Todo dia barulhento espera uma noite silenciosa

Todo dia barulhento espera uma noite silenciosa

Ah, minha mãe. Esse barulho todo me traz você aqui. Penso no seu silêncio no tumulto da nossa casa. Lembro do som da rua quieta enquanto esperava você no portão. Naquele tempo em que esperar por você era minha única angústia da vida.

Aqui, no alvoroço desse negócio de viver tudo e dormir nada, de andar apertando os olhos para ouvir alguém entre tanto ruído, me falta você, minha mãe, chegando com a noite e a lua. Silenciosa em sua meia dúzia de palavras. Segura em suas interjeições.

Pensar em você me joga na cara o quanto precisamos todos de uma noite silenciosa depois do barulho dos dias. Penso em você, minha mãe. Penso em você voltando pra casa à noitinha e sua voz me chega de longe. Vem montada em cheiros e gostos e imagens e lembranças de canções cantaroladas baixinho entre a cozinha e o chuveiro. E um perfume de sabonete e vapor d’água quente me invade a alma, como a voz de alguém que já foi.

A visão antiga de você apontando no topo do viaduto, lá no fim da nossa rua, caminhando cansada no fim da lida, é o que me falta e o que me sobra. Agora é longe, eu não vejo o seu rosto mas sei que é você. Daqui, deste canto distante no tempo e no espaço, deste hoje pequenino que é só a espera de um largo amanhã, faz bem pensar que ontem você sorria ao me saber ali, esperando no silêncio do portão à noite.

Olha, minha mãe, vira e mexe eu penso em você. Em sua crença na gentileza. Em seu jeito de respirar fundo e limpar os pés na grama quando esbarrava na grosseria. Dia desses, encontrei a mãe do meu filho, numa dessas reuniões com advogado, coisa de casamento que acaba. Ela usava uns brincos sérios que eu nunca tinha visto nela, caminhava firme sobre saltos de madeira, e tinha uma dignidade resoluta, comovente e silenciosa. Depois do barulho que acompanha uma separação, as conversas de surdo, o afastamento dolorido e as indiferenças clamorosas, o silêncio dela chegando depois do fim me comoveu.

É a mãe do meu filho, e de um jeito estranho ela é você também. Olhar para ela me deu uma vontade louca de lhe estender as mãos e de ser gentil e perguntar como vai a vida. Calar a gritaria de tanto ressentimento e dizer obrigado. Mas eu não sou você, minha mãe. Não tenho seu gênio manso e generoso. Quem sabe um dia eu chego lá.

Assim, recordando sua gentileza, volto depois da lida barulhenta ao silêncio da sua lembrança. Sigo pela vida e ouço você me dizer baixinho: vai, menino, leva nossa noite silenciosa consigo. Caminha com os olhos na lua, pede a seu anjo da guarda que lhe traga o sol depois da noite. Preza o silêncio que compensa o barulho. Vive o estrondo que segue o remanso. E o resto é o trabalho. O resto é todo o trabalho que isso dá.

Toda marca vem para nos transformar

Toda marca vem para nos transformar

Quem nunca sentiu o ardido de um joelho ralado? Ou soprou um machucado pra sarar? No meu caso, se ainda hoje toco o queixo, sinto a cicatriz dos pontos que levei após uma queda brusca no corredor de casa porque sai correndo de meias. Motivo bobo, mas com consequências um pouco dolorosas, mesmo que momentaneamente e, que deixou uma pequena marca que já dura mais de 20 anos.

Dessas marcas tenho outras…ralados nos joelhos, arranhões da gata que me acompanhou durante a infância até a juventude, marca de vacina no braço, e por aí vai. Mas, para além dessas visíveis, carrego outras que ao longo da vida tem me transformado no que sou.

Essas cicatrizes visíveis e invisíveis que carregamos no corpo e na alma fazem parte da história de todo ser humano. Como em um livro, elas contam sobre nossa biografia e sobre como nos esfolamos e nos calejamos na trajetória da vida. Também falam das alegrias que ficaram gravadas na memória e que nos edificaram e transformaram nos diversos momentos de metamorfoses que passamos.

Como diz sabiamente o Psiquiatra Carlos Byington, “qualquer criança sadia logo descobre que o preço de aprender a caminhar é pago com quedas, dores e lágrimas.”

E assim, desde os primeiros passos, vamos ganhando nossas marcas, mas também exploramos o mundo, adquirimos experiência e maturidade.

É verdade que, às vezes, preferiríamos ter corpo e alma imaculados! Mas, se assim fosse permaneceríamos como verdadeiras lagartas rastejantes na busca devoradora pelo alimento, impedidos da liberdade do voo e da possibilidade de realizarmos nossa vocação e chamado de vida.

Em uma linda passagem do livro A Virgem Grávida, Marion Woodman nos conta sobre o processo de metamorfose das lagartas em borboletas. Em um dos trechos ela diz: “…descobri que a borboleta é símbolo da alma humana. Também descobri que, em seus primeiros momentos do lado de fora da crisálida, a borboleta excreta uma gota de um fluido que se acumulou durante a fase de pupa. Essa gota é geralmente vermelha e às vezes pinga em seu primeiro voo. Simbolicamente, para que libertemos a nossa própria borboleta, também precisaremos sacrificar uma gota de sangue…”

Assim, nunca mais seremos os mesmos depois de uma marca! Tudo aquilo que fica registrado no corpo e na alma, de maneira consciente ou inconsciente nos molda, nos transforma, nos influencia e nos guia para a individuação.

Algumas marcas são comuns a todos nós. Elas fazem parte dos ritos de passagem que envolvem cada fase da vida.  Afinal, não há quem não tenha acordado um dia com uma espinha no rosto ou quem envelheça sem rugas, não é mesmo?

Outras cicatrizes remetem momentos de profunda alegria e transformação, como a marca da cesárea que retrata a passagem da “filha/menina” para a “mãe/mulher”. Outras são como tatuagens, frutos de uma escolha pessoal, que revelam em sua imagem o símbolo de uma ideia, de um sentimento, de uma fase da vida, de um desejo, uma dor, um amor, uma amizade, uma conquista, ou algo com significado pessoal.

Mas, existem às que são adquiridas brutalmente. Feridas visíveis e invisíveis provenientes dos traumas, dos abusos, das violências, das perdas, dos lutos e das mais diversas experiências dolorosas que podem inundar a alma humana. Elas podem se tornar verdadeiros cancros abertos que mutilam a personalidade verdadeira e nos transformam em pessoas desconfiadas, negativas, destrutivas, depressivas e desesperançadas.

Há também àquelas que são vistas como verdadeiras deformidades, das quais preferimos nos esconder e ocultar do outro. Marcas que nos envergonham e limitam a entrega em relacionamentos e na intimidade. Essas, nos desafiam a superar as aparências e as projeções para que possa ocorrer uma entrega verdadeira. E assim, recebermos, através do amor e do afeto, o alento, o conforto e a aceitação tão necessária em nossa frágil existência humana.

Mas, não podemos nos esquecer das marcas que nos protegem e que, assim como as vacinas, nos imunizam e nos fortalecem. Elas são deixadas pelo apego seguro dos nossos cuidadores, pelas boas lembranças, pelos momentos felizes, pelo amor, pelas cicatrizes cirúrgicas que salvam a vida e pelos obstáculos ultrapassados. Algumas podem até doer, mas nos transformam em pessoas melhores, mais resilientes e resistentes aos baques da vida.

