A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens

A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens

Cassandra Gillens é um artista autodidata, residente na Carolina do Sul.

Nascida e educada em Boston, Massachusetts, suas primeiras memórias são de desenhos com giz colorido nas calçadas de Roxbury; Massachusetts. Outras memórias são de quando ela começou a pintar imagens que descreviam os primeiros anos de sua infância na Carolina do Sul. Cassandra está intimamente ligada ao povo e a cultura desta terra maravilhosa e histórica; suas pinturas retratam algumas de suas melhores lembranças como criança, e também da boa vida do velho sul.

Veja mais em seu Site oficial e no Facebook.

contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens

contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens

contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillenscontioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens

contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens

contioutra.com - A alma da Carolina do Sul nas pinturas de Cassandra Gillens

Meu filho autista nunca foi a um aniversário.Um dia recebi um convite especial.

Meu filho autista nunca foi a um aniversário.Um dia recebi um convite especial.

Timothy é um amável garoto. Mas a sua rotina não é fácil, já que ele sofre de autismo. Sua mãe tem que se desdobrar para cuidar do filho que além de precisar comparecer a várias consultas médicas, tem outras necessidades especiais. Festas de aniversário, por exemplo, são complicadas, pois o excesso de animação das várias crianças presentes pode ser muito estressante para o garoto. Mas um dia, uma carta especial chegou na caixa de correio da família de Timothy. Essas tocantes palavras comoveram a mãe de Timothy quando ela as leu. Foi assim que ela respondeu:

“Querida mãe,

Você não me conhece e eu não te conheço, mas meu filho, Timothy, às vezes senta do lado do seu filho na escola.

Timothy sofre de autismo grave. Ele também é um garoto de 7 anos que ama e brinca com todo seu coração. Ele precisa de muita ajuda extra na escola e às vezes parece totalmente alheio ao que está acontecendo embaixo do seu nariz.

Ele quer amigos mas às vezes não sabe como fazê-los.

Ele quer brincar mas às vezes não sabe como pedir.

Ele quer ser incluído mas às vezes não sabe como.

Nós, pais de crianças com necessidades especiais, sabemos muito bem o quão machucados nossos filhos se sentem quando são deixados de fora de eventos sociais.

Esportes, encontros, dormir nas casas dos amigos e, sim, as apavorantes festas de aniversário.

Eu posso dizer sinceramente que meu filho nunca compareceu a nenhuma sequer. Nós recebemos inúmeros convites nos últimos anos, mas na maioria das vezes por crianças que convidam a sala inteira impiedosamente. Não me entendam errado, eu estou agradecida.

Mas eu me pergunto se os pais sabem o que aconteceria se eu trouxesse o Timothy? As interrupções, os desastres. Como eu odiaria tirar os holofotes da criança aniversariante.

Então nós recusamos educadamente. Todos.

Até que seu convite chegou pelo correio com uma nota especial. Nela estava escrito:

“O Carter senta ao lado do Timothy na escola e sempre fala dele. Eu realmente espero que ele possa vir. Nós vamos alugar um castelo inflável no qual pode ser acoplado um pequeno escorregador. Nós também teremos balões e armas d’água. Talvez o Timothy possa vir um pouco mais cedo caso a classe inteira seja demais para ele. Me avise como podemos fazer isso funcionar.”

Você escreveu exatamente o que eu precisava ver naquele dia e nem mesmo sabia.

Por causa do seu filho ele está incluído.

Por causa do seu filho ele se sente querido.

 Por causa do seu filho ele tem uma voz.

E eu quero que você saiba que por sua causa eu posso enfrentar mais um dia.

Por causa de você eu posso enfrentar outro compromisso.

Por causa de você eu posso aguentar mais olhares e perguntas.

Por causa de você eu tenho esperança pelo futuro de Timothy.

Eu apenas queria te dizer o trabalho fantástico que você está fazendo com seu filho.

Esta mãe estará confirmando a presença do filho pela primeira vez na história. E eu mal posso esperar.

Sinceramente,
A muito agradecida mãe de Timothy.”

Essa carta mostra como apenas um pouco de compaixão pode proporcionar um alívio fenomenal para outras pessoas. A mãe de Timothy precisa usar todas as suas forças para cuidar do filho e esta carta é como um raio de esperança em um quarto escuro. Se você também ficou impressionado com as inacreditáveis bondade e amizade contidas nessas poucas linhas, compartilhe esta carta com todos que você conhece. Timothy e milhares de outras crianças precisam de toda a ajuda que puderem receber.

Fonte: Não acredito

Leia mais sobre o tema em Autismo e Inclusão

Autismo, Não Espere, Aja Logo!: Depoimento de um Pai sobre os Sinais de Autismo

À flor da pele. Quem nunca?

À flor da pele. Quem nunca?

“Em casa, à noite, o pai guarda os sapatos dos dois no mesmo canto, pendura os casacos dos dois no mesmo gancho… Ele serve o jantar em um prato redondo e descreve a localização dos diferentes tipos de alimento fazendo uma analogia com os ponteiros do relógio. Batatas às seis horas, ma chérie. Os cogumelos, às três horas…”

Trecho do livro “Toda luz que não podemos ver” – Anthony Doerr

Quem nunca se viu em um estado mais sensível do que o normal, enxergando drama, poesia e arte em qualquer coisa cotidiana?

Quem nunca chorou ao ler um trecho de um livro, ao escutar uma música, ganhar um abraço, um pão doce que lembra a infância, um bilhetinho de amor?
Eu chorei com esse trecho do livro, confesso. Pensei nesse pai viúvo que cria a filha cega sozinho e, entre tantos atos de amor, ainda encontra poesia e encanto para a vida de ambos. É amor demais para não se arrepiar.

Curioso é que todos esses gatilhos existem o tempo todo em todos os lugares, mas não somos capazes de nos sensibilizar com tanta frequência, com tanta intensidade todas as vezes. E quando isso acontece, dizemos que estamos à flor da pele. Eu adoro essa expressão, mesmo que alguns digam que é a porta de entrada para um colapso, surto, crise histérica… Discordo totalmente e ainda ouso dizer que o estado de flor da pele nos faz uma verdadeira esfoliação na alma, nos mostra o que somos e qual são as importâncias que devemos nutrir e guardar na vida. Quando viramos poesia e às outras poesias nos misturamos.

