Essa é uma manifestação típica do nosso tempo, contagiosa e difícil de curar porque se alimenta da nossa fragilidade, do quanto somos impressionáveis, e da força do espírito de rebanho que nos condiciona a seguir os outros. Eu tenho de fazer o que se espera de mim. Tenho de ambicionar esses bens, esse status, esse modo de viver – ou serei diferente, e estarei fora.
Temos muito mais opções agora do que alguns anos atrás, as possibilidades que se abrem são incríveis, mas escolher é difícil: temos de realizar tantas coisas, são tantos os compromissos, que nos falta o tempo para uma análise tranquila, uma decisão sensata, um prazer saboreado.
A gente tem de ser, como escrevi tantas vezes, belo, jovem, desejado, bom de cama (e de computador). Ou a gente tem de ser o pior, o mais relaxado, ou o mais drogado, o chefe da gangue, a mais sedutora, a mais produzida. Outra possibilidade é ter de ser o melhor pai, o melhor chefe, a melhor mãe, a melhor aluna; seja o que for, temos de estar entre os melhores, fingindo não ter falhas nem limitações. Ninguém pode se contentar em ser como pode: temos de ser muito mais que isso, temos de fazer o impossível, o desnecessário, até o absurdo, o que não nos agrada – ou estamos fora.
A gente tem de rir dos outros, rebaixar ou denegrir nem que seja o mais simples parceiro de trabalho ou o colega de escola com alguma deficiência ou dificuldade maior. A gente tem de aproveitar o mais que puder, e isso muitos pais incutem nos filhos: case tarde, aproveite antes! (O que significa isso?) A gente tem de beber em preparação para a balada, beijar o maio número possível de bocas a cada noite, a gente tem de.
A propaganda nos atordoa: temos de ser grandes bebedores (daquela marca de bebida, naturalmente), comprar o carro mais incrível, obter empréstimos com menores juros, fazer a viagem maravilhosa, ter a pele perfeita, mostrar os músculos mais fortes, usar o mais moderno celular, ir ao resort mais sofisticado.
Até no luto temos de assumir novas posturas: sofrer vai ficando fora de moda.
Contrariando a mais elementar psicologia, mal perdemos uma pessoa amada, todos nos instigam a passar por cima. “Não chore, reaja”, é o que mais ouvimos. “Limpe a mesa dele, tire tudo do armário dela, troque os móveis, roupas de cama, mude de casa.” Tristeza e recolhimento ofendem nossa paisagem de papelão colorido. Saímos do velório e esperam que se vá depressa pegar a maquilagem, correr para a academia, tomar o antidepressivo, depressa, depressa, pois os outros não aguentam mais, quem quer saber da minha dor?
O “ter de” nos faz correr por aí com algemas nos tornozelos, mas talvez a gente só quisesse ser um pouco mais tranquilo, mais enraizado, mais amado, com algum tempo para curtir as coisas pequenas e refletir. Porém temos de estar à frente, ainda que na fila do SUS.
Se pensar bem, verei que não preciso ser magro nem atlético nem um modelo de funcionário, não preciso ter muito dinheiro ou conhecer Paris, não preciso nem mesmo ser importante ou bem-sucedido. Precisaria, sim, ser um sujeito decente, encontrar alguma harmonia comigo mesmo, com os outros, e com a natureza na qual fervilha a vida e a morte é apaziguadora.
Em lugar disso, porém, abraçamos a frustração, e com ela a culpa.
A culpa, disse um personagem de um filme, “e como uma mochila cheia de tijolos. Você carrega de um lado para o outro, até o fim da vida. Só tem um jeito: jogá-la fora”. Mas ela tem raízes fundas em religiões e crenças, em ditames da família, numa educação pelo excessivo controle ou na deseducação pela indiferença, na competitividade no trabalho e na pressão de nosso grupo, que cobra coisas demais.
Dizem que devemos nos informar melhor, mas quanto mais informação, mais dúvidas; quanto mais abertura, mais opções; quanto mais olhamos, mais se expande a tela onde se projetam nosso desejos.
Nessa rede de complexidades, seria bom resistir à máquina da propaganda e buscar a simplicidade, não sucumbir ao impulso da manada que corre cegamente em frente. Com sorte, vamos até enganar o tempo sendo sempre jovens, sendo quem sabe imortais com nariz diminuto, boca ginecológica e olhar fatigado num rosto inexpressivo. Não nos faltam recursos: a medicina, a farmácia, a academia, a ilusão, nos estendem ofertas que incluem músculos artificiais, novos peitos, pele de porcelana, e grandes espelhos, espelho, espelho meu. Mas a gente nem sabe direito onde está se metendo, e toca a correr porque ainda não vimos tudo, não fizemos nem a metade, quase nada entendemos. Somos eternos devedores.
Ordens aqui e ali, alguém sopra as falas, outro desenha os gestos, vai sair tudo bem: nada depressivo nem negativo, tudo tem de parecer uma festa, noite de estreia com adrenalina a aplausos ao final.
Autora: Lya Luft
Livro: Múltipla escolha
Editora: Record
Ano: 2010
O abuso emocional tem muitas definições, mas é mais bem caracterizado por padrões típicos de comportamento e dinâmica de relacionamento. O abuso emocional tende a girar em torno de um desequilíbrio de poder, onde pelo menos uma pessoa no relacionamento tenta exercer controle psicológico e às vezes físico sobre o outro. Mas, o abuso emocional não envolve a agressão física em si. Curiosamente este tipo de abuso nem sempre é consciente, óbvio, ou intencional, embora muitas vezes seja.
Alguém que cresceu em um ambiente emocionalmente abusivo pode não reconhecer o seu próprio comportamento abusivo. Ou pode não reconhecer o abuso que sofreu como tal. Alguém pode também confundir controle com cuidado, e ver a sua atitude dominadora ou invasiva, não só como adequada e necessária, mas também como sinal de afeto.
O abuso emocional no casamento e relacionamentos em geral, pode ser caracterizado de duas maneiras. A forma mais agressiva de abuso emocional é evidente, e deixa a vítima com uma compreensão clara da experiência. Você sabe o que o agressor sente e diz sobre você, assim como as outras pessoas em sua vida.
A forma mais passiva é menos caracterizada pela dominação, mas por alfinetadas irritantes. Pequenas e aparentemente insignificantes implicâncias ou correções que se acumulam em uma espécie de relação mestre e subordinado ao longo do tempo. E você não pode nunca realmente saber o que o agressor pensa, sente ou diz sobre você – ou até mesmo o quanto o abuso o afeta.
Então, como você sabe se o seu cônjuge, companheiro, ou alguém em sua vida é emocionalmente abusivo?
Sinais mais agressivos de abuso emocional
Xingamentos
Ela pode usar xingamentos, durante uma discussão, para repreender o outro, ou no dia a dia ser infantil e desrespeitosa. Você não é estúpido, inútil, feio, ou qualquer outro nome degradante.
Menosprezo e condescendência
Você está sempre abaixo dele. Ele precisa fazer com que você e as suas realizações pareçam inúteis e insignificantes. E ele pode causar constrangimento na frente das pessoas que a respeitam e se importam com você.
Condenação e crítica
Você não consegue fazer nada direito. Você está sempre errado, não importa em quê. Você é uma pessoa ruim, um pai ruim, mau amigo, mau seguidor. Ou o que mais você puder pensar. Ou, pelo menos, você não é tão bom, ou tão hábil como ela é.
Controle e possessividade
Ele tenta controlar seu dia, sua localização, sua aparência ou prioridades. Você não pode ir a lugar nenhum sem ele, sem sua permissão, ou sem informá-lo primeiro. Se você fizer isso, haverá uma longa palestra ou intensa briga depois.
Acusações e paranoia
Acusações de infidelidade são os mais típicos. Mas as acusações podem ser tão estranhas como traindo com um amigo, um membro da família ou por dinheiro. Ela pode acusá-lo de roubar dela, ou até mesmo tentar prejudicá-lo ou os seus filhos.
Ameaças
Ele poderia ameaçar com a violência, humilhação ou abandono, o que silencia quaisquer objeções ao tratamento torturante.
Manipulação e corrupção
Ela vai querer manter uma agenda que só beneficia ou agrada a ela. Ou que seja prejudicial ou ofensivo a você. Ela, muitas vezes, convence-o a cumprir os compromissos, ou tenta fazê-lo crer que a ideia partiu de você, quando na verdade não foi assim.
Corrupção e extorsão
Ele vai usar um segredo como objeto de abuso, como um meio para manter e aumentar o controle.
