Não posso trair a menina corajosa que mora dentro de mim

Na vida a gente se blinda como pode. Como consegue. Como é possível naquele momento que vivemos. Nem sempre nos protegemos da maneira correta, e muitas vezes preferimos nos refugiar em mentiras que nos abraçam e confortam do que encarar uma realidade nua, crua, gelada e dura.

Por algum motivo, de vez em quando a gente aceita ilusões que nos garantem algum bem-estar momentâneo, mesmo que isso nos afaste da verdade, da compreensão da vida e de suas imperfeições. Nos blindamos das decepções, mas não crescemos como deveríamos.

Na vida nos confundimos muitas vezes. Nos confundimos com os sentimentos que as pessoas dizem sentir por nós; nos confundimos com o valor que atribuímos a nós mesmos; nos confundimos ao não enxergar lobos sob a pele de cordeiros. Acreditamos nas histórias que contamos e que contam pra nós, num esforço sobre-humano de sentir que estamos seguros, que nada nos ameaça, que a vida é estática e linearmente perfeita.

Durante algum tempo, essa tática realmente funciona. Porém, quando nos refugiamos em ilusões, não adquirimos compreensão da vida. E compreender a vida, com tudo de bom e ruim que nela existe, aceitando e tolerando aquilo que nos desaponta, decepciona e até destrói um pouquinho, é o que nos faz crescer. É o motor que nos impulsiona pra frente, e nos faz entender que não podemos trair a pessoa corajosa que temos a vocação de ser.

Dentro de cada um de nós existe uma força que precisa ser explorada. Dentro de cada um há uma pessoa corajosa que precisa ser desvendada. Porém, muitas vezes traímos essa pessoa corajosa que carregamos dentro do peito. Traímos quando preferimos nos retrair e aceitar mentiras que nos protegem. Traímos quando preferimos recuar e não enfrentar a realidade dura, mas real, que existe do lado de fora. Traímos quando preferimos nos calar, fingir que não enxergamos, fingir que não ouvimos, fingir que não sentimos. Traímos quando camuflamos nossa insegurança, dúvida e medo de amar com orgulho e falsa indiferença.

Não posso trair a menina corajosa que mora dentro de mim. Não posso autorizar que o medo do sofrimento me afaste da verdade; da autenticidade em todas as relações; da capacidade de me entristecer, emocionar, alegrar ou emburrar diante daquilo que me atinge ou comove. Não posso trair a menina corajosa que escreve cartas, confronta silêncios e desafia mal-entendidos. A menina que aprendeu a crescer com os baques da vida, e por isso não os evita nem os enfeita, e sim os encara como forma de melhor compreender essa aventura linda e apavorante que é a existência.

“Por vezes as pessoas não querem ouvir a verdade, porque não desejam que as suas ilusões sejam destruídas”. Essa frase, do filósofo Nietzsche, serve para qualquer um de nós. Pois em um momento ou outro da vida, todos nós passamos por algum tipo de negação, e isso é perfeitamente normal. A negação é um dos estágios do luto, e faz parte do processo de cura. Porém, com o tempo, a negação tem que dar lugar a outros sentimentos, igualmente curativos, até que se encontre a aceitação da realidade tal qual ela é. Se ficamos estagnados na negação, enxergando apenas o que queremos ver, e não o que está bem à nossa frente, não evoluímos, não subimos degraus, não compreendemos, não agimos de acordo com a realidade, não seguimos em frente.

Quando você se refugia na negação, você se aprisiona. E não dá chance aos recomeços. Porém, quando você rompe com a negação, e decide enxergar as coisas exatamente como elas são, você se autoriza a virar o jogo; a transformar a realidade; a ter outro tipo de vida, de relacionamento, de situação. E só assim descobre que é capaz, que tem coragem, que pode suportar e reiniciar seus passos sem dor, sem desespero, e com muito mais amor…

Imagem de capa: Aleshyn_Andrei / Shutterstock

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Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.