Hoje, voltando para casa, desci do metrô, e, bem junto de mim passaram quatro funcionários levando um homem desacordado naquelas macas de pronto atendimento. Era um homem relativamente novo, e toda aquela multidão olhando curiosa, comentando. Realmente não tenho ideia do que aconteceu. Os rapazes do metrô subiram a estação pela escada rolante levando o homem para um posto de atendimento que tem logo na saída. E eles desapareceram porta adentro. Nesse momento me veio um nó na garganta, aquela sensação de choro, de desemparo. Eu não conheço o homem, desconheço o que aconteceu com ele, mas meu momento flor da pele me desarmou, me fez pensar que nenhum de nós nunca saberá o que será o minuto seguinte. Nem o homem da maca, ninguém.

Nos resta portanto, a certeza de todo o futuro incerto, que contará com deliciosos e perfumados momentos à flor da pele.

Antes um Não bem dado do que um Sim mal dito

Antes um Não bem dado do que um Sim mal dito

Quando uma pergunta é então emitida, e espera-se uma resposta positiva ou negativa, supõe-se: sim ou não. No entanto, na prática, a resposta recebida para esse tipo de questão parece dominada por outros opostos: sim e silêncio, sim e enrolação, sim e ilusão. Qual é o problema com o não afinal? Não faz parte da vida? Não é uma resposta válida? Supõe-se que quem tem coragem de perguntar está disposto a receber a melhor ou a pior das respostas.

Pior que o não é um silêncio que ignora a situação, como se nunca tivesse acontecido. Pior que o não é ver sua energia ser mascada pelo outro, mantida a postura na esperança de uma resolução. Pior que o não é a ilusão do sim, diante da ausência de uma resposta negativa. Pior que o não é a atitude ambígua. Que seja um não sei, que seja honesto.

Dizer não com sinceridade não é sinal de maldade. Ao contrário, é sinal de coragem e consideração com quem pede uma resposta para algo. É o simples reconhecimento do outro como ser humano, que se comunica pela linguagem, que pensa, que sente e que se mostrou disposto, deu a cara a tapa à receber uma resposta verdadeira. Dizer não é ser empático o suficiente para saber que tal resposta deixará o outro livre para seguir outros caminhos, para vislumbrar outras opções, outros trajetos, mesmo que seja com dor à princípio. A dor passa, a dúvida não.

A dúvida corrói. Envenena a pessoa com esperanças, medos, desilusões, uma porção de criações imaginárias para uma lacuna em branco. Um branco de nada ou um branco de uma resposta mal dada, que não se converte em ações. O não é como a morte – se supera com o luto, segue-se em frente apesar da dor. Não há nada o que se possa fazer sobre ela. A ausência de resposta, a resposta falsa ou a resposta ambígua são como pessoas desaparecidas – há sempre esperança de ter uma notícia, de um reaparecimento, além de todas as fantasias que acompanham o pensamento sobre o que pode ter acontecido com a pessoa, sobre como ela está, sobre o que aconteceu… Pensamentos de esperança e de terror se revezam como as subidas e descidas de uma montanha russa.

Há quem se isente dessa responsabilidade do que causa aos outros com a sua leviandade – “Não tenho culpa sobre as expectativas alheias”, dizem. Pois, realmente, não temos culpa da expectativa de ninguém, sempre que deixamos algo claro. Mas a verdade é que raramente alguém alimenta ilusões diante de uma posição firme, transparente e honesta. As expectativas geralmente acompanham uma atitude do outro, que não quer nem “pegar” nem “largar”.

Será que para alimentar o ego com a situação de ser solicitado a responder por si a alguém? Pelo medo de parecer uma pessoa hostil? Medo de tomar uma decisão? Ou quem sabe por imaturidade? É certo, apenas, que não responder por capricho ou responder algo mal dito é uma atitude covarde. Uma atitude de quem não se assume, não sabe o que quer, e também não quer deixar que o outro saiba. Uma atitude egoísta e mesquinha, que de tão banalizada, vem semeando entre tantos por aí o medo do risco de viver, de tentar, de se entregar. Ninguém quer acabar sendo tratado como inexistente, indigno de ser respeitado em sua dúvida, em sua demanda por uma posição do outro que se colocou, de alguma forma, em seu caminho. Duvidosos envenenados acabam por se converter em não não-dizentes.

A resistência é necessária, para não permitir-se tornar ceifador de confianças só por ter se ferido na ceifa alheia. No limite do tempo e da energia gastos com algo que não anda nem desanda, o melhor caminho, se não o único, pode ser ter que assumir o “não” do outro, negar-lhe a ceifa hesitante e executar a própria poda, dolorida, mas realizada de tal forma que novos ramos poderão crescer. Precisamos estar inteiros para seguir em frente. E então, nós negadores, encontrarmos outros negadores, que só dizem sim quando querem realmente.

Todo dia barulhento espera uma noite silenciosa

Todo dia barulhento espera uma noite silenciosa

Ah, minha mãe. Esse barulho todo me traz você aqui. Penso no seu silêncio no tumulto da nossa casa. Lembro do som da rua quieta enquanto esperava você no portão. Naquele tempo em que esperar por você era minha única angústia da vida.

Aqui, no alvoroço desse negócio de viver tudo e dormir nada, de andar apertando os olhos para ouvir alguém entre tanto ruído, me falta você, minha mãe, chegando com a noite e a lua. Silenciosa em sua meia dúzia de palavras. Segura em suas interjeições.

Pensar em você me joga na cara o quanto precisamos todos de uma noite silenciosa depois do barulho dos dias. Penso em você, minha mãe. Penso em você voltando pra casa à noitinha e sua voz me chega de longe. Vem montada em cheiros e gostos e imagens e lembranças de canções cantaroladas baixinho entre a cozinha e o chuveiro. E um perfume de sabonete e vapor d’água quente me invade a alma, como a voz de alguém que já foi.