Isolamento
Ela impede o seu contato com amigos, familiares, colegas de trabalho, e outros que se preocupam com sua saúde e bem-estar, e geralmente com qualquer outra pessoa no mundo. Isso ajuda a manter seu controle. A única pessoa que você precisa é ela.
Exposição e voyeurismo
Ele fala ostensivamente sobre os abusos, de maneira livre e independente, e até mesmo sobre suas conquistas, em frente a você e outros. Ele pode vê-la sofrer por seu controle e humilhação, e convidar outras pessoas para juntar-se a ele. Ele pode mesmo filmar como você esfrega o chão, abaixada e de joelhos.
Sinais mais passivos de abuso emocional
Culpa e vergonha
Ela tenta fazer você se sentir mal por algo que está fora de seu controle. Quando as coisas saem erradas, e elas sempre saem, a culpa é sua. E mesmo se você tentar o seu melhor para manter as coisas organizadas, ou consertá-las, o seu esforço ainda não é suficiente.
Culpa
O problema é sempre você, ele não faz nada errado. Você merece o jeito como ele, e outros, tratam você. Novamente, você é responsável pelo que os outros fazem.
Comparação e desaprovação
Você não é bom o suficiente do jeito que é. Você precisa mudar. Ou você precisa ser mais parecido com alguém. E mesmo assim, provavelmente ainda não será bom o suficiente.
Correção
Os erros são proibidos. Ela faz as regras e decide quando e como quebrá-las. Justificada ou não, ela vai encontrar algo que você fez de errado e fará você saber disso.
Fofoca
Ele fala negativamente ou com pena de você pelas suas costas. Especialmente para as outras pessoas que a respeitam para degradar a opinião destas sobre você, ou para pessoas que já o veem negativamente, acrescentando lenha à fogueira.
Sabotagem
Ela aberta ou discretamente desacredita, se recusa a ajudar, ou atrapalha você em suas realizações.
Ignorar
Ele usa o tratamento do silêncio. Geralmente administrado como punição por fazer, dizer, ou até mesmo pensar em ser algo que ele desaprova.
Rejeição e negligência
Ela deliberadamente retém amor, carinho, apoio, intimidade, tempo de qualidade ou qualquer necessidade do relacionamento.
Exclusão e imposição
Ele é uma constante intromissão em sua vida, e até mesmo na vida dos outros ao seu redor. Ele quer ter o acesso completo. Ele sempre precisa de você para estar perto dele, em contato com ele, ou prontamente disponível para ele. Ele diz o que você deve e não deve fazer. Ele pergunta a seus amigos, familiares, colegas de trabalho ou até mesmo empregadores sobre cada detalhe de sua vida.
Se você acha que está em um relacionamento emocionalmente abusivo, procure ajuda profissional. Ou, pelo menos, converse com alguém que você confie. Faça pesquisas online sobre “o que é” e “o que não é” abuso, o que parece ser, e como impedir. Decida que você merece estar em um relacionamento saudável, feliz. Trabalhe para construir essa relação com quem quer construir com você.
Um jovem advogado foi indicado para inventariar os pertences de um senhor recém falecido. Segundo o relatório do seguro social, o idoso não tinha herdeiros ou parentes vivos. Suas posses eram muito simples. O apartamento alugado, um carro velho, móveis baratos e roupas puídas. “Como alguém passa toda a vida e termina só com isso?”, pensou o advogado. Anotou todos os dados e ia deixando a residência quando notou um porta-retratos sobre um criado mudo.
Na foto estava o velho morto. Ainda era jovem, sorridente, ao fundo um mar muito verde e uma praia repleta de coqueiros. À caneta escrito bem de leve no canto superior da imagem lia-se “sul da Tailândia”. Surpreso, o advogado abriu a gaveta do criado e encontrou um álbum repleto de fotografias. Lá estava o senhor, em diversos momentos da vida, em fotos em todo canto do mundo.
Em um tango na Argentina, na frente do Muro de Berlim, em um tuk tuk no Vietnã, sobre um camelo com as pirâmides ao fundo, tomando vinho em frente ao Coliseu, entre muitas outras. Na última página do álbum um mapa, quase todos os países do planeta marcados com um asterisco vermelho, indicando por onde o velho tinha passado. Escrito à mão no meio do Oceano Pacífico uma pequena poesia:
Não construí nada que me possam roubar.
Não há nada que eu possa perder.
Nada que eu possa tocar,
Nada que se possa vender.
Eu que decidi viajar,
Eu que escolhi conhecer,
Nada tenho a deixar
Porque aprendi a viver.
Vincent Willem van Gogh foi um pintor pós-impressionista neerlandês, frequentemente considerado um dos maiores de todos os tempos.
Sua vida foi marcada por fracassos. Ele falhou em todos os aspectos importantes para o seu mundo, em sua época. Foi incapaz de constituir família, custear a própria subsistência ou até mesmo manter contactos sociais. Aos 37 anos, sucumbiu a uma doença mental, cometendo suicídio.
A sua fama póstuma cresceu especialmente após a exibição das suas telas em Paris, a 17 de Março de 1901. (Wikipédia)
30 verdades difíceis de questionar…Tenho certeza de que você vai se identificar com várias.
1. Você não pode mudar outras pessoas, e é grosseiro tentar.
2. É muito mais difícil queimar calorias do que se controlar para não comer alguma coisa.
3. Crianças são criaturas extremamente honestas até que a gente as ensine a não ser.
4. Gritar sempre piora as coisas.
5. Sempre que você se preocupa com o que os outros vão pensar de você, na verdade você está se preocupando com o que você irá pensar de você mesmo.
6. Talvez você tenha se esquecido disso, mas fomos feitos pra pisar na grama e celebrar o sol nascendo.
7. Se você nunca questiona suas crenças, então provavelmente você está errado.
8. Ninguém sabe tudo sobre a vida.
9. Cada rosto que passa ao seu lado na rua representa uma história tão complicada quanto a sua.
10. A vida é uma viagem solitária, mas você vai receber várias visitas. Algumas duram um bom tempo, mas a maioria não.
11. As pessoas sempre embelezam tudo pra fazer as coisas parecerem mais bonitas e legais do que realmente são.
12. Aqueles que mais reclamam são os que menos realizam.
13. Evitar fazer algo o torna automaticamente mais difícil e mais assustador.
14. A maioria das coisas que você vê é somente o que você acha daquilo que vê.
15. Às vezes você tem que afastar algumas pessoas da sua vida – mesmo que elas sejam da família.
16. Culpar os outros é o passatempo favorito dos que não gostam de responsabilidades.
17. Qualquer pessoa que você conhece é melhor do que você em algo.
18. Nada – nunca – acontece exatamente como você imaginou.
19. O que torna os humanos diferentes dos animais é que os animais conseguem ser eles mesmos com facilidade.
20. Auto-reflexão é a única saída do caminho da infelicidade.
21. Quase todo clichê carrega uma verdade tão profunda que as pessoas tendem a repeti-lo até que você se canse de ouvi-lo. Mas a sabedoria ainda está lá.
22. Todo mundo acha que dirige melhor que a maioria das pessoas.
23. Se você não é feliz sozinho não vai conseguir ser feliz em nenhum relacionamento.
24. Mesmo se não custar dinheiro, se tomar seu tempo, então não é de graça.
25. Os problemas, quando surgem, raramente são tão dolorosos quanto a experiência de temê-los.
26. Crianças entendem tudo que você diz a elas, mesmo que não seja em palavras.
27. A maioria das coisas que as crianças aprendem dos seus pais não foi ensinada de propósito.
28. O ingrediente secreto geralmente é manteiga, em quantidades obscenas.
29. Sempre é válido experimentar de novo alguma comida que você não gostou da primeira vez.
Toda vez que minha avó paterna me dizia que o molde em que fui feita fora quebrado quando nasci, eu achava que ela estava me elogiando. Acreditava que somente eu era “única” no mundo. Aos poucos, fui percebendo meu engano.
Primeiro, porque, em vez de me tornar diferente, o fato de ser uma criatura única era o que me igualava a todos os seres humanos. Entendi que é parte da nossa condição humana sermos indivíduos exclusivos. Dela ninguém escapa. Em segundo lugar, porque essa exclusividade – recebida com meu nascimento – não me foi dada assim de mão beijada. Nem veio pronta nem tinha um manual. Ela se parece com aquelas massinhas de modelar que, quando a gente ganha, ganha só a massa, não a forma, e o resultado é sempre o fruto de um longo processo de faz e desfaz.
Cedo percebi que jamais teria sossego e que teria muito trabalho. Típico presente de grego, uma armadilha. Encontrei eco para o meu espanto nas palavras da Mafalda, a famosa personagem de Quino, o cartunista argentino, no momento em que ela diz: “Justo a mim me coube ser eu!”. Ser quem só a gente mesmo pode ser é quase uma desolação. Quem eu sou e deverei ser? Minha individualidade é um mistério.