Feridos, marcados e cicatrizados, todos nós seguimos adiante com nosso processo de metamorfose. Morte e renascimento, este é o chamado da vida! Se o negarmos ou resistirmos a ele, a consequência será a fixação da personalidade, o adoecimento e a estagnação. Se seguirmos adiante, em algum momento encontraremos a cura e conseguiremos então libertar nossas asas e alçarmos voos rumo à realização.

A fofura dos ódios e a obsolescência dos pensamentos

A fofura dos ódios e a obsolescência dos pensamentos

Na sua coluna de 17/08/2015, na Folha de São Paulo, Luiz Felipe Pondé propõe a hipótese de que, para o que ele chama de intelligentsia, existe a distinção entre ódios, o ódio fofo e ódio não fofo.

Como o problema é sempre o outro, o Pondé atribui ao time adversário a hipocrisia da clássica imagem dos dois pesos e duas medidas, mas o texto dele acaba servindo mesmo só para duas coisas: para que seja aplaudido por aqueles que já concordam com ele e para que seja vaiado por aqueles que sempre discordam. Se fosse em outros tempos, seria só mais um texto para ser lido e descartado, incapaz de fazer brotar uma dúvida ou um questionamento qualquer. Mas nesses dias binários em que passamos boa parte da vida nas redes sociais, um texto como esse encontra uma sobrevida e uma terceira função: ele se transforma em munição. Para comprovar, é só ver como ele é usado nas postagens de Facebook, onde ele será respondido com a postagem de um texto do Gregório Duvivier, que por sua vez será respondido por um texto do Rodrigo Constantino, que será respondido por um do Vladimir Safatle e por aí vai, sem que se pense realmente sobre as ideias apresentadas. E quando eu digo pensar, é no sentido de se analisar criticamente o que está sendo colocado em questão nestes textos, ao invés de só buscar ali as ideias que venham confirmar as que já temos.

A coluna saiu no dia seguinte à manifestação onde foi possível ver uma senhorinha fofa segurando um cartaz nada fofo, que lamentava o fato de que a Dilma não foi enforcada quando os militares tiveram a chance. Essa imagem, postada por alguém de esquerda, vai ser respondida por alguém de direita com a imagem de um Black Boc destruindo uma concessionária em um protesto passado, que por sua vez vai ser respondida com uma foto do Bolsonaro acompanhada por uma declaração qualquer dele, e assim, novamente, indefinidamente.

Parece um FlaxFlu que acontece em um estádio onde uma torcida não consegue ver a outra, já que as duas estão sentadas atrás de paredões que também não permitem ver o campo onde o jogo acontece. Da torcida adversária, as pessoas só conhecem os gritos mais fortes que conseguem atravessar de um lado para o outro. Do jogo, elas só sabem o que acontece pela narração que chega dos radinhos de pilha. A partir dos gritos que ouvem e da memória do que viram de longe, antes de entrar no estádio, alguns vão criando as imagens que retratam a torcida adversária e as vão passando para frente, como se fossem verdades absolutas. Nesse cenário, não é difícil que apareça a hipótese de que a torcida do Fla se vista de verde ou que a do Flu se vista de amarelo. Tudo só depende do poder de argumentação de quem passa a notícia para frente.

O que fica dessa batalha, assim como da própria coluna do Pondé, é uma generalização que não faz mais sentido hoje em dia, onde conceitos obsoletos já não dão conta do que é a realidade há muito tempo. Muita gente parece que não percebe que não dialogam mais com pessoas, mas com estereótipos. É só ver o nível das trocas de acusações em épocas mais quentes, como dias de eleição ou de manifestação.

Quem está à direita, imagina que está falando com um hippie de boina que defende a implantação do bolivarianismo no país, brandindo a ameaça do Foro de São Paulo que nos transformará em Cuba ou Venezuela.

Quem está à esquerda, imagina que está falando com um reaça de cashmere que defende a implantação do militarismo no país, brandindo a ameaça da privataria que nos alugará para os Estados Unidos ou grandes corporações.

E entre um estereótipo e outro, o que é que existe? Pessoas reais, que pensam e que questionam os modelos e as próprias definições de esquerda e direita, definições mais ultrapassadas que usar “burguês” ou “comuna” em uma conversa séria. Ou “intelligentsia”.

A coluna do Pondé é parcial, tem um lado e ele não esconde. Ele veste a camisa do seu time e faz a sua defesa, acreditando sempre que a melhor defesa é o ataque e não poupando o time adversário. Até aí, isso não seria nenhum problema, defender o que se acredita é importante, mas dá para fazer de uma forma leal, com um mínimo de fair play padrão FIFA. E isso não acontece quando se recorre exatamente a uma generalização ou se faz uma análise pobre e superficial de um assunto sério, se limitando a atirar frases de efeito que podem ser usadas como provocações em posts. O que, aliás, mostra que ele entendeu como o jogo das redes sociais funciona, ainda que mesmo aí ele se limite a alimentar uma fogueira que já está queimando.

Só para deixar claro, um colunista de esquerda, que se utilize desse mesmo expediente, também merece as mesmas críticas. Se tem uma coisa que a gente precisa é elevar o nível dessa discussão e começar a conhecer mais o outro, ou melhor, os outros. Precisamos mesmo começar a afofar os ódios e entender que isso não é um FlaxFlu, é um campeonato inteiro, com vários times. O Pondé anuncia na coluna o surgimento de uma nova direita, uma direita que se for como ele descreve, será muito bem-vinda e que precisa ser mais conhecida e ouvida. O problema é que mergulhado na superficialidade, ele não vê ou opta por não ver que aquilo que ele chama de esquerda é muito mais multifacetado do que um grupo que se move de acordo com uma cartilha pré-estabelecida no século XIX ou que possui uma ideologia que se adquire em pacote fechado. É esse tipo de pensamento obsoleto que se precisa combater, tanto à esquerda, como à direita.

E podemos também por a culpa nos rótulos, que já não dão conta dos conteúdos que identificam. Mas essa é outra história.

Terapia: Sessão Privada

Terapia: Sessão Privada

Hoje eu fui ao banheiro no CEFET. Para quem não sabe, dou aula de física lá. A princípio seria só aquilo de sempre, trocar umas ideias com a dona Celite, mas mal sento no trono começo a ouvir vozes. Eram duas meninas conversando.

– Foi isso, Fê. Agora eu não sei mais o que faço!

– Calma, Ju. Vamos recapitular.

Daí, pelo barulho, a Fê entrou na cabine bem ao lado da minha de forma que mesmo que eu não quisesse ouvir nada, não teve como, gente. Juro. Mal pude me concentrar no meu serviço solitário.

– Vai falando, Ju, estou te ouvindo. – disse a Fê trancando a porta.

E eu quietinha no bocão.

– Bom, primeiro o Mateus disse que estava precisando estudar e que não podia sair comigo final de semana. Eu entrava no WhatsApp e via que ele estava online o tempo todo. Depois, na segunda, ele estava super frio comigo, mas disse que me amava e coisa e tal. Na terça, estava todo esquisito. Perguntei a ele se estava tudo bem e ele disse que estava com uns problemas em casa, mas depois que eu perguntei se ele ainda me amava ele disse que me amava sim. Ontem, do nada, terminou tudo!

– Homem não presta! Tudo brocha, amiga! – sentenciou a Fê.

– Daí, eu não sei se insisto em saber o que está acontecendo. E se o Mateus estiver precisando de ajuda? Não seria meu papel, já que estou super bem de cabeça, ajudá-lo? – viajou a Ju.