A visão antiga de você apontando no topo do viaduto, lá no fim da nossa rua, caminhando cansada no fim da lida, é o que me falta e o que me sobra. Agora é longe, eu não vejo o seu rosto mas sei que é você. Daqui, deste canto distante no tempo e no espaço, deste hoje pequenino que é só a espera de um largo amanhã, faz bem pensar que ontem você sorria ao me saber ali, esperando no silêncio do portão à noite.

Olha, minha mãe, vira e mexe eu penso em você. Em sua crença na gentileza. Em seu jeito de respirar fundo e limpar os pés na grama quando esbarrava na grosseria. Dia desses, encontrei a mãe do meu filho, numa dessas reuniões com advogado, coisa de casamento que acaba. Ela usava uns brincos sérios que eu nunca tinha visto nela, caminhava firme sobre saltos de madeira, e tinha uma dignidade resoluta, comovente e silenciosa. Depois do barulho que acompanha uma separação, as conversas de surdo, o afastamento dolorido e as indiferenças clamorosas, o silêncio dela chegando depois do fim me comoveu.

É a mãe do meu filho, e de um jeito estranho ela é você também. Olhar para ela me deu uma vontade louca de lhe estender as mãos e de ser gentil e perguntar como vai a vida. Calar a gritaria de tanto ressentimento e dizer obrigado. Mas eu não sou você, minha mãe. Não tenho seu gênio manso e generoso. Quem sabe um dia eu chego lá.

Assim, recordando sua gentileza, volto depois da lida barulhenta ao silêncio da sua lembrança. Sigo pela vida e ouço você me dizer baixinho: vai, menino, leva nossa noite silenciosa consigo. Caminha com os olhos na lua, pede a seu anjo da guarda que lhe traga o sol depois da noite. Preza o silêncio que compensa o barulho. Vive o estrondo que segue o remanso. E o resto é o trabalho. O resto é todo o trabalho que isso dá.

Toda marca vem para nos transformar

Toda marca vem para nos transformar

Quem nunca sentiu o ardido de um joelho ralado? Ou soprou um machucado pra sarar? No meu caso, se ainda hoje toco o queixo, sinto a cicatriz dos pontos que levei após uma queda brusca no corredor de casa porque sai correndo de meias. Motivo bobo, mas com consequências um pouco dolorosas, mesmo que momentaneamente e, que deixou uma pequena marca que já dura mais de 20 anos.

Dessas marcas tenho outras…ralados nos joelhos, arranhões da gata que me acompanhou durante a infância até a juventude, marca de vacina no braço, e por aí vai. Mas, para além dessas visíveis, carrego outras que ao longo da vida tem me transformado no que sou.

Essas cicatrizes visíveis e invisíveis que carregamos no corpo e na alma fazem parte da história de todo ser humano. Como em um livro, elas contam sobre nossa biografia e sobre como nos esfolamos e nos calejamos na trajetória da vida. Também falam das alegrias que ficaram gravadas na memória e que nos edificaram e transformaram nos diversos momentos de metamorfoses que passamos.

Como diz sabiamente o Psiquiatra Carlos Byington, “qualquer criança sadia logo descobre que o preço de aprender a caminhar é pago com quedas, dores e lágrimas.”

E assim, desde os primeiros passos, vamos ganhando nossas marcas, mas também exploramos o mundo, adquirimos experiência e maturidade.

É verdade que, às vezes, preferiríamos ter corpo e alma imaculados! Mas, se assim fosse permaneceríamos como verdadeiras lagartas rastejantes na busca devoradora pelo alimento, impedidos da liberdade do voo e da possibilidade de realizarmos nossa vocação e chamado de vida.

Em uma linda passagem do livro A Virgem Grávida, Marion Woodman nos conta sobre o processo de metamorfose das lagartas em borboletas. Em um dos trechos ela diz: “…descobri que a borboleta é símbolo da alma humana. Também descobri que, em seus primeiros momentos do lado de fora da crisálida, a borboleta excreta uma gota de um fluido que se acumulou durante a fase de pupa. Essa gota é geralmente vermelha e às vezes pinga em seu primeiro voo. Simbolicamente, para que libertemos a nossa própria borboleta, também precisaremos sacrificar uma gota de sangue…”

Assim, nunca mais seremos os mesmos depois de uma marca! Tudo aquilo que fica registrado no corpo e na alma, de maneira consciente ou inconsciente nos molda, nos transforma, nos influencia e nos guia para a individuação.

Algumas marcas são comuns a todos nós. Elas fazem parte dos ritos de passagem que envolvem cada fase da vida.  Afinal, não há quem não tenha acordado um dia com uma espinha no rosto ou quem envelheça sem rugas, não é mesmo?

Outras cicatrizes remetem momentos de profunda alegria e transformação, como a marca da cesárea que retrata a passagem da “filha/menina” para a “mãe/mulher”. Outras são como tatuagens, frutos de uma escolha pessoal, que revelam em sua imagem o símbolo de uma ideia, de um sentimento, de uma fase da vida, de um desejo, uma dor, um amor, uma amizade, uma conquista, ou algo com significado pessoal.

Mas, existem às que são adquiridas brutalmente. Feridas visíveis e invisíveis provenientes dos traumas, dos abusos, das violências, das perdas, dos lutos e das mais diversas experiências dolorosas que podem inundar a alma humana. Elas podem se tornar verdadeiros cancros abertos que mutilam a personalidade verdadeira e nos transformam em pessoas desconfiadas, negativas, destrutivas, depressivas e desesperançadas.

Há também àquelas que são vistas como verdadeiras deformidades, das quais preferimos nos esconder e ocultar do outro. Marcas que nos envergonham e limitam a entrega em relacionamentos e na intimidade. Essas, nos desafiam a superar as aparências e as projeções para que possa ocorrer uma entrega verdadeira. E assim, recebermos, através do amor e do afeto, o alento, o conforto e a aceitação tão necessária em nossa frágil existência humana.

