“Eu, Daniel Blake” escancara o Estado sem sentimentos

Ken Loach foi além, como há muito tempo não o fazia. “Eu, Daniel Blake” é merecedor das nossas palmas, mas também da nossa atenção. Isso porque o veterano cineasta inglês arregaça as inúmeras burocracias do Estado, onde o cidadão de bem dificilmente é ouvido e contemplado nos seus direitos. É um filme sobre a falta de sentimentos e respeitos que, ironicamente, pagamos para não termos.

O roteiro escrito por Paul Laverty é mais uma parceria de Loach que discute os problemas dos cidadãos impedidos, maltratados e ludibriados pelo governo. Esse, responsável em nos prover segurança, liberdade e bens básicos para sobrevivência. Ignorar qualquer aspecto sentimental seria injusto porque a produção é respaldada, em cada diálogo e plano-sequência, na mais profunda imersão da relação entre os poderes públicos e civis. Mas antes que esta reflexão acarrete pensamentos distorcidos ou isentos de fatores importantes, precisamos entender, nada disso ocorre sem o nosso aval, sem o nosso silêncio.

Loach já havia atentado anos atrás sobre essa relação desumana com a qual trabalhadores são escravizados em Pão e Rosas (2000), que mostrava a luta de duas irmãs mexicanas numa América altamente fervorosa contra imigrantes. Infelizmente, nada mudou muito após dezessete anos. Em “Eu, Daniel Blake”, o embate continua, mas agora na pátria mãe do cineasta. Isso mostra que, independente do país, ainda existem mecanismos e obstáculos criados para desistências de benefícios fundamentais para uma vida digna de qualquer um. E isso nada tem a ver com argumentos e regras necessárias para uma manutenção do Estado ou mesmo para controle, mas concebidas unicamente com o intuito de separar tantos Daniel´s quanto de Katie´´s – mãe de dois filhos, excludente do sistema, do afeto.

O entristecedor é que continuamos sendo desfalcados a cada interesse do Estado em tapar o sol com a peneira. Queremos fazer o certo do jeito errado e quem sofre somos nós, pais, mães, solteiros, aposentados, negros, homossexuais, trans e todas as classes que estejam cuidadosamente destacadas por uma caneta qualquer em um formulário qualquer, seja ele físico ou digital.

“Eu, Daniel Blake” é o tipo de filme que não adianta copiar e colar a sinopse. Que não adianta deferir elogios e bater palmas. Esse é o tipo de filme que você precisa chegar e assistir. Fazer essa escolha consciente, interessada e aberta, pois estamos nos aproximando da barbárie e da subjugação entre quem pode e merece algum sentimento, algum alento. Loach e Laverty realizaram um abrir de olhos e coração, mas enganam-se quem pensam ser uma mensagem de protesto unicamente ao Estado. A mensagem é destinada também a todos os dissidentes dessa violência que chega quando mais precisamos e, certamente, não pedimos.