Quantas vezes eu não preferi ser outra pessoa! Se não, pelo menos pensei se não seria melhor ter nascido em outra família, em outra época, com outra situação financeira, outra cara, outro corpo, outro temperamento. Ainda mais porque, aparentemente, sempre soube resolver a vida dos outros muito melhor do que a minha própria.
Para ser sincera, quando penso que o meu “eu” está aberto, o que sinto mesmo é um grande alívio. Se eu tivesse nascido pronta, não teria conserto. E se não houvesse remédio para os meus erros e uma chance para os meus fracassos? E se eu não pudesse mudar de ponto de vista, de gosto, de planos, de opinião? E se eu não tivesse escolhas nem alternativas?
Mas também vejo um lado sombrio em ser um projeto aberto: o de nunca ter certeza, sobretudo de antemão, de ter tomado a atitude certa, de ter feito a escolha mais apropriada – aquela em que não me traio. Quando percebo que um gesto qualquer vai afetar o meu destino, sinto medo, angústia, suo frio, tenho vertigens, adoeço. Aí, a tentação de pegar carona na escolha dos outros ou no estilo de vida deles é grande, mas minha alma grita que não vai dar certo e me lembra que o meu molde foi quebrado, que ele é exclusivo.
Levei muito tempo para entender que minha exclusividade não está simplesmente em mim, na minha cor de olhos ou nos meus talentos mais especiais. Ela está sempre lançada adiante de mim como um desafio, como um destino a que tenho de chegar, como uma história que tem de ser vivida. Minha exclusividade – eu mesma – virá apenas quando eu puder afirmar que a história que vim realizando só eu – e ninguém mais – poderia tê-la vivido.
É a isso que a personagem Amparo, no filme de Almodóvar “Tudo Sobre Minha Mãe”, se refere quando afirma que ela é tanto mais autêntica quanto mais perto estiver daquilo que projetou para si mesma. Fala com orgulho e alegria, revelando, assim, que desvendou o mistério que envolve o problema de ser quem somos: autenticar nossa biografia. Avalizá-la.
Onde estou, senão no rastro da história que venho deixando atrás de mim, naquilo que vim fazendo e dizendo? Onde estou, senão nessa biografia que realizo e atualizo a cada instante por meio das minhas decisões e do meu empenho?
Hoje não importa mais se sou diferente dos outros, mas se faço alguma diferença neste mundo.
Autora: Dulce Critelli
Publicado na Folha S.Paulo
São Paulo, quinta-feira, 22 de julho de 2004.
Texto originalmente publicado por Jeremy Hance no Mongabay
Em uma das grandes tragédias da nossa era, tradições, histórias, culturas e conhecimentos indígenas estão desfalecendo em todo o mundo. Línguas inteiras e mitologias estão desaparecendo e, em alguns casos, até mesmo grupos indígenas inteiros estão em processo de extinção. Isto é o que chama a atenção para uma tribo na Amazônia – o povo Matsés do Brasil e do Peru –, que criou uma enciclopédia de 500 páginas para que sua medicina tradicional seja ainda mais notável. A enciclopédia, compilada por cinco xamãs com a ajuda do grupo de conservação Acaté, detalha cada planta utilizada pelos Matsés como remédio para curar uma enorme variedade de doenças.
“A [Enciclopédia de Medicina Tradicional Matsés] marca a primeira vez que xamãs de uma tribo da Amazônia criaram uma transcrição total e completa de seu conhecimento medicinal, escrito em sua própria língua e com suas palavras”, disse Christopher Herndon, presidente e co-fundador da Acaté, em uma entrevista para o Mongabay (na íntegra abaixo).
O xamã Matsés chamado Cesar. Foto: cortesia da Acaté
Os Matsés imprimiram sua enciclopédia só em sua língua nativa para garantir que o conhecimento medicinal não seja roubado por empresas ou pesquisadores, como já aconteceu no passado. Em vez disso, a enciclopédia pretende ser um guia para a formação de jovens xamãs, para que eles possam obter o conhecimento dos xamãs que viveram antes deles.
“Um dos mais renomados e antigos curandeiros Matsés morreu antes de que seu conhecimento pudesse ser transmitido, então o momento era este. A Acaté e a liderança Matsés decidiram priorizar a enciclopédia antes de perder mais anciãos e seus conhecimentos ancestrais”, disse Herndon.
A Acaté também iniciou um programa para conectar os demais xamãs Matsés com jovens estudantes. Através deste programa de orientação, os indígenas esperam preservar seu modo de vida como o fizeram durante séculos.
“Com o conhecimento de plantas medicinais desaparecendo rapidamente entre a maioria dos grupos indígenas e ninguém para escrevê-los, os verdadeiros perdedores no final são tragicamente os próprios atores indígenas”, disse Herndon. “A metodologia desenvolvida pelos Matsés e pela Acaté pode ser um modelo para outras culturas indígenas protegerem seus conhecimentos ancestrais”.
UMA ENTREVISTA COM O MÉDICO CHRISTOPHER HERNDON
Chris Herndon (esquerda) e o xamã Arturo (direita), observam um rascunho da nova enciclopédia. Foto: Acaté
Mongabay:Por que a enciclopédia é importante?
Christopher Herndon: A enciclopédia marca a primeira vez que xamãs de uma tribo da Amazônia criaram uma transcrição total e completa de seu conhecimento medicinal, escrita em sua própria língua e com suas palavras. Ao longo dos séculos, os povos da Amazônia têm repassado através da tradição oral uma riqueza acumulada de conhecimentos e técnicas de tratamento que são um produto de seus profundos laços espirituais e físicos com o mundo natural. Os Matsés vivem em um dos ecossistemas de maior biodiversidade do planeta e têm dominado o conhecimento das propriedades curativas das suas plantas e animais. No entanto, em um mundo em que a mudança cultural desestabiliza até mesmo as sociedades mais isoladas, este conhecimento está rapidamente desaparecendo.
É difícil pensar o quão rapidamente este conhecimento pode ser perdido após uma tribo fazer contato com o mundo exterior. Uma vez extinto, este conhecimento, juntamente com a auto-suficiência da tribo, nunca pode ser totalmente recuperado. Historicamente, o que seguiu logo da perda dos sistemas de saúde endêmicos em muitos grupos indígenas é a quase total dependência dos rudimentares e extremamente limitados serviços de saúde que estão disponíveis nestes locais remotos e de difícil acesso. Não surpreendentemente, na maioria dos países, os grupos indígenas têm as maiores taxas de mortalidade e doença.
Pela perspectiva dos Matsés, a iniciativa é importante porque a perda da cultura e o atendimento precário à saúde estão entre suas maiores preocupações. A pioneira metodologia para proteger e salvaguardar o seu próprio conhecimento pode servir como um modelo replicável para outras comunidades indígenas que enfrentam uma erosão cultural semelhante. Em termos mais amplos de conservação, sabemos que existe uma forte correlação entre os ecossistemas intactos e regiões habitadas por índios, o que torna o fortalecimento da cultura indígena uma das maneiras mais eficazes para proteger grandes áreas de floresta tropical.
Mongabay:Por que é agora o momento de se registrar esta informação?
Christopher Herndon: O conhecimento dos Matsés e a sabedoria acumulada através de gerações estava perto de desaparecer. Felizmente, restavam alguns poucos Matsés mais velhos, que ainda detinham o conhecimento ancestral, já que o contato com o mundo exterior só ocorreu na última metade do século. Os curandeiros eram adultos na época do contato inicial e já haviam dominado suas habilidades antes de que missionários e funcionários do governo lhes dissessem que elas não eram úteis. No momento em que o projeto começou, nenhum dos xamãs mais velhos tinha jovens Matsés interessados em aprender com eles.
Um dos mais renomados e antigos curandeiros Matsés morreu antes de seu conhecimento ser transmitido, então o momento era este. A Acaté e a liderança Matsés decidiram priorizar a enciclopédia antes de perder mais anciãos, com seus conhecimentos ancestrais. O projeto não tratava de salvar uma dança tradicional ou vestuário, mas da saúde deles e a das futuras gerações de Matsés. A aposta não podia ser maior.
Mongabay:Como é a enciclopédia?
Christopher Herndon: Após dois anos de intenso trabalho por parte dos Matsés, a Enciclopédia agora inclui capítulos escritos por cinco mestres curandeiros Matsés e tem mais de 500 páginas! Cada entrada é classificada pelo nome da doença, com uma explicação sobre como reconhecê-la pelos sintomas, a sua causa, quais plantas usar, como preparar o medicamento e opções terapêuticas alternativas. Uma fotografia feita pelos Matsés de cada planta acompanha cada entrada na enciclopédia.