Mas, não podemos nos esquecer das marcas que nos protegem e que, assim como as vacinas, nos imunizam e nos fortalecem. Elas são deixadas pelo apego seguro dos nossos cuidadores, pelas boas lembranças, pelos momentos felizes, pelo amor, pelas cicatrizes cirúrgicas que salvam a vida e pelos obstáculos ultrapassados. Algumas podem até doer, mas nos transformam em pessoas melhores, mais resilientes e resistentes aos baques da vida.

Feridos, marcados e cicatrizados, todos nós seguimos adiante com nosso processo de metamorfose. Morte e renascimento, este é o chamado da vida! Se o negarmos ou resistirmos a ele, a consequência será a fixação da personalidade, o adoecimento e a estagnação. Se seguirmos adiante, em algum momento encontraremos a cura e conseguiremos então libertar nossas asas e alçarmos voos rumo à realização.

A fofura dos ódios e a obsolescência dos pensamentos

A fofura dos ódios e a obsolescência dos pensamentos

Na sua coluna de 17/08/2015, na Folha de São Paulo, Luiz Felipe Pondé propõe a hipótese de que, para o que ele chama de intelligentsia, existe a distinção entre ódios, o ódio fofo e ódio não fofo.

Como o problema é sempre o outro, o Pondé atribui ao time adversário a hipocrisia da clássica imagem dos dois pesos e duas medidas, mas o texto dele acaba servindo mesmo só para duas coisas: para que seja aplaudido por aqueles que já concordam com ele e para que seja vaiado por aqueles que sempre discordam. Se fosse em outros tempos, seria só mais um texto para ser lido e descartado, incapaz de fazer brotar uma dúvida ou um questionamento qualquer. Mas nesses dias binários em que passamos boa parte da vida nas redes sociais, um texto como esse encontra uma sobrevida e uma terceira função: ele se transforma em munição. Para comprovar, é só ver como ele é usado nas postagens de Facebook, onde ele será respondido com a postagem de um texto do Gregório Duvivier, que por sua vez será respondido por um texto do Rodrigo Constantino, que será respondido por um do Vladimir Safatle e por aí vai, sem que se pense realmente sobre as ideias apresentadas. E quando eu digo pensar, é no sentido de se analisar criticamente o que está sendo colocado em questão nestes textos, ao invés de só buscar ali as ideias que venham confirmar as que já temos.

A coluna saiu no dia seguinte à manifestação onde foi possível ver uma senhorinha fofa segurando um cartaz nada fofo, que lamentava o fato de que a Dilma não foi enforcada quando os militares tiveram a chance. Essa imagem, postada por alguém de esquerda, vai ser respondida por alguém de direita com a imagem de um Black Boc destruindo uma concessionária em um protesto passado, que por sua vez vai ser respondida com uma foto do Bolsonaro acompanhada por uma declaração qualquer dele, e assim, novamente, indefinidamente.

Parece um FlaxFlu que acontece em um estádio onde uma torcida não consegue ver a outra, já que as duas estão sentadas atrás de paredões que também não permitem ver o campo onde o jogo acontece. Da torcida adversária, as pessoas só conhecem os gritos mais fortes que conseguem atravessar de um lado para o outro. Do jogo, elas só sabem o que acontece pela narração que chega dos radinhos de pilha. A partir dos gritos que ouvem e da memória do que viram de longe, antes de entrar no estádio, alguns vão criando as imagens que retratam a torcida adversária e as vão passando para frente, como se fossem verdades absolutas. Nesse cenário, não é difícil que apareça a hipótese de que a torcida do Fla se vista de verde ou que a do Flu se vista de amarelo. Tudo só depende do poder de argumentação de quem passa a notícia para frente.

O que fica dessa batalha, assim como da própria coluna do Pondé, é uma generalização que não faz mais sentido hoje em dia, onde conceitos obsoletos já não dão conta do que é a realidade há muito tempo. Muita gente parece que não percebe que não dialogam mais com pessoas, mas com estereótipos. É só ver o nível das trocas de acusações em épocas mais quentes, como dias de eleição ou de manifestação.

Quem está à direita, imagina que está falando com um hippie de boina que defende a implantação do bolivarianismo no país, brandindo a ameaça do Foro de São Paulo que nos transformará em Cuba ou Venezuela.

Quem está à esquerda, imagina que está falando com um reaça de cashmere que defende a implantação do militarismo no país, brandindo a ameaça da privataria que nos alugará para os Estados Unidos ou grandes corporações.

E entre um estereótipo e outro, o que é que existe? Pessoas reais, que pensam e que questionam os modelos e as próprias definições de esquerda e direita, definições mais ultrapassadas que usar “burguês” ou “comuna” em uma conversa séria. Ou “intelligentsia”.

A coluna do Pondé é parcial, tem um lado e ele não esconde. Ele veste a camisa do seu time e faz a sua defesa, acreditando sempre que a melhor defesa é o ataque e não poupando o time adversário. Até aí, isso não seria nenhum problema, defender o que se acredita é importante, mas dá para fazer de uma forma leal, com um mínimo de fair play padrão FIFA. E isso não acontece quando se recorre exatamente a uma generalização ou se faz uma análise pobre e superficial de um assunto sério, se limitando a atirar frases de efeito que podem ser usadas como provocações em posts. O que, aliás, mostra que ele entendeu como o jogo das redes sociais funciona, ainda que mesmo aí ele se limite a alimentar uma fogueira que já está queimando.

Só para deixar claro, um colunista de esquerda, que se utilize desse mesmo expediente, também merece as mesmas críticas. Se tem uma coisa que a gente precisa é elevar o nível dessa discussão e começar a conhecer mais o outro, ou melhor, os outros. Precisamos mesmo começar a afofar os ódios e entender que isso não é um FlaxFlu, é um campeonato inteiro, com vários times. O Pondé anuncia na coluna o surgimento de uma nova direita, uma direita que se for como ele descreve, será muito bem-vinda e que precisa ser mais conhecida e ouvida. O problema é que mergulhado na superficialidade, ele não vê ou opta por não ver que aquilo que ele chama de esquerda é muito mais multifacetado do que um grupo que se move de acordo com uma cartilha pré-estabelecida no século XIX ou que possui uma ideologia que se adquire em pacote fechado. É esse tipo de pensamento obsoleto que se precisa combater, tanto à esquerda, como à direita.

