alguma coisa, como fugir de um predador ou buscar comida, como os outros pássaros. Urubus são diferentes. Parece que nunca têm pressa e que só mesmo o prazer de voar é que os move… Ainda que racionalmente a gente saiba que eles devam estar sempre procurando comida, claro.

Pombas, pardais e sabiás dão a impressão de que estão sempre atrasados e que têm um horário pra cumprir ou um trabalho por fazer. Voam com pressa, não muito longe do chão, batendo as asas para ganhar velocidade, enquanto os urubus na maior parte do tempo planam e voam muito mais alto que todos eles.

Eu trabalho de frente para uma janela, no quarto andar de um prédio, o que quer dizer que eu tenho visto um monte de urubus. Eles têm aparecido bastante por aqui e costumam pousar no prédio em frente, voando em círculos perto dele, sempre tranquilos, com aquela elegância de quem sabe que vai dar tudo certo no final, gastando o mínimo de energia possível.

De uns tempos pra cá, também tenho visto um casal de carcarás (imagino que seja um casal, já que sempre voam juntos). Eles aparecem mais raramente, pela manhã e pela tarde, como se estivessem primeiro indo e depois voltando do trabalho, sempre com pressa, apesar de terem um voo mais conformado e mais tranquilo, próximo ao dos urubus, mas muito mais objetivo. Eles sabem que estão indo para algum lugar e parece que não podem se atrasar. Não têm tempo para planar, precisam bater suas grandes e potentes asas e chegar logo.

As maritacas, por outro lado, estão sempre em bando e em altíssima velocidade, fazendo muito barulho e apostando corrida, como se fossem adolescentes que acabaram de aprender a voar. Saindo pelas ruas da cidade, parece que somos todos maritacas.

Ou pior ainda, beija-flores. Um beija-flor está sempre voando rápida e desesperadamente para dar conta de um apetite voraz, que consome até 30 vezes o seu peso em alimento por dia, levando o coração a bater mais de 2000 vezes por minuto, enquanto as asas chegam a 90 vezes por segundo, gastando de 6.600 a 12.400 calorias por dia.

Tudo é tão rápido e desenfreado na vida de um colibri que o único objetivo que ele pode ter é conseguir se alimentar para manter o voo rápido em busca da comida que vai manter o voo rápido em busca da comida que vai manter o voo rápido em busca da comida, a cada segundo e a cada dia. Um beija-flor não tem tempo nem para olhar a paisagem, só o tempo de pousar em um galho e tomar fôlego, antes de sair novamente em um voo rápido atrás da comida que vai manter o voo rápido atrás da comida que vai manter o voo cada vez mais rápido de um beija-flor sempre insaciável, que nunca pensa que o sentido de tanta correria é só alimentar a própria correria que não permite que ele pense. Correria que vai consumir a sua vida enquanto ele voa cada vez mais rápido até a próxima flor, ou, se morar na cidade, até o próximo recipiente cheio de água açucarada, mais fácil de consumir que as flores que traz no nome.

E ainda assim, ninguém quer ser urubu. Que pena.

Talvez depois dessa argumentação, apresentando urubus e beija-flores através de pontos de vistas diferentes, a resposta possa mudar. Tudo é relativo. Alguém que nunca se viu como urubu, talvez agora já possa se imaginar planando em uma corrente de ar quente, acima dos prédios da sua cidade.

Em tempos tão binários, apreciar o voo dos urubus pode ser uma forma de começarmos a ampliar os nossos horizontes.

As sobrancelhas de Frida

As sobrancelhas de Frida

Deitada em sua cama, durante um longo período de convalescença, Frida pintava. Na arte, a sua figura encontrava expressão. De um espelho, seu retrato surgia na tela. Da imagem resultante, a mulher emblemática por suas cores intensas, dores constantes e intenso amor: o amor pelo México, seu país; o amor por Diego, seu marido infiel.

Frida pintava a si mesma porque, como ela mesma dizia, era o assunto que melhor conhecia.

Sobre seus olhos, uma ponte escura e densa emoldurava o olhar. Suas sobrancelhas eram expressão conectada assim como eram seus sentidos mais puros e sua dor. Nada poderia ser separado sem levar a destruição de todo o ser.

Todos nós, em proporções variadas, temos um pouco de “Frida” e, por isso, a adoramos. Nós também somos cores, intensidade, dores e amores. Somos o que a vida fez de nós e o que fizemos com o que fomos nos tornando. Somos, Frida bem o sabia, “integração e desintegração”, um ciclo perpétuo de reconstrução interna.