A Enciclopédia é escrita para e desde uma visão de mundo do xamã Matsés, descrevendo como os animais da floresta estão envolvidos na história natural das plantas e conectados com as doenças. É uma verdadeira enciclopédia xamânica, totalmente escrita e editada por xamãs indígenas – a primeira, que conhecemos, de seu tipo e alcance.
Um xamã e seu aprendiz. Foto: Acaté
Mongabay:Como você espera que esta enciclopédia possa ajudar os esforços de conservação?
Christopher Herndon: Acreditamos que empoderar os povos indígenas é a abordagem mais eficaz e duradoura para a conservação da floresta tropical. Não é por acaso que as extensões restantes intactas da floresta tropical na região neotropical estão sobrepostas às áreas habitadas por indígenas. Os povos tribais compreendem e valorizam a floresta porque são dependentes dela. Esta relação vai além de uma dependência utilitária; há uma ligação espiritual com a floresta, um senso de interconectividade que é difícil de se compreender por meio da mentalidade ocidental compartimentalizada – por mais que seja, no entanto, real.
Muitas das graves ameaças ambientais em áreas indígenas remotas de que você ouve falar no noticiário – petróleo, madeira, mineração e afins – são indústrias externas que oportunisticamente se aproveitam da enfraquecida coesão social interna dos povos indígenas de contato recente, de seus recursos limitados e da crescente dependência do mundo exterior. O tema unificador das três áreas programáticas da Acaté – economia sustentável, medicina tradicional, e agroecologia – é a autossuficiência. A Acaté não predetermina estas três prioridades de conservação; elas foram definidas em discussão com os anciãos Matsés que sabem que a melhor maneira de proteger sua cultura e terras é através de uma posição de força e independência.
A enciclopédia foi revisada e editada ao longo de diversos dias em um encontro dos chefes Matsés e xamãs mais velhos. Foto: Acaté
Do ponto de vista de conservação global, os Matsés protegem mais de 3 milhões de acres [1,2 milhões de hectares] de floresta tropical só no Peru. Esta área inclui algumas das florestas mais intactas, biodiversas e ricas em carbono no país. As comunidades Matsés no lado brasileiro dos rios Javari e Yaquerana marcam as fronteiras ocidentais da reserva indígena do Vale do Javari, uma região quase do tamanho da Áustria, que contém o maior número de tribos ‘sem contato’, em isolamento voluntário, no mundo. Ao sul das margens do território Matsés, nas cabeceiras do rio Yaquerana, encontra-se La Sierra del Divisor, uma região de beleza natural impressionante, biodiversidade, e também grupos tribais isolados. Por estas razões, embora os Matsés somente cheguem a somar pouco mais de 3 mil pessoas no total, eles estão estrategicamente posicionados para proteger uma vasta área de floresta tropical e uma série de tribos isoladas. Empoderá-los é uma preservação de alto rendimento.
Mongabay:Você mencionou que a enciclopédia é apenas a primeira fase de uma iniciativa mais ampla da Acaté. Quais são os outros componentes necessários para manter os sistemas tradicionais de saúde deles?
Christopher Herndon: Completar a enciclopédia é um primeiro passo histórico e crítico para mitigar as ameaças existenciais para a sabedoria de cura e autossuficiência dos Matsés. No entanto, a enciclopédia sozinha não é suficiente para manter a autossuficiência, já que seus sistemas de saúde baseiam-se na experiência que só pode ser transmitida através de longos aprendizados. Infelizmente, devido a influências externas, quando começamos nosso projeto, nenhum dos xamãs tinha aprendizes. Ao mesmo tempo, a maioria dos povos ainda usa e depende do conhecimento de plantas medicinais dos curandeiros, muitos dos quais têm mais de 60 anos.
Na Fase II, o Programa de Aprendizes, cada xamã – muitos dos quais são autores de capítulos da Enciclopédia – será acompanhado na selva por Matsés mais jovens para conhecer as plantas e ajudar no tratamento de pacientes. O programa de aprendizado foi iniciado em 2014 na aldeia de Estirón sob a supervisão do xamã Luis Dunu Chiaid. Devido ao sucesso do projeto piloto em Estirón, os Matsés concordaram em unanimidade, em sua última reunião, que este programa deveria ser expandido para o maior número possível de aldeias, dando prioridade às que não têm mais curandeiros tradicionais.
O objetivo final da iniciativa é a Fase III – a integração e melhoria dos serviços de saúde do ‘ocidentais’ feita com práticas tradicionais. Wilmer, um promotor de saúde em uma pequena clínica em Estirón e um dos aprendizes do programa-piloto, serve de exemplo para outros Matsés que trabalham com saúde. Ele entende que o futuro da saúde do seu povo depende da criação de sistemas de saúde duais e vibrantes que permitam à comunidade aproveitar o melhor de ambos os mundos da medicina.
Além disso, foi decidido que o nosso trabalho agro-florestal deve ser expandido para incluir a integração com plantas medicinais. Este trabalho será baseado no bosque de cura criado por um dos principais xamãs curandeiros Matsés em Nuevo San Juan, agora mantido por seu filho, Antonio Jimenez. Para um estrangeiro, este bosque parece uma trecho comum de selva no caminho para as fazendas deles, a uns 10 ou 15 minutos de caminhada fora da comunidade. Na presença de um xamã conhecedor que indique quais são as plantas medicinais, você percebe na mesma hora que está cercado por uma constelação de plantas medicinais cultivadas pelos curandeiros Matsés para o tratamento de uma variada gama de doenças. Muitas vinhas e fungos da floresta não crescem em jardins expostos ao sol e requerem o ecossistema da floresta para a sua propagação. Colocar o bosque de plantas medicinais a 10 ou 15 minutos de distância da comunidade é um exemplo característico da eficiência do Matsés. Se você tem uma criança doente, não quer ter que viajar quatro horas para encontrar o remédio.
Aplicação de medicina tradicional dos Matsés. Foto: Acaté
Mongabay:A enciclopédia foi escrita apenas na língua dos Matsés como proteção contra a bioprospecção e o roubo do conhecimento indígena. O medo da biopirataria é uma preocupação real para os Matsés?
Christopher Herndon: Infelizmente, a história está cheia de exemplos de roubo dos povos indígenas. Para os Matsés em particular a preocupação é muito real. As secreções da pele da rã Kambo (Phyllomedusa bicolor) são utilizadas pelos Matsés em seus rituais de caça. As secreções, ricas em uma variedade de peptídeos [pequenas proteínas] bioativos, são administradas diretamente no organismo em cortes frescos ou queimaduras. Quase imediatamente, as toxinas induzem intensas e autonômicas respostas cardiovasculares que levam a um estado alterado de consciência e acuidade sensorial muito maior.
A rã Kambo. Foto: Rhett A. Butler/Mongabay
Embora a rã Kambo esteja presente ao longo do norte da Amazônia, apenas os Matsés e um número reduzido de tribos vizinhas Panoan são conhecidos por usar suas secreções poderosas. Depois de se conhecer o uso das secreções pelo Matsés, pesquisas de laboratório sobre as secreções da rã Kambo revelaram um complexo coquetel de peptídeos com potentes propriedades vasoativas, narcóticas e antimicrobianas. Várias empresas farmacêuticas e universidades registraram patentes dos peptídeos sem reconhecimento ou benefício aos povos indígenas. Um destes peptídeos com atividade antifúngica foi até mesmo transgenicamente inserido em batatas.
O medo da biopirataria é, infelizmente, uma porta que se abre para ambos os lados. Muitos grupos ambientalistas e cientistas têm realizado projetos na Amazônia documentando o conhecimento indígena da fauna local, como nome de aves, mas mantiveram-se à margem em relação às plantas medicinais, por medo de serem acusados de facilitar a biopirataria. No entanto, com o rápido desaparecimento dos conhecimentos sobre as plantas medicinais entre a maioria dos grupos indígenas e não sem ninguém para registrá-lo, tragicamente os verdadeiros perdedores ao final são os índios, os verdadeiros geradores desse conhecimento. A metodologia desenvolvida pelo Matsés e a Acaté deve ser um modelo para outras culturas indígenas conservarem seus conhecimentos ancestrais.
Mongabay:Qual é a metodologia da Acaté e como ela protege esse conhecimento?
