“O problema não é crescer, mas esquecer…”

“O problema não é crescer, mas esquecer…”

Tomei a frase-título emprestada do filme “O Pequeno Príncipe” _ a nova animação, dirigida por Mark Osbourne faz uma emocionante releitura do clássico de Saint-Exupéry e nos abraça com a história de amizade entre o aviador e uma menina, pra quem ele conta a história do principezinho, repleta de ensinamentos em forma de poesia.

É para a menina que o aviador fala: “O problema não é crescer, mas esquecer”. E entendemos que ele tem razão, ao constatarmos que o amadurecimento impõe despedidas, e nesse processo muitas vezes esquecemos quem fomos e os vínculos que construímos no decorrer do caminho. Como o principezinho, cativamos e fomos cativados ao longo da vida, mas muitas vezes preferimos esquecer para poder crescer.

No último fim de semana, comemorando o aniversário de quarenta anos do meu irmão, me comovi diante do painel que reunia mais de trezentas fotos de sua vida, do momento do nascimento, passando pela infância e adolescência (em que fomos muito mais que irmãos), e finalmente chegando à vida adulta, celebrada em fotos com sua esposa e os dois filhos. Embalados pelo clima de nostalgia da festa _ muitos parentes e amigos de longa data estavam presentes _ recordei histórias antigas, elos fortes que construímos nos primeiros anos, e nos abraçamos num gesto emocionado.

Fazia tempo que não me permitia estar assim. Fazia tempo que não era para meu irmão a irmã que um dia eu fui. Fazia tempo que eu não me lembrava.

Recordar certas histórias nos traz de volta. Aproxima e aquece. Não permite que fragmentos do que fomos se percam pelo caminho nem fiquem renegados a um canto abandonado de nossa existência.

E vamos descobrindo que precisamos nos despedir para crescer, mas nunca nos esquecer daquilo que um dia fez parte do que fomos, a matéria prima de tudo o que nos tornamos.

Recordar nossos amigos, nossa família-base, nossos afetos e tudo o que envolveu esses encontros é aprender a conciliar dois mundos _ o presente e o passado_ e fazer deles uma construção nova, que nos torna pessoas melhores e mais afetuosas.

Dizem que não devemos mexer em certas dores. Mas é remexendo antigos baús que podemos esclarecer e decodificar o presente de uma forma mais amorosa com nós mesmos.

Meu irmão e eu crescemos, e nosso distanciamento natural, provocado pelas novas famílias que formamos, foi momentaneamente quebrado naquela tarde de seu aniversário. Naquele momento, comovida pelo mural de fotos, lembrei do tempo em que éramos crianças, e quebramos o gelo com nossa lembrança. Com a possibilidade de resgatar quem fomos agarrando-nos às nossas memórias.

“O problema não é crescer, mas esquecer”. Que a gente aprenda a buscar nossa afetividade no presente, mas também no tempo que deixamos pra trás. Que possamos nos lembrar de como era bom ter amigos no portão e ouvir a mãe chamando pro jantar. Que recordemos antigos aromas, como o da chuva numa tarde de maio e do bolo com café numa reunião de família. Que não esqueçamos antigos sons, como a voz da avó cantando “Se alguém te convidar pra tomar banho em Paquetá, pra piquenique na Barra da Tijuca ou pra fazer um programa no Joá…” e os irmãos torcendo pro time campeão. E que, inesperadamente, possamos resgatar essas lembranças e nos comover como há tempos não fazíamos. E descobrir, finalmente, que não estamos sozinhos. Ao contrário, nossos dias estão povoados com aquilo que deixamos, com o que partiu, com o que aparentemente não existe mais…

“Quero estar solteira, mas com você”, uma carta que viralizou na internet

“Quero estar solteira, mas com você”, uma carta que viralizou na internet

A escritora canadense de 33 anos, Isabelle Teissier, tem chamado atenção do mundo inteiro. O motivo? Uma carta intitulada “Quero estar solteira, mas com você”, na qual ela narra como seria um “casal ideal” na sua visão. De acordo com a carta, é possível manter uma relação com alguém, mas, ainda sim, ter sua liberdade de não querer sentir-se preso a nada ou ninguém.

A carta, publicada há alguns dias começou a bombar no Twitter logo após uma matéria da versão americana do site The Huffington Post. Em seguida, chegou às mídias sociais, atingindo milhares de pessoas ao redor do mundo.

Essa é a reprodução íntegra da carta escrita por Teissier:

“Quero que vá tomar cerveja com seus amigos para que no dia seguinte tenha ressaca e me peça que vá lhe ver porque deseja ter-me entre seus braços e que acariciemos um ao outro. Quero que conversemos na cama pela manhã, sobre todo tipo de coisas, mas algumas vezes, pela tarde, quero que cada um faça o que quiser durante o dia.

Quero que me fale sobre as noites em que você sai com seus amigos. Que me conte que havia uma menina no bar que te olhava. Quero que me mande mensagens quando estiver bêbado com seus amigos e que me diga besteiras, apenas para que possa ficar seguro de que eu também estou pensando em você.

Quero que ríamos enquanto fazemos amor. Que comecemos a rir porque estamos provando coisas novas e que não têm sentido. Quero que estejamos com nossos amigos, para que pegue na minha mão e queira me levar a outro local, porque já não pode aguentar-se e tem vontade de fazer amor comigo ali mesmo. Quero ter de permanecer em silêncio porque há pessoas e ninguém pode nos ouvir.

Quero comer com você, que me faça querer falar sobre mim e que você fale sobre você. Quero que discutamos sobre qual é o menor: a costa norte ou a costa sul, a parte ocidental ou a oriental. Quero imaginar o apartamento de nossos sonhos, mesmo sabendo que provavelmente nunca vivamos juntos. Quero que me conte seus planos, esses que não têm nem pé, nem cabeça. Quero surpreender-me dizendo “Pega seu passaporte que estamos indo”.

Quero ter medo com você. Fazer coisas que não faria com ninguém mais, porque com você me sinto segura. Voltar para casa muito bêbada depois de uma noite divertida com amigos. Para que coloque a mão no meu rosto, me beije, me use como travesseiro e me abrace bem forte durante a noite.

Quero que tenha sua vida para que decida viajar algumas semanas, apenas por capricho. Para que eu fique aqui, sozinha e chateada, desejando que salte sua carinha no Facebook me dizendo “oi”.

Não quero que sempre me convide para suas noitadas e não quero convidar você para as minhas. Assim, no dia seguinte, posso contar como foi minha noite e você também pode contar-me como foi a sua.

Quero algo que seja simples e, uma vez ou outra, complicada. Algo que, por alguns minutos, me faça fazer perguntas a mim mesma, mas no momento que estiver com você em um mesmo local, desapareçam todas as dúvidas. Quero que pense que sou bonita e que fique orgulhoso ao dizer que estamos juntos.

Quero que me fale te amo e, acima de tudo, poder dizer isso a você. Quero que me deixe andar na sua frente para que possa ver como meu corpo se mexe. Para que me deixe raspar as janelas do meu carro no inverno, porque meu bumbum balança e isso te faz sorrir.

Quero fazer planos sem saber se no fim os realizaremos. Estar em uma relação clara. Quero ser essa amiga que você adora ficar. Quero que siga tendo desejo de paquerar outras meninas, mas que procure a mim para terminar o dia. Porque quero ir contigo para casa.

Quero ser aquela que você faz amor e depois dorme. A que te deseja paz quando está trabalhando e a que fica encantada quando você se perde no seu mundo de músicas. Quero ter uma vida de solteira com você. Porque nossa vida de casal seria igual às nossas vidas de solteiros de agora, só que juntos.

Um dia te encontrarei”.

Fonte indicada: Tao Feminino

10 frases marcantes de Jorge Luis Borges

10 frases marcantes de Jorge Luis Borges

Um mundo sem livros
Há aqueles que não podem imaginar o mundo sem pássaros; Há aqueles que não podem imaginar o mundo sem água; Ao que me refere, sou incapaz de imaginar um mundo sem livros.

Suprema solidão
A velhice poderia ser a suprema solidão, não fosse a morte uma solidão ainda maior.

Sobre o ódio
Não odeies o teu inimigo, porque, se o fazes, és de algum modo o seu escravo. O teu ódio nunca será melhor do que a tua paz.

A dúvida
A dúvida é um dos nomes da inteligência.

Fim do mundo
São poucos os políticos que sabem fazer política. Mas, quando um intelectual tenta entrar nesse meio, então é o fim do mundo.

Própria Vitória
Há derrotas que têm mais dignidade do que a própria vitória

Fazer o bem
Fazer o bem ao teu inimigo pode ser obra de justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.

Qualquer Destino
Qualquer destino, por mais longo e complicado que seja, vale apenas por um único momento: aquele em que o homem compreende de uma vez por todas quem é.

