“EU SOU EU E MINHA CIRCUNSTÂNCIA, E SE NÃO SALVO A ELA, NÃO ME SALVO A MIM.” – ORTEGA Y GASSET –

Frustração, medo, tristeza, ansiedade, gratidão. 2020, o ano da contradição; o ano marco zero.

Se somos parte dos privilegiados vivos ou sobreviventes, gratos por ter um lugar onde morar, água limpa e alimentos, ainda assim nos pegamos frustrados pelos planos que a pandemia não nos deixou realizar. Ainda que pareça frívolo, tendo em vista tanta devastação, tal sentimento é legitimo, afinal fomos acostumados a nos enganar planejando o dia seguinte como se tivéssemos algum controle sobre o calendário invisível, este sim dono do que aprendemos a chamar de tempo.

Mas o que fazer com tantos sentimentos? 2020 trouxe a tona anseios, trouxe a percepção da ausência de controle e mostrou a cara da fragilidade humana. Com a rotina roubada criamos uma cobrança secreta de que precisamos produzir e roteirizar nosso dia a dia, ainda que a segunda-feira tenha se travestido de domingo. Mas a verdade é: não, não precisamos. Tudo bem não se exercitar em casa, tudo bem não meditar, não fazer cursos; somos frágeis e estamos com medo. Sentimos falta de escolher não sair, sentimos falta de ver um sorriso espontâneo na rua, de ir a feira, de não precisar higienizar o saco de café e deixar as compras desleixadamente em cima da mesa, sentimos falta do abraço com cheiro de roupa limpa e do abraço suado, sentimos falta dos que partiram, até as despedidas tornaram-se diferentes.

É tudo tão delicado, os dias parecem frágeis como um recém nascido, estamos todos recém nascidos, precisamos de um tempo de adaptação. Em 2020 adaptar-se também amedronta, porquanto concretiza que algo que não desejávamos não pode ser modificado. Mas há de haver a hora de seguir, seguir com o que nos é possível, da forma como for possível e quando acontecer, cada um terá um momento diverso, espero que possamos compreender 2020.

20 e 20, ano reflexo, eu também sou o outro; sou o berro e o silêncio, o erro e o acerto, o tapa e a saliva, e então será imprescindível ter olhos de ver, enxergar os invisíveis, os esquecidos, os não privilegiados, os que não foram compulsoriamente proibidos de andar livremente pelas ruas porque lá estão há muito tempo, compulsoriamente. Sim, compulsoriamente e não há justificativa para tamanha tristeza, todas as justificativas nada mais são do que nosso egoísmo floreado por desculpas eruditas.

A humanidade está dividida em becos, margens e cor; seremos um pouco vírus se continuarmos a negar essa realidade, se não fizermos nada para modificar a solidão dos invisíveis, dos marginados, dos excluídos.

Fazemos parte de um todo, somos medo e esperança, inteiro e metade. 2020 veio nos dizer: somos reflexo.

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Luciana Chardelli é carioca, jornalista, escritora e advogada pós graduação em Direito Penal e Processual Penal. É autora do livro "Penso, logo insisto. Um desencontro." Escreve também na Revista Obvious.