– Ah não sei, amiga… Manda uma mensagem para ele!

– Mandei! Passei a minha aula toda de matemática mandando. Perguntando se ele queria conversar e coisa e tal.

– E ele?

– Ele visualizou todas. Mas devia estar enrolado prestando atenção na aula dele, tadinho. Ele anda estudando muito. – alucinou.

– Não sei não, Ju. – Disse a lerda da Fê.

E eu quieta…

– Será que o celular dele está emprestado? De vez em quando ele empresta pro João por causa da calculadora dele que é científica e calcula seno. – desvariou a Ju.

– É. Pode ser… – disse a Fê sem noção.

– Vou procurar ele na saída. Vou ficar na porta da sala dele para não me desencontrar dele. – desatinou a coitada.

– É. Pode ser. – falou a burra da Fê.

– Ah não! Isso não! – Gritei enquanto apertava a descarga cheia de atitude!

– Oi?
– Ãhn?

– Qual o problema de vocês duas?!? – abri a porta e saí direto para a pia. Enquanto lavava as mãos com firmeza continuava: – Prestenção, criatura, você não me conhece, mas eu conheço bem essa cilada. Acredita nos sinais, Ju, pelamordedeos. Não vai atrás de Mateus nenhum. Mateus não quer mais nada com você. Se quisesse e tivesse o mínimo de consideração e fosse mais homem teria aberto o jogo lá no final de semana! Mas homem é assim mesmo. Tudo covarde. Acredite nos sinais, Ju!

– Mas… mas…, tia.

– E tu não me chame de tia, Ju! Meu nome é Elika Takimoto, a rainha das sofrências! E a senhorita vai fazer o que estou falando: não vai ficar em porta de sala nenhuma, está me ouvindo? As pessoas só fazem com a gente aquilo que a gente permite! Você se dê o devido valor, dona Ju, senão não haverá Mateus, Antônio, Marcelo ou Carlos que te valorize!

– A senhora acha mesmo?

– Acho nada. Tenho certeza. Mateus não ama Ju porque Mateus despreza Ju. Mateus amanhã pode amar Ju? Pode. Mas hoje não ama. Porque quem ama dá carinho e não desprezo. Quem ama não fica falando que ama e vai embora. Deixa o homem sentir a sua falta! E se não sentir, ele quem perde. – falei olhando a fofurééésima da Ju quase que pela primeira vez.

Sei que consegui convencê-la a ir para casa, ler um livro, ver um filme e deixar o Mateus em paz e mais tarde, mais lá um pouco para frente, dar uma de Jesus e amar o próximo.

Se fiz bem se fiz mal, eu não sei. Mas recebi um abraço mega carinhoso com muitas lágrimas. Ajudei a Ju a limpar o rosto e fiz com que ela me prometesse que pelo menos durante uma semana ia ficar na dela. Foi quando a Fê saiu da cabine.

Fê olhou para mim e disse:

– Amanhã te trago a Marina. A senhora vem sempre aqui neste horário?

Enfim, meninas, agora tenho uma nova função. Das 8:00 até 8:20h, para quem quiser, terças, quintas e sextas estarei no banheiro do CEFET ao lado da lanchonete para dar uma sacudida e aquela força para quem estiver na sofrência.

Faremos bonecos de vodu caso traga foto do crush.

Beijo obrigada de nada.

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Créditos do título: Lucas Avelar.

O segredo da vida

O segredo da vida

Desde jovem, ganho a vida fazendo perguntas. Primeiro como repórter, depois entrevistador e cutucador de dúvidas em várias mídias. Acredito piamente que o ponto mais importante na vida do ser humano é o ponto de interrogação.

Entre as dúvidas da vida, a maior de todas é, sem dúvida, a razão da nossa própria existência. Qual o segredo da vida? Ao longo do curto espaço de tempo que passamos no mundo, perseguimos essa questão e ela implacavelmente nos persegue de volta. A chegada dos filhos coloca uma lente de aumento no assunto.

Recentemente, em um evento empresarial, tive o privilégio de entrevistar o filósofo Mário Sergio Cortella e não perdi a oportunidade de passar a batata quente para ele.

– Filósofo, qual o segredo da vida?

Sem pestanejar, com a generosidade e a barba característica dos filósofos, Cortella respondeu com uma pausa dramática e seu vozerão grave em dolby stereo.

– O segredo da vida é que… vaca não dá leite!

As palavras do filósofo iluminaram a minha infância. Quando criança, fui ajudante mirim do meu avô João na fazenda, onde se tirava leite das vacas. Que trabalheira louca é tirar leite de uma vaca, lembrei. Acorda-se de madrugada, entra-se num curral forrado de puro excremento de vaca, confere-se as vacas, chama-se o bezerro correspondente a cada vaca pelo nome, o bicho vem doido para mamar, impede-se que ele mame tudo de uma vez, amarra-se o bezerro com uma cordinha nas pernas traseiras da mãe, amarra-se o rabo da vaca também na cordinha (senão ele vira um espanador de bosta fresca na cara da gente…). Até que, finalmente, agachado, numa posição desajeitada, o cidadão encarregado do trabalho inicia a tarefa de apertar com destreza uma a uma as quatro tetas da vaca, para que o jato de leite seja direcionado para dentro de um balde equilibrado entre suas pernas. Segue-se a repetição exaustiva do gesto até que o balde encha, para depois ser derramado dentro de um grande latão metálico de 50 litros. O final do processo é colocar os latões – uns três ou quatro, no caso da fazenda do meu avô – na caminhonete para ser entregue no laticínio da cidade. Um trabalhão.

Graças a esse ritual que acompanhei tantas vezes, adquiri ainda criança a clara noção do esforço gasto por tanta gente para que eu possa despejar o precioso líquido branco na xícara do café da manhã.

A plateia do evento corporativo, cerca de 2 mil gerentes de um grande banco, estava tão surpresa quanto eu com a resposta do filósofo. Cortella explicou que aquela foi a forma que encontrou de alertar os filhos dele para as virtudes do esforço para conquistar as coisas na vida. Prometeu aos filhos que, quando cada um completasse 13 anos de idade, o papai filósofo iria revelar o segredo da vida. Dito e feito.
No dia de completar 13 anos, o filho mais velho acordou Cortella bem cedo.

– Papai, hoje é o dia do meu aniversário.
– Parabéns, filho!
– Hoje faço 13 anos. É dia de você me revelar o segredo da vida.

O filósofo encarou carinhosamente o menino e concluiu o ensinamento.

– O segredo da vida é que… vaca não dá leite, você tem que tirar.

Por Marcelo Tas

Fonte Revista Crescer

Da fome do amor- João Cabral de Melo Neto

Da fome do amor- João Cabral de Melo Neto

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Adaptado do poema “Os três mal amados”, João Cabral de Melo Neto, Serial e Antes, (Nova Fronteira, pg. 21)

Fonte Palavra Aguda

E…que tal um pouco de Caetano? “Comeu”

As Flores dos Flamboyants

As Flores dos Flamboyants

Dona Mirtes, mulher de 70 e tantos anos, tinha cinco filhos e meia dúzia de netos. Todos foram morar na cidade grande, mas a visitavam sempre que os seus trabalhos ou a faculdade dos filhos dessem uma trégua.