A outra pessoa
Fica-se enamorado quando se dá conta de que a outra pessoa é única.

Tempo de ventura
A velhice pode ser o nosso tempo de ventura. O animal está morto, ou quase morto. Restam o homem e a alma.

Fonte indicada: Mensagens

Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, 14 de junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino.Conheça a biografia de Borges

Contribuições de Freud à Psicologia do Amor

Contribuições de Freud à Psicologia do Amor

O modelo como alguns homens amam reproduz certas condições que são construídas no interior do processo de subjetivação do Complexo de Édipo. Em suas contribuições à psicologia do amor, no artigo “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor”, Freud (1912) destaca características que determinam a escolha da pessoa amada, demonstrando conflitos que ocorrem entre a capacidade de amar e desejar sexualmente o mesmo objeto. A harmonia de uma relação amorosa normal sustenta-se entre o equilíbrio das correntes eróticas e afetivas.

As correntes afetivas correspondem aos primeiros vínculos amorosos da criança com a mãe, cujas correntes eróticas, por sua vez, estão interligadas, visto que a sexualidade da criança se desenvolve junto ao corpo materno, que a recobre de amor e sensualidade. Freud, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, foi claro ao evidenciar o chuchar como modelo da sexualidade infantil. Ou seja, – mesmo tendo a fome saciada, – a criança insiste em continuar mamando no seio materno, para satisfazer, assim, algo da ordem do erótico que se manifesta ali.

Com a entrada do menino na puberdade, as correntes eróticas que antes estavam misturadas com as correntes afetivas, precisam se separar do primeiro objeto de amor, de modo a redirecioná-las a outros objetos amorosos para fora da família. Trata-se, portanto, de seguir as regras impostas pela barreira do incesto ao exigir que a criança aprenda a amar e a desejar um outro objeto substituto. No entanto, tendo a mãe como primeiro modelo de amor, o adolescente, por fim, agora liberado para amar e transar, não consegue se organizar afetivamente a não ser pelo mesmo modelo primário reproduzido com a mãe, marca esta que o acompanhará ao longo da vida adulta.

A dificuldade, que se apresenta para este tipo particular de dinâmica do amor, reside na difícil tarefa de equilibrar as correntes eróticas e afetivas, sem levar o homem a incorrer em impotência psíquica ao não conseguir desejar a mulher para quem ofereceu seu amor.

Segundo Freud, – existe apenas um pequeno número de pessoas capazes de combinar adequadamente as duas correntes. Em outras palavras, amar sem que isto implique uma diminuição do desejo sexual. Quando essa harmonia não ocorre, o homem precisa recorrer a outra mulher que não seja digna de seu amor como, por exemplo, a prostituta, para assim extravasar seus impulsos sexuais selvagens inibidos pelo fantasma do amor incestuoso.

O que está em voga, nesses casos, para que o desejo sexual se mantenha vivo, é a possibilidade de poder depreciar e inferiorizar outra mulher. Expressões que compõem o jogo erótico como “sua vagabunda”, “vadia”, “cachorra”, ou tapas na cara, puxões de cabelo, dentre outros artifícios, fazem parte do repertório daquele que Freud designa como impotente psíquico devido ao fato de precisar se desvincular de toda e qualquer possibilidade de amar para se manter viril e desejoso.

Destaco aqui a fala de um paciente casado que sempre entrava em atrito com a amante quando ela o demandava afetivamente, exigindo dele algo para além do sexo casual. Esta pretensão da amante de querer namorá-lo o irritava porque, com isso, ela o impossibilitava de usá-la como objeto de seu desejo sexual. “É para isso que serve a amante, dizia ele, para que eu faça com ela o que eu não consigo fazer com a mulher para quem o meu amor está endereçado, a mãe do meu filho.” Ou seja, a esposa está para o amor assim como a amante para o desejo sexual. Este mesmo paciente relatou que decidiu ter um filho para tentar inibir ou deslocar as tentativas da esposa de querer tratá-lo como um bebê.

Freud, em 1914, no artigo sobre o narcisismo: uma introdução, destaca dois destinos da identificação amorosa: o narcísico e o anaclítico. O narcísico ocorre quando o sujeito ama a si próprio a partir do outro. Em outras palavras, ama no outro aquilo que foi, que é ou que gostaria de ser. A identificação amorosa anaclítica diz respeito ao tema sobre o qual estou abordando. Trata-se de amar no outro algum traço que remonte à parentalidade da primeira infância, como no caso agora citado do paciente que estava identificado com o fantasma da mãe reeditado na relação com a esposa.

Há um outro episódio no qual um paciente me declarou que sentia atração sexual por moradoras de rua e, – sempre quando possível, transava com elas, – afirmando que as condições precárias de higiene e clandestinidade o excitavam. Dominado pelos impulsos eróticos mais animalescos, sua satisfação sexual elevava-se à enésima potência através de uma certa mistura de medo, nojo, receio e desejo. Havia uma queixa em torno da frustração de não mais conseguir gozar plenamente com a esposa, alegando que o sexo cumpria apenas a função de satisfazer uma necessidade biológica de querer gozar para, em seguida, dormir. A impotência a qual  Freud se refere para explicar o fato do homem não conseguir desejar quem ama não é peniana, e sim psíquica. Isto não quer dizer, vale lembrar, que também não possa haver impotência sexual em alguns casos. De modo geral, há ereção no órgão, o que não há, é “ereção” nas fantasias eróticas.

A forte fixação na mãe como modelo primário de amor o impede de recorrer às fantasias mais imorais que enriquecem a relação sexual, tal qual aquelas que acontecem com a amante.  Existem vários graus de impotência psíquica. Há quem ao não conseguir depreciar a própria esposa para abrir as portas do desejo sexual precise buscar fora do casamento mulheres passíveis de depreciação e inferiorização, como no caso da moradora de rua. No entanto, o contrário também é verdadeiro. Vejamos este outro fragmento de caso clínico: uma paciente  teve que fazer uma cirurgia nas costas e recorrer ao marido para ajudá-la a tomar banho em virtude do fato de estar quase toda enfaixada e imobilizada. Conclusão: sua vulnerabilidade frente ao marido e o mal cheiro que exalava das faixas o excitavam como na época em que começaram a namorar. Bastou ela se recuperar para o desejo sexual se apagar e seguir os moldes do sexo “arroz com feijão”; ou, como socialmente convencionado, “sexo papai e mamãe”.

Exemplos como estes ilustram o quanto a prevalência do amor diminui a libido sexual como marca atemporal da interdição do incesto que obriga a criança a não desejar a quem ama. Se o homem reproduz com a mulher amada o mesmo protótipo a partir do qual aprendeu a amar, sendo a mãe, sempre sagrada e idealizada, o erotismo, por outro lado, perde sua potência. Depreciar, portanto, seja saindo com a mendiga, com a prostitua ou com a esposa enfaixada, apresenta-se como recurso para este tipo de homem se afastar do inimigo número um do desejo sexual: o amor. Freud traduziu muito bem esta problemática, ao afirmar que os homens governados por esse conflito, quando amam, não desejam, e quando desejam, não podem amar.

Como em todo e qualquer começo de relação, onde o amor ainda está em fase de construção, é comum que, do ponto de vista do homem, que padece desse conflito, a vida sexual seja mais rica e excitante. A combinação entre amor e desejo sexual é sempre muito delicada, principalmente quando a mulher decai da posição de mulher e assume o papel de mãe na relação, levando o homem a reproduzir o modelo primário que impossibilita a livre-expressão do erotismo.

Um outro exemplo que nos ajuda a entender melhor o conflito entre amor e desejo ocorre quando um casal briga. Por que se diz que entre briga de marido e mulher não se mete a colher? Porque acaba na cama! Isto é, uma boa briga, ao fazer emergir os conteúdos agressivos, removendo com isso os efeitos românticos do amor, traz à tona as correntes eróticas antes inibidas, levando o casal a transar como nos velhos e bons tempos. Há casais que precisam recorrer constantemente ao artificio da briga como uma alternativa possível para a manutenção da qualidade da relação sexual.  Para quem não consegue conferir um equilíbrio saudável entre as correntes afetivas e eróticas, a vida sexual fica empobrecida, sem sal. O conflito entre amor e desejo apresenta-se com frequência na minha clínica e, de modo geral, atesta a impossibilidade da pulsão sexual produzir satisfação completa, sempre aquém daquela vivida nos primórdios do bebê com a mãe.

Não somos máquinas. Somos bichos que amam.

Não somos máquinas. Somos bichos que amam.

Todo bicho um dia nasce e um dia morre. Alguns, entre uma coisa e outra, envelhecem. Mas todos, sem exceção, um dia vêm e um dia vão. Os ursos e os jacarés, a coruja, o pavão. Os pinguins e os caramujos. Cães e gatos, minhocas e besouros, vacas, focas, touros.