E podemos também por a culpa nos rótulos, que já não dão conta dos conteúdos que identificam. Mas essa é outra história.

Terapia: Sessão Privada

Terapia: Sessão Privada

Hoje eu fui ao banheiro no CEFET. Para quem não sabe, dou aula de física lá. A princípio seria só aquilo de sempre, trocar umas ideias com a dona Celite, mas mal sento no trono começo a ouvir vozes. Eram duas meninas conversando.

– Foi isso, Fê. Agora eu não sei mais o que faço!

– Calma, Ju. Vamos recapitular.

Daí, pelo barulho, a Fê entrou na cabine bem ao lado da minha de forma que mesmo que eu não quisesse ouvir nada, não teve como, gente. Juro. Mal pude me concentrar no meu serviço solitário.

– Vai falando, Ju, estou te ouvindo. – disse a Fê trancando a porta.

E eu quietinha no bocão.

– Bom, primeiro o Mateus disse que estava precisando estudar e que não podia sair comigo final de semana. Eu entrava no WhatsApp e via que ele estava online o tempo todo. Depois, na segunda, ele estava super frio comigo, mas disse que me amava e coisa e tal. Na terça, estava todo esquisito. Perguntei a ele se estava tudo bem e ele disse que estava com uns problemas em casa, mas depois que eu perguntei se ele ainda me amava ele disse que me amava sim. Ontem, do nada, terminou tudo!

– Homem não presta! Tudo brocha, amiga! – sentenciou a Fê.

– Daí, eu não sei se insisto em saber o que está acontecendo. E se o Mateus estiver precisando de ajuda? Não seria meu papel, já que estou super bem de cabeça, ajudá-lo? – viajou a Ju.

– Ah não sei, amiga… Manda uma mensagem para ele!

– Mandei! Passei a minha aula toda de matemática mandando. Perguntando se ele queria conversar e coisa e tal.

– E ele?

– Ele visualizou todas. Mas devia estar enrolado prestando atenção na aula dele, tadinho. Ele anda estudando muito. – alucinou.

– Não sei não, Ju. – Disse a lerda da Fê.

E eu quieta…

– Será que o celular dele está emprestado? De vez em quando ele empresta pro João por causa da calculadora dele que é científica e calcula seno. – desvariou a Ju.

– É. Pode ser… – disse a Fê sem noção.

– Vou procurar ele na saída. Vou ficar na porta da sala dele para não me desencontrar dele. – desatinou a coitada.

– É. Pode ser. – falou a burra da Fê.

– Ah não! Isso não! – Gritei enquanto apertava a descarga cheia de atitude!

– Oi?
– Ãhn?

– Qual o problema de vocês duas?!? – abri a porta e saí direto para a pia. Enquanto lavava as mãos com firmeza continuava: – Prestenção, criatura, você não me conhece, mas eu conheço bem essa cilada. Acredita nos sinais, Ju, pelamordedeos. Não vai atrás de Mateus nenhum. Mateus não quer mais nada com você. Se quisesse e tivesse o mínimo de consideração e fosse mais homem teria aberto o jogo lá no final de semana! Mas homem é assim mesmo. Tudo covarde. Acredite nos sinais, Ju!

– Mas… mas…, tia.

– E tu não me chame de tia, Ju! Meu nome é Elika Takimoto, a rainha das sofrências! E a senhorita vai fazer o que estou falando: não vai ficar em porta de sala nenhuma, está me ouvindo? As pessoas só fazem com a gente aquilo que a gente permite! Você se dê o devido valor, dona Ju, senão não haverá Mateus, Antônio, Marcelo ou Carlos que te valorize!

– A senhora acha mesmo?

– Acho nada. Tenho certeza. Mateus não ama Ju porque Mateus despreza Ju. Mateus amanhã pode amar Ju? Pode. Mas hoje não ama. Porque quem ama dá carinho e não desprezo. Quem ama não fica falando que ama e vai embora. Deixa o homem sentir a sua falta! E se não sentir, ele quem perde. – falei olhando a fofurééésima da Ju quase que pela primeira vez.

Sei que consegui convencê-la a ir para casa, ler um livro, ver um filme e deixar o Mateus em paz e mais tarde, mais lá um pouco para frente, dar uma de Jesus e amar o próximo.

Se fiz bem se fiz mal, eu não sei. Mas recebi um abraço mega carinhoso com muitas lágrimas. Ajudei a Ju a limpar o rosto e fiz com que ela me prometesse que pelo menos durante uma semana ia ficar na dela. Foi quando a Fê saiu da cabine.

Fê olhou para mim e disse:

– Amanhã te trago a Marina. A senhora vem sempre aqui neste horário?

Enfim, meninas, agora tenho uma nova função. Das 8:00 até 8:20h, para quem quiser, terças, quintas e sextas estarei no banheiro do CEFET ao lado da lanchonete para dar uma sacudida e aquela força para quem estiver na sofrência.

Faremos bonecos de vodu caso traga foto do crush.

Beijo obrigada de nada.

—————-

Créditos do título: Lucas Avelar.

O segredo da vida

O segredo da vida

Desde jovem, ganho a vida fazendo perguntas. Primeiro como repórter, depois entrevistador e cutucador de dúvidas em várias mídias. Acredito piamente que o ponto mais importante na vida do ser humano é o ponto de interrogação.

Entre as dúvidas da vida, a maior de todas é, sem dúvida, a razão da nossa própria existência. Qual o segredo da vida? Ao longo do curto espaço de tempo que passamos no mundo, perseguimos essa questão e ela implacavelmente nos persegue de volta. A chegada dos filhos coloca uma lente de aumento no assunto.

Recentemente, em um evento empresarial, tive o privilégio de entrevistar o filósofo Mário Sergio Cortella e não perdi a oportunidade de passar a batata quente para ele.