Christopher Herndon: A Acaté e os Matsés desenvolveram uma metodologia inovadora para evitar a extinção de seu conhecimento ancestral sobre as plantas medicinais e ao mesmo tempo proteger as informações contra o roubo por grupos externos. A enciclopédia está escrita somente em Matsé. É por e para os Matsés e não haverá traduções para outras línguas. Não foram incluídos nomes científicos nem fotografias de flores ou alguma outra característica que possa facilitar a identificação das plantas por um estrangeiro.
Observando a nova enciclopédia. Foto: Acaté
Cada capítulo da Enciclopédia de Medicina Tradicional foi escrito por um veterano xamã renomado escolhido pela comunidade. Para cada xamã veterano foi designado um Matsés mais jovem, que durante meses registrou em forma escrita o conhecimento xamã e fotografou cada planta. Os textos e as imagens foram compilados e escritos no computador de Wilmer Rodríguez López, um Matsés que é especialista na transcrição escrita de sua língua.
Na reunião, a Enciclopédia compilada – um rascunho de mais de 500 páginas – foi revisada e editada coletivamente pelos xamãs das tribos por vários dias. Toda a enciclopédia está sendo formatada e impressa pelos Matsés sob a sua direção exclusiva, e nunca será publicada ou divulgada fora de suas comunidades.
Esperamos que o incontroverso sucesso desta metodologia iniciada pela Acaté e por nossos parceiros índios abra a porta para esforços semelhantes em toda a Amazônia e além. Já estamos vendo os esforços de outras organizações para replicar a metodologia.
Mongabay: Obviamente, o foco é preservar a cultura e o conhecimento Matsés, mas o seu conhecimento médico poderia teoricamente ajudar as futuras gerações ao redor do mundo. Existem condições específicas para que os xamãs Matsés e a população possam compartilhar seus conhecimentos sobre as plantas medicinais na Amazônia? Ou a confiança está destruída?
Christopher Herndon: A Acaté não pode falar pelos Matsés. Posso dizer que trabalhando com xamãs índios na Amazônia, eu tenho notado que eles são muito abertos a compartilhar o seu conhecimento, quando nos aproximamos com respeito. Eles também têm uma grande curiosidade intelectual sobre outros métodos de cura, incluindo o nosso.
Aldeia dos Matsés. Foto: Acaté
Alguns dos medicamentos desenvolvidos pela humanidade, como a quinina e aspirina, foram desenvolvidos através do conhecimento de curandeiros tradicionais. Devido ao clima político e temores internacionais de biopirataria, mesmo para as empresas farmacêuticas que promovem a distribuição equitativa dos lucros, é um desafio participar de tais iniciativas. A complexidade do conhecimento indígena de plantas medicinais é tal que não é possível avaliar plenamente a fitoquímica dentro do prazo em que o conhecimento está prestes a ser perdido. A Enciclopédia, apesar de não ser desenhada para esse fim, mantém as opções abertas no futuro para os Matsés; um futuro que, em contraste com a maioria de seus precedentes históricos, será um de sua própria determinação.
Não devemos perder de vista que, até a criação da enciclopédia, o sistema tradicional de saúde Matsés estava prestes a desaparecer devido às influências do mundo exterior. Os Matsés vivem em áreas remotas onde a prestação de serviços de saúde é um desafio e limitada. As farmácias em muitas comunidades Matsés, particularmente as de mais longe, rio acima, são desprovidas dos medicamentos mais básicos, como remédios para tratar a malária, que veio de fora das comunidades. Os Matsés precisam pagar de seu bolso pelo medicamento que vem de fora, cujo preço é inalcançável para a maioria dos anciãos da comunidade que não têm nenhuma fonte de renda. O simples microscópio necessário para analisar o sangue e diagnosticar a malária estava quebrado em quase todas as comunidades que visitei. Em comparação, vivemos em um mundo que é abundante em cuidados de saúde. Se houver necessidade de dialogar, na minha opinião, isso deve começar com a resposta de como podemos apoiar os Matsés no presente, em vez de como eles podem nos ajudar no futuro.
Mongabay:Muita gente vê a medicina e a preservação da floresta como questões separadas. Como a saúde está ligada ao meio-ambiente?
Christopher Herndon: A saúde de um povo, sua cultura e meios-ambientes são indissociáveis. Não podemos pensar sobre as condições deprimentes de saúde e a situação socioeconômica no Haiti sem considerar o contexto de que 98% deste país que ocupa a metade de uma ilha foi devastado e, assim, o seu potencial futuro também foi destruído. A fronteira entre o Haiti e a República Dominicana pode ser claramente vista a partir de imagens de satélite como uma transição abrupta do marrom ao verde, como o resultado de diferentes formas de uso dos recursos naturais. Da mesma forma, as imagens da Etiópia que existem na consciência moderna baseiam se no fato de, que há apenas 100 anos, a Etiópia era um país com uma significativa cobertura florestal.
Clínica em aldeia Matsés. Os Matsés usam tanto a medicina tradicional como a ocidental, mas suprir e manter as clínicas remotas é difícil. Foto: Acaté
O futuro dos Matsés e a sua cultura estão eternamente ligados ao futuro de suas florestas. Ao proteger as florestas e reforçar sua cultura, a saúde deles é protegida contra um futuro carregado de diabetes, desnutrição, depressão e alcoolismo – a segunda onda de doenças ‘importadas’ que normalmente acontece em comunidades indígenas após algumas gerações depois do contato com o mundo exterior. Visto desta forma, iniciativas de conservação biocultural seriam extremamente rentáveis e podem ser abordagens preventivas de saúde.
Mongabay:Como a enciclopédia pode ajudar a preservar a cultura Matsés?
Christopher Herndon: Uma mudança radical começa muitas vezes com algo tão simples e tão poderoso como uma ideia. A ideia de que a sua cultura, as suas tradições e seu estilo de vida não são inferiores ou algo para se envergonhar, como outros talvez já lhe tenham dito. A ideia de que a selva, que você chamar de lar, tem um valor infinitamente maior do que reservas de petróleo ou de mogno para produzir mobiliário de luxo. A ideia de que o seu conhecimento e familiaridade com a floresta não faz o torna primitivo ou atrasado, mas o coloca à frente do movimento global de conservação. A enciclopédia é o primeiro passo concreto para a formação de uma ponte para vencer a lacuna cada vez maior entre gerações, antes que seja tarde demais. A iniciativa da enciclopédia restaura o respeito pela sabedoria dos mais velhos e devolve a selva como um repositório de saúde e um lugar para aprender.
Um xamã mostra a Herndon as plantas medicinais. Foto: Acaté
Mongabay:A enciclopédia foi completada e terminada em uma reunião de líderes Matsés vindos de todo seu território e antigos xamãs das tribos. Como foi o clima naquela reunião?
Christopher Herndon: Esta reunião sem precedentes foi realizada em uma das aldeias mais remotas do território Matsés. É extremamente difícil descrever em palavras a emoção sentida por todos os participantes quando os líderes Matsés mais antigos falaram de batalhas que eles lutaram – literalmente – para defender o território Matsés e seu modo de vida. Muitos deles tiveram de conter as lágrimas enquanto um ancião após o outro convidava os jovens a aproveitar esta oportunidade para preencher a lacuna que será deixada por eles quando morrerem, assim como eles fizeram quando seus avós estavam vivos. Eu trabalho na conservação biocultural na Amazônia há 15 anos, mas esta foi uma das mais inspiradoras experiências, para se ouvir o poder da oratória deles e determinação em suas vozes. É facilmente perceptível que os Matsés são guerreiros de coração, que lutaram por um longo tempo para proteger suas terras e que eles continuarão lutando.
– Esta entrevista foi traduzida do original em inglês por Giovanny Vera e Laura Kurtzberg e revisada por Stefano Wrobleski, do InfoAmazonia.
Aprender um novo idioma é essencial para quem quer ter um currículo de destaque. Se você é um desses, confira essa dica: a Universidade de São Paulo (USP) reúne em uma plataforma on-line um material didático gratuito para estudar italiano, o Dire, fare, partire!. O acesso é livre, no entanto, não há avaliação nem certificação.
O conteúdo inclui material multimídia, apostilas e vídeos. Além disso, há indicações de enciclopédias, dicionários e rádios em italiano para ampliar os conhecimentos sobre o país. O primeiro módulo conta com dezesseis aulas que introduzem o estudante no aprendizado. Cada uma das aulas é dividida em duas partes. Acesse e comece agora!