Tatus, mulas, zebus, cigarras, zebras e urubus. Lagartixas, passarinhos, macacos, golfinhos. Pombas elegantes, elefantes, girafas pescoçudas, preguiças muito mudas, cavalos velozes, lontras, albatrozes.

Leões, rinocerontes e zangões. Todo mundo um dia chega e um dia vai. Até a gente. Bichos perplexos e finitos, tão complexos e perdidos quanto os outros já nascidos.

É que a gente esquece, desconversa, passa ao largo e vai assim, vivendo. Mas um dia, ah, um dia isso tem fim. The End. Entende? E se há diferença que preste entre nós e os outros bichos é que, da chegada à despedida, esse negócio que a gente chama de vida, o que acontece é quase sempre reação, contrapartida. É só o que a gente merece.

Sujeito nasce, veste um sonho e sai. Olha pro alto e vai adiante, pisa cidades não inauguraras, jardins à espera sob o asfalto, respira flores não nascidas, ouve canções ainda não paridas, assoviadas por crianças ainda não compostas. Em suas costas, um amigo nunca feito lhe tem saudade, um lugar em que não esteve lhe sente a falta. E na pele da pessoa amada que ainda não esteve em seus braços, seu cheiro recende, persiste, provoca.

A vida é o que pode acontecer da chegada até a partida. Até lembrança de coisa não vivida, promessa esperando graça, prece não atendida.

Entre chegar e partir, a gente se encontra, se descobre, se completa, se liberta e vive para sempre. Repare, é verdade. Gente já vem ao mundo com vocação de eternidade.

A gente nasce, cresce. Mas quando se encontra é que a gente acontece. Quando o amor, em seu mau jeito de criança que ainda não sabe pedir “por favor”, chega com tudo, do nada, perfeito. Feito um rinoceronte trancado na lojinha de cristais, o amor derruba tudo. Sem mais.

Acontece assim. Todo bicho um dia nasce e um dia morre. Alguns, entre uma coisa e outra, se encontram, crescem, envelhecem. Melhoram. Até o dia em que vão. Todos vamos. Sem exceção. Melhor viver bem o tempo juntos. Me dá sua mão. O amor é o que nos salva da extinção.

Não esconda a vida atrás de uma cortina!

Não esconda a vida atrás de uma cortina!

Eu amo analogias e muito frequentemente me pego fazendo as mais estranhas comparações. Hoje, observando as cortinas da minha sala, constatei mais uma vez que comprei cortinas mais estreitas do que as janelas, onde um lado sempre fica descoberto. No começo achei ruim. Mas, como seria um transtorno fazer a troca, me conformei. Agora, pensando bem, vejo que comprei exatamente o tipo de cortina que me deixa confortável. Eu jamais cerraria tudo, de canto a canto, portanto, trabalho poupado. Para a minha vida, é preciso sempre deixar uma fresta à mostra;  a certeza de ver o outro lado e que o outro lado me veja também.. E, vale o detalhe: a cortina é quase totalmente transparente, portanto, pouquíssima diferença faz se toda aberta ou encolhida.

Por que afinal escolhi uma cortina assim? Será medo? Será desconfiança? Serei eu uma controladora? Uma exibicionista? Pode ser que nada disso. Pode ser que tudo isso.

E nós, como administramos as cortinas das janelas do nosso mundo? Permitimos muita luz? Bloqueamos tudo? Abrimos mão da função principal e as usamos somente uma bela decoração?

Cortinas finas e delicadas, que deixam o  ambiente leve e confortável e convidam a apreciar a luz que refletem, são os dias em que nos sentimos em paz com a vida, abertos para novas experiências, aconchegados e sossegados.

As persianas, que não raro se enrolam, prendem as cordinhas nas estruturas, e ao final ficam com um lado totalmente para cima e outro para baixo, podem representar aquela fase em que perdemos o foco,  nos engalfinhamos com problemas, tropeçamos nas próprias pernas.

Quando nos percebemos mais introspectivos, lembramos as  cortinas com forros, que rapidamente são puxados a qualquer sinal de que há luz demais onde não deveria.

Nos momentos mais complicados, tristes, depressivos, blackouts de parede a parede, com a  função de manter a sombra, a escuridão.

Se livres, cortinas de voal ao vento, escorregando pelos peitoris das janelas… se presos, pesados painéis estáticos.

De todas as formas, em algum momento da vida já passamos por todas as essas cortinas, muitas vezes nos enrolamos nelas, nos escondemos atrás delas, brincamos de abrir e fechar, e até as puxamos, para arrancá-las dos seus varões.

Todas as formas estão valendo, desde que sejam sempre cortinas, e nunca escudos, nunca lacres… Que as cortinas passem por nossa vida, mas, que a nossa vida não passe somente através das cortinas.  Melhor não tê-las então.

“Um artista da fome”, um inesquecível conto de Franz Kafka

“Um artista da fome”, um inesquecível conto de Franz Kafka

O interesse pelos jejuadores profissionais cai consideravelmente nos últimas décadas. Se antigamente a organização por conta própria deste tipo de espetáculos trazia o seu lucro, hoje em dia isso seria absolutamente impossível. Os tempos eram outros. Houve época em que a cidade inteira sentia viva curiosidade pelo artista da fome, aumentando a excitação à medida que o jejum se prolongava, querendo todos vê-lo ao menos uma vez por dia. Havia mesmo pessoas que compravam bilhetes para os últimos espetáculos, sentando-se desde manhã até a noite diante das grades da jaula. As exibições noturnas eram realçadas por archotes e, quando a temperatura era amena, levavam a jaula para o ar livre, sendo o jejuador mostrado às crianças como divertimento especial.

Os adultos, muitas vezes consideravam aquilo pilhéria, aceita por estar em moda, mas as crianças ficavam boquiabertas, de mãos dadas para se sentirem mais seguras, maravilhando-se ante o homem pálido, de costelas salientes, que vestia justas calças negras e não tinha sequer uma cadeira, sentando-se na palha espalhada no chão. Às vezes ele inclinava a cabeça cortesmente, ou respondia com um sorriso constrangido às perguntas que lhe eram feitas, estendendo de vez o braço através das grades, para que verificassem como estava magro. Recolhia-se depois à sua mudez, não prestando atenção a nada nem a ninguém, nem mesmo ao relógio para ele tão importante e que era a um único adorno ou utensílio da jaula.

Ficava a olhar o vazio, de pálpebras semi cerradas, de vez em quando alcançando um pequeno copo d’água e tomando um gole para umedecer os lábios. Além dos espectadores comuns, havia permanentemente vigias escolhidos pelo público, que se revezavam. Por estranho que pareça, em geral eram açougueiros, em grupos de três, que tinham por obrigação observar o jejuador dia e noite, para evitar que ingerisse disfarçadamente algum alimento. Mera formalidade, instituída para tranqüilizar o povo, pois os iniciados sabiam perfeitamente bem que, fossem quais fossem as circunstâncias, nem mesmo a força o artista se resolveria a quebrar o jejum, durante a prova. A honra da profissão o impedia. Nem todos os espectadores, naturalmente, eram capazes desta compreensão.

Freqüentemente havia grupos de vigilantes noturnos que relaxavam o cumprimento do dever, retirando-se para um canto, onde se deixavam empolgar por um jogo de cartas, com a evidente intenção de dar ao jejuador ensejo de tomar alimento, que eles supunham existir em algum esconderijo. Nada aborrecia mais o artista que semelhantes vigias. Faziam-no sentir-se infeliz e tornavam a abstinência insuportável. Às vezes conseguia dominar suficientemente a fraqueza para cantar, o mais que lhe era possível, tentando provar a injustiça de tais suposições. Isto de nada adiantava, pois os homens apenas admiravam a habilidade que lhe permitia comer enquanto cantava. Apreciava mais os guardas que se sentavam perto das grades e que, não se contentando com a parca iluminação do local, lançavam sobre ele o clarão direto das lanternas elétricas que o empresário pusera à sua disposição.

A luz dura não o incomodava. De qualquer maneira, não podia mesmo dormir, mas conseguia cochilar,sob qualquer luz, fosse qual fosse a hora, mesmo quando a sala se achava repleta de espectadores ruidosos. Ficava satisfeito por poder passar uma noite insone em companhia de tais vigias, estando sempre disposto a pilheriar com eles, contendo-lhe histórias de sua vida nômade, qualquer coisa que os conservasse acordados para demonstrar que não tinha comida na jaula e era capaz de uma abstinência que nenhum deles suportaria. Mas o momento mais feliz era quando chegava a manhã e vinham servir aos guardas, a suas expensas, um farto desjejum, ao qual eles se atiravam com feroz apetite de homens robustos, após cansativa noite de vigília.Naturalmente havia quem alegasse ser tal refeição uma desleal tentativa de suborno, mas isso era ir longe demais. Quando essas pessoas eram convidadas a participar de uma noite de guarda, apenas por amor a arte, sem a expectativa do café da manhã esquivavam-se, embora continuassem
teimosamente a manter suas dúvidas.