– Filósofo, qual o segredo da vida?

Sem pestanejar, com a generosidade e a barba característica dos filósofos, Cortella respondeu com uma pausa dramática e seu vozerão grave em dolby stereo.

– O segredo da vida é que… vaca não dá leite!

As palavras do filósofo iluminaram a minha infância. Quando criança, fui ajudante mirim do meu avô João na fazenda, onde se tirava leite das vacas. Que trabalheira louca é tirar leite de uma vaca, lembrei. Acorda-se de madrugada, entra-se num curral forrado de puro excremento de vaca, confere-se as vacas, chama-se o bezerro correspondente a cada vaca pelo nome, o bicho vem doido para mamar, impede-se que ele mame tudo de uma vez, amarra-se o bezerro com uma cordinha nas pernas traseiras da mãe, amarra-se o rabo da vaca também na cordinha (senão ele vira um espanador de bosta fresca na cara da gente…). Até que, finalmente, agachado, numa posição desajeitada, o cidadão encarregado do trabalho inicia a tarefa de apertar com destreza uma a uma as quatro tetas da vaca, para que o jato de leite seja direcionado para dentro de um balde equilibrado entre suas pernas. Segue-se a repetição exaustiva do gesto até que o balde encha, para depois ser derramado dentro de um grande latão metálico de 50 litros. O final do processo é colocar os latões – uns três ou quatro, no caso da fazenda do meu avô – na caminhonete para ser entregue no laticínio da cidade. Um trabalhão.

Graças a esse ritual que acompanhei tantas vezes, adquiri ainda criança a clara noção do esforço gasto por tanta gente para que eu possa despejar o precioso líquido branco na xícara do café da manhã.

A plateia do evento corporativo, cerca de 2 mil gerentes de um grande banco, estava tão surpresa quanto eu com a resposta do filósofo. Cortella explicou que aquela foi a forma que encontrou de alertar os filhos dele para as virtudes do esforço para conquistar as coisas na vida. Prometeu aos filhos que, quando cada um completasse 13 anos de idade, o papai filósofo iria revelar o segredo da vida. Dito e feito.
No dia de completar 13 anos, o filho mais velho acordou Cortella bem cedo.

– Papai, hoje é o dia do meu aniversário.
– Parabéns, filho!
– Hoje faço 13 anos. É dia de você me revelar o segredo da vida.

O filósofo encarou carinhosamente o menino e concluiu o ensinamento.

– O segredo da vida é que… vaca não dá leite, você tem que tirar.

Por Marcelo Tas

Fonte Revista Crescer

Da fome do amor- João Cabral de Melo Neto

Da fome do amor- João Cabral de Melo Neto

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Adaptado do poema “Os três mal amados”, João Cabral de Melo Neto, Serial e Antes, (Nova Fronteira, pg. 21)

Fonte Palavra Aguda

E…que tal um pouco de Caetano? “Comeu”

As Flores dos Flamboyants

As Flores dos Flamboyants

Dona Mirtes, mulher de 70 e tantos anos, tinha cinco filhos e meia dúzia de netos. Todos foram morar na cidade grande, mas a visitavam sempre que os seus trabalhos ou a faculdade dos filhos dessem uma trégua.

Viúva, morava sozinha em uma pequena propriedade que o marido lhe deixara. Envolvia-se com a horta e com um pequeno pomar situado ao lado da grande casa. À frente, havia dois grandes flamboyants que plantou assim que se casou com Luiz, homem que amou até que seus olhos silenciassem dentro dos dela. Última imagem que o marido desposou: o par de janelas azuis que lhe mostrou a Luz do amor.

Seus filhos cresceram brincando à sombra dos flamboyants. As duas meninas faziam casinha de boneca ali embaixo enquanto que os garotos improvisavam um balanço com tábuas. Eles se balançavam e se estendiam até a casinha das meninas. E a confusão estava armada… Elas se zangavam, tentavam destruir o balanço, mas acabavam se cansando da tentativa de destruição e voltavam a brincar. Era assim todos os dias durante a infância dos filhos. Ela, da janela da sala, olhava, irritava-se, às vezes, mas se acalmava logo em seguida, deixando as brigas e as pazes por conta dos pequenos.

Agora, já idosa, passava boa parte do dia, na janela, olhando as árvores e refazendo os filhos, desejando-lhes, em briga ou em paz. Imaginava os netos no balanço, as netas brincando de casinha. Detia-se naquele pensamento e era feliz.

Descobrira, há pouco, o diabetes. O açúcar dos doces que preparava era seu grande veneno. Parou os doces. Os sucos feitos com as goiabas do seu pomar agora eram amargos. E foi assim se despedindo dos prazeres conhecidos pela boca.

Devido à doença, seus olhos começaram a embaçar, burlando as cores e os movimentos das flores dos flamboyants. Mesmo com seu cuidado em evitar os doces, toda a visibilidade lhe foi subtraída.
Vieram os filhos e netos, quiseram levá-la à capital para que se cuidasse; em vão, recusava-se outro espaço, outro cheiro, outro chão… Não queria salvar o corpo se os olhos já estavam comprometidos.

Um manhã, saiu tateando até chegar ao balanço velho deixado pelos filhos. Embaixo das árvores que amava, sentia o vento bater em seus olhos. Sentia os pés no chão.

Balançou-se. Atreveu-se. Balançou mais forte… Bem mais forte. As cordas velhas do brinquedo romperam e ela caiu quando estava lá, bem alto. Arregalou os olhos, tentando fitar as flores. Tanto tentou que conseguiu. Foi sua última imagem: as flores dos flamboyants que tanto amou.

O irresistível charme da maturidade

O irresistível charme da maturidade
Luiza Brunet - Cassaroles / Fotos Gabriel Chiarastelli

Muito se fala sobre as possibilidades de se viver mais e melhor promovidas pelos avanços da ciência e da medicina. Não existe mais nenhuma dúvida sobre o fato de que os jovens saem cada vez mais tarde de casa e se casam mais velhos do que há trinta anos. Com isso, passou a ser dito que a faixa dos cinquenta anos representa, atualmente, o mesmo que os quarenta anos do passado. Ou melhor, é possível dizer que a vida começa aos 50!