Vaquinha para apoiar a continuação do projeto
A segunda parte do projeto serão vídeos que mostram o cotidiano de um brasileiro na Itália e situações interculturais entre os dois países. O conteúdo também será aberto e gratuito. Na primeira parte, os alunos acompanharam o personagem Tarcísio e todos os seus preparativos, no Brasil, para ir para Itália. Agora, é preciso ajudá-lo a chegar lá. Para isso, pessoas interessados em ajudar o projeto podem contribuir com doações, a partir de R$ 15, até o dia 31 de outubro. Clique aqui para colaborar e saber mais detalhes sobre o Dire, fare, arrivare!.
Outro dia fiz um passeio de barco e presenciei um fenômeno da natureza que me surpreendeu: uma revoada de pequeninas borboletas atravessando o mar em direção a uma ilha que avistávamos a muitos quilômetros da embarcação. Elas batiam suas asas tão agilmente que mal era possível ver os detalhes de suas asas. Engajadas em alcançar seu destino, permaneciam vigorosas em suas ações. Desistir significava a morte em alto mar, então pareciam resistir bravamente à aventura.
Um pouco mais tarde descobri que as borboletas monarcas, por exemplo, fazem uma migração anual que as levam a percorrer uma distância de 4 mil quilômetros para fugir do inverno no hemisfério Norte. Elas não possuem um mapa interno que as guiem no caminho, mas há um impulso que as levam a tomar a direção correta. Uma migração que é vista como uma das mais fantástica e intrigantes do planeta.
A determinação desses frágeis e pequeninos seres me fez navegar por uma rede de pensamentos sobre a vida…
Quantos de nós, ao vislumbrarmos a distância de um alvo ou de objetivo, abandonamos de imediato uma travessia, uma missão que nos foi incumbida, ou ainda um sonho que desejamos realizar? Quantos de nós, frente ao medo ou à dificuldade do desafio, desistimos de tentar, deixamos para lá e cedemos ao fracasso, ao ponto de conforto ou até mesmo ao desespero e à depressão?
Mas, se formos pensar, praticamente todas as fases da nossa vida nos exigirão esforço extra e o desenvolvimento de novas capacidades e habilidades. E, nem sempre teremos asas grandes e fortes o suficiente para a tarefa. Porém, isso não significa que não devemos responder com coragem ao desafio que nos for colocado.
Quando vamos aprender a andar, por exemplo, nossas perninhas não carregam a firmeza necessária, nossos pés não estão prontos para pisar corretamente, nosso centro de equilíbrio não está habituado com a posição ereta. E, mesmo assim, nossos corpinhos nos convidam a arriscar o caminhar. Sentimos dentro de nós um impulso para explorar o ambiente, queremos pegar as coisas que estão no alto… Ir além do que a posição sentada, deitada e de engatinho nos é capaz de oferecer. Começamos a experimentar e ousar. Fazemos isso, porque desejamos, porque nos sentimos e somos estimulados e porque é assim que o impulso da vida emana de nós. Estamos “prontos”, mesmo que conscientemente não saibamos disso.
Na psicologia e na neurologia usamos o termo prontidão para dizer que o nosso organismo já está preparado para aprender um determinado comportamento e avançar no que nos é próprio do desenvolvimento humano.
Mas, à medida que vamos crescendo e nosso cérebro se desenvolvendo, a relação entre o que somos e o ambiente que nos cerca também vai nos transformando, seja para o nosso bem ou para o nosso mal.
Modelos depressivos, desencorajadores ou medrosos, podem nos fazer temer a vida, até nas coisas mais simples que ela nos apresenta. Traumas e momentos dolorosos podem nos deixar marcas profundas que nos paralisam a ação e nos impedem de seguir adiante. A construção de uma autoestima baixa, a existência de inseguranças e a falta de apoio no grupo social também podem ser dificultadores na hora de encarar um desafio ou para transpor uma fase da vida que requer amadurecimento e confiança.
Algumas frases, atitudes e sentimentos podem permanecer por anos em nossas mentes, mesmo que inconscientes. Palavras e gestos que alicerçaram o tom emocional com o qual passamos a enxergar a vida. Lentes que nos ofuscam a visão de quem realmente somos e do que potencialmente podemos fazer em uma determinada situação.
E assim, um “outro” desconhecido que mora dentro de nós toma as rédeas da nossa vida, controla o timão do nosso barco, nos impedindo a plena realização. Castra-nos de agir conforme nossos desejos mais profundos, nos faz temer a vida e, por vezes, escorre por nossos corpos trazendo uma ebulição de sintomas físicos como os de uma crise de pânico ou ansiedade.
Nestes casos, cedemos aos aprendizados e condicionamentos e nos esquecemos daquilo que nos é inato. Nos distanciamos da nossa natureza e potencial e, com isso, sofremos severamente. Pois, ao contrário do ego (centro da consciência), que entende o mundo apenas parcialmente, nosso Self (centro regulador da personalidade total) almeja a realização e a totalidade e, com isso, ele nos pressiona e impele a alcançarmos a nossa própria cura.
Nossa essência sempre bradará por liberdade! Sempre nos soará como um guia interno pronto a nos apontar a direção certa. Às vezes, o caminho usado será o do adoecimento físico e emocional. Por outras, uma insatisfação ou incômodo com um lugar que ocupamos ou um papel que representamos na vida. Em outras, poderá surgir por meio de uma situação que nos força a ir mais além, como uma proposta de trabalho desafiadora, uma viagem ou um novo relacionamento.
Seja qual for a travessia, nosso ser sabe que, apesar de frágeis e vulneráveis, é a própria caminhada que dará forças aos nossos músculos, como foi a própria revoada que deu forças às asas das pequenas borboletas que avistei.
Aliás, se aquelas borboletinhas não tivessem se arriscado sobre o mar, não teriam visto a paisagem sobre novos ângulos, não saberiam de suas próprias forças, não se regozijariam com as delícias da aventura e não desempenhariam o chamado de vida para o qual foram feitas. Não saberiam que poderiam voar para tão longe!
O casamento era a conjunção possível entre o simbólico, instrumento necessário para se fazer filhos e perpetuar a fortuna. As questões do prazer, contudo, não eram incluídas nessa equação.
Estava escrevendo um texto sobre a solidão masculina quando vi o último filme de Ridley Scott, Perdido em Marte, em que o pobre Matt Damon amarga anos de solidão até que a NASA consiga tirá-lo do planeta vermelho. O solitário astronauta é um personagem muito próximo do cotidiano do psicanalista. Se você não compreende vou relembrar o combo: homens-marte, mulheres-vênus, sacou?
Eis a pergunta: é possível um homem amar uma mulher e zelar por seu falo ao mesmo tempo? Quanto mais escuto os homens mais acredito que o falo está em Marte e o feminino nem o Hubble ainda encontrou.
Nos consultórios atendemos com frequência homens preocupados com a ereção, com a ejaculação – precoce ou retardada, volumosa ou escassa – com seus bíceps, mas raramente encontro os que se preocupam com o amor. Quando os encontro, meu interesse imediatamente se agudiza, procuro entender como é que um homem vem falar de um amor que não seja por sua mãe. Recentemente escutava um amigo que me dizia estar no seu oitavo casamento. O mais curioso é que, embora tivesse um enorme currículo amoroso, a única relação que merecia ser comentada era justamente com sua mãe. Será que é assim mesmo? Amor de mãe é o amor que fica?
A mente masculina parece forjada para o orgasmo, post coitum omne animal triste est. São coordenadas que apontam sempre para um efêmero ter. A atriz Jeanne Moreau certa vez disparou que o orgasmo é um tremendo desmancha prazeres. Contudo poucos homens falam de amor no divã. Amar uma mulher é uma experiência que nasce da falta, da carência, no mínimo de uma precariedade. O mais comum é encontrar homens que ficam completamente desnorteados quando uma mulher os ama demais. Esse amor lhes parece um estorvo. Quando sua parceira começa a falar de amor é aí mesmo que muitos começam a pensar em outra.
Seria um erro e um exagero negar o amor masculino. O modelo secular de amor ocidental, narrado em séculos de literatura, sempre exaltou esse amor. Denis de Rougemont, no seu clássico História do amor no ocidente, desenvolveu bem a tese de que o nascimento do romance na Europa se confunde com o amor cortês do cavaleiro dedicado a uma Dama intocável. O que sempre me impressionou no amor cortês, e que ressoa tão forte nos romances do Languedoc, é a nítida divisão entre o falo e o amor à Dama. Causado pelo que a Dama tem de mais etéreo, a alvura da pele, o hálito, um mínimo sinal, o cavaleiro enfrenta batalhas enfurecidas e sanguinárias. Seu falo é sua espada, que ele usa para matar os inimigos. Nos campos, dormindo exausto entre uma batalha e outra, ele sonha com sua Dama. É desse amor que ele encontra a força para lutar no dia seguinte. Contudo, a Dama nunca será sua, ela pertence ao Rei. No âmago do amor cortês está sempre o adultério que não chega a ser consumado.