Tais suspeitas, no entanto, eram inevitáveis na profissão. Impossível, naturalmente, ficar uma pessoa e observá-lo continuamente, dia e noite, e ninguém poderia garantir, por experiência própria, que o jejum fora rigoroso e ininterrupto. Somente o artista sabia disso, sendo, portanto, o único realmente convicto. Mas, por outros motivos, nunca estava verdadeiramente satisfeito. Talvez não fosse apenas o jejum que o tivesse reduzido àquele estado de magreza que fazia com que muitas pessoas se afastassem, embora a contragosto, por não poderem suportar o espetáculo. A insatisfação para consigo mesmo talvez fosse a verdadeira causa de seu depauperamento. Só ele sabia o que não era dado a saber nem mesmo a outros iniciados: como era fácil jejuar. A coisa mais fácil do mundo. Não fazia segredo disto, mas o povo não lhe dava crédito. Quando muito, consideravam-no modesto, mas a maioria achava que ele estava querendo fazer publicidade, ou, então, que se tratava de um trapaceiro que descobrira meio de tornar fácil o jejum e cinicamente o confessava.

Ele vira-se obrigado a aceitar tal reação e, com o tempo, a ela se habituara, mas a íntima satisfação persistia e nunca, justiça seja feita, deixara a jaula por espontânea vontade, quando chegava o término da prova. O prazo máximo fora fixado em quarenta dias pelo empresário, que não lhe permitia ir além, nem mesmo nas grandes cidades. Havia boas razões para isso. A experiência demonstrara que, durante 40 dias, a curiosidade do público podia ser mantida pela pressão de anúncios, mas depois disso o povo começa a se desinteressar, diminuindo o numero de simpatizantes. Isto variava, naturalmente, de uma cidade a outra, entre este ou aquele país, mas em geral 40 dias era o limite.

Assim, no quadragésimo dia abria-se a porta da jaula engrinaldada de flores. Entusiásticos espectadores enchiam o local, entravam na jaula, para verificar o resultado da prova, que era anunciado por meio de alto-falante. Finalmente apareciam duas moças, felizes por terem sido escolhidas para tal honraria. Iam ajudar o artista a descer os poucos degraus que levavam à mesa onde se achava a refeição cuidadosamente preparada para um homem em suas condições físicas. Neste momento, o jejuador sempre se mostrava obstinado. Verdade que entregava os braços descarnados às duas moças que sobre ele se inclinavam para auxiliá-lo, mas não queria saber de levantar. Por que interromper o jejum especialmente neste instante, após 40 dias? Agüentara por muito tempo: por que desistir agora, quando se achava em plena forma, ou, para ser exato, ainda não estava em sua melhor forma? Por que negar-lhe a fama que teria, se continuasse, a glória de ser, não apenas o recordista da fama de todos os tempos (o que talvez já fosse) mas a de sobrepujar seu próprio feito, com uma demonstração que ninguém julgaria possível? Ele sabia não haver limite para sua resistência. Já que público parecia admirá-lo tanto, por que não se mostrava mais paciente? Se ele podia suportar uma abstinência prolongada, por que não aguentavam eles o espetáculo?

Além do mais, estava cansado, achava-se sentado confortavelmente sobre a palha, e agora lhe viam exigir que se levantasse para comer! Só de pensar nisto sentia náusea e somente a presença das moças o impedia de manifestá-la e, assim mesmo, com esforço. Fitou-as, aparentemente tão amigas, mas na realidade cruéis; e sacudiu a cabeça que lhe pesava no pescoço enfraquecido. Aconteceu então, o que sempre acontecia. O empresário adiantou-se sem dizer palavra – a banda impossibilitava qualquer espécie de discurso – ergueu os braços acima do artista, como que a convidar o céu a olhar para aquela pobre criatura ali na palha, mártir que em verdade era, embora noutro sentido. Com exageradas precauções, agarrou-lhe a cintura emaciada, para que pudessem apreciar devidamente a sua frágil condição, e entregou-o as moças, muito pálidas, dando-lhes disfarçadamente uma sacudidela que fez vacilarem suas pernas trôpegas. O artista submeteu-se agora totalmente, a cabeça tombada sobre o peito, como se ali tivesse ido parar por acaso. O corpo foi puxado para fora, os joelhos tentavam firmar-se um no outro, no instinto de conservação,as pernas se arrastavam como se ele não pisasse terreno firme e, apesar disso, o procurasse. Leve como pluma, tentou apoiar-se a uma das moças.

Ofegante, ela olhou à volta em busca de socorro, parecendo achar que o posto de honra não correspondia à expectativa, e espichou o pescoço o mais que pôde para livrá-lo do contato desagradável. Vendo que era impossível e que sua mais feliz companheira não lhe vinha em auxílio, limitando-se a segurar na mão trêmula o feixe de ossos que era a mão do artista, rompe em pranto, com grande gozo dos espectadores. Teve que ser substituída por um funcionário, que ali se achava de prontidão. Chegou a hora da comida e o empresário conseguiu enfiar alguma coisa por entre os lábios de seu protegido, que parecia a ponto de desmaiar. Falava ao mesmo tempo, alegremente, para que ninguém notasse o estado do jejuador.

Depois, foi feito ao público um brinde, aparentemente instigado por um murmúrio do artista ao ouvido do empresário. A banda confirmou-o com um vigoroso rufar de tambores e o povo foi-se dissolvendo, parecendo todos satisfeitos com o que tinham visto, com exceção do homem que se exibira, que nunca se sentia satisfeito.

Assim viveu muitos anos, com pequenos intervalos de recuperação, em plena glória, admirado pelo mundo, mas apesar disto infeliz, tanto mais que ninguém parecia levar a sério seu desgosto. Que palavras de conforto precisaria ele ouvir? Que mais poderia desejar? Quando uma pessoa de boa vontade, dele se apiedando, tentava consolá-lo, dizendo que o jejum devia ser a causa de sua tristeza, acontecia ver-se ele tomado de cólera, principalmente quando a prova já ia adiantada. Com alarme geral, punha-sea sacudir as grades da jaula, tal animal selvagem. Mas o empresário tinha meios de pôr cobro a essas explosões, com as quais o artista gostava de se exibir. Desculpava-se publicamente por tal procedimento.

Devia ser relevado, dizia ele, por causa da irritabilidade provocada pela abstinência, que pessoas bem alimentadas não estavam em condições de compreender.

Depois, numa transição natural, mencionava a também incompreensível jactância do homem que se dizia capaz de jejuar por prazo maior ainda, elogiava-lhe a ambição, a boa vontade, o espírito de sacrifício implícitos em semelhante declaração. Dava em seguida o contragolpe, trazendo os fotógrafos que iriam vender ao público os retratos onde se veria o jejuador, no quadragésimo dia, caído na palha, quase morto de exaustão. Essa distorção da verdade, embora conhecida do artista, tirava-lhe a coragem, deixando-o mais abatido ainda. Aquilo que era apenas conseqüência do precoce término do jejum era apresentado como causa! Impossível lutar contra a geral incompreensão. Inúmeras vezes, com o máximo da boa vontade, ficava perto das grades, ouvindo palavras do empresário, mas, assim que chegavam os fotógrafos, caía de novo na palha, com um gemido, e o público, tranqüilizado, podia de novo aproximar-se para contemplá-lo. Anos mais tarde, quando testemunhas de tais cenas as relembravam,não podiam às vezes compreendê-las. É que, neste meio-tempo, o interesse por essas exibições esmorecera, tendo acontecido quase que da noite para dia.

Talvez houvesse razões profundas para o fato, mas quem iria se preocupar em analisá-las? De qualquer maneira, o mimado artista da fomeviu-se um belo dia abandonado pelas pessoas ávidas de divertimento, que iam agora em busca de espetáculos mais atraentes. Num derradeiro esforço, o empresário correu com ele metade da Europa, a ver se a antiga simpatia poderia ser reavivada. Tudo em vão. Em toda a parte, como que por secreto acordo, havia positiva repulsa pelos jejuadores profissionais. Naturalmente isto não poderia ter surgido assim tão de repente. É claro que tal fenômeno não aconteceu de um momento para o outro e que agora, retrospectivamente, as pessoas se lembravam de alguns acontecimentos aos quais na altura não fora dada a devida atenção, indícios que não foram devidamente suprimidos, mas de qualquer das formas já era demasiado tarde para os tentar combater. Que poderia então fazer o artista da fome?
Fora aplaudido por milhares de pessoas e não queria agora conformar-se com exibições em barracas de feira, nas aldeias. Quanto a adotar outra profissão, não somente estava muito velho, como era fanático pela sua.