Sem a pólio, o acidente com o bonde, Diego e a dor, talvez Frida nunca tivesse chegado até nós. Ela seria uma outra Frida. Talvez não tão sofrida… Assim também somos nós, consequências de nossas próprias histórias, de nossos próprios acidentes, sobreviventes das etapas da vida, muitas vezes até vítimas de nós mesmos.

Para seguir é preciso engolir a culpa e a não aceitação. É necessário abandonar o gosto amargo dos problemas insolúveis e permitir que sejam digeridos e sigam seu caminho possível. Talvez não haja tanta saúde, dinheiro ou a beleza idealizada, mas é preciso que exista o perdão.

Quando perdoamos a nós mesmos, aprendemos a perdoar também aos outros. E o perdão, sentimento superior, é o material de que são feitas as pontes que abrem e reconstroem caminhos, que ligam o nosso melhor e o nosso pior, tornando-nos quem realmente somos, um todo.

Pontes como as das sobrancelhas de Frida, a mulher que pintava a si mesma e que sabia que somos nós mesmos, o nosso melhor material artístico. Somos inspiração, arte e contemplação. Somos começo, meio e fim.

contioutra.com - As sobrancelhas de Frida
Frida, by Lita Cabellut

Os mais inesquecíveis trechos do livro “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera

Os mais inesquecíveis trechos do livro “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera

“Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então, o que escolher? O peso ou a leveza?”

“Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo ‘esboço’ não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.”

“Só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa.”

“‘Tem de ser assim’, Tomas repetia para si mesmo, mas logo começou a ter dúvidas: teria mesmo de ser?”

“Mas o homem, porque não tem senão uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese através de experimentos, de maneira que não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a um sentimento.”

“…será que um acontecimento não se torna mais importante e carregado de significados quando depende de um número maior de circunstâncias fortuitas?”

“Mas o amor nascente aguçou nela a percepção da beleza, e ela jamais esquecerá essa música. Toda vez que a ouvir, tudo o que acontecer em torno dela, nesse momento, ficará impregnado com seu brilho.”

“Aquele que deseja continuamente ‘elevar-se’ deve esperar um dia pela vertigem. O que é a vertigem? O medo de cair? Mas porque sentimos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada? A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio embaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados.”

“Mas era justamente o fraco que deveria saber ser forte e partir…”

“Aquilo que não é consequência de uma escolha não pode ser considerado como mérito ou fracasso. Diante de uma condição que nos é imposta, é preciso, pensa Sabina, encontrar a atitude certa. Parecia-lhe tão absurdo insurgir-se contra o fato de ter nascido mulher quanto glorificar-se disso.”

“Por mais cruel que tenha sido a vida, no cemitério sempre existe a mesma serenidade.”

“São precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e que traçam as fronteiras da nossa existência.”

“Os regimes criminosos não foram feitos por criminosos mas por entusiastas convencidos de terem descoberto o único caminho para o paraíso. Defendiam corajosamente esse caminho, executando, por isso, centenas de pessoas. Mais tarde ficou claro como o dia que o paraíso não existia e que, portanto, os entusiastas eram assassinos.”

“Quando nos defrontamos com alguém que é amável, atencioso e delicado, é muito difícil ficar convencido a cada instante de que nada do que é dito é verdadeiro, de que nada é sincero. Para duvidar (contínua e sistematicamente, sem um segundo de hesitação), é necessário um esforço gigantesco e muita prática.”

“Já havia compreendido que as pessoas se alegravam tanto com a humilhação moral do próximo, que jamais abriam mão desse prazer ouvindo explicações.”

“No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo.”

“Não estava certo de ter agido bem, mas estava certo de ter agido como queria.”

Da obra “A Insustentável Leveza do Ser“, de Milan Kundera.

Fonte: Fragmentos – uma coleção

Amar sozinho é desamor

Amar sozinho é desamor

Amar sozinho é o auge da resiliência. É se acostumar com a solidão por achar que a companhia do amor que sente é suficiente. Preferir sentir a frustração da falta de companhia do que a tristeza da partida do amor.

É ouvir as músicas que o outro ouve, ver os filmes que ele posta que viu, vasculhar os títulos que ele tem no Skoob. Amar sozinho é não perceber que é exatamente no que você conhece e o outro não que está a riqueza da vida e que dizer “nunca ouvi falar” é uma deixa muito mais instigante para uma conversa. Mas quem ama sozinho não quer estar com o outro para trocar, quer ser o outro para viver. Se moldar sem perceber que molde e forma são diferentes e não iguais.

Quem ama sozinho tem tão pouco, que se apega à quase nada. Amar sozinho é transformar uma mensagem boba num motivo para acreditar, uma noite em declaração de amor. É ler e buscar entrelinhas onde elas não existem, esquecer o discurso e se preocupar em tentar achar nos pronomes escondidos um motivo para se sentir atingido por cada frase.

