A gente é feito de pele e osso, mas também de remendos

Dói um pouco mais depois passa. Não há como evitar pequenos traumas na vida, não dá pra fugir de alguns joelhos ralados, do sol que queimou a pele, do frio que cortou os lábios.

A gente é feito de pele e osso mas também de remendos, de regenerações, de células que renascem, se restabelecem e se reinventam.

O coração quebra às vezes, mas vai virando uma obra de arte mais bela e resistente, como a arte japonesa de kintsugi. Somos um mosaico de porcelana remendados com fios dourados.

Nossos olhos, depois de tantos tombos e tropeços, deixam de ser ingênuos, ficam espertos, mas depois de mais alguns dessabores e anestesias que criamos para nos proteger, deixamos de ser espertos também e decidimos voltar a ser sensíveis para poder degustar bem a vida.

Nessa fase a gente se torna sábio – somamos a bondade e a alegria de viver com a firmeza nos passos. Mergulhamos na vida sem tantas máscaras e amarras, com intenções verdadeiras, mas filtrando o que não agrega, o que limita os voos mais altos.

Olhamos com doçura, já não evitamos quedas, não queremos viver numa bolha que nos furtaria a própria vida, mas já sabemos nos cuidar sozinhos. Respiramos fundo, temos paciência com o tempo de cicatrização de uma ferida, tropeçamos e levantamos de imediato, limpando a poeira do corpo e seguindo em frente. A gente já não tem mais medo de se machucar, a gente tem medo de tornar a vida menor do que poderia.

Dói um pouquinho, não há como evitar. Pra gente aprender a andar de bicicleta sem rodinhas, a gente cai algumas vezes, a gente chora, mas depois a gente pode voar.

Ficam marcas na pele, emendas nos ossos, cicatrizes nos músculos. Ficam histórias na memória, aventuras e aprendizados. Fica coragem, amor e gratidão no nosso coração.

É melhor que doa um pouco alguns desses nossos passos e tropeços, é melhor que, por vezes, a gente arme nossa alma em cima de um formigueiro, e logo perceba, feche o acampamento e vá embora encontrar uma paragem em que a nossa alma possa ficar um pouco mais e se perder na imensidão de si mesma.

É melhor que a gente erre para depois acertar, é melhor que a gente experimente antes de evitar, é melhor que a gente ame antes de se transformar num autômato que passa pela vida sem se sujar.

Dói um pouco mais depois passa.

Imagem de capa: shutterstock/wavebreakmedia







Clara Baccarin escreve poemas, prosas, letras de música, pensamentos e listas de supermercado. Apaixonada por arte, viagens e natureza, já morou em 3 países, hoje mora num pedaço de mato. Já foi professora, baby-sitter, garçonete, secretária, empresária... Hoje não desgruda mais das letras que são sua sina desde quando se conhece por gente. Formada em Letras, com mestrado em Estudos Literários, tem três livros publicados: o romance ‘Castelos Tropicais’, a coletânea de poemas ‘Instruções para Lavar a Alma’, e o livro de crônicas ‘Vibração e Descompasso’. Além disso, 13 de seus poemas foram musicados e estão no CD – ‘Lavar a Alma’.