Doze séculos passados, nossos cavaleiros contemporâneos estão tão embaraçados com sua espada quanto um peixe de aquário diante de uma maçã. Muitos fatores estão envolvidos. Não tenho fôlego para fazer um tratado, cito apenas um ponto importante ressaltado por Rougemont: o casamento historicamente nunca foi por amor. O casamento era a conjunção possível entre o simbólico, como por exemplo a demarcação de terras e demais riquezas, e o corpo, instrumento necessário para se fazer filhos e perpetuar a fortuna. As questões do prazer, contudo, não eram incluídas nessa equação. O amor e o prazer estavam sempre do lado do adultério ou das putas.
Eis que surge a invenção do Happy end em versão para adultos. O final feliz, que nos séculos passados aparecia apenas nos contos infantis para apaziguar a angústia dos pequenos, passou a ser prometido também aos grandes. O Happy end para adultos é muito recente na história. Por vinte séculos o amor nos romances adultos sempre privilegiou o fim trágico, a não ser que fosse uma comédia no estilo A megera domada, de Shakespeare. Escolher e levar à sério o amor sempre foi uma aventura punida com a morte de seus protagonistas. Muitos situam no, ainda ingênuo, cinema do pós World War essa invenção. O cinema americano criou o ideal do final feliz, do casamento feliz. Aqui, o cavaleiro, agora transformado em herói veterano da primeira ou segunda guerra, deposita sua espada, agora uma metralhadora, e vive com sua Dama. Eles se reencontram, fazem muitos filhos, e vivem felizes para sempre.
Torturados pelo ideal do casamento feliz, mais recentemente o casamento passou a ser coisa séria. O tema de muitas consultas é o sentimento de fracasso por não conseguir amar e continuar casado com a mesma pessoa. É curioso pois até meados dos anos sessenta a solução de ter um/uma amante era um clássico. Hoje ter um amante é associado muito mais ao sentimento de ter fracassado no casamento. Todo aquele ritual simbólico não foi capaz de garantir a união. Percebam que falo algo bem distinto das ideias de Zygmunt Bauman, que se tornou um best-seller com seu livro sobre os amores líquidos.
E o que posso dizer aos cavaleiros do século XXI? Sou péssimo em conselhos e textos de autoajuda. Ainda assim diria que no mais comum dos casos, os homens que querem se casar e trocam muito de mulher, trocam seis por meia dúzia.
Trocar de mulher uma, duas vezes, pode até ser por conta do azar. Ninguém é obrigado a ser feliz casado, para esses eu não tenho nenhum conselho a dar, troquem o quanto quiserem. Mas, para aqueles que se casam e querem ficar casados por um tempo maior, eu sugiro não se deixar levar tanto pelo sentimento de que o que faz nossa vida feliz é a escolha amorosa. Diria que é mais o modo como cuidamos de nossa escolha amorosa. Quando as pessoas me perguntam se estou casado por muito tempo costumo dizer que nos últimos 35 anos casei-me umas quatro ou cinco vezes. Calhou de ser com a mesma mulher.
Marcelo Veras é Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise
A professora potiguar Débora Seabra, 33 anos, primeira educadora com síndrome de Down do país, recebeu no final de outubro o Prêmio Darcy Ribeiro de Educação 2015, em Brasília. Ela foi considerada exemplo no desenvolvimento de ações educativas no Brasil. O prêmio é promovido pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados e acontece anualmente.
Débora é formada em Magistério em nível médio na Escola Estadual Professor Luis Antônio, em Natal (RN), com estágio na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Trabalha há dez anos como professora e hoje atua na Escola Doméstica, um colégio particular da sua cidade.
A professora roda o Brasil e já foi em outros países, como Argentina e Portugal, para falar sobre o combate ao preconceito na sala de aula. Em 2013, ela lançou o seu primeiro livro, chamado “Débora conta histórias”, recheado de fábulas infantis.
“As coisas que nos assustam são em maior número do que as que efetivamente fazem mal, e afligimo-nos mais pelas aparências do que pelos fatos reais.” A sabedoria de Sêneca, na citada frase, poderia ser uma bela sinopse do que Franz Kafka apresenta na obra “A Metamorfose”, uma vez que o real parece não fazer sentido ante as aparências. Então, “Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.”
A novela do escritor tcheco inicia-se de forma incisiva, em que o protagonista da história – Gregor Samsa – encontra-se metamorfoseado num inseto gigante. Dessa forma, o início da novela já é o clímax, o que faz da obra extremamente profunda nas suas poucas páginas. Talvez não haveria como ser diferente, pois o que se pretende mostrar é a verdadeira face humana e esta parece demonstrar-se somente nos momentos de conflito.
Ao estar metamorfoseado em inseto, Gregor Samsa não é visto como de fato é, mas sim por aquilo que aparenta ser, isto é, um monstro, o qual todos tinham de suportar. Embora continuasse sendo o mesmo Gregor, perante os outros, isso não importava, pois o que enxergavam era um inseto gigante. O próprio protagonista chega, logo no início, a questionar-se sobre a sua essência:
“Estarei agora menos sensível?”
Gregor Samsa, assim, era visto como um peso para a família, a qual deveria suportar. Kafka, aqui, nos mostra a realidade da sociedade, sobretudo capitalista, que restringe o valor do ser humano ao que produz e às aparências, uma vez que, quando “normal”, era Gregor, o responsável pelo provimento da família. Contudo, ao metamorfosear-se em inseto, tornou-se impossibilitado de prover a sua família, de modo que esta, na medida em que Gregor não pode prover, perde o seu valor.
A metamorfose de Gregor evidencia que as relações sociais são pautadas pelos interesses, pois, embora o protagonista seja uma pessoa altruísta, preocupada com o bem estar da família, ele passa a ser excluído pela mesma, dado que o que a interessava em Gregor não é possível naquela situação. Essa exclusão gera um sentimento de solidão em Gregor, a qual alimenta o seu sentimento de impotência e tristeza e, por conseguinte, diversos problemas psicológicos (típicos do homem contemporâneo).
Assim sendo, o que importa são os resultados, ou seja, somente relações que possam trazer benefícios são necessárias, de tal maneira que uma relação que traga apenas custo é vista como um peso que deve ser jogado fora na primeira oportunidade. Aquele inseto gigantesco, o qual Gregor acreditava que ainda fosse ele, para a família não passava de um peso que tinha que suportar:
“Não que eles desejassem que ele morresse de fome, claro está, mas talvez porque não pudessem suportar saber mais sobre as suas refeições do que aquilo que sabiam pela boca da irmã, e talvez ainda porque a irmã os quisesse poupar a todas as preocupações, por mais pequenas que fossem, visto o que eles tinham de suportar ser mais do que suficiente.”
Como dito, o próprio Gregor se vê como um peso e sente-se na obrigação de poupar os outros daquela visão asquerosa que possuía, como se os sentimentos que o constitíssem não estivessem no mesmo lugar. Embora fosse ele que estivesse naquela situação e, portanto, devesse receber ajuda para atravessar o infortúnio, em verdade, acontecia o contrário: ele deveria esconder-se para não assustar a sua família.
“Este acontecimento revelou a Gregor a repulsa que o seu aspecto provocava ainda à irmã e o esforço que devia custar-lhe não desatar a correr mal via a pequena porção do seu corpo que aparecia sob o sofá. Nestas condições, decidiu um dia poupá-la a tal visão e, à custa de quatro horas de trabalho, pôs um lençol pelas costas e dirigiu-se para o sofá, dispondo-o de modo a ocultar-lhe totalmente o corpo, mesmo que a irmã se baixasse para espreitar.”
Essa repulsa que a família tinha ao seu aspecto representava a repulsa àquela condição que nada poderia oferecer além de trabalho. O medo já começara a transformar-se em ódio, já que, à proporção que o tempo passava, a família entendia que, naquele estado, Gregor era um peso desnecessário. Aliás, aquilo não era Gregor, não possuía sentimentos, causava pânico e colocava em choque a tranquilidade da família. Assim, aquela criatura asquerosa só poderia ser tratada da mesma forma que se aparentava. Eram necessárias medidas violentas para provocar o entendimento de Gregor.
“Mas Gregor não podia arriscar-se a enfrentá-lo, pois desde o primeiro dia da sua nova vida se tinha apercebido de que o pai considerava que só se podia lidar com ele adotando as mais violentas medidas.”