Criar uma expectativa que excede o bom senso e a sanidade. É saber como o outro vai executar cada movimento em direção ao beijo, mesmo sabendo que ele pode nunca mais acontecer. É sonhar com o tato da ponta dos dedos se arrastando pelo seu corpo e acordar com a frustração dormindo ao lado.

Quem ama sozinho prefere sempre o passado ou o futuro, e nunca o presente. Fica na estação parado vendo o trem passar e não aceita um novo destino nunca, porque pra quem deposita todas as suas esperanças no outro, ele é o caminho. O sonho não é andar lado a lado, é acompanhar o outro onde ele for.

Quando se ama sozinho, é fácil ver no outro a perfeição e fechar os olhos para possibilidades imperfeitas e reais. Porque amar sozinho é acreditar que só existe uma chance de ser feliz. É perder o bilhete da loteria sem saber se ele estava premiado e sofrer mesmo assim.

Amar sozinho é sentir a crueldade de um sentimento que só existe para a plenitude. Amar sozinho é a pior forma de desamar a si mesmo.
Por Marina Melz
Fonte: Entenda os Homens

Eu sou do tamanho do que vejo- Alberto Caeiro

Eu sou do tamanho do que vejo- Alberto Caeiro

Alberto Caeiro foi uma personagem ficcional (heterônimo) criada por Fernando Pessoa, sendo considerado o Mestre Ingenuo dos restantes heterônimos (Álvaro de Campos e Ricardo Reis) e do seu próprio autor, apesar de apenas ter feito a instrução primária.

Foi um poeta ligado à natureza, que despreza e repreende qualquer tipo de pensamento filosófico, afirmando que pensar obstrui a visão (“pensar é estar doente dos olhos”). Proclama-se assim um anti-metafísico. Afirma que, ao pensar, entramos num mundo complexo e problemático onde tudo é incerto e obscuro. À superfície é fácil reconhecê-lo pela sua objetividade visual, que faz lembrar Cesário Verde, citado muitas vezes nos poemas de Caeiro por seu interesse pela natureza, pelo verso livre e pela linguagem simples e familiar. Apresenta-se como um simples “guardador de rebanhos” que só se importa em ver de forma objetiva e natural a realidade. É um poeta de completa simplicidade, e considera que a sensação é a única realidade. (Wikipédia)

Abaixo, um de seus poemas mais conhecidos.

Eu sou do tamanho do que vejo


Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo…
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer

Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura…
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

Alberto Caeiro, in “O Guardador de Rebanhos – Poema VII”
Heterónimo de Fernando Pessoa

Bonito é ver um ‘eu te amo’ surgindo do nada

Bonito é ver um ‘eu te amo’ surgindo do nada

Bonito é ver o ‘eu te amo’ saindo do corpo antes das palavras, antes da boca, antes do orgulho ceder e da razão concordar. Antes da vida se encaixar.

Bonito é ver o ‘eu te amo’ estampado na temperatura da pele, no vermelho da face, nos olhos surpresos, nos gestos, no afeto cru e sem jeito. Nas vontades dos pelos.

Bonito é ver um ‘eu te amo’ encontrando o outro, em plena explosão de coincidências.

Bonito é ver que ‘eu te amo’ é química, é magnetismo que age com as próprias leis.

Instintivo, encontra seu coração-alvo pela variação químico-física das ondas sonoras da aura. Bonito é ver um ‘eu te amo’ que não precisa ser inventado pela situação e nem precisa ser dito. Ele está muito longe de ser frases para dizer bom dia e até a próxima.

Bonito é ver o ‘eu te amo’ girando o mundo. Encurtando as distâncias, derrubando as máscaras. Querendo ser maior que tudo.

Bonito é ver um ‘eu te amo’ que não sabe mais se esconder. Bonito é sentir o ‘eu te amo’ crescendo em meu peito antes de me dar conta dele. Bonito é acordar de sobressalto no meio dos dias e perceber o inesperado, um ‘eu te amo’ tão vivo e pronto para alçar voo.

Bonito é ver o ‘eu te amo’ amadurecendo antes de mim, de você, de nós. E seguirmos nossas vidas, e fingirmos que não vimos, mas vimos. E fingirmos que ele não existe, mas existe. E quer colo e quer leito e seiva. E quer se fazer notar.

Bonito é ver um ‘eu te amo’, reconhecê-lo e o deixa-lo ser, e abrir caminhos para ele passar. Bonito é ter olhos e corações de ver e viver ‘eu te amos’.

INDICADOS