Viúva, morava sozinha em uma pequena propriedade que o marido lhe deixara. Envolvia-se com a horta e com um pequeno pomar situado ao lado da grande casa. À frente, havia dois grandes flamboyants que plantou assim que se casou com Luiz, homem que amou até que seus olhos silenciassem dentro dos dela. Última imagem que o marido desposou: o par de janelas azuis que lhe mostrou a Luz do amor.

Seus filhos cresceram brincando à sombra dos flamboyants. As duas meninas faziam casinha de boneca ali embaixo enquanto que os garotos improvisavam um balanço com tábuas. Eles se balançavam e se estendiam até a casinha das meninas. E a confusão estava armada… Elas se zangavam, tentavam destruir o balanço, mas acabavam se cansando da tentativa de destruição e voltavam a brincar. Era assim todos os dias durante a infância dos filhos. Ela, da janela da sala, olhava, irritava-se, às vezes, mas se acalmava logo em seguida, deixando as brigas e as pazes por conta dos pequenos.

Agora, já idosa, passava boa parte do dia, na janela, olhando as árvores e refazendo os filhos, desejando-lhes, em briga ou em paz. Imaginava os netos no balanço, as netas brincando de casinha. Detia-se naquele pensamento e era feliz.

Descobrira, há pouco, o diabetes. O açúcar dos doces que preparava era seu grande veneno. Parou os doces. Os sucos feitos com as goiabas do seu pomar agora eram amargos. E foi assim se despedindo dos prazeres conhecidos pela boca.

Devido à doença, seus olhos começaram a embaçar, burlando as cores e os movimentos das flores dos flamboyants. Mesmo com seu cuidado em evitar os doces, toda a visibilidade lhe foi subtraída.
Vieram os filhos e netos, quiseram levá-la à capital para que se cuidasse; em vão, recusava-se outro espaço, outro cheiro, outro chão… Não queria salvar o corpo se os olhos já estavam comprometidos.

Um manhã, saiu tateando até chegar ao balanço velho deixado pelos filhos. Embaixo das árvores que amava, sentia o vento bater em seus olhos. Sentia os pés no chão.

Balançou-se. Atreveu-se. Balançou mais forte… Bem mais forte. As cordas velhas do brinquedo romperam e ela caiu quando estava lá, bem alto. Arregalou os olhos, tentando fitar as flores. Tanto tentou que conseguiu. Foi sua última imagem: as flores dos flamboyants que tanto amou.

O irresistível charme da maturidade

O irresistível charme da maturidade
Luiza Brunet - Cassaroles / Fotos Gabriel Chiarastelli

Muito se fala sobre as possibilidades de se viver mais e melhor promovidas pelos avanços da ciência e da medicina. Não existe mais nenhuma dúvida sobre o fato de que os jovens saem cada vez mais tarde de casa e se casam mais velhos do que há trinta anos. Com isso, passou a ser dito que a faixa dos cinquenta anos representa, atualmente, o mesmo que os quarenta anos do passado. Ou melhor, é possível dizer que a vida começa aos 50!

As moças sempre tiveram um quê de cisma com a idade. Durante um período querem se mostrar mais velhas e em outro momento desejam controlar o tempo. Como um observador do comportamento feminino, digo sem medo de errar e também sem falar nenhuma novidade, as garotas sempre amadurecem antes do que os rapazes. Depois, ganham contornos mais definidos do que querem, mas se tornam, na maioria das vezes bem mais interessantes.

Do alto (não pela altura) dos meus mais de cinquenta anos, observo que as moças da minha geração andam diferentes. Ou será que agora eu as enxergo com mais atenção? Encontro mais sutilezas, menos peso nos ombros, mais cuidados, e menos afirmações de que os interesses diminuíram. Ao mesmo tempo em que sabem se defender muito bem, já estão treinadas para o ataque também, mas sin perder la ternura, jamás!

Dissolveram-se os sentimentos de culpa e as dúvidas tão comuns, como batalhar uma carreira ou se dedicar à criação dos filhos. Diminuiu a ansiedade de dar conta de relacionamentos e família. A cabeça está mais bem resolvida em relação aos assuntos mais importantes e o corpo demonstra isso.

A ditadura da moda anda um pouco mais flexível e, aparentemente, os (as) estilistas entenderam que existe uma outra consumidora que também quer se mostrar, ou ainda melhor, fingir que se mostra, como bem ilustra a jornalista Lu Catoira.

Não me refiro à sarada que corre na praia e bate ponto diário na academia, piloto de testes de todos os produtos cosméticos, naturais ou não. Falo daquela que viveu a vida normalmente, com alegrias, tristezas, realizações e frustrações, que já não se incomoda em se fazer tantas cobranças. Mesmo quando elas ainda se impõem, como o eterno malabarismo entre trabalho e filhos, essa mulher sabe se virar com dignidade e sabedoria, mesmo que às vezes tenha que recorrer a algumas pitadas de malícia.

Ocuparam todos os lugares. Não se restringem a ficar em casa se lamentando da chamada “síndrome do ninho vazio”. Fazem parte da vida corporativa, conduzem negócios próprios, ocupam gerências de bancos e — por que não? — algumas até encontraram tempo para flanar nas praias e shoppings. Nas academias, não são mais aquelas que chegam cedo demais e vão embora antes do movimento. Frequentam o horário nobre. Não se furtam mais de fazer brincadeiras e abrir sorrisos marotos. Não acreditam que a vida entrou no segundo tempo do jogo. Aproveitam intensamente cada momento do presente.

Não canso de admirar amiga de longa data que continua correndo os mesmos oito quilômetros diários. Reparo agora, porém, que agora ela cumpre o percurso sem a preocupação de olhar para os lados. Segue concentrada, como quem sabe perfeitamente bem aonde quer chegar. Ocorre-me então que as mais jovens deveriam se precaver. Uma “bola dividida” com essa mulher mais experiente pode provocar machucados invisíveis, mas bem doloridos.

O Rio de Janeiro poderia ser vilão, afinal com o calor que faz por aqui e com a desinibição das mais novinhas, as moças de meia idade poderiam ficar retraídas. Não é o caso. Envergam com desembaraço e elegância shorts, leggings mais justos e bermudas nas caminhadas pela orla ou nos parques.

Outro dia vi uma reportagem na televisão sobre as mulheres que estão prestes a completar, ou recém-completaram, quarenta anos. Fiquei admirado com o que detectei como falta de certa serenidade, pois a preocupação com a estética pareceu-me exagerada. Entendo que exista o desejo de corresponder ao padrão da época, mas como disse anteriormente, controlar o tempo é uma tarefa inglória.

Aqui abro rápido parêntese. Não há como não admirar a beleza clássica de uma Luiza Brunet ou a mais intimidadora de uma Demi Moore, é verdade. Mas é encantador me deparar diariamente com mulheres como tantas outras, encarando o cotidiano com um charme discreto e atemporal. É algo que me chama muito a atenção.

Assim como dizem sobre os moços da minha idade que “homem sem barriga é um homem sem história”, afirmo categoricamente que algumas ruguinhas, manias, preocupações e quilinhos não colocam minhas contemporâneas em desvantagem. Pelo contrário, elas sabem como ninguém tirar partido de seus novos atributos para conquistar, apaziguar e dar alegrias.