As moças sempre tiveram um quê de cisma com a idade. Durante um período querem se mostrar mais velhas e em outro momento desejam controlar o tempo. Como um observador do comportamento feminino, digo sem medo de errar e também sem falar nenhuma novidade, as garotas sempre amadurecem antes do que os rapazes. Depois, ganham contornos mais definidos do que querem, mas se tornam, na maioria das vezes bem mais interessantes.

Do alto (não pela altura) dos meus mais de cinquenta anos, observo que as moças da minha geração andam diferentes. Ou será que agora eu as enxergo com mais atenção? Encontro mais sutilezas, menos peso nos ombros, mais cuidados, e menos afirmações de que os interesses diminuíram. Ao mesmo tempo em que sabem se defender muito bem, já estão treinadas para o ataque também, mas sin perder la ternura, jamás!

Dissolveram-se os sentimentos de culpa e as dúvidas tão comuns, como batalhar uma carreira ou se dedicar à criação dos filhos. Diminuiu a ansiedade de dar conta de relacionamentos e família. A cabeça está mais bem resolvida em relação aos assuntos mais importantes e o corpo demonstra isso.

A ditadura da moda anda um pouco mais flexível e, aparentemente, os (as) estilistas entenderam que existe uma outra consumidora que também quer se mostrar, ou ainda melhor, fingir que se mostra, como bem ilustra a jornalista Lu Catoira.

Não me refiro à sarada que corre na praia e bate ponto diário na academia, piloto de testes de todos os produtos cosméticos, naturais ou não. Falo daquela que viveu a vida normalmente, com alegrias, tristezas, realizações e frustrações, que já não se incomoda em se fazer tantas cobranças. Mesmo quando elas ainda se impõem, como o eterno malabarismo entre trabalho e filhos, essa mulher sabe se virar com dignidade e sabedoria, mesmo que às vezes tenha que recorrer a algumas pitadas de malícia.

Ocuparam todos os lugares. Não se restringem a ficar em casa se lamentando da chamada “síndrome do ninho vazio”. Fazem parte da vida corporativa, conduzem negócios próprios, ocupam gerências de bancos e — por que não? — algumas até encontraram tempo para flanar nas praias e shoppings. Nas academias, não são mais aquelas que chegam cedo demais e vão embora antes do movimento. Frequentam o horário nobre. Não se furtam mais de fazer brincadeiras e abrir sorrisos marotos. Não acreditam que a vida entrou no segundo tempo do jogo. Aproveitam intensamente cada momento do presente.

Não canso de admirar amiga de longa data que continua correndo os mesmos oito quilômetros diários. Reparo agora, porém, que agora ela cumpre o percurso sem a preocupação de olhar para os lados. Segue concentrada, como quem sabe perfeitamente bem aonde quer chegar. Ocorre-me então que as mais jovens deveriam se precaver. Uma “bola dividida” com essa mulher mais experiente pode provocar machucados invisíveis, mas bem doloridos.

O Rio de Janeiro poderia ser vilão, afinal com o calor que faz por aqui e com a desinibição das mais novinhas, as moças de meia idade poderiam ficar retraídas. Não é o caso. Envergam com desembaraço e elegância shorts, leggings mais justos e bermudas nas caminhadas pela orla ou nos parques.

Outro dia vi uma reportagem na televisão sobre as mulheres que estão prestes a completar, ou recém-completaram, quarenta anos. Fiquei admirado com o que detectei como falta de certa serenidade, pois a preocupação com a estética pareceu-me exagerada. Entendo que exista o desejo de corresponder ao padrão da época, mas como disse anteriormente, controlar o tempo é uma tarefa inglória.

Aqui abro rápido parêntese. Não há como não admirar a beleza clássica de uma Luiza Brunet ou a mais intimidadora de uma Demi Moore, é verdade. Mas é encantador me deparar diariamente com mulheres como tantas outras, encarando o cotidiano com um charme discreto e atemporal. É algo que me chama muito a atenção.

Assim como dizem sobre os moços da minha idade que “homem sem barriga é um homem sem história”, afirmo categoricamente que algumas ruguinhas, manias, preocupações e quilinhos não colocam minhas contemporâneas em desvantagem. Pelo contrário, elas sabem como ninguém tirar partido de seus novos atributos para conquistar, apaziguar e dar alegrias.

Texto de Mauro Giorgi
Fonte indicada: Tudo sobre tudo

A arte de imbecilizar crianças

A arte de imbecilizar crianças

A arte de perder não é difícil de dominar; há tantas coisas que parecem preenchidas com a intenção de serem perdidas, que a perda delas não é nenhum desastre. Perca algo todos os dias. (…) Então pratique perder melhor, perder mais rápido: lugares e nomes, e até mesmo onde é que você queria viajar.” O poema de Elizabeth Bishop, One art, deveria ser leitura obrigatória e diária para aqueles pais que se recusam a perder seus filhos para o mundo. Em vez de acompanhá-los nessa viagem, que não é em princípio desastrosa, eles querem ampliar o tamanho do mundo que eles mesmos controlam. O mundo em forma de família. O mundo em forma de prisão.

Na arte de imbecilizar crianças, os currículos autocráticos, as seleções baseadas em exercícios mnemotécnicos e as rotinas escolares pouco significativas concorrem fortemente com o receituário oligofrênico dos pais. Nesse sentido, a primeira tática para imbecilizar crianças consiste em protegê-las discursivamente de problemas. Evitar contato com as verdades dolorosas. A bruxa e a madrasta malvada devem ser banidas com o lobo mau. Em cima do piano não há mais copo de veneno, mas suco azedo. A morte é apenas uma viagem. A forma afirmativa, pessoal e direta “Atirei o pau no gato” deve ser vertida para o mais sóbrio e correto “Não atire o pau no gato porque isso não se faz”. Corta-se assim o suporte imaginário necessário para que a criança elabore seu sadismo, bem como o masoquismo social que a cerca. De fato, a palavra “imbecil” provém do latim baculum, bastão de pastor. Alguém sem bastão é alguém que deve ser pastoreado pelos outros; alguém que não fará uso algum de seu bastão para se defender será, pois, um fraco e frágil… Sem pau para atirar.