Assim, despediu-se do empresário, companheiro de uma carreira inigualável, e firmou contrato com um grande circo. Para não ferir a própria susceptibilidade, evitou ler-lhe as cláusulas. Um circo importante, que está continuamente contratando e substituindo homens, animais e aparelhamento, sempre pode utilizar um artista, até mesmo um jejuador, contanto que não exija muito. No caso presente, não estavam os diretores interessados somente no artista, como em sua fama, durante longos anos adquirida.

Considerando-se a peculiaridade de seu ofício, que não se prejudicara com a idade, não se podia dizer que ali estivesse um artista que, tendo ultrapassado a maturidade e não se achando mais em plena forma, viera buscar refúgio num circo. Pelo contrário, o jejuador afirmava ser capaz de suportar a abstinência tanto quanto antes e disso não se poderia duvidar. Chegou mesmo a declarar que se lhe dessem carta branca, o que lhe foi imediatamente prometido, poderia assombrar o mundo, estabelecendo um recorde jamais alcançado. Tal declaração provocou risos nos outros profissionais, pois não estava sendo levada em conta a frieza do público, fato que o jejuador, em seu zelo, parecera ter convenientemente esquecido.
No íntimo, ele não deixava de perceber a verdadeira situação.

Conformou-se em ver sua gaiola colocada, não no meio da arena, como principal atração, e sim fora, perto das jaulas dos animais -–local, afinal de contas – bastante acessível. Cartazes grandes e vistosos emolduravam a jaula, anunciando o tipo de espetáculo. Quando o público vinha, nos intervalos, ver as feras, tinha de passar pelo jejuador e algumas pessoas paravam, por momentos. Talvez se demorassem por mais tempo, não fossem os empurrões dos que vinham atrás, pela estreita passagem, e que não compreendiam o motivo pelo qual eram detidos. Isto impedia que os primeiros o examinassem com calma. Foi esta a razão que fez com que o artista que aguardara tais visitas como o maior acontecimento de sua vida, começasse a temê-las. A princípio, mal podia esperar pelos intervalos.

Era excitante ver a multidão escoar para o seu lado, até que (tarde demais!) apesar do obstinado e quase consciente desejo de iludir-se, teve que se render à evidência. Convenceu-se de que aquelas pessoas, a julgar pela sua atitude, procuravam apenas visitar os animais. A sensação mais agradável sempre fora vê-los de longe.

Quando se aproximavam, ficava aturdido com os gritos e insultos dos dois grupos dissidentes, sempre renovados, constituídos, um, pelos que desejavam parar para observá-lo (não por real interesse e sim por teimosia) e o segundo, por aqueles que ansiavam por ver as feras. Logo começou a detestar mais os primeiros. Depois que passava o maior número, vinham os retardatários. Embora pudessem contemplá-lo à vontade, apressavam-se, sem nem mesmo olhá-lo, tal o medo de chegarem atrasados às jaulas dos animais. Raramente acontecia ter ele um golpe de sorte, quando um pai de família parava com os filhos, apontando-o e explicando o fenômeno, contando histórias de anos passados, quando ele próprio assistira a espetáculos mais emocionantes.

As crianças, sem nada entender, pois nem na escola e nem em casa haviam sido preparadas para isto (que lhes importava o jejum?) indicavam, pelo brilho dos olhos, que dias mais auspiciosos estavam para vir. Talvez as coisas corressem melhor, pensava o artista, se não o tivessem colocado tão perto dos animais. Isto tornava ao povo fácil a escolha, mesmo não se levando em consideração que ele sofria com o cheiro desagradável, a inquietação das feras à noite, a passagem dos pedaços de carne crua, o ruído na hora de serem alimentados, coisas que o deprimiam profundamente. Mas não ousava queixar-se. Afinal de contas, devia aos animais a afluência de tantas pessoas e sempre podia haver alguém que o notasse e lembrasse de sugerir lugar mais isolado para a gaiola, caso ele chamasse atenção para sua existência e para o fato de, na realidade, nada mais ser do que um obstáculo à passagem do público.

Pequeno obstáculo, não havia dúvida, e que cada vez menor se tornava. As pessoas familiarizavam-se com a estranha idéia de que delas se esperava, nestes tempos, que se interessassem pelo artista da fome, e esta familiaridade era justamente o veredicto contra ele. Poderia jejuar à vontade e era o que fazia, mas nada agora o salvaria. O povo passava, indiferente. Fosse alguém explicar a arte do jejum! Quem não a apreciasse espontaneamente, jamais chegaria a compreendê-la. Os belos cartazes foram tornando-se sujos e ilegíveis e acabaram sendo em parte arrancados. A pequena tabuleta indicando o número de dias, havia muito marcava a mesma data, pois nem mesmo este pequeno esforço parecia útil aos funcionários. Assim sendo, o artista continuava jejuando e jejuando, como antes fora seu sonho. Isto não o incomodava, como ele soubera, que não o incomodaria. Mas ninguém mais contava os dias, ninguém.; nem mesmo o artista sabia que recorde estaria ele batendo e seu coração se confrangia.

Quando, de vez em quando, um passante se detinha e zombava do velho deitado ali no chão, falando em fraude, tratava-se da mais estúpida mentira jamais inventada pela indiferença e malícia humanas. Não era o artista que estava trapaceando. Ele trabalhava honestamente; o mundo, sim, o lograva, privando-o da merecida recompensa.

Muitos dias se passaram e também aquilo chegou ao fim. Um fiscal apareceu ali e perguntou aos funcionários por que se desperdiçava uma jaula que continha apenas um monte de palha suja.Ninguém soube responder até que um deles, notando o cartaz com o número de dias,lembrou do artista da fome. Enfiaram um pau na palha e o descobriram.

– Ainda está jejuando? – perguntou o inspetor. – Quando, em nome dos céus, pretende parar?

– Perdoem-me todos – murmurou o artista. Somente o fiscal, que tinha o ouvido perto das grades, conseguiu entendê-lo.

– Claro que o perdoamos – respondeu, batendo na testa, como a indicar aos empregados o estado mental do jejuador.

– Sempre desejei que admirassem minha resistência.

– Claro que a admiramos – disse o fiscal, amavelmente.

– Mas não deviam admirar.

– Está certo, não admiramos, então, mas por que diz isto?

– Porque tenho que jejuar, não posso evitá-lo.

– Que tipo você é! – exclamou o inspetor – Por que não pode evitá-lo?

– Porque não consegui encontrar comida a meu gosto – respondeu o artista, erguendo um pouco a cabeça e falando junto ao ouvido do outro, para que não se perdesse uma sílaba. – Se a tivesse encontrado, creia que não teria feito nada disto e me empanturraria como o senhor ou qualquer outro.

Foram estas suas ultimas palavras, mas não olhos apagados restava a firme, embora não mais orgulhosa, certeza de que continuaria a jejuar.

– Pois bem, limpem isto aqui! – ordenou o fiscal.

Enterraram o artista da fome, com palha e tudo. Em seu lugar, puseram uma jovem pantera. Até mesmo as pessoas mais insensíveis acharam agradável ver o animal selvagem pulando na jaula que durante muito tempo tão lúgubre parecera. A pantera ia muito bem. A comida que lhe convinha era trazida pontualmente pelos empregados e ela nem mesmo dava impressão de sentir a ausência de liberdade. Aquele nobre corpo, provido ao máximo de todo o necessário, parecia trazer em si a própria liberdade. A alegria de viver fluía de suas faces com tal ardor, que aos espectadores não era difícil suportar o choque. Mas enchiam-se de coragem, comprimindo-se à volta da jaula, e acabavam não querendo mais se afastar.

Franz Kafka (Praga, 3 de julho de 1883 — Klosterneuburg, 3 de junho de 1924) foi um escritor tcheco autor de romances e contos, considerado pelos críticos como um dos escritores mais influentes do século XX.

Bipolar: duas almas habitando o mesmo corpo

Bipolar: duas almas habitando o mesmo corpo

Tropeçar faz parte do processo de avançar nas etapas da vida. Desde os primeiros ensaios para caminhar sobre as duas pernas, aprendemos que, sem coragem para encarar a dureza do chão, não iremos muito longe. Tropeçamos, caímos, choramos e voltamos a tentar. No momento em que decidimos dar o próximo passo, o medo da queda já foi esquecido. A dor é tempero do crescimento. O entusiasmo também. O excesso dos dois é o caos, o sofrimento e a solidão. Os destemperados aprenderão, cedo ou tarde, que seu transtorno invisível é seu inferno particular e de mais ninguém.