Texto de Mauro Giorgi
Fonte indicada: Tudo sobre tudo

A arte de imbecilizar crianças

A arte de imbecilizar crianças

A arte de perder não é difícil de dominar; há tantas coisas que parecem preenchidas com a intenção de serem perdidas, que a perda delas não é nenhum desastre. Perca algo todos os dias. (…) Então pratique perder melhor, perder mais rápido: lugares e nomes, e até mesmo onde é que você queria viajar.” O poema de Elizabeth Bishop, One art, deveria ser leitura obrigatória e diária para aqueles pais que se recusam a perder seus filhos para o mundo. Em vez de acompanhá-los nessa viagem, que não é em princípio desastrosa, eles querem ampliar o tamanho do mundo que eles mesmos controlam. O mundo em forma de família. O mundo em forma de prisão.

Na arte de imbecilizar crianças, os currículos autocráticos, as seleções baseadas em exercícios mnemotécnicos e as rotinas escolares pouco significativas concorrem fortemente com o receituário oligofrênico dos pais. Nesse sentido, a primeira tática para imbecilizar crianças consiste em protegê-las discursivamente de problemas. Evitar contato com as verdades dolorosas. A bruxa e a madrasta malvada devem ser banidas com o lobo mau. Em cima do piano não há mais copo de veneno, mas suco azedo. A morte é apenas uma viagem. A forma afirmativa, pessoal e direta “Atirei o pau no gato” deve ser vertida para o mais sóbrio e correto “Não atire o pau no gato porque isso não se faz”. Corta-se assim o suporte imaginário necessário para que a criança elabore seu sadismo, bem como o masoquismo social que a cerca. De fato, a palavra “imbecil” provém do latim baculum, bastão de pastor. Alguém sem bastão é alguém que deve ser pastoreado pelos outros; alguém que não fará uso algum de seu bastão para se defender será, pois, um fraco e frágil… Sem pau para atirar.

A segunda tática para não perder os filhos para o mundo consiste na sua cretinização. Os cretinos eram crianças que habitavam os vales da Suíça, onde o sal continha pouco iodo. Sem iodo elas desenvolviam uma deficiência cognitiva associada à disfunção da tireoide. Como não podiam mais ser educadas pelos pais, elas eram transferidas para as comunidades religiosas, daí o termo chrétien (cristão). E assim fazem os pais que entregam seus filhos para a escola como se ela tivesse não apenas de os ensinar, mas educar, controlar, disciplinar, cuidar e assim por diante. E assim ocorre com os que terceirizam a educação dos filhos.

A terceira técnica na arte de não perder as crianças para o mundo consiste em mantê-las isoladas, em situação de indivíduo privado ou, como os gregos chamavam, estado de idiotés. A escola é um obstáculo para o novo espírito do neoliberalismo, que advoga que cada um de nós é uma espécie de livre empresa que deve escolher livremente seus fornecedores e aplicar seus investimentos segundo os princípios de otimização de resultados. Esses pais empreendedores sentem-se, segundo a prerrogativa de pagantes e clientes, no direito de elevar os princípios individuais e privados à dignidade da coisa pública. Educação é um empreendimento público, não é uma associação privada de interesses ampliados da família. Contudo é assim que agem os que querem proteger a criança da norma, da lei e da regra, cuja razão de ser é pública.

A arte de imbecilizar crianças, como se vê, é o contrário do que nos recomendava a poeta americana. Ela consiste em reter para nós o que devia ir para o mundo, em temer desastres quando o pior desastre já está a acontecer. É uma vida sem bastão, sem sal ou sem via pública. Quando percebemos o quanto dominamos essa arte, geralmente já é tarde demais, e nossas crianças já se foram, da pior maneira possível. De modo mais lento, para um mundo que as condenou a uma minoridade penal perpétua.

Texto de Christian Ingo Lenz Dunker
Fonte indicada: Mente e Cérebro

Quer saber mais? Sugestão de leitura:

Educação, Escola e Docência, de Mário Sérgio Cortela

Morre-se depressa demais

Morre-se depressa demais

Vivemos tão depressa que damos por nós a entrar num centro comercial e a não saber em que estação do ano estamos. Com os saldos de Verão a começarem antes do Verão vir sequer marcado no calendário, ficamos com a ideia de que já não vale a pena comprar um fato-de-banho porque o Outono está mesmo a chegar. Confusos, rebuscamos na memória os dias longos de praia, os jantares na varanda, as férias, e concluímos que o nosso cérebro se desgastou de tanto uso, porque as recordações que temos parecem antigas e, no entanto, a avaliar pela colecção Outono/Inverno que enche as páginas das revistas, só pode ter sido ontem.

Não entendíamos quando, em pequenos, nos diziam que o Natal não demorava nada e os dias rolavam penosamente, ou que tarda nada fazíamos anos, e o “tarda nada” era mesmo tarde e parecia-nos nunca mais chegar. Mas, agora, percebemos que o tempo voa, tudo passa a correr, o que é tanto mais idiota quanto era exactamente agora que devia andar a passinhos de bebé (lembram-se do jogo?), porque a recta final está progressivamente mais próxima.

Olhamos para o calendário e não percebemos o que fizemos aos dias que voaram, mas se olharmos mais de perto as nossas agendas, percebemos que estiveram cheios de acontecimentos, que se atropelaram uns aos outros, sem nos deixar um segundo para respirar.

Andamos cansados, muito cansados, sobretudos aqueles que têm filhos pequenos, e dentre esses, à cabeça de todos, lá estão as mulheres que acumulam profissão e a casa/família. Nem a invenção das férias pagas, que nem meio século tem, nos veio descansar, porque rapidamente enchemos também aqueles dias com mil “compromissos” obrigatórios.

O mal não é que as 24 quatro horas do dia tenham encolhido, mas simplesmente que a nossa omnipotência nos deixe com a ilusão de que conseguimos encher o espaço de um dia com tantas e tantas coisas, como se conseguíssemos estar em muitos lados em simultâneo.

Contudo, o que mais me aflige é o facto de vivermos os acontecimentos profundamente marcantes num toca- -e-foge que não nos deixa reflectir sobre eles, senti-los em profundidade, gozá–los ou lamentá-los, resolvê-los e superá-los, em lugar de os varrer para debaixo do tapete. E obrigamos os outros também a varrer, na nossa intolerância para com a dor que não passa rapidamente, para com o desgosto que se mantém, para com aqueles que se continuam a queixar da mesma coisa, num tempo em que mesmo a maior tragédia é ultrapassada por aquela que vem a seguir.

Depois queixamo-nos da tristeza que não sabemos de onde vem, da ansiedade que nos toma inesperadamente e, claro, da depressão que se instala, jurando nós que não temos motivos nenhuns para a sentir.

Basta olhar para a pressa com que gerimos a morte. Homens e mulheres extraordinários parecem desaparecer da face da terra, e da memória, num abrir e fechar de olhos. E por muito que os tenhamos admirado, por muito que nos façam falta, continuamos em frente, não por mal, mas porque somos empurrados pela voracidade dos dias, pelos compromissos e obrigações, porque não podemos deixar cair tudo o que de nós depende. Sem lhes erguermos a estátua que merecem, sem que o seu nome fique sequer gravado numa lápide, que fique para lá da sua vida, da nossa vida, da vida dos nossos filhos, para que um dia, alguém a possa ler e perguntar: “Quem foi este?” Decididamente, não gosto de cremações. Decididamente, quero viver mais devagar.

Texto de Isabel Stilwell

Jornalista e escritora
Fonte: Jornal i

Nomofobia

Nomofobia

Oi, gente. Meu nome é Elika, mas aqui me chamem de Gilda, por favor. Tenho 42 anos, três filhos e um testemunho a dar.

