“O descaso do amor”, Ita Portugal

Descasei. Sim. Fiz esse mortífero ritual. Vendi a casa. Dividi os bens. Empacotei as coisas. Comprei um lote à prestação. Estreei entrar em um closet sozinha, sentar despreocupada em restaurantes com a cadeira do lado desocupada. Sai do exílio e achei a solução sensata e genial.
Não pense que é falta de romantismo ou independência forçada, apenas resolvi dar um tempo maior e devolver a paixão de mão beijada, aliviando o peso extra que eu andava carregando, sem nenhuma necessidade. Recomecei ainda atrapalhada, mas em terra firme, isso sem falar da necessidade de encolher algumas vezes, tipo posição fetal, para compreender o tamanho da esticada que eu deveria dar para caber agora dentro deste novo mundo.
Eu tenho absoluta certeza de que essas coisas de recomeçar às vezes deixam-me debilitada; não infeliz, faminta sim por coisas menos ilusórias. As cicatrizes particulares, deixadas na minha intimidade, mostram que a minha temperatura corporal ainda está pra quente, quase fervendo, da mesma maneira que encaro minha sobrevivência com todos os mecanismos de defesa possível, graças ao batalhão de lições, cartilhas e amigas que nos socorrem desse desgovernado estado civil.
Elas inclusive ensinam tim tim por tim tim a deixar de ser passiva e seguir em busca de algo que ilumine os dias, retirando a velha sombra cheia de músculos, comum no final da tarde, após o trabalho. Sem sombras e inclusive sem as cuecas pelo chão também. Moro sozinha e ainda não comprei vasos de flores e nem cachorrinho. Aviso que vou sobreviver. 
Também não acho que é motivo para escândalo eu comparecer as festas familiares, acompanhada da chave do meu carro. Não é a primazia da fatalidade, saber que não engatei bodas de algodão com aquele sujeito bonitão, admirado por toda a minha arvore genealógica. 
Essa pausa romântica e necessária, que devolve o meu sorriso consciencioso, me deixa esfomeada para adaptar ao novo padrão e nem enfraquece com o olhar de reprovação das donas de casa e quituteiras de plantão. 
Agora, a minha grande preocupação é ocupar minha estante com os livros que me trazem benefícios e esticar minhas pernas todo final de tarde no sofá que se tornou grande, porém suporta o ardor de meu corpo cansado de ficar á deriva por ai. Minhas manifestações de docilidade tornaram-se um fanatismo, e é incrível como antes do meu atual estado civil, considerado por muitos, desamparada, desatinada; eu era tão estrategicamente nervosa, desconfiada e todos os outros atributos compatíveis de quem não vive a satisfação e segurança de uma realização afetiva. 
No atual momento, eu posso dançar em público, mesmo tendo feito feio na última aula de dança e por mil vezes seguidas, sou capaz de avaliar entre o passo e compasso que combina com os rodopios no salão ou na sacadinha do apê alugado enquanto construo a duras penas a casinha de varanda que comentei linhas atrás quando a catástrofe começou.
Por livre, espontânea, decidida e libertadora vontade, eu sei que sai do enredo desse filme mexicano, levando toda minha bagagem num pendrive amarelo, dez sacolas, vinte bolsas, oitenta sapatos e caixas conspirando com as malas, para flertar escancaradamente comigo mesma. Se tenho medo?
Não temo meu estado civil. Meu temor é estar acompanhada, sozinha. 

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Ita Portugal, in: Homens, mulheres, amores, pagina 67







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