Esse ódio que a família passa a nutrir por Gregor é simbolicamente condensado na maçã que o pai o atirara. O inseto monstruoso merecia aquele ódio, pois, para a família, naquele estado, Gregor era desprovido de virtudes. Gregor acreditava ser sua a obrigação de cuidar da família – e a família agia como se o fosse -, de tal maneira que a única virtude que ele possuía era garantir os proventos e, assim, quando metamorfoseado, perde a sua única virtude, sendo merecedor do ódio da família. Afinal, o que restara?
Para a família, apenas trabalho, uma vez que agora deveria cuidar dos seus proventos, fato que lhe custava enorme energia. Ademais, tinha o “pesado” inseto gigantesco, o qual lhes consumia o resto da energia. Portanto, seria uma injustiça, por parte de Gregor, exigir mais do que faziam. Ora, ele mesmo deixou-os naquela situação de exaustão. Curioso é que Gregor, sozinho, conseguia prover tudo que a família precisava, tendo que aguentar um trabalho que não suportava, mas, ainda assim, não reclamara da família. Ele, contudo, deveria receber de bom grado tudo que sua família fazia por ele.
“Naquela família assoberbada de trabalho e exausta, havia lá alguém que tivesse tempo para se preocupar com Gregor mais do que o estritamente necessário!”
O tratamento que recebia, assim como o isolamento, fazia Gregor entristecer e perder potência, pois já não era fácil estar naquela situação e ainda ser tratado da forma como aparentava não fazia sentido para ele, já que continuava o mesmo Gregor Samsa por dentro. Ou seja, como poderia ser tratado como um monstro, se ainda sentia as mesmas coisas?
“Poderia ser realmente um animal, quando a música tinha sobre si tal efeito?”
É evidente que Gregor, em nenhum momento, foi visto como um ser com sentimentos e que precisava de ajuda, pois todos, ao seu redor, só conseguiam enxergar o superficial, o raso. Por medo? Talvez, sabemos que é preciso coragem para ter uma relação verdadeira e profunda. Mas, acima de tudo, Gregor Samsa perdera o seu valor. Não o valor que faz dele quem é, mas o valor simbólico que a sua família lhe atribui e que se restringia a provê-los.
Esse traço, hoje, parece ser ainda mais claro e nisso reside a genialidade de Kafka. As relações são líquidas e pautadas em resultados, esforçar-se por alguém está fora de questão. A sua família é incapaz de colocar-se em seu lugar, logo ele, que até ali carregava o peso da família sozinho, era visto com um fardo insuportável.
“Não pronunciarei o nome do meu irmão na presença desta criatura e, portanto, só digo isto: temos que ver-nos livres dela. Tentávamos cuidar desse bicho e suportá-lo até onde era humanamente possível, e acho que ninguém tem seja o que for a censurar-nos.”
Há de se reconhecer que ter alguém naquela situação era difícil, contudo, os relacionamentos trazem peso, esforço, e o que nos permite carregá-los é o amor – e este não existia em relação a Gregor. Além disso, a exclusão e a culpa que impunham a Gregor foram pouco a pouco o tornando mais impotente, triste e se sentindo o monstro que todos achavam.
Diante disso, só restara um fim, a morte, que representou uma libertação para sua família. A causa da morte? Uma maçã podre que carregara no seu dorso, que o fazia pesado, embora estivesse vazio; uma maçã que representava o ódio que sua família o nutria; uma maçã que o levava ao chão, como um inseto. E assim –
“… a cabeça pendeu-lhe inevitavelmente para o chão e soltou-se-lhe pelas narinas um último e débil suspiro.”
Queria ser livre como um passarinho! Voar alto no mundo, cortando o céu com meu encanto, batendo minhas asas com louvor.
Queria poder sentir a alegria do vento matreiro tocando-me a face e ter entre minhas penas o carinho das nuvens. Queria poder piar para encher de vida a vida daqueles que, do alto, são como pontos pequenininhos nas trilhas do tempo.
Um dia eu pedi mansinho: Vida, por favor, faça-me passarinho! E diferente de Kafka que acordou com antenas e casca dura, eu despertei na aurora do dia com uma vontade louca de cantar a beleza do sol.
Eu tinha penas, bico e pernas delicadas e morava em um ninho. Então eu desejei conhecer o entorno que me rodeava. Bati as asas com delicadeza e passei a voar com graça e simpatia. Quando a sede me vinha eu bebia a água das calhas dos telhados e me banhava nas fontes dos parques. Eu brincava de jogar areia pro ar e rolava no chão até cansar.
Foi então que, com o sol quase sumindo, eu quis fazer diferente e decidi voltar andando até o ninho. Quis dizer para mim que eu tinha outra opção que não voar. E pus-me a dar pulinhos e mais pulinhos, caminhando devagarzinho.
Não demorou muito para que eu começasse a me cansar. Logo minhas asas passaram a ignorar minha vontade humana e se abriram ensaiando o princípio de um voo. Eu estava indo contra a minha natureza coletiva e instintiva de pássaro. A alma humana que me habitava queria poder escolher entre andar e voar. Queria ousar, fazer diferente, contudo o pássaro em mim era incapaz de transpor a natureza que o guiava. Ele tinha um espírito coletivo de fazer o que tinha que fazer.
Então eu quis poder escolher. Desejei ter a chance de subverter a minha natureza e fazer diferente. Desejei me pintar de roxo se vontade eu tivesse. Desejei poder fazer sem explicar. Desejei sair na hora que eu quisesse, sem ficar presa aos horários do sol ou da lua. Desejei arriscar para acertar ou errar. Eu queria poder decidir por mim. Queria ter nas mãos a possibilidade de me moldar de forma única, independente dos meus instintos.
Queria ser livre como um humano! Andar rápido pelo mundo, cortando os caminhos com minha capacidade de escolha. Animada com minhas ideias mais criativas.
Queria poder sentir a alegria do vento me tocando o corpo se eu resolvesse pular de bungee jumping. Queria sentir o toque da pessoa amada não só para o sexo, mas também para a companhia. Queria poder declamar minhas poesias prediletas e com elas animar a alma dos passantes das calçadas do tempo.
Então um dia eu pedi mansinho: Vida, por favor, faça-me humana! E diferente de Kafka que acordou com antenas e casca dura, eu despertei nua, em carne e osso. Eu era um ser cheio de vontades, de loucuras, de ânsias e desejos. Eu era um ser humano e o mundo cabia direitinho dentro das minhas vontades. Fossem elas acertadas ou equivocadas, eu podia vencer a natureza instintiva que me habitava e escolher.
E naquele dia, naquele feliz dia, a minha primeira escolha seria a do pé com o qual eu tocaria carinhosamente o chão, e a minha vontade, fosse lá qual fosse, declararia mansa e serena a minha imensa gratidão por eu ser eu mesma.
Veio num domingo à tardinha, três de agosto. Chegou de uma vez, de malas, dançando com a beleza. Encheu meus silêncios de música, me contou seus começos e meios e fins. Cochilou no sofá, acordou ao meu lado, rezou comigo de manhã, antes da lida. Firme e mansa, me jogou amor na cara.
Fez a festa, pintou as paredes de riso. No ar, ventilou um hálito doce, fresco. Encontrou seu espaço, apertou os cintos e embarcou comigo na aventura do sonho. Partimos sem escalas rumo a um futuro imaginado, casório, casa, filhos, férias. Voamos alto, dividimos bagagens, a cama, o lanche, a conta do restaurante. Conhecemos nossos senões e porquês e poréns.
Miramos de perto um caminho longo, bonito, cercado de árvores e matos e flores e plantas na estrada que vai longe, imaginando como seríamos nós quando chegássemos às últimas sombras do jardim.
Trouxe comida, bebida, papel higiênico. Tentou arrumar a bagunça da casa e o tumulto de quem nela vive. Em vão. Há desordens nesse mundo que mão nenhuma organiza, conflitos eternos, internos, desarranjos permanentes.
Descobriu em mim um tumulto convicto, um olhar que se firma em nada e logo se perde de tudo, de todo. Despertou assustada no meio da noite com um barulho que estoura nas horas escondidas no vão do sofá. Teve medo do meu medo de morrer e espanto do meu jeito de me agarrar na vida. Mas que fazer? É assim. E assim as horas que ganhamos se foram.
Ficou três meses. Podiam ser três décadas, três anos, três dias, segundos. Daria no mesmo. Seu tempo ao meu lado foi o espaço exato, a eternidade de um instante. A nossa ilusão de amor eterno.
Fomos nossos. Breves almas gêmeas prematuras, nascidas e criadas no seio de um mundo de horas infinitas. Instantes que também acabam. Acabou.
A criatura de um domingo passado se foi para nunca. E eu lamento. Lamento para sempre não ter tido tempo de amá-la sequer.