O cativeiro psicológico e o medo de ir mais longe
Por Juliana Santin

Recentemente chegaram à minha casa dois gatos que passaram por uma situação peculiar. Após 4 anos vivendo em uma casa com total acesso a todos os espaços e convivendo ativamente com as pessoas com quem moravam foram, por motivos que não vêm ao caso aqui, confinados a um espaço único da casa, no caso, o quintal. O espaço era limitado e infinitamente menor do que o que eles estavam vivendo até então. O contato com as pessoas da casa passou a ser quase que somente nos momentos de troca de água, ração e limpeza da areia higiênica.

O que chamou minha atenção foi o seguinte: esses dois gatos estavam muito assustados e com muito medo justamente do que? Do excesso de espaço. O quintal aqui é bem amplo e eles simplesmente, ao chegarem, não tinham coragem de avançar no espaço inteiro. Limitavam-se a um pequeno espaço, que consideravam seguro, e agiam como se tivesse um campo de força invisível que os impedisse de avançar mais. Quando arriscavam-se, voltavam correndo para aquele espacinho que delimitaram como seguro.

Isso me fez refletir muito sobre isso: se gatos que viveram mais tempo com uma maior liberdade, tendo acesso a um mundo bem maior (antes, o mundo para eles era a casa inteira), ao serem confinados durante meses, acostumam-se com esse espaço menor e limitado, passando, então, a desconfiar de tudo que está fora desse espaço delimitado – ainda que esse espaço seja ruim e não apropriado para eles -, imagine só gatos que nascem e são criados já em um pequeno cativeiro?

Ora, isso se parece muito com a zona de conforto – ou de desconforto – em que nos instalamos tantas e tantas vezes e da qual temos tanto receio de sair. Muitas vezes, agimos como gatos assustados que, mesmo tendo um mundo muito mais amplo e interessante à sua disposição, não têm coragem de sair daquele pequeno espaço delimitado que os deixa seguros, mesmo que esse seja muitas vezes ruim e insuficiente.

Isso me lembrou o texto de Étienne de La Boétie, chamado Discurso da Servidão Voluntária. Esse texto, publicado por volta de 1570 e escrito quando ele tinha apenas 18 anos de idade, discute justamente essa questão: por que as pessoas obedecem determinadas regras se não tem, muitas vezes, nada nem ninguém que as faça obedecer de forma forçosa? Ele diz que mais do que tentar entender o que um tirano precisa ter e fazer para poder exercer poder sobre as massas, vale tentar entender por que as massas obedecem sem resistir.

É como se, inicialmente, fosse necessário fechar a porta impedindo a entrada dos gatos na casa, mas, depois de um tempo, não precisasse mais da barreira física. Cria-se um cativeiro psicológico, de forma que os gatos não saem mais de seu espaço mesmo que nada os impeça de fato. Eles se acostumam com os impedimentos e barreiras e passam a temer deixar aquela situação.

Tenho a impressão de que o mesmo acontece conosco. Parte desse processo já começa na educação: desde muito pequenos já somos colocados em salas de aula, somos obrigados a ficar sentados e a seguir diversas regras que, com o passar do tempo, interiorizamos como verdades inabaláveis. E quando enxergamos possibilidades de novos e infinitos mundos que poderíamos explorar, nós simplesmente paralisamos, como se houvesse o tal campo de força invisível. Não damos um passo a mais, mesmo que não haja nada nem ninguém nos impedindo.

“A liberdade é a única coisa que os homens não desejam; e isso por nenhuma outra razão (julgo eu) senão a de que lhes basta desejá- la para a possuírem; como se recusassem conquistá-la por ela ser tão simples de obter” (Étienne de La Boétie).

Criamos um roteiro de vida a ser seguido, criamos conceitos sobre nós mesmos, criamos crenças e pré-conceitos, criamos até mundos paralelos e virtuais, como o Facebook, por exemplo, onde não precisamos nem mais sair do lugar. O cativeiro está mais do que perfeito, porque não há ninguém obrigando ninguém a ficar com a cara grudada na tela do celular tendo o mundo inteiro ao seu redor, mas ficamos! E, incrivelmente, acreditamos que esse é o mundo.

Há um tempo, reduzi drasticamente meu uso do Facebook, passando a usar apenas profissionalmente e entrando muito esporadicamente com o intuito de “interagir” com os amigos. E é impressionante a quantidade de tempo que sobra no dia, tempo em que você levanta a cabeça do seu cativeiro psicológico e descobre que existe um quintal enorme à sua frente, esperando para ser explorado. E esse quintal pode ser seu quintal mesmo, literalmente, mas pode ser um livro, pessoas de carne e osso, pode ser uma música que você escuta prestando atenção, um hobby, um cachorro alegre na sua frente. E você sai desse espacinho e começa a explorar o quintal e descobre que não assusta tanto, mais. E você não quer mais voltar para aquele espaço limitado. Você volta a se acostumar com o mundo amplo à sua volta.

O mesmo ocorre quando você descobre que, apesar de ter se formado em uma faculdade, existe um mundo inteiro de outras coisas legais para aprender, estudar. Que o diploma de médica veterinária não me impede de estudar filosofia. Que o casamento às vezes não é vitalício e que a solteirice também não é. Que existem infinitos roteiros de vida que podem lhe satisfazer, assim como roteiros de viagens.

“Assim é: os homens nascem sob o jugo, são criados na servidão, sem olharem para lá dela, limitam-se a viver tal como nasceram, nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que encontraram ao nascer, aceitam como natural o estado que acharam à nascença. Mas o costume, que sobre nós exerce um poder considerável, tem uma grande força de nos ensinar a servir e (tal como de Mitrídates se diz que aos poucos foi se habituando a beber veneno) a engolir tudo até que deixamos de sentir o amargor do veneno da servidão” (Étienne de La Boétie).

Então, você descobre, inclusive, que pode, se desejar, voltar para seu espacinho anterior quando quiser, passar um tempo lá, usar seu Facebook de vez em quando, mas já não teme mais afastar-se e explorar novos mundos. Vai ficando mais corajoso, vai gostando desse mundo que se abre e ficando cada vez mais resistente ao cabresto psicológico. Vai voltando a ser aquele gato explorador, livre, que às vezes se assusta, às vezes faz umas traquinagens, às vezes não gosta do que encontra em suas explorações, mas que não se deixa limitar mais.

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Fonte indicada: Pensar Contemporâneo







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