A segunda tática para não perder os filhos para o mundo consiste na sua cretinização. Os cretinos eram crianças que habitavam os vales da Suíça, onde o sal continha pouco iodo. Sem iodo elas desenvolviam uma deficiência cognitiva associada à disfunção da tireoide. Como não podiam mais ser educadas pelos pais, elas eram transferidas para as comunidades religiosas, daí o termo chrétien (cristão). E assim fazem os pais que entregam seus filhos para a escola como se ela tivesse não apenas de os ensinar, mas educar, controlar, disciplinar, cuidar e assim por diante. E assim ocorre com os que terceirizam a educação dos filhos.

A terceira técnica na arte de não perder as crianças para o mundo consiste em mantê-las isoladas, em situação de indivíduo privado ou, como os gregos chamavam, estado de idiotés. A escola é um obstáculo para o novo espírito do neoliberalismo, que advoga que cada um de nós é uma espécie de livre empresa que deve escolher livremente seus fornecedores e aplicar seus investimentos segundo os princípios de otimização de resultados. Esses pais empreendedores sentem-se, segundo a prerrogativa de pagantes e clientes, no direito de elevar os princípios individuais e privados à dignidade da coisa pública. Educação é um empreendimento público, não é uma associação privada de interesses ampliados da família. Contudo é assim que agem os que querem proteger a criança da norma, da lei e da regra, cuja razão de ser é pública.

A arte de imbecilizar crianças, como se vê, é o contrário do que nos recomendava a poeta americana. Ela consiste em reter para nós o que devia ir para o mundo, em temer desastres quando o pior desastre já está a acontecer. É uma vida sem bastão, sem sal ou sem via pública. Quando percebemos o quanto dominamos essa arte, geralmente já é tarde demais, e nossas crianças já se foram, da pior maneira possível. De modo mais lento, para um mundo que as condenou a uma minoridade penal perpétua.

Texto de Christian Ingo Lenz Dunker
Fonte indicada: Mente e Cérebro

Quer saber mais? Sugestão de leitura:

Educação, Escola e Docência, de Mário Sérgio Cortela

Morre-se depressa demais

Morre-se depressa demais

Vivemos tão depressa que damos por nós a entrar num centro comercial e a não saber em que estação do ano estamos. Com os saldos de Verão a começarem antes do Verão vir sequer marcado no calendário, ficamos com a ideia de que já não vale a pena comprar um fato-de-banho porque o Outono está mesmo a chegar. Confusos, rebuscamos na memória os dias longos de praia, os jantares na varanda, as férias, e concluímos que o nosso cérebro se desgastou de tanto uso, porque as recordações que temos parecem antigas e, no entanto, a avaliar pela colecção Outono/Inverno que enche as páginas das revistas, só pode ter sido ontem.

Não entendíamos quando, em pequenos, nos diziam que o Natal não demorava nada e os dias rolavam penosamente, ou que tarda nada fazíamos anos, e o “tarda nada” era mesmo tarde e parecia-nos nunca mais chegar. Mas, agora, percebemos que o tempo voa, tudo passa a correr, o que é tanto mais idiota quanto era exactamente agora que devia andar a passinhos de bebé (lembram-se do jogo?), porque a recta final está progressivamente mais próxima.

Olhamos para o calendário e não percebemos o que fizemos aos dias que voaram, mas se olharmos mais de perto as nossas agendas, percebemos que estiveram cheios de acontecimentos, que se atropelaram uns aos outros, sem nos deixar um segundo para respirar.

Andamos cansados, muito cansados, sobretudos aqueles que têm filhos pequenos, e dentre esses, à cabeça de todos, lá estão as mulheres que acumulam profissão e a casa/família. Nem a invenção das férias pagas, que nem meio século tem, nos veio descansar, porque rapidamente enchemos também aqueles dias com mil “compromissos” obrigatórios.

O mal não é que as 24 quatro horas do dia tenham encolhido, mas simplesmente que a nossa omnipotência nos deixe com a ilusão de que conseguimos encher o espaço de um dia com tantas e tantas coisas, como se conseguíssemos estar em muitos lados em simultâneo.

Contudo, o que mais me aflige é o facto de vivermos os acontecimentos profundamente marcantes num toca- -e-foge que não nos deixa reflectir sobre eles, senti-los em profundidade, gozá–los ou lamentá-los, resolvê-los e superá-los, em lugar de os varrer para debaixo do tapete. E obrigamos os outros também a varrer, na nossa intolerância para com a dor que não passa rapidamente, para com o desgosto que se mantém, para com aqueles que se continuam a queixar da mesma coisa, num tempo em que mesmo a maior tragédia é ultrapassada por aquela que vem a seguir.

Depois queixamo-nos da tristeza que não sabemos de onde vem, da ansiedade que nos toma inesperadamente e, claro, da depressão que se instala, jurando nós que não temos motivos nenhuns para a sentir.

Basta olhar para a pressa com que gerimos a morte. Homens e mulheres extraordinários parecem desaparecer da face da terra, e da memória, num abrir e fechar de olhos. E por muito que os tenhamos admirado, por muito que nos façam falta, continuamos em frente, não por mal, mas porque somos empurrados pela voracidade dos dias, pelos compromissos e obrigações, porque não podemos deixar cair tudo o que de nós depende. Sem lhes erguermos a estátua que merecem, sem que o seu nome fique sequer gravado numa lápide, que fique para lá da sua vida, da nossa vida, da vida dos nossos filhos, para que um dia, alguém a possa ler e perguntar: “Quem foi este?” Decididamente, não gosto de cremações. Decididamente, quero viver mais devagar.

Texto de Isabel Stilwell

Jornalista e escritora
Fonte: Jornal i

INDICADOS