O humor é como uma paleta de cores a transformar o pano de fundo de nossa vida. Acontecimentos felizes produzem sensações agradáveis: vontade de compartilhar a vida, leveza, presença de pensamentos positivos e pró-ativos; é como se o mundo ganhasse novas cores, mais vivas e vibrantes. Episódios tristes nos remetem ao oposto disso tudo: queremos nos encolher, buscamos apenas a companhia daqueles que nos são muito próximos, o coração fica pesado, os pensamentos evoluem em câmera lenta, perdemos a fé; é como se todas as cores perdessem o viço e a vivacidade. Existe uma lógica em tudo isso. Todos nós estamos sujeitos às oscilações da vida; e reagiremos melhor ou pior a depender de fatores internos e externos, que utilizaremos como recursos para nos reequilibrar.

Para quem sofre de Transtorno Bipolar, entretanto, essa lógica não passa de ficção. Esse Transtorno Afetivo é uma doença mental e está entre as dez que mais afastam os brasileiros do trabalho e do convívio social, tamanho impacto que causam em suas rotinas. Até que seja diagnosticado corretamente o paciente, em geral, já terá passado por inúmeros profissionais de saúde; já sentiu dores por todo o corpo; já sofreu com intermináveis noites insones; perdeu empregos, amizades e arruinou relacionamentos amorosos; pensou em morrer; tentou morrer. O Transtorno Bipolar ocupa o terceiro lugar na lista dos transtornos psiquiátricos, depois da depressão e da esquizofrenia, conforme levantamento da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em parceria com o Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde (OMS). E, mesmo sendo tão frequente, é extremamente desconhecido e difícil de detectar.

A Bipolaridade pode apresentar-se na forma mais clássica, na qual as oscilações de humor ocorrem em momentos alternados. A pessoa passa por períodos de depressão, durante os quais têm pouca ou nenhuma disposição para atender aos compromissos; tudo fica excessivamente cansativo e custoso; a concentração é prejudicada; a memória falha; o desejo de viver fica perdido em algum lugar. Aos poucos, a fase depressiva vai esmaecendo, perdendo a força e deixando como resultado uma pessoa extremamente frágil do ponto de vista emocional e vulnerável às situações externas. Pode haver, nesse caso, um período mais estável, ou não. Na sequência, o Bipolar é atingido por uma onda de euforia; o pensamento fica acelerado; a pessoa é tomada por um sentimento de poder e pela necessidade de fazer muitas coisas ao mesmo tempo; diminuição da necessidade de sono, ideias de grandiosidade e comportamentos desinibidos e pouco críticos, que podem resultar em gastos excessivos, por exemplo. Soma-se a essa confusão estabelecida, o possível surgimento de agressividade, que tanto pode ser consigo mesmo, quanto com as pessoas mais próximas. Muito do que se faz nessa fase, o Bipolar nem sequer sonharia em fazer no estado normal de humor.

Além da forma clássica, a Bipolaridade também pode apresentar-se na forma de episódios mistos de depressão e euforia. O bipolar, neste caso, pode apresentar a agitação motora e mental de uma fase de humor elevado e, ao mesmo, tempo expressar sentimentos de falta de esperança, de culpa ou de baixa auto-estima, como numa fase de humor deprimido. Ele também pode estar eufórico agora e, literalmente cinco minutos depois, estar deprimido e chorando.

O desencadeamento de uma crise não tem relação com motivações ou situações específicas. O detonador pode estar atrelado ao stress, tanto positivo quanto negativo: ser promovido ou demitido; apaixonar-se ou romper um relacionamento, podem provocar o mesmo impacto devastador. Essa imprevisibilidade vai desestruturando de tal forma a vida, que muitas vezes a pessoa vê-se em situações de perda terríveis; precisando recomeçar do zero, muitas e muitas vezes.

Uma das principais evidências de que a doença está relacionada às reações químicas do cérebro é que os remédios, quando acertadas a droga e a dosagem, dão resultado. Entretanto, o mecanismo de funcionamento da doença é um processo extremamente complexo. Ainda não há certezas sobre neurotransmissores ou reações químicas que estejam envolvidas no desencadeamento da doença. O que se sabe é que alterações da serotonina e da noradrenalina cerebrais estão relacionadas à depressão e a dopamina é o neurotransmissor mais relacionado aos episódios de mania. E que, além do tratamento medicamentoso, o Bipolar precisa de acompanhamento Psicológico e apoio da família.

O diagnóstico correto é a única “luz no fim do túnel” para quem sofre de Transtorno Bipolar. É preciso que haja o envolvimento comprometido dos familiares e amigos mais próximos para que o paciente encontre maneiras de administrar a doença. Uma vez diagnosticado e tratado, ele terá de volta a capacidade de viver uma vida equilibrada em todos os aspectos. Em geral, a procura por ajuda ocorre nos períodos de depressão, nos quais o sofrimento é mais evidente. Nas fases de euforia, raramente alguém procura por socorro, já que aquele estado de energia intensa traz uma felicidade ilusória. No entanto, por mais agradável que pareça, é uma doença grave, por conta dos riscos a que a pessoa se expõe, como a impulsividade que leva a comportamento sexual desinibido; envolvimento com drogas; comportamentos compulsivos, entre outros atos impensados.

Embora a doença apareça mais frequentemente no fim da adolescência ou início da vida adulta, crianças e pré-adolescentes também podem sofrer com esse transtorno. Nos EUA, o número de diagnósticos de bipolaridade entre crianças e adolescentes cresceu 40 vezes na última década. A hipótese para esse aumento é a maior conscientização de médicos sobre o transtorno ou ainda um possível excesso de diagnóstico, em que uma criança mal-humorada pode ser tratada como doente.

Além de ser “invisível”, a Bipolaridade é uma doença incurável, assim como o Diabetes ou a Hipertensão; só que ao contrário dessas enfermidades físicas, a Bipolaridade vem carregada de preconceito, acarretando ao portador dessa síndrome uma situação de grave solidão. Ser Bipolar é um desafio diário, tanto para a compreensão pessoal da doença, quanto para a dificuldade de compartilhar o que sente. A grande maioria guarda para si o “segredo de ser diferente”. A grande maioria tropeça, cai e levanta sozinho. A grande maioria precisa apenas do que todos nós precisamos: sermos aceitos com nossas belezas e horrores; termos o direito à tentativa de fazer melhor no próximo dia; termos acolhidas as nossas dores e compartilhadas nossas alegrias. É muito? É pouco? Não sei… Apenas diria que é justo, direito e necessário.

Ana Macarini

O emprego da sua vida ainda nem existe

O emprego da sua vida ainda nem existe

Texto revisado por Flávia Figueirêdo

Os tempos mudaram, minha gente. E nós somos a última geração que viveu em um mundo sem internet e logo depois com internet. A gente viu essa ruptura, a gente viu as coisas surgindo, a gente viu a comunicação mudando. Quem tem cabeça pra lidar com essa confusão toda? Ninguém. Por isso, a gente parece perdido. Aí vem a crise, a gente não arranja emprego, tem um monte de gente fazendo nada da vida e ganhando dinheiro por ser gatinho no instagram, tem um monte de gente querendo ser isso, porque quer viver a vida viajando e fazendo nada. Mas, não dá pra fazer tudo. Ou você rala pra cacete pra poder fazer seu ano sabático e viajar pra onde quiser ou você é rico o suficiente e não precisa ligar pra nada disso. Não dá pra fazer os dois. Até essas blogueiras que vocês acham que viajam toda hora, ralam pra caramba. Um dia desses fui a um jantar de imprensa e conheci um bando de blogueiro desesperado, porque tinha que arrumar a mala pra viajar no outro dia cedinho e tinha acabado de chegar de outra viagem no mesmo dia. Viajar é bom, mas toda hora cansa, principalmente, por que viajar como blogueiro ainda é trabalho.

Eu já escrevi um texto sobre a geração Y e eu conto por que estamos tão frustrados. Pensa só, estamos no meio de uma revolução da era digital, a comunicação mudou todinha, novas profissões surgiram e o mundo está em crise e somos nós (geração entre 20 e 30 anos) que está iniciando a carreira, ralando pra caramba pra conseguir o que quer. Não tem como não entrar em parafuso.

Hoje, nossa maior crise é escolher um caminho, porque temos muitas possibilidades. É muita opção pra uma vida só. Eu queria ser atriz, escritora, blogueira, viajante, astronauta, degustadora de cerveja e ainda ficar domingo à noite assistindo tv em casa. E eu podia ser tudo isso, mas, não de uma vez. Só que o problema é que cada escolha é uma renúncia, ou melhor, a cada escolha, a gente renuncia todas as outras possibilidades e isso é muito frustrante. Eu me vejo constantemente cercada de portas que eu poderia abrir, mas ao abrir uma, não tem como voltar atrás e eu nunca vou saber o que tinha atrás das outras portas que eu deixei de escolher. Mas, eu tento me convencer do seguinte: eu não acredito em destino, porque acho que a gente cria nosso destino a cada escolha que faz. Então, se é a gente que cria a própria realidade, não existe nada atrás daquelas outras portas que eu não escolhi. O que existe ali atrás é a gente que inventa, a gente que traça. Daí fica muito mais fácil ir com fé e abrir a porta que a gente quer.