Hoje, depois de muito protelar, coloquei meu celular no conserto. O GPS dele estava pifando, ficava intermitente. O Eduardo, o moço do waze que me fala para onde devo ir, engasgava justamente nas bifurcações. O aplicativo Endomondo que uso para correr e que fica me informando a quilometragem e a minha velocidade a cada cinco minutos falava só quando queria. Daí, de repente eu que tenho como meta correr 5 quilômetros duas vezes na semana até morrer poderia estar correndo 5,3km, por exemplo, e isso é simplesmente inadmissível para mim. Não quero deixar a meta aberta e muito menos dobrar a meta. Nem passar um metro da meta. A meta já me mata.

Ao chegar na Assistência Técnica, a moça pegou meu celular. Fez-me algumas perguntas do protocolo. Abriu meu filho querido bem na minha frente. Arrancou-lhe a memória e o chip. Entregou-os para mim e disse assim na lata super fria e sem o menor sentimento:

– 5 a 20 dias úteis.

Como é que é, minha gente? Pensei que fosse consertar ali na hora, no máximo pegar no dia seguinte… Cinco dias sem celular? Ou vinte? Como vou viver? Quem vai me lembrar dos meus compromissos? Quem vai me acordar? Vou perder todas as fofocas no grupo do whatsapp… E-mails importantes, notificações de comentários em minhas postagens… como vou ler Carta Capital? Como meus filhos vão me localizar se tiverem morrido? E se a luz da casa acabar, como vou andar no escuro sem a minha super lanterna? Como vou me comportar numa mesa de bar com os amigos sem poder mostrar para os outros que não estão ali como estou super me divertindo? E quando eu me achar linda ao olhar no retrovisor no meio do mó engarrafamento e quiser tirar uma selfie? Como faço, gente?

Dirão muitos de vocês que vai ser bom e não duvido que me venham com aquele discurso que todo mundo hoje só sabe olhar no celular e coisa e tal. Vão dizer que vou descobrir como me relacionar de verdade com as pessoas e bababá bububú. Bah. Eu me relaciono giga bem com as pessoas de qualquer jeito. Olhando no olho ou olhando pra tela e, as vezes, com um olho no olho da pessoa que está na minha frente e o outro virado para a tela. Tipo Cerveró. Super dou conta.

Mas, vá lá, tenho percebido que as minhas leituras dos livros de literatura caíram vertiginosamente. Por exemplo, com essas manifestações que foram a bola da vez, fiquei hiper ansiosa em saber se estava perdendo alguma coisa, lia tudo o que me aparecia pela frente para não falar bobagem e mal consegui me fixar por mais de dez minutos no alfarrábio aberto. De repente, agora, retomo a concentração e permito-me uma honesta viagem como há tempos não tenho feito na minha biblioteca. Pode ser. Vamos tentar. Força, Elika… e assim pensando voltei para o carro deixando naquele lugar frio meu filho lobotomizado.

Mal entro no takimóvel, procuro o aparelho do diabo. Estava doida para ligar para a mamãe para reclamar que ia ficar sem celular por um bom tempo. No primeiro sinal vermelho, busquei-o de novo para avisar a todos os grupos do whats que ficaria fora do ar por uma eternidade e para não ficarem preocupados porque, claro, vão sentir muito a minha falta e mal saberão viver sem mim.

Ao pegar somente a capa da criança, toda mole sem nada dentro que me conecte com o outro mundo, acabei botando o meu CD preferido do Fábio Júnior que me acalma a vera sempre. E cantei. Cantei As Metades da Laranja em volume máximo com os braços esticados para o teto balançando de um lado para o outro. Olhei para a minha direita bem no refrão e o moço todo cheiroso de blusa branca em um Eco Sport sorriu para mim. Pediu meu celular fazendo um gesto dobrando os três dedos do meio deixando o mindinho meio na altura da boca e o polegar perto da zoreia. Eu comecei a chorar ao lembrar do bichinho e, depois, com os zóio arregalado pro moço desatei a coçar o pescoço fortemente com as unhas me deixando cheia de marcas vermelhas. No sinal verde, ele engatou a primeira e se foi na velocidade da luz.

E assim foi meu primeiro dia. Como meu amigo ali cheio de tiques falou, um dia de cada vez.

Obrigada por me receberem nesse grupo dos Celulacólotras Anônimos.

Até a próxima.

A delicadeza dos dias, por Eliane Brum

A delicadeza dos dias, por Eliane Brum

“Mãe, sabia que, quando a gente cresce, pode voltar a brincar com os brinquedos de criança?”, anunciou minha afilhada Catarina, três anos e oito meses. E seguiu, em sua primeira declaração de Ano-Novo. “A gente precisa dos brinquedos pra ir na faculdade. Eu vou ser escrevista.” Escrevista?, pontuou a mãe, interrogativa. “Escrevista, mãe. Aquela pessoa que escreve pra ler.”

Catarina é assim. Cercada de princesas, porque ela também é uma princesista praticante, ela às vezes silencia os adultos ao redor, arrancando-nos da repetição neurótica dos dias. É visível que sente compaixão por nós, a ponto de, neste Natal, ter fingido acreditar no Papai Noel para não nos decepcionar. Fizemos coisas ridículas, na falta de chaminés o Papai Noel teria descido por uma janela pela qual não passaria um duende com anorexia, e ela deixou passar. Mas, juro, seus olhos eram tão céticos quanto os de Humphrey Bogart em Casablanca.

Dias antes ela já havia simulado crer numa carta que o velho teria lhe escrito de próprio punho, na qual, por uma incrível coincidência, lhe dava conselhos iguaizinhos aos que a mãe lhe dá todo dia. Catarina mal continha o riso quando lhe perguntei sobre a carta. Mas fingiu acreditar, por amor. Mentiras sinceras já lhe interessam.

Passou a virada do ano vestida de Alice, a do País das Maravilhas. Percebo que, para ela, somos todos o coelho branco. “Ai, ai, meu Deus, alô, adeus, é tarde, tarde é tarde. Não, não, não, eu tenho pressa, pressa….” De tanto nos observar, percebeu que precisamos muito de nossos brinquedos na vida adulta. E nos autorizou. Por isso nos mandou brincar.

Há quem se engane e pense que as crianças falam “errado” por não conhecerem ainda as palavras “certas”. Não. Elas chegam às palavras exatas e depois nós as encaixotamos com a uniformidade do dicionário, “corrigindo-as”. Alguém pode se confundir e achar que Catarina queria dizer “escritora” e não “escrevista”, como disse. Nada. Escrevista era a palavra exata. Aquela pessoa que escreve não para ser lida, mas para ler, como Catarina mesmo esclareceu. Ler a si mesma. Uma vista de si.

E Catarina já é uma escrevista. O que pode ocorrer é que, na faculdade, talvez ela deixe de ser. Mas apenas se esquecer de levar seus brinquedos. Espero estar viva para lembrá-la.

Catarina já se conta, passa os dias se contando, em longas narrativas. Ela sabe o que Fernandes, o personagem do filme indiano “Lunchbox”, de Ritesh Batra, descobriu quando já começava a envelhecer: “Acho que esquecemos das coisas se não tivermos a quem contá-las”. Um dia, por engano, Fernandes recebeu no seu escritório uma marmita que não era para ele, mas era para ele: “O trem errado às vezes leva ao destino certo”. A partir desse desacerto tão acertado, iniciou-se uma correspondência entre a mulher que cozinha e o homem que come. Fernandes, que se limitava a repetir os dias, passou a enxergar os dias quando começou a escrever para ela. A cor, o cheiro, o sabor da comida onde ela escondia as palavras despertaram seus sentidos, até então embrutecidos pela repetição. Ele era um contador – um contador de números que não contava os sentimentos. Nem contava, não era importante, para ninguém. Ao se contar, finalmente contou, em mais de um sentido. Contou para ela, contou para si mesmo.

Há um momento nesse filme tão bonito em que Fernandes pela primeira vez se detém para observar os quadros de um pintor de rua pelo qual passa todo dia sem parar. O pintor pinta sempre a mesma paisagem. Mas, se olhar bem de perto, Fernandes descobre, não é a mesma paisagem. Como o dia dele, que só parece ser o mesmo. Ou só é o mesmo se ele não for capaz de enxergar a delicadeza, as infinitas pequenas mudanças, a eterna novidade do mundo de que falava Fernando Pessoa, aquele que precisou de pelo menos três heterônimos para dar conta de si.

De repente, Fernandes descobre-se numa das telas. Sem o véu enganador da rotina, que até então o cobria, consegue se reconhecer na paisagem. Ele agora é um homem que está. Decide pegar um riquixá para revisitar as paisagens da sua vida, ver os lugares que via sem ver, agora vendo. Ao final desse percurso, ele é outro. Um outro que, agora descoberto, terá de se descobrir novamente em cada dia seguinte.

Foi o Papai Noel da Catarina quem me deu esse filme no Natal. E eu acreditei nesse Papai Noel. Ou fingi acreditar, por compaixão de mim. Me lembrou de um outro filme, mais antigo, “Cortina de Fumaça”, dirigido por Wayne Wang e Paul Auster. Nele, Auggie Wren, dono de uma tabacaria, há anos tira todo dia, às oito da manhã, uma fotografia da mesma esquina do Brooklin, em Nova York. Ele mostra esse álbum com 4 mil fotografias a um de seus fregueses, Paul Benjamin, que depois de virar algumas páginas diz: “São todas iguais”. Auggie responde: “Sim, 4 mil dias comuns”. Paul ainda está confuso, um pouco condescendente. Ele é um escritor de romances diante do dono de uma tabacaria: “Acho que ainda não entendi direito…”. Auggie tenta lhe explicar: “É a minha esquina, nessa pequena parte do mundo também acontecem coisas”. E vai colocando mais um álbum diante de Paul, que folheia entediado e cada vez mais rapidamente. Auggie adverte: “Você não vai entender se não folhear mais devagar, amigo”.

Ele sabe que, se olhar bem, Paul vai reconhecer a esquina. O homem diante dele é um escritor, mas Auggie, como Catarina, é um escrevista. Então, Paul finalmente descobre. Ele vê Ellen, a mulher que amou e que morreu, numa das fotos. Ela está lá, na mesma esquina que agora já não poderia ser a mesma. Ao ver a foto, Paul reencontra a si mesmo num outro tempo, porque, quando perdemos alguém que amamos, nosso luto também se dá por aquele que éramos com aquela pessoa. E que, sem ela, já não podemos ser. Um luto pelo outro é sempre também um luto de si. E lá ficou Paul, em lágrimas, diante da esquina que finalmente enxergou, com saudades dela e dele com ela. O álbum, agora, já não tinha a mesma foto repetida centenas de vezes, mas centenas de fotos de esquinas diferentes.

Temos vivido nesse mundo de acontecimentos, de espasmo em espasmo. Estamos intoxicados por acontecimentos, entupidos de imagens. Há sempre algo acontecendo com muitos pontos de exclamação – ou fingindo acontecer para que de fato nada aconteça. E há a nossa reação nas redes sociais – às vezes uma ilusão de ação. E nas viradas de ano há ainda as resoluções, que também pressupõem uma ação.

Um pai esquece o filho no carro por estar preso no pesadelo de viver sempre o mesmo dia
Mas o que é preciso para, de fato, se mover? Penso que, para que exista uma mudança real de posição e de lugar, é preciso perceber o pequeno, o quase invisível de nossa realidade externa e interna. É pelos detalhes que enxergamos a trama maior, é na soma das sutilezas que a vida se desenrola, são as subjetividades que determinam um destino. É preciso desacontecer um pouco para ser capaz de alcançar a delicadeza dos dias.

Nesse tempo em que ninguém tem tempo para ter tempo, a delicadeza de uma vida parece ter sido relegada à ficção. É no cinema e na literatura que nos enternecemos e derrubamos nossas lágrimas ao testemunhar as sutilezas que esquecemos de enxergar ou não somos capazes de enxergar nos nossos dias de autômatos. Os personagens da ficção têm mais carne que nós, precisamos deles para nos lembrar de quem somos. Os robôs já estão aí, temos agora de reinventar os humanos.

O exemplo extremo talvez seja o dos pais que se esquecem dos filhos trancados no carro, bebês que acabam morrendo por asfixia ou por insolação no banco de trás. Já foi dito que esse fenômeno seria uma marca do autocentrismo ou do narcisismo que assinalaria a paternidade desse momento histórico. O filho como uma desimportância, um atrapalho, no máximo um troféu da potência do pai. Minha hipótese é outra.

Acho que esses pais estão automatizados, como estamos todos. Tão incapazes de enxergar as diferenças de dias que parecem iguais, que acabam deixando de ver algo tão grande quanto a presença de um bebê no banco de trás. Não é que se esqueçam dos filhos, porque para esquecer, assim como para lembrar, é preciso estar presente. Presos no pesadelo de estarem vivendo sempre o mesmo dia, esses pais estão ausentes de si, numa espécie de transe mortífero. São despertados para a vida pela morte do filho.

O título do comovente filme do brasileiro Caetano Gotardo é expressivo: “O que se move”. Ele contas três histórias baseadas em notícias de jornais. Numa delas, alcançamos os detalhes e os acasos de um pai que, no primeiro dia de férias da mãe, carrega o filho no banco de trás do carro. Com o balanço, o bebê acaba dormindo, e o pai o “esquece”. Ele passa a manhã no trabalho sentindo-se perturbado, doente, mas não consegue identificar o que está errado. É de novo no cinema, muito mais do que nas notícias, que conseguimos enxergar esses pais na delicadeza monstruosa da tragédia.

Em algum momento esquecemos do que sabe Catarina, paramos de nos contar. Alguém pode argumentar que nunca tantos falaram sobre si e se registraram em selfies em todas as situações. Mas o que o selfie conta? Penso que há algo no selfie para além da crítica que em geral lhe fazem, a de ser um mero registro do autocentrismo ou do narcisismo dessa época. O mesmo vale para muitos Tweets e posts no Facebook. Há qualquer coisa de pungente no selfie, uma expressão de nosso desespero por tentar provar que existimos, já que não conseguimos nos sentir existindo. Melhor ainda se for um autorregistro com alguém famoso, detentor de um certificado de existência validado pela mídia, que então seria estendido ao seu autor. Nesse sentido, o selfie não me exaspera, mas me emociona. Cada selfie é também a imagem de nossa ausência.

O contar de que fala Catarina, a escrevista, é outro. É por esse contar que sugiro que façamos não uma lista de resoluções de Ano-Novo, mas uma lista de delicadezas que estiveram presentes em 2014, mas que não vimos e não reconhecemos por termos nos tornado seres condenados à repetição.