Mas, voltando à crise (não a econômica, mas a pessoal). Internet, revolução digital, novas comunicações, possibilidades e uma coisa fantástica que a gente não ta vendo. Às vezes, a profissão da nossa vida ainda nem existe! Talvez seja a nossa chance de criar essa profissão. Por exemplo, analista de mídias sociais, blogueiro, analista de SEO, programador de app… nada disso existia 15 anos atrás. E quem sabe daqui a 10 anos, o mercado esteja cheio de profissões novas. A internet possibilita lançar alguma coisa nova e alcançar muito mais gente em pouco tempo. Não preciso de um mega investidor pra fazer meu negócio pela internet. Pelo menos, no começo. E pensa só quanta coisa ainda vai mudar. A tecnologia cresce exponencialmente, ou seja, se a gente já viu essa transformação toda em apenas 15 anos, isso quer dizer que daqui a 15 anos vamos ter tido 30 vezes mais mudanças em um mesmo período de tempo.

Eu demorei muito pra entender isso. Sempre achei que eu era um ET que chegou aqui na Terra e ficou perdido, porque não queria fazer nada que existia. Até que, aos poucos, eu fui percebendo que eu podia juntar as coisas que eu gostava fazer. E pensar que na escola eu tava em parafuso, porque não sabia se escolhia jornalismo ou direito. Ah, como a gente é bobo! Então, a moral da história é que tudo bem se sentir perdido, porque ninguém entendeu ainda o que está acontecendo. Estamos no meio da mudança! E a mudança não é um evento, é um processo. E a parte boa é que agora nós temos a chance de mudar e criar algo novo. Saca só quanta coisa nova tá surgindo! Até a relação de consumo mudou. Hoje tá todo mundo em grupo de trocas em vez de sair comprando tudo novinho. Tá tudo se transformando, e nós estamos no olho do furacão. Cabe a nós aproveitar o momento pra chorar e se lamentar ou perceber que não vamos entender nada agora e talvez não dê tempo pra entender em vida. Você acha que o pessoal do século 18 entendeu a revolução industrial? Nada! A gente só conseguiu decifrar essa mudança muito tempo depois. Precisamos tirar proveito disso tudo sem ficar nessa ansiedade louca. É hora de chacoalhar com as nossas certezas e investir no novo.

Esse nosso estranho medo de ser feliz

Esse nosso estranho medo de ser feliz

Todos flertamos com a felicidade, ela é o ápice dos nossos objetivos mais vibrantes.  Defini-la é algo muito complexo, ela pode ter definições distintas para cada um de nós, contudo o estado de ânimo que nos causa, esse sim é singular. O êxtase e o torpor trazido pela felicidade é algo indescritível.

Há algum tempo li o livro “Julie & Julia” da escritora Julie Powell. A leitura foi muito doce e agradável e por se tratar de um romance autobiográfico, muito encorajadora.

Uma funcionária pública, que um dia aspirou ser atriz, tinha um trabalho desmotivante, morava com o marido, um homem dos sonhos, em um apartamento ruim, com uma cozinha minúscula e dois gatos e um dia resolveu criar um projeto de vida e ir até o fim, ou seja, alcançar aquele cume no qual a felicidade luminosa nos aguarda. Ela foi encorajada pelo marido a criar esse projeto, que seria preparar em um ano 524 receitas de um livro homônimo lançado por Julia Child na década de 60, e após cada preparo escreveria suas impressões em um blog pessoal.

Até ai tudo bem, palmas para ela e para o marido que a intimou a concretizar uma meta. O projeto foi um sucesso, o blog deu vida a um livro que por sua vez virou um filme estrelado por Amy Adams e Meryl Streep e no fim dessa história em largas letras a vida desenhou para Julie um “Felizes Para Sempre”.

Não, não foi bem assim. Aconteceu à jovem escritora o que acontece com praticamente todo ser humano adulto, em maior ou menor grau: a autossabotagem ou melhor dizendo, o autoboicote da felicidade.

Vocês já ouviram falar que muitas vezes podemos ser nosso maior inimigo? Depois de ler o segundo livro de Julie, o “Destrinchando”, minha mente pairou afoita sobre a verdade dessa afirmação e sobre seus fundamentos.

De acordo com o psicoterapeuta Flávio Gikovate todos somos tomados por um medo iminente da catástrofe quando alcançamos a felicidade. Ficamos felizes e logo depois aflitos, com pavor de perder o tão almejado estado de graça. Dessa forma acabamos tomando medidas inconscientes para tratar de, se não extinguir a felicidade, ao menos minimizá-la, tornando-a aceitável. Em outras palavras, nos autoaniquilamos.

Esse medo repentino, e muitas vezes avassalador, após uma sensação de realização plena, pode ter suas raízes em algo que vivenciamos ao nascer: a ruptura da harmonia perfeita na hora do parto. Algo descrito como trauma do nascimento por Otto Rank.

Resumidamente esse mecanismo segue sempre um ciclo padrão: a felicidade atingida ativa memórias que nos alertam sobre a ruptura iminente desse estado, dessa forma, movidos por um medo exacerbado, buscamos impedir que essa ruptura aconteça.

Vamos dar um exemplo. Não é incomum que, logo após comprar um carro novo, algo que hipoteticamente pode nos deixar felizes, acabemos ralando-o ligeiramente na primeira pilastra que nos salta aos olhos. E, estranhamente, depois de livrar o carro de sua aura etérea e perfeita, e de nos culparmos um pouco por isso, sentiremos um certo alívio. Isso acontece porque um carro ligeiramente ralado, não mais perfeito, deixa de simbolizar a felicidade plena e o estigma que ela carrega e com isso aquele medo iminente de que algo dará errado simplesmente desaparece.

Voltando à nossa Julie, vamos dizer que sua vida se tornou repleta de felicidade após a concretização de seu projeto “Julie & Julia”. Ela teve a possibilidade de deixar o emprego que não lhe satisfazia. Ganhou muito dinheiro com a publicação do livro, assim como pela venda dos direitos para a realização do filme, o que permitiu que ela saísse de seu antigo apartamento. Seu ótimo marido esteve ao seu lado e assim continuou. No entanto Julie jogou a felicidade para o alto em um tempo relativamente curto após experimentá-la e buscou inconsciente e afoita sua autodegradação física e emocional, a ponto de seus familiares se negarem a ler seu segundo romance autobiográfico. E eu não os culpo!

Gikovate afirma que o medo da felicidade não tem cura (que lástima!) e que algumas pessoas até mesmo usam artifícios supersticiosos como batidinhas na madeira ou amuletos para prolongar hipoteticamente a duração desse estado de bem estar e impedir que alguma desgraça aconteça. Outros ainda fazem uso de artifícios sociais que ajudam a abraçar a felicidade sem pudores. Uma rodada de álcool com amigos, por exemplo, encoraja a aceitação do que é extraordinariamente bom e entorpece o medo. Contudo, não é politicamente correto incentivar o misticismo ou o uso indiscriminado do álcool como elixir mágico.

Encarar a realidade de frente pode ser uma saída para entender e controlar essa nossa ansiedade detonadora. Ser sincero consigo mesmo é um ponto de partida essencial. Admitir que se é de carne e osso e que, após atingir um estado de felicidade plena, um medo relativo de ser cuspido dele certamente virá, é imprescindível. Apenas cientes desse medo podemos então minimizá-lo.

Devemos traçar nossos objetivos e nos manter firmes em lutar por eles, sem protelá-los, aceitando com plenitude a felicidade que decorrer de nossas conquistas. É essencial que acreditemos ser merecedores dessa felicidade e não devemos abrir mão dela pelo medo que nos virá inevitavelmente afligir. Devemos ser persistentes em controlar nossos impulsos de colocar tudo a perder.

Se nos interessarmos por alguém, não devemos criar obstáculos que nos impeçam de nos aproximarmos dessa pessoa. Se juntarmos dinheiro para fazer uma viagem dos sonhos ao redor do mundo, nosso avião não cairá por isso. Se ganharmos uma promoção, a empresa que nos emprega não aderirá à demissão em massa. Esses medos sempre nos assombrarão, contudo não podem ditar nossos passos.

Devemos caminhar em direção à felicidade e assumir que, uma vez felizes, nos rasgaremos sim em medo, contudo, conscientes desse pavor estaremos preparados para mergulhar de corpo e alma nas profundas águas da felicidade. E nelas poderemos assim restar, até que nossos dedos se dobrem em rugas.

Acompanhe a autora no Facebook pela sua comunidade Vanelli Doratioto – Alcova Moderna.