Esse mundo que criamos nos brutaliza de tantas formas ao nos reduzir a consumidores, e também a consumidores de acontecimentos. Diante da brutalidade das horas, a delicadeza é um ato de insubordinação e um ato de resistência. Em 2015, desejo a todos um reencontro com a delicada trama dos dias. E, não esqueçam, levem seus brinquedos.

Por Eliane Brum
Fonte indicada: El País

Desapega do que não te faz bem

Desapega do que não te faz bem

Desapega. Joga fora. Manda pro espaço. Deixa fluir. Joga na lixeira o que não te faz bem: os amores mal resolvidos, a mensagem não visualizada, os colegas que não querem te ver tão bem assim… vai desapegando aos poucos e deixa as coisas melhorarem conforme o tempo passa. Acredite: elas vão melhorar.

A sensação que nos toma quando o apego é forte, pode ser avassaladora. Pode tirar a paz, se manifestar como estresse e desencadear ondas de tristeza. E você precisa disso? Não, não precisa! Dá pra viver com sossego, daqueles bem merecidos.

Já jogou tudo que te faz mal na lixeira? Beleza. Você sabe que eles ainda estão rondando. Então, aproveite a faxina emocional para botar todo esse lixo pra fora, sem dó.

Exorcize esses encostos da sua vida. E não se culpe por nada. Você pode ter namorado o demônio e isso não significa que você é uma má pessoa também. Nem pense que você não é legal porque alguns dos seus amigos te abandonaram. Pense apenas que eles nunca foram seus amigos, e sim colegas. Se tá difícil conseguir um emprego, não esquenta. Não tá fácil pra ninguém, meu bem. Se na faculdade tudo vai mal, saiba que se esforçando você chega lá (e depende só de você, encare isso de modo positivo). Aquele esquema parou de responder as mensagens? Vá fazer coisa melhor que esperar pelo outro – o mundo não para!

A vida é muito curta pra gastar o tempo com pequenos vícios. Sabe, aqueles pequenos vícios que nos deixam loucos de raiva e que não precisam de um gasto tão grande de energia. Com o tempo, esses grandes problemas são apagados do tempo, parece até que ficam empoeirados em alguma prateleira inalcançável.

É difícil dizer “Xô, problema. Sai da minha vida. Vaza. Chispa.”. É mais difícil ainda colocar isso em prática. Você precisa saber pra onde quer ir. Precisa se questionar mais. Sobre a vida, trabalho, família, estudo, relacionamentos. É preciso traçar um objetivo e tentar chegar lá, dar o sangue para chegar aos resultados.

Então, depois que botar o lixo pra fora, faça uma lista do que te faz bem. Liste tudo. Aquela música do Chet Faker. Aquele episódio do seu seriado favorito. Até música brega vale: de Rosana (Como uma Deusa) até Odair José. Coloque, também, todas as pessoas que fazem o seu dia valer a pena – e agradeça. Não se esqueça das pequenas coisas: da brisa no seu rosto quando volta pra casa, da simpatia do vizinho de cima, do seu cantinho, do sabor do café, do pôr-do-sol. Liste suas cores preferidas, não precisa ser uma só.

Agradeça, mentalmente, as pessoas que te provaram que a vida não é um mar de rosas. Coloque na lista a lasanha que só sua avó sabe fazer. Liste suas fantasias sexuais preferidas. Se solte. Uma lista de gratidão pode te dar mais ânimo para esquecer de vez a parte ruim.

Não negue seus sentimentos. Separe as coisas entre as que te fazem bem e as que fazem mal. E não tenha nenhum problema em desapegar do que te tira o sono. Depois de desapegar você vai acabar se sentindo mais leve e, consequentemente, mais feliz.

Para mais artigos da autora visite Te escrevi- Ju Umbelino.

https://www.facebook.com/teescrevi.ju

Entre livro e tablet, por Marina Colasanti

Entre livro e tablet, por Marina Colasanti

A menina tem seis meses. Sei disso porque ouvi a mãe dizer. E ainda mama. Ali mesmo, na mesa do restaurante, entre uma e outra garfada de pizza, a mãe lhe deu o peito mais de uma vez. Agora está sentada no carrinho em que chegou, olhando para um telinha, creio que uma espécie de tablet, com jogos ou figuras em movimento.

Ainda de manhã li o alerta da Academia Americana de Pediatria, segundo a qual estudos científicos demonstraram que crianças muito novinhas, quando submetidas ao bombardeio do mundo digital, podem vir a sofrer vários problemas. Entre eles, atrasos cognitivos, problemas de atenção, dificuldade de concentração na escola, transtornos do sono e de alimentação ( sobretudo relativos a obesidade).

A telinha que a menina olha agora, num esforço de entendimento e apreensão, está encaixada em uma estrutura plana, de material macio, cor de rosa, em feitio de boneco. A tela forma o corpo da estranha criatura, sobrando para os lados pernas e braços. A estrutura encaixa-se perfeitamente na parte dianteira do carrinho, com os braços servindo de suporte, o que me faz crer que tenha sido concebida exatamente para distrair bebês incautos, enquanto os pais dão cabo de pizza, cerveja, ou simplesmente conversa.
Diz a AAP, que as crianças americanas estão gastando uma média de sete horas diárias diante de telinhas de variados tamanhos. Não sei a média no Brasil, mas pelo que tenho visto em aeroportos, aviões, restaurantes e lanchonetes, deve andar mais ou menos por aí. A nova postura infantil é corpo largado, cabeça baixa, rosto iluminado pela luz fria da tela, e indicador agindo rápido. Com eles entretidos, os adultos podem mergulhar em suas próprias telinhas.

“O cérebro de uma criança- diz o alerta da AAP- se desenvolve rapidamente durante os primeiros anos, e as crianças aprendem melhor através da interação com pessoas, não com telas. É importante que passem mais tempo brincando ao ar livre, fazendo leituras, divertindo-se com passatempos e usando sua imaginação em brincadeiras”.

A pequena choraminga. Certamente está com sono, a hora dela dormir passou há muito. Então a mãe a pega no colo, põe o tablet cor de rosa sobre a mesa, e vai distraindo a filha mostrando-lhe como, batendo ou deslizando com o dedo, a figura muda.

Para que a mãe folheasse um livro, em vez de dedilhar uma tela, seria preciso: a) que o tivesse trazido e, eventualmente, comprado. b) que soubesse escolher o livro adequado. c) que tivesse real consciência de quanto a leitura é boa para a filha. d) que soubesse interagir com o livro. e) que fosse, ela própria, leitora.

É muita coisa, convenhamos. Pelo menos, na nossa cultura.

Este ano, mais uma vez, pudemos constatar a esquizofrenia social que faz com que, embora reafirmando constantemente o valor da leitura na infância, esse mesmo valor seja negado. Nas listas que ao fim do ano apontam os melhores de cada categoria, e que os veículos preparam com tanto esmero, alguém viu constar a literatura infantil? Reservam-se para ela, pelo menos, alguns lugares junto à literatura adulta?

Sem deparar-se com qualquer reconhecimento de valor, por que a mãe da menininha escolheria um livro em vez de um tablet, elevado pela publicidade a sonho de consumo? E como saberia ela que livro escolher, se ninguém lhe diz quais são os melhores? Quando a filha crescer um pouco, talvez escolham juntas algum livrinho Disney, para combinar com a mochila , o caderno, a malinha ou com a nova capa do novo tablet.

Por Marina Colasanti
Fonte indicada: Marina manda lembranças

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