Não se preocupe comigo, eu me curo

Não se preocupe comigo, eu me curo

Não se preocupe comigo e, sim, com você, que repete os mesmos comportamentos de menino, dando e pedindo as mesmas desculpas, chegando e saindo sem qualquer responsabilidade, levando muitas vezes o que não te pertence e sem permissão.

Querido, eu me curo. Da mesma forma que eu não sou para você, você também não é novidade para mim. Você não é o meu primeiro príncipe, meu primeiro engano, meu primeiro erro. Portanto, querido, nem toda essa importância você pode reclamar para si.

Querido, o que foi bom, foi ótimo. Fiquemos unicamente com isso. Não lamente por mim, não troque a sua culpa pela dó, não faça essa barganha desonesta. Saia desse contexto o mais limpo possível, sustentando suas certezas, assumindo suas escolhas e, principalmente, leve com você a sua parcela de responsabilidade. Não a deixe de herança para mim, pois, já tenho a minha própria e a usarei como argumento para seguir em frente.

E, querido, não seja tolo, não me olhe como se eu fosse frágil, delicada e vulnerável. Sou mais forte do que pensa e, te aconselho a não ficar com a imagem de biquinhos e suspiros como lembrança, pois, definitivamente, não é meu retrato fiel. Entenda que as ferramentas de um diálogo não são a parte em si. Somos muito mais, tanto eu quanto você. Se quiser, leve com você a inquietação de não ter visto o melhor nem o pior de mim. Eu abrirei mão dessa parte, aceitando que já vi o que era preciso e, daqui para frente, nenhuma explicação será mais útil ou necessária.

Por fim, querido, peço que não me pendure como coitadinha na sua galeria de lembranças, já que, por mim mesma, também não te citarei com despeito.
E, não me peça mais desculpas por ter escolhido outra vida. Desculpe-se somente por sua falta de coragem para me contar, dividir suas dúvidas, olhos no olhos.

Quanto a mim, não tenha dúvidas, eu me curo!

Texto revisado por Flávia Figueirêdo

Todo nascimento custa uma -ou mais- morte(s)

Todo nascimento custa uma -ou mais- morte(s)

Por Diego Caroli Orcajo

Provavelmente teremos alguns problemas com o título, porém não havia forma melhor de expressar a proposta do texto. Vamos lá!

Uma jovem acabou de descobrir que está grávida. Assim que o marido chega em casa ela lhe faz uma surpresa, e ao final, diz que estão esperando uma criança.

Ok, até aí tudo bem. Certo? Sim, correto! Porém peço-lhes que foquem atenção a um fato. Ao saber que uma criança nascerá, o casal de imediato se prontifica a idealizar diversas características desse novo ser – que ainda está longe de dar as caras.

Existem as idealizações orgânicas:

– “Será um menino”; “Será uma garota”; “Terá os olhos claros como os do pai”; “Os cabelos serão escuros e encaracolados como os da mãe”; “Será alto como o avô”; “Terá uma saúde perfeita”.

E também as aspirações intelectuais e comportamentais:

– “Será um grande médico”; “De repente jogador de futebol”; “Terá uma inteligência invejável”; “Ficará famoso(a)”.

Obviamente citei apenas alguns exemplos para que a compreensão fosse facilitada. Vamos adiante!

Alguns meses se passaram e adivinhem, a criança nasceu. Agora o nosso título começará a fazer sentido.

A criança que nasceu não é exatamente aquela que foi idealizada – a menos que os pais tenham excelentes dotes em prever o futuro, o que não creio ser possível. Desejaram uma menina, nasceu um menino. Desejaram uma criança plenamente saudável, porém a que nasceu tem sérios problemas cardíacos. Esperaram uma criança extremamente intelectual, porém a que nasceu tem uma síndrome que torna extremamente complexo o seu desenvolvimento cognitivo.

E aí? Simples. Para que uma criança possa receber todo o amor necessário de seus pais é preciso que algo ocorra. Já conseguem dizer qual o requisito mínimo?

Sim, uma morte precisa acontecer. E qual criança precisa morrer? A criança idealizada! Enquanto os pais não fizerem o luto pela criança idealizada estes serão plenamente incapazes de receber a criança real que ali se apresenta.

Legal, mas então só os futuros pais precisam se preocupar com as informações do texto?

Olhem, eu até gostaria que sim, porém eis uma problemática universal da qual nenhum de nós escapa.

Enquanto não elaborar o luto do antigo relacionamento, não será capaz de amar devidamente a atual ou próxima namorada. Enquanto não elaborar o luto dos pais que desejaria ter tido, da criação que gostaria ter recebido, não será capaz de enxergar e dar valor aos pais que de fato estão em sua frente. Enfim, poderíamos citar milhões de exemplos, porém julgo já ter trazido o suficiente para que o entendimento seja pleno.

O que desejo que vocês apreendam de tudo que foi dito? Cautela e atenção. De repente a incapacidade de progredir, seja uma dificuldade em abandonar os objetos e idealizações perdidos. Lembrem-se sempre, o mesmo passo que te coloca mais próximo de um ponto, é o que te afasta de outro. Não há movimento sem perda. O caminho da direita pressupõe o abandono de todas as possibilidades existentes no da esquerda.

Abraços e vamos nos falando!

Diego Caroli Orcajo. Águas de Lindóia

Sem tempo pra ser mãe

Sem tempo pra ser mãe

Hoje no restaurante estava ouvindo a conversa de duas mulheres e uma delas estava se lamentando pela dificuldade de ficar com os filhos nos dias de hoje e dar conta de todo o resto que faz parte dessa versão pós-moderna do universo feminino, em que assumimos tantas funções.

Também percebi que no intervalo entre o papo com a amiga e algumas garfadas e olhadas no celular, em nenhum momento a vi interagindo com o filho que tentou, por algumas vezes, lhe mostrar o desenho que havia feito no guardanapo.

Fiquei observando a cena e só me vinha a mente que sim, é realmente muito difícil o papel da mulher nos dias de hoje. Nisso, ela tinha razão. Complicado cuidar da casa, das crianças, dos maridos, de si mesma e do trabalho, fora todo o apelo do mundo virtual que acaba por roubar uma boa parte do nosso tempo.

Mas as tentativas frustradas do filho em obter a atenção da mãe, também me faziam pensar na incapacidade que algumas mulheres têm de se vincular afetivamente aos filhos e que isso, na maioria das vezes, pouco tem a ver com falta de tempo ou excesso de tarefas.

O trabalho pode até servir como desculpa para as que vivenciam, nessa seara do encontro com o outro, especialmente com suas crianças, alguma dificuldade emocional. Nada além disso.

As crianças, em particular, desejam e demandam um tipo de intimidade emocional que envolve muito mais que disponibilidade de tempo, mas que tem a ver com entrega, aconchego, carinho, suporte, investimento. Nada fácil e, para alguns, tarefa quase impossível. Principalmente se você não teve isso na sua história, se em seu baú de emoções e lembranças não há resquícios de uma infância bem nutrida afetivamente.

Ainda assim, acredito que somos capazes de buscar esses recursos de outras maneiras e aprendermos a enfrentar o desafio da intimidade emocional que uma criança nos coloca.

Todo o trabalho, o auto-cuidado, o tempo para tantos afazeres, a autonomia que as mulheres têm hoje em dia são conquistas  e nada tem a ver com a capacidade de se vincular afetivamente. Eu sempre trabalhei e, por mais que a maternidade tenha me imposto limites, pausas e rearranjos, continuei com meu trabalho e isso, de maneira nenhuma interferiu negativamente no meu exercício da maternidade ou na minha vinculação com as minhas filhas.

Se você tem este desejo e se dispõe a isso, não é o trabalho ou qualquer outra coisa que vai te impedir. As dificuldades podem aparecer, mas você será capaz de vencê-las se assim o desejar. Pra começar, basta olhar pro lado, reparar naquele desenho, seguir as pistas que a criança te dá e tornar o seu tempo com ela, especial.

A recompensa será o sorriso, o afago, a companhia que não apenas serão as sementes para fertilizar o solo da segurança emocional de seu filho, mas também ajudarão você a curar suas próprias feridas e a encontrar um pouco mais de suprimento no seu baú de emoções.

Fácil, realmente não é.

Só sei que vale muito a pena tentar.

“O diagnóstico e a terapêutica”, por Eduardo Galeano

“O diagnóstico e a terapêutica”, por Eduardo Galeano

O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas.Qualquer um reconhece os dentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite após noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes.

O amor pode ser provocado quando cair um punhadinho de pó-de-me-ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada.

O amor é surdo frente ao Verbo divino e ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem porção capaz de evitá-lo, embora as vivandeira apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo.

Eduardo Galeano
Excerto de “O livro dos abraços”, Editora LPM

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